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UM CAMINHO SINODAL: ECLESIOLOGIA NA PRELAZIA DO XINGU E SUA PRÁTICA SOCIOAMBIENTAL

A Synodal Path: Ecclesiology in the Xingu Prelacy and its Socio-Environmental Practice

RESUMO

Neste artigo, o objetivo é apresentar o caminho sinodal, o qual faz da Prelazia do Xingu uma atriz relevante política e socioambiental no conflito socioambiental causado pelo projeto da hidrelétrica de Belo Monte em Altamira no Pará. A fundamentação teórica, à luz da sinodalidade, relê a eclesiologia do Concílio Vaticano II e sua recepção nas conferências do CELAM, nas Assembleias dos bispos na Amazônia e nas assembleias prelatícias. O método foi a análise de conteúdo que dispõe de elementos diacrônicos para a crítica dos diversos níveis da estrutura eclesial e sincrônicos para exame doutrinal à luz dos documentos eclesiais e fontes próprias da pesquisa como as entrevistas. Os resultados da análise permitem a compreensão da relevância social e política da ação evangelizadora da Prelazia do Xingu, da década de 70 até os dias atuais, como fruto de uma Igreja essencialmente sinodal.

PALAVRAS-CHAVE
Igreja Católica; Sinodalidade; Amazônia; Conflitos socioambientais; Belo Monte

ABSTRACT

This article aims to present the synodal path taken by the Prelacy of Xingu, a relevant political and socio-environmental actor in the socio-environmental conflict caused by the Belo Monte hydroelectric project in Altamira, Pará. In the light of synodality, the theoretical foundation reviews the ecclesiology of the Second Vatican Council and its reception in the CELAM conferences, in the Assemblies of Bishops for the Amazon and in the assemblies of prelates. The method adopted was that of analysis of content where diachronic elements supported the criticism of the different levels of ecclesial structure, and synchronic elements allowed for a doctrinal examination based on ecclesial documents and research sources such as interviews. The results of the analysis provide understanding of the social and political relevance of the evangelizing action of the Xingu Prelacy, from the 70s to the present day, as a result of an essentially synodal Church.

KEYWORDS
Catholic Church; Xingu Prelacy; Ecclesiality; Synodality; Amazon

Introdução

O modelo de desenvolvimento imposto na Amazônia brasileira, desde a invasão colonial, acentuado no regime militar e na presente fase neodesenvolvimentista (BRESSER-PEREIRA, 2016BRESSER-PEREIRA, L. C. Teoria novo-desenvolvimentista: uma síntese. Cadernos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, v. 11, n. 19, p. 145-165, jul./dez. 2016.) é muito questionável do ponto de vista de uma ecologia integral. Essa percepção exigiu o posicionamento contrário que se encontra no coração do pensamento ecológico católico e, por sua vez, presente na prática dos atores internos da Prelazia do Xingu. Há meio século, essa Igreja desenvolve uma práxis pastoral de formação de agentes eclesiais de bases socioambientais. Analisar o lugar socioambiental dessa organização e, consequentemente, a resistência dos seus agentes e comunidades, é relevante tanto do ponto de vista da invisibilidade dessa ação nos estudos socioambientais, quanto pela atuação nos conflitos abrigados em sua circunscrição.

Nesta perspectiva, analisamos descritivamente a Igreja Católica em sua circunscrição eclesiástica da antiga Prelazia do Xingu, hoje Diocese, e o porquê da sua participação nos conflitos socioambientais da região. Partimos da premissa que esta Igreja particular é uma atriz1 importante dos conflitos socioambientais2 na região do rio Xingu, especificamente naqueles que envolveram a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte – UHBM, por ter liderado os atores que permaneceram contrários à construção da obra. Nesse processo, destacaram-se ações em prol dos direitos humanos e dos direitos da natureza. Nessa senda, a Igreja adquiriu reconhecimento social e político por seus pares, desde os inícios dos anos 1970, na defesa dos interesses da população local, sobretudo dos mais pobres. E esse reconhecimento aumentou com o conflito gerado pela construção da UHBM devido ao seu posicionamento, cujo fundamento está na doutrina socioambiental da Igreja.

A Prelazia do Xingu teve participação direta no processo de formação dos movimentos sociais da região, em uma Igreja comunidade de comunidades, nas Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e nos projetos de desenvolvimento para a região do Xingu. Sua incidência sociopolítica é o resultado do caminho sinodal percorrido do Concílio Vaticano II — CVII, às conferências do Conselho Episcopal Latino Americano — CELAM, bem como nos encontros da Conferência dos Bispos do Brasil — CNBB (encontro dos Bispos da Amazônia). Segundo Miranda (2020)MIRANDA, T. N. de O. Igreja e território, entre o tempo, o espaço e os conflitos: discursos e práticas sobre Belo Monte. Nova Revista Amazônica, Bragança, v. 3, n. 03, p. 129-149, 2020., a construção do discurso de atuação da Igreja do Xingu estava atrelada a sua gênese, às concepções de mundo e de modelos de desenvolvimento econômico.

1 Organização eclesial e conceitos básicos

Para se entender a atuação hodierna da Prelazia, faz-se necessário compreender o caminho sinodal que esta circunscrição eclesiástica percorreu, desde o próprio movimento de renovação da Igreja Católica. Apresentar os resultados da análise dos dados da investigação é mostrar as condições de possibilidade da Igreja no Xingu construir a sua identidade sinodal. É a partir desta premissa que se apresenta, então, o desenvolvimento da reflexão.

