Acessibilidade / Reportar erro

NOVOS PARADIGMAS ECOTEOLÓGICOS EM TEMPOS DE RISCO: CIÊNCIA E ECOLOGIA EM DIÁLOGO COM A TEOLOGIA * * O presente estudo tem por base a conferência proferida no International Congress of the European Society for Catholic Theology, Creation – transformation –Theology (25-28 August 2021), Osnabrück, Germany.

New Ecotheological Paradigms in Times of Risk: Science and Ecology in Dialogue with Theology

RESUMO

Este estudo identifica uma série de questões epistemológicas e fenomenológicas que convocam a ecologia e a teologia e que têm a ver com as experiências sistémicas de falência, desintegração e desmoronamento da vida quotidiana e da própria sobrevivência da vida no planeta terra, no século XXI. Procura discernir novos paradigmas com valor heurístico e operante nos processos de viragem civilizacional; novos paradigmas como lentes para melhor detetar-sentir-conhecer o planeta e a vida no planeta, numa linha de sobrevivência, de homeostasia e de salvação da realidade total. Tendo como “coerenciadores” os conceitos de Great Turning e Deep Incarnation, pretende sustentar a articulação do conceito de ecologia integral (Laudato Si’) com a ecologia profunda (Arne Naess) e com as bases fundacionais do Cristianismo. Do diálogo com alguns elementos básicos da Neurobiologia resulta a identificação de uma eco-teologia-integral-profunda, que demonstra o seu caráter operatório no mundo de hoje e que compromete, de modo vinculativo, o humano com a Terra e com a boa governança da vida do ecossistema global.

PALAVRAS-CHAVE
Grande Viragem; Sustentabilidade; Ecologia integral; Ecologia profunda; Novas epistemologias

ABSTRACT

This study identifies a series of epistemological and phenomenological questions that summon ecology and theology. They have to do with the systemic experiences of how daily life is failing, disintegrating, and collapsing as well as with the very survival of life on planet earth in the 21st century. It tries to identify new paradigms of heuristic and operative value in the processes of civilizational change and use them as lenses to better detect-feel-know the planet and life on the planet, in a situation of survival, homeostasis and salvation of reality as a whole. Taking the concepts of Great Turning and Deep Incarnation as catalysts, the aim is to support the articulation of the concept of integral ecology (Laudato Si’) with that of deep ecology (Arne Naess) and the foundations of Christianity. From the dialogue with some basic elements of Neurobiology, a profound integral eco-theology is identified whose nature is operative in today’s world, binding human beings to the Earth and to the good governance of the whole ecosystem.

KEYWORDS
Great Turning; Sustainability; Integral ecology; Deep ecology; New epistemologies

Introdução

No rescaldo da II Guerra Mundial, em 1955, o jornal sueco Dagens Nyheter colocou uma pergunta a alguns dos grandes escritores desse tempo. Tinha a ver com o lugar e o papel da religião na sustentação da paz: “Será verdade que só um sentimento de entrega a qualquer coisa acima e para além do ser humano possa criar as condições de tolerância e de compreensão entre os homens?”

O Suplemento semanal L’Express, do jornal Les Échos, publicou, em exclusividade para a França, a resposta de André Malraux (MALRAUX, 1955MALRAUX, A. L’Homme et le Fantôme. L’Express, [S. l.], n. 104, 1955., p. 23). Desta resposta, transcrevemos duas breves frases, que veiculam uma justificação ilustrativa para a emergência de uma busca do “profundo” nas décadas seguintes, quer ao nível da religião, quer ao nível da antropologia, quer ao nível da ecologia, e de cujo significado e interesse pretendemos dar conta no presente estudo. Na resposta de Malraux, intitulada L’Homme et le fantôme, lê-se: “Toda a civilização moderna… substitui um fantasma às noções profundas de homem que as grandes religiões tinham elaborado”; e conclui, reforçando: “O drama da civilização do século das máquinas não é que tenha perdido os deuses, pois ela perdeu-os menos do que se diz: é que tenha perdido toda a noção profunda de homem.” (MALRAUX, 1955MALRAUX, A. L’Homme et le Fantôme. L’Express, [S. l.], n. 104, 1955., p. 23).

Notamos, com interesse, a preocupação de Malraux com a perda de profundidade. Ela fornece-nos um contexto indireto para ler os movimentos e deslocações de pensamento que, poucos anos mais tarde, na década de 70, se formalizam, por exemplo, na criação e substancialização do conceito de ecologia profunda (NAESS, 1973NAESS, A. The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movements. A Summary. Inquiry, [S. l], v. 16, p. 95-100, 1973., DEVALL; SESSION, 1985). Mas este não é um movimento episódico; ele integra um processo mais abrangente, designado Great Turning, Grande Viragem (SHINDLER; LAPID, 1989SCHINDLER, C; LAPID, G. Great Turning: Personal Peace, Global Victory. Santa Fé-México: Bear &Company Publishing, 1989.). A orientação geral desta Grande Viragem é para a vida e para a ecologia, mas na direção do profundo.

O movimento avança até aos nossos dias. No início do século XXI, no âmbito da teologia cristã, Niels Henrik Gregersen forja o conceito de Deep Incarnation (GREGERSEN, 2002GREGERSEN, N. H. The Cross of Christ in an Evolutionary World. Dialog: A Journal of Theology, [S. l.], v. 40, n. 3, p. 192-207, 2001., p. 192, GREGERSEN, 2016GREGERSEN, N. H. Deep incarnation: From deep history to post-axial religion. HTS Teologiese Studies/Theological Studies, Cape Town, v. 72, n. 4, p. 3428, 2016., p. 1-2). Passa a ser um importante campo de investigação em teologia cristã, assumido, por exemplo por Celia Deane-DrummondDEANE-DRUMMOND, C.; ARTINIANO KAISER, Rebecca (Eds.). Theology and Ecology across the Disciplines: on care of our Common Home. London: Bloomsbury Publishing, 2018. e Edwards DenisEDWARDS, D. Deep Incarnation: God’s redemptive suffering with Creatures. New York: Orbis Books Publisher, 2019.. O próprio conceito de ecologia integral, apresentado pelo Papa Francisco em 2015, na carta encíclica Laudato si’, no capítulo IV (FRANCISCO, 2015FRANCISCO. Carta Encíclica “Laudato Si’” (24 de maio de 2015). Disponível em: https://www.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si_po.pdf. Acesso em: 21 maio 2022.
https://www.vatican.va/content/dam/franc...
, nºs 137-162), denota esta tendência metodológica para uma episteme profunda.