1.1 A compreensão da Igreja

A abordagem teológica sobre a origem da Igreja é uma tarefa complexa. Exige considerar aspectos como: a sua realidade de mistério e comunhão fundados na Trindade; o evento histórico Jesus Cristo, o Pentecostes, o fato cristão (pregação apostólica e nascimento das comunidades); os ministérios e a progressiva organização dessas comunidades; assim como a relação da Igreja com outras instituições no mundo, em particular o Estado e seus similares. Porém, a pretensão da ideia primeira, consiste em enfatizar o surgimento histórico da Igreja como instituição inserida na sociedade. Considerando-a, portanto, como instituição presente na história, ainda que não se possa desvincular do teológico.

O Catecismo da Igreja Católica (IC) define Igreja:

Na linguagem cristã, a palavra Igreja designa a assembleia litúrgica (126), mas também a comunidade local (127) ou toda a comunidade universal dos crentes (128). Estes três significados são, de facto, inseparáveis. «A Igreja» é o povo que Deus reúne no mundo inteiro. Ela existe nas comunidades locais e realiza-se como assembleia litúrgica, sobretudo eucarística. Vive da Palavra e do Corpo de Cristo, e é assim que ela própria se torna Corpo de Cristo.

(CIC, 2005CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2005., n. 752).

No caso da apresentação da Igreja, a partir do CVII, as referências mais adequadas para vê-la em sua relação com o mundo e sua natureza são respectivamente: a Constituição Pastoral Gaudium et spes (oferece uma visão sobre a Igreja no mundo), e a Lumen gentium (como a Igreja se compreende a si mesma, partindo não da estruturação hierárquica, mas do sentido de Igreja como Povo de Deus). Documentos que serão abordados mais à frente.

Encontra-se a autodefinição da IC em quatro níveis da organização geográfica, hierárquica e sinodal: global, continental, nacional e local. Global, sediada no Vaticano, onde o Pontífice é a autoridade, como bispo de Roma (VATICANO, 2020); continente americano, Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM, com sede em Bogotá, Colômbia (CELAM, 2009CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Estatutos CELAM 2009. Bogotá, 2009.); nacional, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB com sede em Brasília (CNBB, 2020CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Quem somos. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/quem-somos/. Acesso em: 12 maio 2020.
https://www.cnbb.org.br/quem-somos/...
); e, local, quando nos referimos à Prelazia do Xingu, hoje Diocese do Xingu-Altamira, com sede em Altamira no Pará.

1.2 Dos Níveis de Organização, Autoridade e da sinodalidade

Etimologicamente, sínodo vem da junção de duas palavras gregas sin juntos, hodós caminho. A sinodalidade é o modo pelo qual a Igreja se faz Igreja, participação e comunhão em vista da sua missão. O Papa Francisco convoca toda Igreja a uma instituição sinodal, muito além da colegialidade, que neste caso é exercida pelos bispos. Por isso, as definições da identidade, das grandes questões teológicas, a participação, a comunhão são temas discutidos e fundamentais do último concílio, tratadas nos sínodos recentes e nas assembleias continentais, nacionais e locais.

A autoridade na doutrina católica deve se expressar na sinodalidade de seus membros reunidos em assembleias. Essas reuniões, dependendo do nível, recebem denominações distintas: concílios, sínodos, conferências, assembleias. Sobre os concílios, o CVII (1962-1965) atualizou a identidade católica, a que o bispo de Roma tem a missão de salvaguardá-la em todas as suas dimensões como doutrina, definições, organização, princípios, valores (VATICANO, 2000COMPÊNDIO DO CONCÍLIO VATICANO II. Constituições, Decretos, Declarações. Constituição Dogmática Lumen Gentium. 29.ed. Petrópolis: Vozes, 2000.). Por isso, o Papa, como bispo da sede da Igreja, tem a primazia sobre todas as igrejas particulares. O Concílio é a reunião de bispos, na qual são atualizados sinodalmente os conteúdos da fé, entendido como aquilo que constitui a doutrina dessa instituição (CIC, n. 167) Para as questões ordinárias e correntes da vida da Igreja universal, conta-se com a assembleia do sínodo dos bispos, reuniões periódicas convocadas pelo sumo pontífice para a discussão de pontos específicos e relevantes da vida da Igreja e do mundo.

O sínodo da Amazônia foi um exemplo expressivo de modelo de governo. O encontro reuniu 250 participantes em Roma (6 a 27 de outubro de 2019); presentes os bispos da Amazônia continental e convidados. O resultado foi o documento do Papa Francisco intitulado Querida Amazônia (2019).

Para América Latina e Caribe, a colegialidade episcopal se dá na reunião dos bispos que se denomina Conselho Episcopal Latino-Americano, e se define como um organismo de comunhão, reflexão, colaboração e serviço, como instrumento colegiado dos bispos latino-americanos em comunhão com a Igreja Universal. (CELAM, 2009CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Estatutos CELAM 2009. Bogotá, 2009., Art. I n. 1). As autoridades do CELAM são as suas Assembleias Extraordinárias, chamadas de Conferências, que recebem o nome da cidade latino-americana onde são realizadas. Elas são cinco até o momento. A primeira aconteceu no Rio de Janeiro, em 1955; a segunda em Medellín, Colômbia, em 1968; a terceira, em Puebla, no México, em 1979; a quarta, em 1992, na capital da República Dominicana, Santo Domingo; e a quinta, e última, aconteceu no Brasil, em 2007, na cidade de Aparecida, São Paulo (CELAM, 2009CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Estatutos CELAM 2009. Bogotá, 2009.).