É neste âmbito que situamos o presente estudo. Pretendemos articular esta tendência heurística e epistemológica das últimas décadas com elementos básicos da neurociência, tendo em vista a substancialização de uma eco-teologia-integral-profunda, à altura dos tremendos desafios que a humanidade e o planeta enfrentam neste tempo.

Ao longo dos dois últimos anos, 2020-2022, o planeta mergulhou em contextos inéditos de caos, de incerteza, de confinamentos, de isolamento, de distância, de furor, de ruido, de agitação, de fluxos, de destruição, de doença, de depressão, de agonia, de desamparo, de solidão, de morte e de sobrevivência: expressões da pandemia ecológica (crise ecológica planetária) e da pandemia sanitária (Sars-Cov-2) que, em simultâneo, vergam o humano, neste primeiro quartel do século XXI, a uma experiência de vulnerabilidade global, talvez jamais experienciada. Fui buscar a Michel Serres sábias palavras que incentivam a olhar o fenômeno multifacetado do nosso tempo tal como ele se dá, múltiplo, em bruto; diz ele: “o múltiplo, enquanto tal, em bruto, raramente unificado, não é um monstro epistemológico; pelo contrário, é o ordinário das situações, incluindo as situações do estudioso comum, incluindo os conhecimentos habituais e o trabalho diário, em suma, incluindo o nosso objeto comum.” (SERRES, 1983SERRES, M. Genèse. Paris: Bernard Grasset, 1983., p. 21).

A metodologia é, assim, fenomenológica, existencial e hermenêutica, balizada por uma bibliografia de referência nos âmbitos da Ciência, da Ecologia e da Religião; visa uma epistemologia dos fenômenos do nosso tempo, sobre o qual o sociólogo e filósofo Zigmunt Bauman se pronuncia em termos de Retrotopia, (BAUMAN, 2018BAUMAN, Z. Retrotopia. Cambridge: Polity Press, 2018.) e a filósofa e historiadora política Chantal Delsol em termos de Renúncia (DELSOL, 2011DELSOL, C. L’âge du renoncement. Paris: Cerf, 2011.), expressões que dão título a obras destes autores.

A aprendizagem a partir do fenômeno é um trabalho de conhecimento imperioso que nos coloca num momento epistemológico ao mesmo tempo fascinans et tremendous. Como ler esta fenomenologia? É certo que a visão crítica com que se inicia este estudo, enferma, à primeira vista, do fato de o ângulo de visão ser claramente europeu, assim como a maior parte das fontes bibliográficas que constituem o seu referencial teórico serem europeias e anglo-saxónicas. É um pensamento contextualizado, e o leitor saberá integrar este pressuposto como chave de leitura. Tal não significa indiferença ou qualquer tipo de desvalorização das vozes que ressoam a partir do Sul, ou de outros pontos do planeta. Trata-se, tão simplesmente, de pontos de vista diferentes da mesma realidade global, e esta é o denominador comum e que desafia a todos.

1 A ‘Grande Desintegração’. Fracasso sistémico da sustentabilidade do planeta

Ao longo das duas primeiras décadas do século XXI, o planeta terra tem vivido um profundo e contínuo fracasso sistêmico da sustentabilidade tanto do planeta como da vida no planeta, que culmina, no ano 2020, na tremenda perturbação planetária causada pelo vírus Sars-CoV-2. As duas pandemias ativas no tempo presente — ecológica e sanitária — exprimem a desintegração e o colapso do mundo que somos, a “grande desintegração”, sobre a qual fala Joanna Macy.

O planeta terra e a vida a nível planetário encontram-se numa encruzilhada histórica, dominada pela experiência da vulnerabilidade, da fragilidade, da incerteza, do risco, e da interdependência extensiva e intensiva de todas as formas de vida, para o melhor e para o pior. Não se trata, certamente, do ‘fim do mundo’, mas do ‘fim de um mundo’ (Michel Egger) — o mundo que conhecemos e que ajudámos a construir — em dessincronização aguda das “regras e regulamentos da homeostasia”. Entenda-se aqui homeostasia como “o conjunto de procedimentos reguladores que possibilitou a vida logo quando esta floresceu nos primeiros organismos unicelulares” (DAMÁSIO, 2020DAMÁSIO, A. Sentir e saber: a caminho da Consciência. Lisboa: Temas e Debates, 2020., p. 35). Sendo o objetivo da vida a sobrevivência, a maneira mais lógica de conseguir sobreviver é seguir os ditames da homeostasia. Nas palavras do neurocientista António Damásio, esta é, então, “uma compilação de regras sobre ‘como fazer’, executadas, inexoravelmente, de acordo com um manual de ordens implícitas”, com competência oculta e com inteligência não explícita, encarregue da curadoria da vida.” (DAMÁSIO, 2020DAMÁSIO, A. Sentir e saber: a caminho da Consciência. Lisboa: Temas e Debates, 2020., p. 32)

Encontramo-nos, portanto, em modo de sobrevivência, num planeta em risco de colapso e com o ser humano em risco de implosão, num momento em que três das nove Fronteiras Planetárias – propostas por uma equipe internacional de cientistas, na revista Ecology and Society, em 2009, para definir os limites de segurança ambiental dentro dos quais a humanidade pode atuar – foram atravessadas: a integridade da biosfera, os fluxos bioquímicos e as alterações climáticas já estão para além da zona de incerteza (alto risco); a mudança no sistema terrestre e a diversidade biológica estão em zona de risco crescente. Nas palavras dos autores:

A Terra entrou numa nova época, o Antropoceno, onde os seres humanos constituem o motor dominante da mudança para o Sistema Terra (CRUTZEN, 2002CRUTZEN, P. Geology of Mankind. Nature, United Kingdon, v. 415, n. 6867, p. 23, 2002., STEFFEN et al., 2007). O crescimento exponencial das atividades humanas está a suscitar a preocupação de que uma maior pressão sobre o Sistema Terra possa desestabilizar sistemas biofísicos críticos e desencadear mudanças ambientais abruptas ou irreversíveis que seriam deletérias ou mesmo catastróficas para o bem-estar humano.

As pressões antropogénicas sobre o Sistema Terra atingiram uma escala em que já não se pode excluir a ocorrência de mudanças ambientais globais abruptas. Propomos uma nova abordagem à sustentabilidade global, na qual definimos limites planetários dentro dos quais esperamos que a humanidade possa operar em segurança.

(ROCKSTRÖM et al, 2009ROCKSTRÖM, J. et al. Planetary boundaries: exploring the safe operating space for humanity. Ecology and Society, [S. l], v. 14, n. 2, 2009. Disponível em: http://www.ecologyandsociety.org/vol14/iss2/art32/. Acesso em: 02 mar. 2018.
http://www.ecologyandsociety.org/vol14/i...
, p. 32).

O ano de 2021 desfez a ilusão dos mais céticos relativamente ao diagnóstico das alterações climáticas, já em curso: temos presente as imagens terríficas das inundações na Alemanha, Bélgica, Países Baixos, em pleno verão, em paralelo com as ondas de calor, acompanhadas de incêndios devastadores, nos EUA, na Grécia, na Sibéria e na Turquia.

A atual “dessincronização sistémica” dos fenômenos planetários é um momento epistemológico sem precedentes na nossa história, em razão da globalização do sobressalto existencial, epistêmico e ético que desencadeia. Torna-se imperativo, portanto, um trabalho de lucidez, discernimento e consideração, a partir da leitura e conhecimento da fenomenologia do tempo presente. Faço eco novamente das palavras de Hannah Arendt, que presidem a este estudo: “trata-se apenas de refletir sobre o que estamos fazendo” (ARENDT, 2007ARENDT, H. A condição humana. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007., p. 13).

Num tempo de elevado risco ecológico global, nunca como hoje foi necessária uma antropologia teológica, uma teologia cristã da criação e uma teologia da ecologia capazes de acompanhar os esforços das ciências, no estabelecimento de um racional, ver, de um ecological básico, open science, open access. Como modelo cognitivo e interpretativo da realidade alargada, este ecological básico poderá ajudar a humanidade a restaurar-recriar-reimaginar-considerar o planeta e a vida no planeta, na base da ‘aliança intensiva’ entre: o viver de recursos generosamente oferecidos pela natureza mineral, vegetal e animal; o viver com essa mesma natureza em regime de reciprocidade simbiótica; e o viver para a homeostasia do ecossistema, pondo a inteligência consciente e a empatia humana ao serviço não só de condições sempre mais favoráveis à sobrevivência, mas também ao serviço do bem-estar, da vida boa, do ‘Bien Vivir’, de todas as criaturas, tendo em conta a diversidade de necessidades e de expetativas. Para tal, alerta o neurocientista António Damásio, “Devemos respeitar a inteligência, fenomenal e ainda incompreendida, da natureza” (DAMÁSIO, 2020DAMÁSIO, A. Sentir e saber: a caminho da Consciência. Lisboa: Temas e Debates, 2020., p. 268).

Entendamos aqui a expressão restaurar não como mero sinônimo de recriar; recriar é portador do sentido de novidade, de fazer novo; restaurar tem em si a ideia de cuidado, de cura, de restabelecimento. A esta luz, tem sentido unir as duas — restaurar e recriar — no mesmo processo de consideração do ecossistema global. Note-se que Restauração é a palavra que as Nações Unidas escolhem para lançar a chamada Decade on Ecosystem Restoration, sobre a qual o Papa Francisco se pronuncia nos seguintes termos: “Restaurar a natureza que danificamos significa, em primeiro lugar, restaurarmo-nos a nós próprios. Ao saudarmos esta Década das Nações Unidas sobre a Restauração do Ecossistema, sejamos compassivos, criativos e corajosos. Que possamos tomar o nosso devido lugar como uma ‘Geração de Restauração’.” (FRANCISCO, 2021FRANCISCO. Mensagem de Sua Santidade o Papa Francisco por ocasião do lançamento pelas Nações Unidas da Década da Restauração do Ecossistema. Vaticano, 27 de maio de 2021. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/pont-messages/2021/documents/papa-francesco_20210604_messaggio-ecosistema.html. Acesso em: 10 jul. 2021.
https://www.vatican.va/content/francesco...
).

2 Labirinto planetário: a lição de Ícaro e Dédalo

A realidade fenomênica impõe-se. No início da década de 70 do século passado Jacques Ellul já se exprimia assim:

Estamos a viver a experiência de um mundo fechado. Nunca houve tantas aberturas: avanços científicos pelas extensões mais espantosas da tecnologia, secularização do pensamento e da civilização, abertura de portas ao ‘cosmos’; no entanto, nunca o Homem se sentiu tão encerrado, tão confinado, tão impotente.

(ELLUL, 1973ELLUL, J. L’Espérance oubliée. Paris: Gallimard, 1972., p. 3)

Meio século mais tarde confirma-se e agudiza-se esta experiência. A sensação é a de estarmos todos numa espécie de labirinto planetário. Pensamos em Ícaro, personagem da mitologia grega. Através dele já conhecemos um dos riscos da fuga pelas alturas. Então, poderá ser a profundidade uma estratégia de saída? Terá Michel Serres razão quando diz que “a angústia é guia de vida e a inquietude anuncia o novo”? (SERRES, 1983SERRES, M. Genèse. Paris: Bernard Grasset, 1983., p. 216) Cavar subterrâneos e avançar com todo o peso do labirinto sobre nós, atravessar em profundidade, já que o levantar voo ou o deslizar à superfície não são caminho de saída e de vida?

Como Dédalo, as gerações presentes no mundo de hoje têm a responsabilidade histórica de encontrar estratégias-modelos baseadas, por um lado, numa objetiva avaliação da situação à qual se pretende responder e, por outro, na adaptação correlativa entre o sistema de interpretação e o sistema de ação. Falar-se de um novo paradigma requer, portanto, todo um trabalho prévio de identificação e de validação de modelos que “demonstrem o seu carácter operatório” (GEFFRÉ, 1990GEFFRÉ, C. La théologie au sortir de la modernité. In: DUCRET, R.; HERVIEU-LEGER, D.; LADRIERE, P. (Coords.). Christianisme et modernité. Paris: Cerf, 1990. p. 189-209., p. 190), na situação histórica. Mesmo assim, a incerteza marca estes processos. Em tempo de pandemia, o centenário Edgar Morin escreve aos seus contemporâneos, lembrando que: “a gestação de um novo paradigma faz-se na dor e no caos, sem que por isso possamos ter a certeza de que ele possa emergir e se impor”. (MORIN, 2020MORIN, E. Changeons de voie. Lessons du coronavírus. Paris: Denoël, 2020., p. 26).