Outro nível de sinodalidade está nas conferências episcopais nacionais. No caso brasileiro é a Conferência Episcopal dos Bispos do Brasil – CNBB. Segundo o artigo 27 do Estatuto Canônico da CNBB, a Assembleia, órgão supremo da CNBB, “é a expressão e a realização maiores do afeto colegial, da comunhão e corresponsabilidade dos Pastores da Igreja no Brasil”. Reúne-se, ordinariamente, uma vez por ano e, extraordinariamente, quando, para fim determinado e urgente, sua convocação for requerida (Estatuto Canônico da CNBB, art. 31). A linha hierárquica da CNBB é a seguinte: “Assembleia Geral, Presidência, Conselho Permanente, Conselho Administrativo/Econômico, Consep, Secretariado Geral”. (CNBB, 2020CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Quem somos. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/quem-somos/. Acesso em: 12 maio 2020.
https://www.cnbb.org.br/quem-somos/...
). Ordinariamente, os bispos se reúnem todos os anos desde 2011 em Aparecida.

As dioceses ou prelazias são o último nível de identidade sinodal eclesial católica. Elas são unidades territoriais chamadas de Igrejas particulares, que se conformam na materialização geográfica, ou seja, uma região administrativa que tem autonomia jurídica civil e canônica própria. O documento do último concílio Lumen Gentium (Luz dos Povos), nos números 23 e 27, diz que ela é uma comunidade episcopal, pois está guiada pelo bispo do lugar (CVII, Lumen Gentium, 1997CONSTITUIÇÃO Dogmática Lumen Gentium. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997.). O Código do Direito Canônico — CDC diz que: “A diocese/prelazia é uma porção do povo de Deus confiada ao pastoreio do bispo com a cooperação do presbitério [clero], de modo tal que [...] constitua uma Igreja particular, na qual está verdadeiramente presente e operante a Igreja de Cristo, una, santa, católica e apostólica” (CIC, n. 369).

Na diocese, a instância da sinodalidade que define a Igreja local é representada pelas assembleias, no caso de Dioceses são denominadas diocesanas, e, das Prelazias, prelatícias. Na antiga Prelazia do Xingu, a primeira assembleia aconteceu do dia 11 a 14 de novembro de 1984 com o tema Unir para libertar (PRELAZIA DO XINGU, 1984PRELAZIA DO XINGU. Relatório da Primeira Assembleia do Povo de Deus. Altamira, 1984.). Elas são nomeadas de Assembleias do Povo de Deus do Xingu. Assume-se essa nomenclatura a partir da CNBB, pela qual as Assembleias diocesanas ou prelatícias passam a ser denominadas assembleias do Povo de Deus. O bispo é a autoridade maior em sua diocese ou prelazia segundo os cânones 1560 e 1594.

A sinodalidade do bispo de Roma, Papa, com a Igreja, nas diferentes regiões do mundo – continentes e países (Conselho das Conferências Gerais, Conferências Episcopais Nacionais), rege-se em sua totalidade a partir de documentos com orientações jurídicas (CIC ou CDC) e doutrinais. Esses níveis de sinodalidade expressam o modo de autocompreensão da IC. A Igreja é a comunhão dessas diferenças. Por isso, em todas as definições dos níveis, o termo mais frequente é comunhão, “afeto colegial” (CNBB, 2020CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Quem somos. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/quem-somos/. Acesso em: 12 maio 2020.
https://www.cnbb.org.br/quem-somos/...
). Essas diferenças são inerentes à Igreja desde seus primórdios e partem da mesma concepção do Deus cristão, que são três pessoas em unidade (simultaneamente, uno e trino) como se pode ver na confissão de fé católica (CIC, 2005CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2005., n. 198).

2 Sinodalidade doutrinal da Igreja assumidas pela Prelazia do Xingu

Entender a sinodalidade e a Igreja como sinodal é compreender sua identidade. A IC é uma instituição sinodal. E assim é sua forma de governo como ilustrado acima. Teoricamente, esse modo de ser Igreja se realiza nos últimos eventos eclesiais.

2.1 Concílio

Na teologia acadêmica, a eclesiologia é a disciplina que estuda as diferentes concepções e os diferentes modos de ser Igreja. O CVII, as Conferências do CELAM, as Assembleias da CNBB e as Assembleias da antiga Prelazia Xingu são unânimes em afirmar, orientadas pelo CVII, que a Igreja é todo o povo de Deus, expresso na constituição dogmática LG. Esse documento fala que a Igreja é “os que creem em Cristo [...] pois constituem ‘uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo de sua particular propriedade... que outrora não o era, mas agora é o povo de Deus (LG, n. 9). Isto é relevante para entender a práxis da Igreja no Xingu.

Congar (1971)CONGAR, Y. Ministères et Communion Ecclésiale. Paris: Cerf, 1971. afirma que a constituição dogmática Lumen Gentium apresenta uma revolução. A Igreja deixa de ser um tratado de direito público e passa a ser comunhão de fiéis. O CELAM assumiu com muita força este último traço. Na América Latina, a Igreja é concebida como uma organização dos e para os pobres. Acompanham o CVII, em sua concepção de Igreja, os Conselhos Episcopais Continentais, as Conferências Episcopais Nacionais e, logo, as dioceses e prelazias. Desde o Vaticano II até o pontificado do Papa Francisco, reafirma-se este modo de ser Igreja

A Igreja local é a porção do povo de Deus que vive ali, e o bispo é seu pastor. Nesse sentido, o Papa Francisco, na linha do CVII, sobre o bispo na Constituição Apostólica, Episcopalis Communio, diz:

Assim, o Bispo é, simultaneamente, mestre e discípulo. É mestre quando, dotado duma assistência especial do Espírito Santo, anuncia aos fiéis a Palavra de verdade em nome de Cristo cabeça e pastor. Mas é também discípulo, quando ele, sabendo que o Espírito é concedido a cada batizado, se coloca à escuta da voz de Cristo que fala através de todo o Povo de Deus, tornando-o “infalível “in credendo”.