A fenomenologia pandêmica do mundo real — ecológica e sanitária — e a experiência sincrônica e sistêmica do fenômeno podem ser kairós para abrir caminhos para novos paradigmas: lentes para melhor detetar-sentir-conhecer o planeta e a vida no planeta, numa linha de sobrevivência, de homeostasia e de bem-estar para todos os seres vivos. Novos paradigmas que guiem e velem pela segurança e bem-estar do espaço onde o ser humano opera. É o caso das Fronteiras Planetárias já referidas. Pensamos que estas podem funcionar como algoritmos de segurança ambiental planetária, entre outros algoritmos básicos, por exemplo, ao nível da educação das gerações presentes e nascentes e ao nível de uma “ética da consideração”, a qual projetamos para as conclusões deste estudo. São novos paradigmas, na medida em que tenham valor heurístico e operante nos processos urgentes e imperativos de viragem civilizacional, de transformação radical dos estilos de vida no planeta e na construção de uma nova epistemologia teológica, antropológica e cosmológica. Tal construção implica que todas as áreas de saber e de produção de conhecimento se façam acompanhar de uma reflexão sobre si mesmas, desenvolvendo uma ‘consciência epistemológica’ que entre na elaboração do próprio conhecimento (LADRIÈRE, 1990LADRIÈRE, J. Le christianisme et le devenir de la raison. In: DUCRET, R.; HERVIEU-LEGER, D.; LADRIÈRE, P. (Coords.). Christianisme et modernité. Paris: Cerf, 1990. p. 211-231., p. 214; DEANE-DRUMMOND, 2006DEANE-DRUMMOND, C. Wonder and Wisdom: Conversations in Science, Spirituality and Theology. London; Darton: Longman and Todd, 2006.) e que vise, ao mesmo tempo, uma inteligibilidade acessível ao humano comum.

3. A ‘Grande Viragem’: extensão, profundidade, pertença

No meio de tanta ruína e escombros, uma ‘pulsão de vida’, não radicalmente nova, mas radicalmente alargada e profunda, resiste e desafia a pulsão de destruição e de morte, que parece conduzir os destinos do planeta e da vida no planeta, hoje.

Uma imagem vale mais do que 1000 palavras. Motivo de notícia internacional, o acontecimento foi noticiado como “O cisne de luto”: no dia 23 de dezembro de 2020. Dois cisnes tentaram sobrevoar a linha de alta velocidade que liga Kassel e Gottingen, na Alemanha, mas um deles chocou com um poste de alta tensão e caiu morto para a linha férrea. A ligação foi interrompida, provocando um atraso de 50 minutos em 23 comboios, visto as autoridades não conseguirem afastar e afugentar o cisne sobrevivente que se recusava a abandonar o local. Os bombeiros tiveram de usar equipamento especial para retirar os dois cisnes dos carris e o “cisne de luto” foi depois libertado no rio Furla.

Em razão do destaque e atenção que lhe é concedido, tomo este acontecimento como símbolo de toda uma mudança de mentalidade em curso, no que respeita à consideração da vida; uma Grande Viragem para a vida e para a ecologia. Nos finais do século XX, aproximando-se o fim do século e o início de um novo milênio, a ideia de que um tempo de grande transição estava próximo foi partilhado por muitos. Nestes, inclui-se de modo emblemático Schindler e Lapid com a obra intitulada, precisamente, The Great Turning: “Há muitos sinais prometedores de que a humanidade está a virar-se para a vida. A consciência e preocupação sobre a ameaça ao nosso ambiente global nunca foi tão grande.” (SCHINDLER; LAPID, 1989SCHINDLER, C; LAPID, G. Great Turning: Personal Peace, Global Victory. Santa Fé-México: Bear &Company Publishing, 1989., p. 9). Os autores pretendem que este livro seja como que um apelo para ajudar a última década do século XX, época de transição profunda, “a alcançar uma vitória sobre as ameaças causadas pelo ser humano ao nosso próprio futuro” (SCHINDLER; LAPID, 1989SCHINDLER, C; LAPID, G. Great Turning: Personal Peace, Global Victory. Santa Fé-México: Bear &Company Publishing, 1989., p. 10, CRUTZEN, 2002CRUTZEN, P. Geology of Mankind. Nature, United Kingdon, v. 415, n. 6867, p. 23, 2002., p. 23). Com o trabalho intensivo da ecofilósofa Joanna Macy, quer em escritos, quer em milhares de conferências e dinamização de movimentos pelo mundo, a expressão Great Turning, originalmente avançada por Schindler e Lapid, torna-se, por um lado, representativa das dinâmicas e dos processos de contestação das sociedades de crescimento industrial e, por outro lado, representativa da mudança para uma civilização que sustente a vida.

Tal Grande Viragem está bem patente no processo de mudança, por exemplo, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948, onde o foco é o ser humano e a sua independência, até a Carta da Terra, no ano 2000; desenvolveu-se, de fato, um movimento de progressiva deslocação e alargamento do acento no ser humano independente para a interdependência. Da Declaração Universal dos Direitos Humanos à Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra (2010) e à Lei da Mãe Terra e do Desenvolvimento Integral e para o Bem-estar, promulgada na Bolívia por Evo Morales, em 15 de outubro de 2012, o foco nos direitos e liberdades individuais alarga-se aos direitos da comunidade maior da vida. Isso representa uma grande viragem, uma nova compreensão crítica do antropocentrismo, um “estilo” de pensar mais extensivo, mais intensivo, mais profundo, mais vinculativo, mais inclusivo e mais afetivo. (VARANDA, 2020VARANDA, I. Extra naturam nulla salus? O drama e a esperança da criação e da religião na era do Antropoceno. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v. 24, n. 64, p. 21-42, 2020. Disponível em: https://worldhappiness.report/ed/2020/. Acesso em: 23 de fev. 2021.
https://worldhappiness.report/ed/2020/...
, p. 21-42). Estes são alguns dos documentos notáveis onde encontramos refletida a mudança, ao longo do século XX, desde a valorização dos indivíduos isolados até ao reconhecimento da pertença intrínseca a toda a comunidade da terra e ao cosmos. (MICKEY, 2017MICKEY, S. et al. The Variety of Integral Ecologies: Nature, Culture, and Knowledge in the Planetary Era. New York: SUNY Press, 2017., p. 13).

A este movimento evolutivo e de viragem, vem juntar-se o Papa Francisco com a carta encíclica Laudato Si’, em 2015: “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar (LS, n. 13). A encíclica reconhece o valor intrínseco de todas as criaturas e a sua interdependência, e tal é um primeiro passo de valor imenso. O esforço de Francisco em ordem a uma epistemologia ecológica, iluminada pelo evangelho cristão, culmina no conceito de ecologia integral, que, na Laudato Si’, se traduz no reconhecimento do valor de todas as criaturas, no reconhecimento de que todas as criaturas estão ligadas e são interdependentes e na abrangência de tudo o que diz respeito ao humano: dimensão pessoal, religiosa, social, ambiental, cultural, política, espiritual e da vida quotidiana (LS, n. 137-162).

No entanto, a encíclica não avança para um reconhecimento intrínseco de afiliação do humano à Terra, nem avança para o compromisso com o corpo da terra, nem para a consideração do humano como elemento desse corpo, da mesma natureza — afiliação telúrica – que não dilui, antes fortaleceria, a sua “dignidade peculiar” (LS, n. 154) e a sua responsabilidade singular. Na realidade, à luz da própria Encarnação até à Cruz, este reconhecimento não entraria em colisão com a afiliação divina, antes a plenificaria. (VARANDA, 2020VARANDA, I. Extra naturam nulla salus? O drama e a esperança da criação e da religião na era do Antropoceno. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v. 24, n. 64, p. 21-42, 2020. Disponível em: https://worldhappiness.report/ed/2020/. Acesso em: 23 de fev. 2021.
https://worldhappiness.report/ed/2020/...
, p. 21-42)

Para o nosso propósito, importa salientar que, no processo de receção da encíclica, esta é valorizada, por exemplo,

a) Na extensão do horizonte salvífico a todas as criaturas e ao processo de evolução criativa, esbatendo, assim, a clássica focalização antropocêntrica das soteriologias cristãs;

b) Na medida em que deixa pontos de partida para o cristianismo repensar a teologia da criação, a soteriologia, a escatologia, tendo em conta os saberes das diferentes disciplinas científicas;

c) Ao reconhecer os vínculos intrínsecos entre todas as criaturas, nos quais se desenvolve e dos quais emerge, em aparente paradoxo, a irredutível autonomia dos indivíduos humanos – comunhão de autonomias — e se evidenciam as “leis intrínsecas” de cada um e de todos os seres;

d) Ao pretender ser eco do grito da Terra pobre e dos gritos dos Pobres da terra. Se há epistemologia a fazer, e parece-nos imperioso que se faça também no contexto europeu, na esteira do caminho já iniciado, e em curso, no contexto da América Latina e transversal ao hemisfério Sul, ela deve ser ressonância destes gritos, instruída nas margens e nos abismos existenciais de onde emergem movimentos globais de justiça social, com destaque para Black Lives Matter, Mee Too, Caminheros, Migrantes, Refugiados, Populações Indígenas.

Para aprofundar a ligação entre o grito do Pobre e o Grito da Terra, o World Happiness Report1 2020 pode ser um instrumento útil, pelo seu alcance e pela representatividade global dos dados qualitativos e quantitativos, e porque, pela primeira vez, é dedicado um capítulo às problemáticas ambientais, sob o ângulo social, urbano e natural, analisando a relação entre o ambiente natural e a felicidade experimentada pelas pessoas. Podemos ler na introdução:

Este capítulo reflete a crescente consciência do papel importante que o ambiente natural desempenha na nossa felicidade. É o primeiro da série World Happiness Report a analisar como a qualidade ambiental molda a forma como nos sentimos e como avaliamos as nossas vidas... A importância do ambiente para as pessoas parece universal em todo o mundo.

(WORLD HAPINESS REPORT, 2020, p. 97)

À luz destes contributos da encíclica Laudato Si’, e a partir do conceito de ecologia integral, nela desenvolvido e acima descrito, poderia articular-se, com benefício, o conceito de ecologia profunda, termo forjado pelo norueguês Arne Naess, na década de 70. No artigo que intitula: “The Shallow and the Deep, Long-range Ecology Movements” (NAESS, 1973NAESS, A. The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movements. A Summary. Inquiry, [S. l], v. 16, p. 95-100, 1973., p. 95-100), através do conceito de ecologia profunda, e em sintonia com o pensamento de Aldo Leopold e de Rachel Carson, ele pretende descrever uma relação mais profunda e mais espiritual com a natureza. Naess considera que a essência da ecologia profunda reside na procura contínua de questões de investigação sobre a vida humana, a sociedade e a natureza, para além do nível do conhecimento meramente científico, ou seja, uma procura contínua que vá até ao nível do “Self” e da Sabedoria da Terra. Doze anos mais tarde, Bill Devall e George Sessions dedicam um livro a George Naess e intitulam-no, precisamente: Deep Ecology (DEVALL; SESSIONS, 1985DEVALL, B.; SESSIONS, G. Deep Ecology. Utah: Gibbs M. Smith, Inc. Peregrine Smith Books, 1985.). Os dois autores dão continuidade à tese de Arne Naess, reforçando a ideia de que a ecologia profunda não se limita a uma abordagem superficial dos problemas do ambiente, antes procura articular uma abrangente visão religiosa e filosófica do mundo. Ao substancializarem o conceito, Devall e Sessions avançam até às fundações da ecologia profunda, fundações estas que são, na tese dos autores, as intuições básicas e a experiência de nós próprios e da Natureza, das quais faz também parte a consciência ecológica. (DEVALL; SESSIONS, 1985DEVALL, B.; SESSIONS, G. Deep Ecology. Utah: Gibbs M. Smith, Inc. Peregrine Smith Books, 1985., p. 65)