(FRANCISCO, 2015FRANCISCO, Papa. Discurso aos Padres Sinodais na abertura dos trabalhos sinodais. Acta Apostolicae Sedis 107, 2015. p. 1136-1138., n. 19–21)

Dentro dessa perspectiva, o CVII, na América Latina, apontou em duas direções: histórica e teológica. Historicamente, muito da produção acadêmica desde o CVII até o presente momento é realizado como diacronia, uma leitura temporal-linear dos fatos e acontecimentos dessa instituição. A ênfase está nos grandes eventos eclesiais e episcopais: concílio e assembleias. Sua preocupação é muito mais cronológica e muito menos sistemática. A segunda, é a perspectiva teológica. A teologia latino-americana colaborou com a realização da tarefa de recepcionar o Concílio no continente, quer seja nas conferências do CELAM, quer seja na tradução desses documentos para a vida das comunidades. Vale ressaltar que a atualização do CVII é algo permanente. Nesse caso, a sua recepção3 trata de um movimento realizado permanentemente por toda a Igreja. Na presente referência às Conferências Gerais, que são as reuniões do episcopado latino-americano e caribenho, a recepção se deu com a efetiva participação de teólogos, por isso a relevância dessa segunda perspectiva. No entanto, é toda a Igreja que recepciona o CVII. As conferências do CELAM, em especial, Medellín (1968) e Puebla (1979), foram responsáveis por semear o conteúdo do concílio aplicado à realidade, e colher os frutos dessa semeadura.

2.2 Sinodalidade na Igreja na América Latina

Medellín e Puebla foram as duas Assembleias do CELAM que traduziram os documentos do CVII para o continente Latino-Americano. Seus objetivos eram deliberar suas ações eclesiais afinadas com a identidade cultural e atenção às necessidades locais (MANZATTO, 2007MANZATTO, A. As primeiras conferências do CELAM. Vida Pastoral, São Paulo, n. 249, p 3-8, 2007.). Estes eventos resultaram em dois grandes marcos eclesiais e definiram os rumos sociais das igrejas locais. O acolhimento do CVII chega com uma novidade: a Teologia da Libertação. Trata-se, primeiramente, da recepção do Concílio pela Igreja na América Latina e no Caribe, na II Conferência Geral de seu Episcopado em Medellín (1968). Em estreita sintonia com as orientações da Igreja para a ação evangelizadora, desenvolveu-se essa corrente teológica autóctone. Não obstante, não foi sem grandes conflitos a novidade eclesial.

2.2.1 Medellín

O Documento final da Assembleia de Medellín (CELAM, 1968CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Conclusões da II Conferência do Episcopado Latino Americano. Medellín, CELAM, 1968.), que se deu no período de 26 de agosto a 07 de setembro de 1968, aponta para duas noções relevantes. A primeira é do seu objetivo maior, ou seja, a recepção do terminado Concílio. A segunda noção está no título do documento final, que deixa claro o rumo dos próximos anos: “Presença da Igreja na atual transformação da América Latina à luz do CVII”. Do episcopado brasileiro, sobressaíam os coetâneos Dom Avelar Brandão Vilela, que era o cardeal da arquidiocese de Salvador e presidente do CELAM naquela Conferência (VATICANO, 1971VATICANO. Apostolicae sedis commentarium officiale. An. et Vol. LXIII. Cidade do Vaticano: Typis Polyglottis Vaticanis, 1971., p. 313); Dom Helder Câmara, arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife, declarado em 2015 “Servo de Deus”, indicado quatro vezes ao prêmio Nobel da Paz e patrono dos Direitos Humanos no Brasil (NORDSTOKKE, 2015NORDSTOKKE K. Câmara, Dom Hélder Pessoa (Bishop). In: Gooren, H. (Eds.). Encyclopedia of Latin American Religions. Cham: Springer, 2015.); Dom Aloisio Lorscheider, que foi presidente da CNBB por dois mandatos consecutivos de 1971 a 1975 e 1975 a 1978 (OLIVEIRA, 2013OLIVEIRA, M. Nenhuma partida é inútil. Brasília: CNBB, 2013.); Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba. No final do Concílio, juntos com outros bispos, assinaram o Pacto das Catacumbas da Igreja Serva e Pobre, um documento de duas páginas nas quais os signatários assumiam o compromisso de viverem pobres, sem privilégios e comprometidos com o mundo do pobre (BEOZZO, 2015BEOZZO, J. O. Pacto das Catacumbas: por uma igreja servidora e pobre. São Paulo: Paulinas, 2015.).

Nas sessões da Assembleia, os temas das reflexões também se concentraram na análise da realidade continental. Gustavo GutiérrezGUTIÉRREZ, G. Teologia da libertação: perspectivas. Petrópolis: Vozes, 1975. afirma, nesse sentido, que:

Três foram os grandes temas de Medellín: Promoção humana; Evangelização e crescimento na fé; Igreja visível e suas estruturas. Foram produzidos 16 documentos, no horizonte dos três grandes temas citados: I) Justiça, Paz, Família, Demografia, Educação, Juventude. II) Pastoral popular, Pastoral de elites, Catequese, Liturgia. III) Movimentos de Leigos, Sacerdotes, Religiosos, Formação do Clero, Pobreza da Igreja, Pastoral de Conjunto, Meios de Comunicação.

(GUTIÉRREZ, 1998GUTIÉRREZ, G. A atualidade de Medellín. In: CELAM. Conclusões da Conferência de Medellín, 1968: Trinta anos depois, Medellín é ainda atual? São Paulo: Paulinas, 1998., p. 245).