4 Eco-teologia-integral-profunda. Para uma civilização que ama o mundo e sustenta a vida

Uma hipótese de investigação preferencial enuncia-se, aqui, nesta articulação da ecologia integral com a ecologia profunda e com os pilares fundacionais da teologia cristã da criação. Por outras palavras, dizer ecologia integral em religião significa eco-teologia-integral-profunda, ou seja, uma teologia da ecologia, integral, no sentido da Laudato Si’ (FRANCISCO, 2015FRANCISCO. Carta Encíclica “Laudato Si’” (24 de maio de 2015). Disponível em: https://www.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si_po.pdf. Acesso em: 21 maio 2022.
https://www.vatican.va/content/dam/franc...
) e profunda, no sentido de Naess, Devall e Sessions e Gregersen (NAESS, 1973NAESS, A. The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movements. A Summary. Inquiry, [S. l], v. 16, p. 95-100, 1973., DEVALL; SESSIONS, 1987, GREGERSEN, 2016GREGERSEN, N. H. Deep incarnation: From deep history to post-axial religion. HTS Teologiese Studies/Theological Studies, Cape Town, v. 72, n. 4, p. 3428, 2016., p. 1-12). Uma eco-teologia-integral-profunda revela potencial para reencontrar e sintonizar o mistério cristão da Incarnação e a novidade da geografia religiosa que Jesus o Nazareno inaugura: do céu à terra, do Altíssimo transcendente ao Alteríssimo imanente, da metafísica à intrafísica, da altura à profundidade. Este potencial de incarnação é brilhantemente explorado por Gregersen, ao forjar e desenvolver o conceito de “incarnação profunda”; neste, Gregersen vê expressa uma visão radical da encarnação que implica uma encarnação no próprio tecido da existência biológica e do sistema da natureza, e que, ao mesmo tempo, também se revela operante no horizonte de uma cristologia cósmica. (GREGERSEN, 2002GREGERSEN, N. H. The Cross of Christ in an Evolutionary World. Dialog: A Journal of Theology, [S. l.], v. 40, n. 3, p. 192-207, 2001., p. 193, GREGERSEN, 2016GREGERSEN, N. H. Deep incarnation: From deep history to post-axial religion. HTS Teologiese Studies/Theological Studies, Cape Town, v. 72, n. 4, p. 3428, 2016., p. 1).

Mas toda uma epistemologia teológica resta a construir, a partir desta intuição básica e primordial e da divulgação de conhecimento de outras áreas científicas, por exemplo, ao nível da neurociência, da biotecnologia, da física quântica e da nanotecnologia. Portanto, uma epistemologia a construir que desenvolva uma teologia profunda da Terra, começando por fazer uma avaliação crítica:

a) Das forças e das fraquezas da sua teologia ao longo dos séculos: marcada por ambivalências, ambiguidades e dualismos “anti-ecológicos”, a par com extraordinárias “potencialidades” e intuições ecológicas (EGGER, 2012EGGER, M. M. La terre comme soi-même. Repères pour une écospiritualité. Genève: Labor et Fides, 2012., p. 79-80);

b) informada pelos saberes científicos, concretamente das biologias e das neurociências, que fornecem informações extraordinárias, upgrades dinâmicos sobre a vida, e que podem constituir verdadeiros kairós para uma teologia da ecologia (DEANE-DRUMMOND, 2008DEANE-DRUMMOND, C. Eco-Theology. London: Saint Mary Press, 2008., p. 9-15).

Vejamos, a partir de contributos recentes das neurociências, como uma nova episteme pode ser sistémica e osmótica sem pôr em causa a especificidade de cada área do saber.

Na mais recente publicação do neurocientista português, radicado nos EUA, António Damásio, Sentir e saber – A caminho da consciência, encontram-se elementos que permitem perseverar no aprofundamento da intuição de uma eco-teologia-integral-profunda, à altura de uma renovada teologia da criação e a ela conducente, e com importância para os processos de sobrevivência, para a homeostasia dos ecossistemas globais e para a boa governança da vida. Cito António Damásio:

No ramo da história da vida em que nos encontramos podemos identificar três fases evolutivas distintas e consecutivas. A primeira fase teve como auge o ser (a esta fase corresponde a capacidade de detetar – que evolui para uma forma primitiva de sentir e esta para uma forma primitiva de pensar). A segunda é dominada pelo sentir (o sentir que se constrói com sentimentos e não com a mera possibilidade de detetar aquilo que nos rodeia). A terceira fase é definida pelo processo do saber (cognição e consciência). Curiosamente, algo de semelhante a essas 3 fases acontece na mesma sequência em todos os seres humanos contemporâneos. As fases do ser, do sentir e do saber estão ligadas a sistemas anatómicos e funcionais separáveis que coexistem dentro de cada ser humano e nos quais, na idade adulta, se acede conforme necessário.

(DAMÁSIO, 2020DAMÁSIO, A. Sentir e saber: a caminho da Consciência. Lisboa: Temas e Debates, 2020., p. 50).

Este terceiro estádio — de consciência e de saber – no qual estão presentes o sentimento e o raciocínio criativo, permite o objetivo da sobrevivência, comum a todas as formas de vida, mas acrescentando-lhe o objetivo do bem-estar. E Damásio reforça: “O objetivo da sobrevivência e os ditames da homeostasia continuam em vigor ainda hoje, tanto em criaturas unicelulares, como as bactérias, como em nós, mas o tipo de inteligência por detrás do processo é diferente nas células isoladas e nos seres humanos.” (DAMÁSIO, 2020DAMÁSIO, A. Sentir e saber: a caminho da Consciência. Lisboa: Temas e Debates, 2020., p. 50).

Chegamos aqui a um ponto crucial e é a hipótese de trabalho que ponho à consideração do leitor: o ser humano desativou e deixou atrofiar a consciência prática das competências básicas do ser: sensing-detectar, comum a todas as formas de vida, e feeling-sentir, comum à maior parte das formas de vida, separando-se, assim, das outras formas de vida. Este afastamento, juntamente com a falta de experiência consciente das atividades básicas do detetar e do sentir (operações que, no entanto, estamos a processar constantemente) está na raiz da desfiliação do humano do corpo cósmico e do corpo da Terra, e na raiz das derivas gnósticas e cartesianas, facilitadoras e promotoras do comportamento humano de exploração e de dominação em vez de empatia e de consideração com amor.

Esta separação da consciência das funções básicas da vida comum permitiu ao ser humano a instrumentalização das outras formas de vida e do ecossistema planetário. Sobrevalorizamos a separação à pertença, a razão humana sobre as inteligências não explícitas. Vemos onde nos trouxe: relações de dominação e de exploração. Parece-nos que este é o contexto que está implícito na resposta de André Malraux ao jornal Dagens Nyheter, em 1955, onde fala da “perda da noção profunda de homem”, e o mesmo está magistralmente descrito na obra emblemática de Hannah Arendt sobre a condição do homem moderno, publicada dois anos mais tarde. Apesar de tudo, faça o humano o que fizer, esteja disto consciente ou não, ele vive intrinsecamente ligado a todos os seres vivos: “O mundo – artifício humano – separa a existência do homem de todo o ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e, através da vida, o homem permanece ligado a todos os outros seres vivos” (ARENDT, 2007ARENDT, H. A condição humana. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007., p. 10).