Os temas de paz, justiça e pobreza são os que recebem maior destaque. O documento de Medellín, em seu número 16, sobre a paz, enfatiza, por exemplo, que “a América Latina se encontra, em muitos lugares, em uma situação de injustiça que se pode chamar de violência institucionalizada”. E segue dizendo o que se deve fazer: “Tal situação exige transformações globais, audazes, urgentes e profundamente renovadoras”. Segundo Barausse (2013, p. 96)BARAUSSE, P. T. O discipulado e o seguimento de Cristo ressuscitado. São Paulo: Loyola, 2013., “Medellín marcou um antes e um depois na história da Igreja latino-americana”, assim como foi o CVII para a Igreja universal.

Para a concretização do almejado, isto é, dos objetivos da Assembleia, eram necessárias a construção da teoria e o modo de operacionalizá-la. É nesse momento que acontece a abertura para o uso das mediações socioanalíticas para entender a realidade, tais como a estrutura teórica das ciências sociais. A Teologia de Libertação (TL) apropria-se de instrumentos metodológicos das ciências sociais. A partir de Medellín, a Igreja produz duas categorias que marcaram o seu modelo de comunidade e a teoria que a alimentaria. Estas categorias, que logo se transformam em prática, são Eclesial de base e Libertação. Elas, na prática, adjetivam as Comunidades, que passam a ser entendidas como Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e a teologia, logo passa a ser chamada de Teologia da Libertação (TL). Poder-se-ia dizer que as CEBs e a TL são os instrumentos pelos quais Medellín passa do papel à realidade em todo o mundo e, evidentemente, também no continente latino-americano e no Brasil. É preciso destacar que as CEBs são o modo e a forma de organização do trabalho de evangelização assumido por muitas Igrejas particulares no continente. Uma missão de responsabilidade da Igreja em seu sentido de evangelização, cujos primeiros responsáveis são a hierarquia. A TL é fruto do trabalho de teólogos, que se integram na prática evangelizadora nas comunidades e têm apoio explícito dos bispos e suas Igrejas. Está claro que CEBs e TL são integrantes indissociáveis da experiência da Igreja de linha libertadora na América Latina e no Caribe. Considerados esses aspectos, é preciso deixar claro que os teólogos, na Igreja, exercem um ministério próprio, a serviço dessa mesma Igreja, e do Reino de Deus. Por isso, a teologia não se “acomoda”, necessariamente, ao que já está estabelecido pela Igreja no contexto do qual ela se desenvolve.

A Teologia da Libertação faz uma crítica aguda à teologia de maneira geral. Assmann sintetiza esta análise:

Se a situação histórica de dependência e dominação de dois terços da humanidade, com seus trinta milhões anuais de mortos de fome e desnutrição, não se converte no ponto de partida de qualquer teologia cristã hoje, mesmo nos países ricos e dominadores, a teologia não poderá situar e concretizar historicamente seus temas fundamentais. Suas perguntas não serão perguntas reais... por isso é necessário salvar a teologia do cinismo. Porque realmente diante dos problemas do mundo de hoje, muitos escritos de teologia se reduzem a cinismo.

(ASSMANN, 1976ASSMANN, H. Teología desde la práxis de la liberación: ensayos teológicos desde la américa dependiente, 2.ed. Salamanca, Sígueme, 1976., p. 140).

A primeira grande mudança provocada pela TL é que, a partir dela, o objeto da teologia passou a ser a práxis cristã, isto é, a relação entre a realidade social e a interpretação bíblica. Nesse sentido, as categorias de dependência e libertação tomam um lugar especial, lido a partir dos documentos da Igreja e da nova hermenêutica bíblica. Segundo o teólogo Gutiérrez (1975, p. 44)GUTIÉRREZ, G. A atualidade de Medellín. In: CELAM. Conclusões da Conferência de Medellín, 1968: Trinta anos depois, Medellín é ainda atual? São Paulo: Paulinas, 1998., “Libertação exprime, em primeiro lugar, as aspirações das classes sociais e dos povos oprimidos, e sublinha o aspecto conflituoso do processo econômico, social e político que os opõe às classes opressoras e aos povos opulentos”. (2014, p. 159).

Como expressa Mendes (2013)MENDES, R. A. S. Ditaduras civil-militares no Cone Sul e a Doutrina de Segurança Nacional – algumas considerações sobre a Historiografia. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 5, n. 10, p. 06-38, jul/dez, 2013., o contexto pelo qual passava o continente era, de um lado, as reivindicações dos movimentos sociais e, pelo outro, a proliferação de ditaturas cívico-militares. No entanto, havia os movimentos de libertação, que eram uma resposta, ou resistência, a este contexto marcado pela opressão ditatorial e pela dependência econômica. No Brasil, a teoria da dependência apresentada por Marini (1973)MARINI, R. M. Dialéctica de la dependencia. México: Ediciones Era, 1973. exerceu forte influência na leitura da realidade realizada pela TL. Ainda segundo esse autor, o contexto era de ondas de libertação popular no campo e nas cidades: ligas camponesas, sindicatos, movimento de educação de base, escolas radiofônicas, sindicatos, centros de cultura popular, associações diversas, além dos movimentos revolucionários vanguardistas, introduzindo um amplo debate no continente sobre o processo de transformação social numa perspectiva socialista.

A Igreja tem uma posição sobre a sociedade e a política, sobre a pessoa humana enquanto tal e como cidadão. Seu interesse por essas questões visa a defesa e promoção da dignidade humana, o bem comum. As encíclicas sociais de João XXIII, Mater et Magistra e Pacem in terris criam uma abertura social. O CVII possibilita novas experiências, preocupação com a realidade terrestre, humana e histórica. No Brasil, o episcopado progressista era a voz predominante na CNBB. Em suas diretrizes fomenta a ação católica, desde a Juventude Estudantil Católica (JEC) até a Juventude Operária Católica (JOC), passando pela Juventude Universitária Católica (JUC) e a Juventude Agrária Católica (JAC), movimentos com uma grande preocupação com a transformação do meio, da política social do país, e dos quais nasceu a Ação Popular – AP, movimento revolucionário que se opôs ao regime militar instalado em 1964 até 1985.

2.2.2 Puebla

No ano de 1979, deu-se a cabo a III Conferência Geral do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM, 1979CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Conclusões da III Conferência do Episcopado Latino Americano. Puebla: CELAM, 1979.). Realizou-se na cidade de Puebla, no México. Nesta conferência estavam presentes bispos brasileiros como Dom Helder Câmara, Dom Aloísio Lorscheider, Dom Quirino e Dom Adolfo Schmitz, grandes expressões do episcopado progressista. O tema da Conferência foi a “Evangelização no presente e no futuro da América Latina”. O objetivo era avaliar o caminho percorrido de Medellín até então.

Em Puebla, o episcopado latino-americano afirmou que a Igreja na América Latina e Caribe se funda em dois pilares fundamentais, que são a oração particular e a piedade popular como valores da comunidade de fé. Porém, é o serviço o “momento privilegiado de comunhão e participação para uma evangelização que conduz à libertação cristã integral, autêntica” (CELAM, 1979CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Conclusões da III Conferência do Episcopado Latino Americano. Puebla: CELAM, 1979., n. 895).

Em síntese, as conferências de Medellín e Puebla tentam a superação do velho modelo de Igreja europeia e, ao mesmo tempo, a participação nos processos de libertação dos povos do continente. Assim, no continente americano a Igreja, além do profetismo de denúncia das injustiças, opta pelos pobres, em seu projeto eclesial, ao mesmo tempo que se coloca como servidora. Na verdade, o CVII, no que se refere à relação da Igreja com o mundo, começou a se realizar plenamente apenas com a recepção do Concílio em Medellín, consolidado em Puebla.

2.3 Sinodalidade doutrinal da Igreja assumidas pela Prelazia do Xingu

A IC é uma instituição sinodal. Teoricamente, esse modo de ser Igreja se realiza nos últimos eventos eclesiais.

2.3.1 Sobre as Assembleias da Igreja na Amazônia

Paulo VI foi o pontífice que publicou a encíclica Populorum progressio (1967), que versava sobre o desenvolvimento dos povos do chamado terceiro mundo. Outro feito importante foi a publicação de outra carta, também pelo mesmo papa, Octogesima adveniens, em 1971, celebrando os oitenta anos da Rerum novarum de Leão XIII, que foi o ponto de partida do Ensino Social da Igreja (FAUX, 2019FAUX, J.-M. Ensino Social da Igreja. São Paulo: Loyola, 2019.). Paulo VI, no Sínodo dos Bispos, em 1971, sobre a Justiça no Mundo, foi quem pronunciou a célebre expressão: “Cristo aponta para Amazônia”. Em profunda comunhão sinodal, desde esse momento a presença da Igreja na Amazônia toma rumo diferente, deixa de ser uma Igreja sacramentalista, e torna-se uma Igreja militante, integrando as dimensões fé e vida em sua práxis evangelizadora, como orientavam as conferências.

Quatro anos após a Conferência de Medellín, em 1972, realiza-se o 1º encontro regional dos bispos brasileiros da Amazônia, em Santarém, cidade às margens do Rio Tapajós (CNBB, 2014CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Desafio Missionário: Documentos da Igreja na Amazônia (Coletânea). Brasília: Edições CNBB, 2014.). Este encontro foi decisivo para encarnar, no chão da Amazônia, as linhas de renovação do CVII e de Medellín. Segundo o documento da CNBB (2014)CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Desafio Missionário: Documentos da Igreja na Amazônia (Coletânea). Brasília: Edições CNBB, 2014., definem-se duas diretrizes básicas no “Encontro de Santarém”. A primeira, sob o nome de encarnação na realidade, aponta para o esforço de reconhecer o Cristo no homem amazônico. A exigência é inserir-se na realidade concreta do homem e do lugar, pelo conhecimento e pela convivência com o povo. Estimula a superar o paternalismo, o etnocentrismo e o modelo eurocêntrico de Igreja, fomentando a criatividade eclesial a partir das vicissitudes locais. A segunda é a evangelização libertadora que consiste “na consciente explicitação daquela plena libertação que a páscoa de Cristo traz ao homem e à história humana, em todas as conjunturas e latitudes...” (CNBB, 2014CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Desafio Missionário: Documentos da Igreja na Amazônia (Coletânea). Brasília: Edições CNBB, 2014., p 15). Aplicados à Amazônia, significa uma evangelização sem dicotomias, que abrange o homem todo e todos os homens; uma evangelização, simultaneamente, fiel ao espírito de Cristo e aos sinais dos tempos, que possibilite a conscientização e a liberdade, como expressam os documentos supracitados.

Ainda em Santarém (CNBB, 2014CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Desafio Missionário: Documentos da Igreja na Amazônia (Coletânea). Brasília: Edições CNBB, 2014.), os bispos, ao falarem da realidade amazônica, expressam os perigos e limitações que se resumem em novas e antigas marginalizações, estruturas importadas ou opressivas, desenvolvimento econômico feito sem ou contra o próprio homem, violação de direitos básicos como a posse da terra, injusta distribuição dos recursos materiais e dos incentivos públicos e informação publicitária que altera o enfoque da situação real. Face a esse cenário, os bispos elegem quatro prioridades de pastoral na Amazônia, que são a encarnação na realidade, a evangelização libertadora, a formação de comunidades cristãs de base e a formação de agentes de pastoral, e quatro serviços pastorais, que são: a pastoral indígena, estradas e outras frentes pioneiras, instituto de pastoral e meios de comunicação social (CNBB, 2014CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Desafio Missionário: Documentos da Igreja na Amazônia (Coletânea). Brasília: Edições CNBB, 2014.). Essa formação de COMUNIDADES e de agentes de pastoral é o fio condutor dessa ação eclesial, que vai resultar na forte organização dos movimentos sociais nas igrejas locais, como é o caso da Prelazia do Xingu.