Então, reverter o caminho da separação, e tornar existencialmente consciente a irredutibilidade do vínculo de pertença, pode ser caminho possível para as gerações do século XXI: valorizar a pertença, o vínculo profundo, a empatia com toda a criação, como tão genialmente notou o Padre da Igreja Basílio de Cesareia, que numa das suas homilias sobre o Hexaéméron, no século IV, se expressa assim: “(Deus) liga estreitamente pela lei de uma indissolúvel amizade, numa comunhão e harmonia, a criação inteira” (BASÍLIO DE CESAREIA, 1968BASÍLIO DE CESAREIA. Homélies sur l’Hexaéméron, Sources Chrétiennes. Cerf: Paris, 1968. v. 26., p. 149). Talvez tenha chegado o tempo de a humanidade explorar esta possibilidade.

É aprofundando o conhecimento que tem de si como um ser carnal, fazendo a experiência da sua vulnerabilidade, da sua finitude e da sua falibilidade, e explorando o sentir na sua dimensão pática (senciente compassiva) bem como das camadas primitivas do vivido que o sujeito experimenta a sua pertença ao mundo comum. Ele sente então a profundidade do laço unindo-o aos outros seres vivos, humanos e não humanos, e ao conjunto das gerações.

(PELLUCHON, 2018PELLUCHON, C. Éthique de la Considération. Paris: Seuil, 2018., p. 254).

A esta luz, todas as categorias antropocêntricas necessitam de ser revisitadas para explorar o seu potencial de extensão às outras formas de vida e de adequação à especificidade fenotípica, ou seja, às características morfológicas, fisiológicas e mesmo comportamentais de cada indivíduo. Com estas luzes parece surgir mais claro o horizonte de uma eco-teologia-integral-profunda, como paradigma para uma renovada episteme da vida.

Conclusões e perspectivas

No seio da criação evolutiva, o homo sapiens-culturalis é capaz de cultivar e destruir, capaz de dar vida e de dar morte, capaz de amorizar e de demonizar a vida. O reconhecimento desta ambivalência da natureza humana, da qual Erich Fromm fala em termos de “life-loving and death-loving tendencies” (FROMM, 1953FROMM, E. War within man: A psychological Enquiry into the Roots of Destructiveness. American Friends Service Committee, 1963., p. 5-6), apela a uma “ética da consideração” expressão colocada em título na obra magistral de Corine Pelluchon, publicada em 2018 — pela qual se possa reduzir a distância entre o pensamento e a ação e se formulem normas ambientais e sociais suscetíveis de serem compreendidas interiormente e respeitadas.” (PELLUCHON, 2018PELLUCHON, C. Éthique de la Considération. Paris: Seuil, 2018., p. 263).

O termo consideração é usado na linguagem comum como fórmula de delicadeza para exprimir estima e apreço por uma pessoa; pela negativa, desconsideração e baixa consideração, está associada a falta de respeito, rudeza, desvalorização, banalização e ligeireza. Interessa-nos, particularmente, o sentido que a etimologia nos introduz. O verbo considerar, considerare, vem de cum sideris (genitivo de sidus), que designa uma constelação de estrelas. Acompanhando a incursão de Pelluchon no Dictionnaire universel de la langue française lemos que “a consideração é o fato de olhar qualquer coisa ou alguém com tal atenção como se se tratasse de examinar a posição e a altura dos astros” (PELLUCHON, 2018PELLUCHON, C. Éthique de la Considération. Paris: Seuil, 2018., p. 31). Pelluchon destaca o prefixo cum que sugere um esforço de atenção e que, ao mesmo tempo, sublinha o vínculo entre a relação a si próprio e o conhecimento do que está acima de si e à volta de si.

Inspirando-se em Bernardo de Claraval, a Ética da Consideração, desenvolvida pela filósofa francesa, tem como objetivo “preencher a distância entre a teoria e a prática, o pensamento e a ação, uma distância que, tendo em conta os desafios com os quais somos confrontados atualmente, se tornou o problema maior da moral e da política” (PELLUCHON, 2018PELLUCHON, C. Éthique de la Considération. Paris: Seuil, 2018., p. 13). A ética da consideração é, assim,

um modo de ser adquirido ao longo de um processo de transformação de si…. Não se trata de dizer que se pode passar sem as normas, mas de compreender de que modo elas podem ser incorporadas pelos indivíduos, para que eles tenham acesso a partir do interior e para que elas os comprometam tanto afetivamente quanto intelectualmente.

(PELLUCHON, 2018PELLUCHON, C. Éthique de la Considération. Paris: Seuil, 2018., p. 12).

A esta luz, uma ética e uma política da consideração pode ser, por um lado, matriz propulsora de diálogo entre todas as heurísticas, todas as hermenêuticas, todas as epistemologias, tendo em conta os respetivos níveis de especialização; pode ser, também, por outro lado, algoritmo dinâmico de uma ética salutar para a vida comum e de uma política salutar para a vida comum, na medida em que o horizonte político da consideração se manifesta essencialmente como “preocupação com o mundo” (PELLUCHON, 2018PELLUCHON, C. Éthique de la Considération. Paris: Seuil, 2018., p. 133).

Enfim, a caminho do segundo quartel do século XXI, importa discernir e considerar o modelo de comunidade humana e biótica que gostaríamos de ser, com a qual gostaríamos de viver e que decidiremos construir. Uma eco-teologia-integral-profunda pode ajudar na construção de uma inteligibilidade da vida e do mundo, aberta, profunda, acessível ao humano comum, e que possa ser inspiradora para todas as gerações hoje.

As opções educativas, que a situação histórica do mundo de hoje exige, derivam das nossas decisões e opções de sociedade, de vida-comum e de poder-comum. Um novo paradigma educacional em tempos de risco global precisa de conter, explicitamente, áreas de desenvolvimento e de aprendizagens essenciais no que respeita à vida, ao valor da vida, ao valor intrínseco de todas as criaturas, à dignidade da vida humana, ao bem comum, ao sentido de pertença à humana communitas e esta à comunidade bioplanetária e cósmica e à possibilidade de consideração do planeta, do mundo e da vida de todas as criaturas, com empatia e amor.