Joseph Gusfield, em seus estudos, encontra basicamente dois sentidos para o uso do termo comunidade. Um, mais relacionado a questões territoriais e, o outro, comumente utilizado no sentido das relações sociais. Segundo Fraxe (2009)FRAXE, T. et al. Os povos amazônicos: identidades e práticas culturais. In: PEREIRA, H. dos S. (Org.). Pesquisa interdisciplinar em ciências do meio ambiente. Manaus: EDUA, 2009., na Amazônia, as comunidades se estabelecem a partir do sincretismo, rico em ritos, mitos, festas, crenças concepções, enfim, fruto do encontro das culturas exóticas e autóctone. A vida se dá em torno da fé nos santos, que geralmente dão nome a essas comunidades. As CEBs são precisamente esta descrição. Elas comportam essas duas noções de Gusfield (1975)GUSFIELD, J. The community: a critical response. New York: Harper Colophon, 1975., pois estão em uma circunscrição territorial da paróquia, como também tem um sentido forte de relações fraternais e o eixo da vida cotidiana. Isso, como descreve Fraxe (2009)FRAXE, T. et al. Os povos amazônicos: identidades e práticas culturais. In: PEREIRA, H. dos S. (Org.). Pesquisa interdisciplinar em ciências do meio ambiente. Manaus: EDUA, 2009., ocorre plenamente na Amazônia. É o que a autora chama de cosmologia da IC.

Segundo Carlos Mesters (1983)MESTERS, C. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo. Petrópolis: Vozes, 1983., do ponto de vista eclesial e social, as CEBs foram reorganizadas a partir de comunidades do antigo modelo de Igreja, ou foram sendo simplesmente criadas. Sua peculiaridade é a de que a leitura bíblica e sua reflexão obedeciam a três momentos: pré-texto, texto e con-texto, respectivamente, a realidade social na qual a comunidade estava inserida, o texto bíblico, principalmente do Antigo Testamento dada a forte carga profética de anúncio e denúncia, e, por fim, a interconexão entre as realidades segundo a Bíblia. Logo, a Teologia da Libertação assume o método Ver, Julgar e Agir, presente nas CEBs, em número de 800 na prelazia do Xingu.

3 A práxis socioambiental da Prelazia do Xingu

Até a década de 1930 do século passado, a região eclesiástica do centro do Pará fazia parte da Arquidiocese de Belém, das Prelazias de Santarém e de Conceição do Araguaia. Por questões longitudinais, foi criada, em 1934, a Prelazia do Xingu pela Bula “Animarum Bonum Postulat”, do Papa Pio XI. Desde 2017, o bispo responsável, chamado de bispo prelado, é João Muniz Alves, Frade Franciscano, que substituiu Erwin Kräutler, responsável pela prelazia de 1981 a 2016. A Prelazia foi elevada a Diocese em 2019 e dom João Muniz foi o quarto bispo da Prelazia no Xingu e primeiro da Diocese do Xingu.

A Prelazia do Xingu, hoje Diocese, tem uma superfície de 368.086 km2. Sua população, segundo os dados do IBGE do ano 2000, era de 392.211 habitantes, porém com uma estimativa de 568.366 habitantes em 2017 (IBGE, 2018INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estimativas. Rio de Janeiro: IBGE, 2018.). Os municípios pertencentes à Prelazia são em número de 15, em ordem alfabética: Altamira, Anapu, Bannach, Brasil Novo, Cumaru do Norte, Gurupá, Medicilândia, Ourilândia do Norte, Placas, Porto de Moz, São Félix do Xingu, Senador José Porfírio, Tucumã, Uruará, Vitória do Xingu. Os que interessam diretamente são Altamira, Anapu, Brasil Novo, Porto de Moz e Vitória do Xingu, por serem os mais atingidos pela construção da Barragem de Belo Monte. Em 2017, a Prelazia era composta por 15 paróquias, 822 CEBs, 35 padres, 7 congregações femininas, 41 religiosas.

3.1 As assembleias do povo de Deus da prelazia

As Assembleias do Povo de Deus delineiam o caminho sinodal da Igreja do Xingu. Até 2020, foram 5 no total. Participam dela pessoas e instituições convidadas, os coordenadores de pastorais e movimentos, religiosas e religiosos, diáconos, presbíteros e bispo. Essas assembleias acontecem a cada quinquênio, com possíveis alterações, devido a possíveis imprevistos, como foi o caso da última, adiada por razões da pandemia da covid-19. Assim, a prática socioambiental da Antiga Prelazia do Xingu está teoricamente consolidada em seus relatórios. Essas assembleias acontecem desde 1984. Elas reúnem cerca de oitocentas pessoas sempre na casa de encontros que se chama Betânia, de propriedade da Prelazia. A última aconteceu em 2014, celebrando os 80 anos da Prelazia. O método que esses encontros utilizam são sempre o “ver, julgar e agir” (BARAUSSE, 2013BARAUSSE, P. T. O discipulado e o seguimento de Cristo ressuscitado. São Paulo: Loyola, 2013.). Ver como análise de conjuntura dos últimos cinco anos; o Julgar, estudos da Palavra de Deus e de documentos socioeclesiais; o Agir, são as linhas e as ações que nortearão a Igreja nos cinco anos sequentes.