  • 1
    Desde 2013, a base central dos relatórios tem sido a Sustainable Development Solutions Network (SDSN) e o Center for Sustainable Development (CSD) na Universidade de Columbia, dirigido por Jeffrey D. Sachs.
  • *
    O presente estudo tem por base a conferência proferida no International Congress of the European Society for Catholic Theology, Creation – transformation –Theology (25-28 August 2021), Osnabrück, Germany.

Referências

  • ARENDT, H. A condição humana 10.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
  • BAUMAN, Z. Retrotopia Cambridge: Polity Press, 2018.
  • BASÍLIO DE CESAREIA. Homélies sur l’Hexaéméron, Sources Chrétiennes Cerf: Paris, 1968. v. 26.
  • BIBLIOGRAPHY in Ecological Ethiques and Eco-Theology A-Z. Wildman’s
  • Weird Wild Web. Disponível em: https://people.bu.edu/wwildman/WeirdWildWeb/proj_bibs_ecoethics_01.htm Acesso em: 25 nov. 2021.
    » https://people.bu.edu/wwildman/WeirdWildWeb/proj_bibs_ecoethics_01.htm
  • CRUTZEN, P. Geology of Mankind. Nature, United Kingdon, v. 415, n. 6867, p. 23, 2002.
  • DAMÁSIO, A. Sentir e saber: a caminho da Consciência. Lisboa: Temas e Debates, 2020.
  • DEANE-DRUMMOND, C. Wonder and Wisdom: Conversations in Science, Spirituality and Theology. London; Darton: Longman and Todd, 2006.
  • DEANE-DRUMMOND, C. Eco-Theology London: Saint Mary Press, 2008.
  • DEANE-DRUMMOND, C.; ARTINIANO KAISER, Rebecca (Eds.). Theology and Ecology across the Disciplines: on care of our Common Home. London: Bloomsbury Publishing, 2018.
  • DELSOL, C. L’âge du renoncement Paris: Cerf, 2011.
  • DEVALL, B.; SESSIONS, G. Deep Ecology Utah: Gibbs M. Smith, Inc. Peregrine Smith Books, 1985.
  • EGGER, M. M. La terre comme soi-même Repères pour une écospiritualité. Genève: Labor et Fides, 2012.
  • ELLUL, J. L’Espérance oubliée Paris: Gallimard, 1972.
  • EDWARDS, D. Deep Incarnation: God’s redemptive suffering with Creatures. New York: Orbis Books Publisher, 2019.
  • FRANCISCO. Carta Encíclica “Laudato Si’” (24 de maio de 2015). Disponível em: https://www.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si_po.pdf Acesso em: 21 maio 2022.
    » https://www.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si_po.pdf
  • FRANCISCO. Mensagem de Sua Santidade o Papa Francisco por ocasião do lançamento pelas Nações Unidas da Década da Restauração do Ecossistema Vaticano, 27 de maio de 2021. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/pont-messages/2021/documents/papa-francesco_20210604_messaggio-ecosistema.html Acesso em: 10 jul. 2021.
    » https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/pont-messages/2021/documents/papa-francesco_20210604_messaggio-ecosistema.html
  • FROMM, E. War within man: A psychological Enquiry into the Roots of Destructiveness. American Friends Service Committee, 1963.
  • GEFFRÉ, C. La théologie au sortir de la modernité. In: DUCRET, R.; HERVIEU-LEGER, D.; LADRIERE, P. (Coords.). Christianisme et modernité Paris: Cerf, 1990. p. 189-209.
  • GREGERSEN, N. H. The Cross of Christ in an Evolutionary World. Dialog: A Journal of Theology, [S. l.], v. 40, n. 3, p. 192-207, 2001.
  • GREGERSEN, N. H. Deep incarnation: From deep history to post-axial religion. HTS Teologiese Studies/Theological Studies, Cape Town, v. 72, n. 4, p. 3428, 2016.
  • HELLIWELL, J. F.; LAYARD, R.; SACHS, J.; DE NEVE, J.-E. (Eds). World Happiness Report 2020. New York: Sustainable Development Solutions Network, 2020. Disponível em https://worldhappiness.report/ed/2020/ Acesso em: 16 maio 2021.
    » https://worldhappiness.report/ed/2020/
  • LADRIÈRE, J. Le christianisme et le devenir de la raison. In: DUCRET, R.; HERVIEU-LEGER, D.; LADRIÈRE, P. (Coords.). Christianisme et modernité Paris: Cerf, 1990. p. 211-231.
  • MALRAUX, A. L’Homme et le Fantôme. L’Express, [S. l.], n. 104, 1955.
  • MICKEY, S. et al The Variety of Integral Ecologies: Nature, Culture, and Knowledge in the Planetary Era. New York: SUNY Press, 2017.
  • MORIN, E. Changeons de voie Lessons du coronavírus. Paris: Denoël, 2020.
  • NAESS, A. The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movements. A Summary. Inquiry, [S. l], v. 16, p. 95-100, 1973.
  • PELLUCHON, C. Éthique de la Considération Paris: Seuil, 2018.
  • ROCKSTRÖM, J. et al Planetary boundaries: exploring the safe operating space for humanity. Ecology and Society, [S. l], v. 14, n. 2, 2009. Disponível em: http://www.ecologyandsociety.org/vol14/iss2/art32/ Acesso em: 02 mar. 2018.
    » http://www.ecologyandsociety.org/vol14/iss2/art32/
  • SCHINDLER, C; LAPID, G. Great Turning: Personal Peace, Global Victory. Santa Fé-México: Bear &Company Publishing, 1989.
  • SERRES, M. Genèse Paris: Bernard Grasset, 1983.
  • SHELDON, J. Rediscovery of Creation: A Bibliographical Study of the Church’s Response to the Environmental Crisis. Metuchen: Scarecrow Press, 1992. (ATLA Bibliography Series, 29).
  • VARANDA, I. Extra naturam nulla salus? O drama e a esperança da criação e da religião na era do Antropoceno. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v. 24, n. 64, p. 21-42, 2020. Disponível em: https://worldhappiness.report/ed/2020/ Acesso em: 23 de fev. 2021.
    » https://worldhappiness.report/ed/2020/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2022
  • Aceito
    27 Jul 2022
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) Avenida Doutor Cristiano Guimarães, 2127 - Bairro Planalto, Minas Gerais - Belo Horizonte, Cep: 31720-300, Tel: 55 (31) 3115.7000 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: editor.pt@faculdadejesuita.edu.br