De posse do arcabouço teológico, as assembleias situam a Prelazia no campo da sustentabilidade4, compreendido como o novo espaço de disputas socioambientais, emergido da problemática da crise civilizatória (social, econômica, ambiental, religiosa) apontada na Laudato Si’ (FRANCISCO, 2015FRANCISCO, Papa Constituição apostólica “Episcopalis Communio” (2015). Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_constitutions/documents/papa-francesco_costituzione-ap_20180915_episcopalis-communio.html. Acesso em: 20 out. 2021.
https://www.vatican.va/content/francesco...
).

3.2 A Igreja e a questão de Belo Monte

Mesmo antes do chamado do Papa Francisco, esta Igreja Particular já era uma Igreja em Saída e sinodal. O espaço de participação política da Igreja nos conflitos de Belo Monte se dá na formação de sua própria rede de comunidades em comunhão com as conferências do CELAM e na parceria com outros entes do conflito. Essa formação vai em dois sentidos: primeiro, o de formação propriamente dita das comunidades, tarefa muito difícil pelas distâncias e condições de transporte próprios de qualquer região da Amazônia; segundo, na formação da consciência da conjuntura social, política, econômica em que elas vivem. A Prelazia se alinha milimetricamente aos documentos do magistério da Igreja Latino-Americana. Segundo Puebla (1979):

A comunidade eclesial de base, enquanto comunidade, integra famílias, adultos e jovens, numa íntima relação interpessoal na fé. Enquanto eclesial, é comunidade de fé, esperança e caridade; celebra a palavra de Deus e se nutre da eucaristia, ponto culminante de todos os sacramentos; realiza a palavra de Deus na vida, através da solidariedade e compromisso com o mandamento novo do Senhor e torna presente e atuante a missão eclesial e a comunhão visível com os legítimos pastores, por intermédio do ministério de coordenadores aprovados. É de base por ser constituída de poucos membros, em forma permanente e à guisa de célula da grande comunidade. Quando merecem o seu título de eclesialidade, elas podem reger, em solidariedade fraterna, sua própria existência espiritual e humana.

(PUEBLA, n. 641).

Segundo Iriarte (1992)IRIARTE, G. CEB, um novo jeito de ser Igreja. São Paulo, Paulinas, 1992., as CEBs tinham quatro princípios inalienáveis formadores da consciência: a opção pelos pobres, o compromisso sociopolítico, as organizações populares e a religiosidade popular. Essa formação da consciência faz com que essas comunidades se posicionem socialmente diante de todas as injustiças da região, consequentemente, foram contrárias ao projeto da Usina Hidroelétrica de Belo Monte (UHEBM). As assembleias da Prelazia são verdadeiras aulas de sociologia, política, ecologia e economia. Não há outra instituição, na região, que tenha tamanha capilaridade.

Dois dados são importantes para entender esse movimento. O primeiro é que a Prelazia contava com um clero e a vida religiosa consagrada academicamente muito bem preparada, boa parte formada de teólogos e teólogas da libertação, que viviam profundamente a renovação do CVII. Os padres, oriundos em sua maioria da França e de outras dioceses do país; e as religiosas, do sul do Brasil. Esse grupo, que acolheu levas dos migrantes da região, formou as lideranças eclesiais, das quais muitas fundaram junto com eles os movimentos sociais, associações, cooperativas, fundações e o PT na região (FUNDO DEMA, 2014FUNDO DEMA. Uma história e luta de Dema. Altamira: Fundo Dema, 2014.). A título de exemplo, o Movimento Xingu Vivo Para Sempre — MXVPS, o Movimento dos trabalhadores Rurais Sem Terra, o próprio CIMI e CPT são frutos desse trabalho de formação política oferecido pela Prelazia.

Já na ditadura militar, o clero da Prelazia, especialmente, o bispo era considerado inimigo interno dentre a classificação que os militares davam aos que se opunham ao governo. Em 1983, o bispo foi preso por apoiar a greve dos trabalhadores de canaviais em plena ditadura militar. Ele foi presidente do CIMI durante 8 anos -1983/1991. Em 2008, toda a Igreja do Xingu estava presente no encontro Xingu Vivo Para Sempre, que resultou na criação do movimento de mesmo nome (SUESS, 2009SUESS, P. (Org.). Servo de Cristo Jesus. São Paulo: Paulinas, 2009.). Vale lembrar que, em 25 de agosto de 2000, foi brutamente assassinado Ademir Fredericci, então presidente do Movimento para o Desenvolvimento da Transamazônica, antigo Movimento pela sobrevivência na transamazônica – MPST. Fredericci era um migrante que chegou à região em 1975. Católico, foi coordenador da Pastoral da Juventude da Prelazia. Um dos fundadores do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, foi vereador pelo PT e um dos líderes do MPST. No ano de sua morte, era uma das vozes fortes da resistência ao complexo hidrelétrico de Belo Monte. Até os dias atuais seu assassinato não foi elucidado (FUNDO DEMA, 2014FUNDO DEMA. Uma história e luta de Dema. Altamira: Fundo Dema, 2014.).

3.3 Estratégia de ação socioambiental

É estratégico o papel de formar agentes comunitários que sejam capazes de assumir e liderar os movimentos de renovação eclesial e movimentos sociais da região. São as ações desses agentes eclesiais que deram uma relevância política da participação da IC nos conflitos de Belo Monte. Das trinta entrevistas validadas, que este estudo realizou acerca do papel Prelazia do Xingu nos conflitos socioambientais, no caso de Belo Monte, em 2019, uma das perguntas era precisamente: A IC teve relevância no conflito em torno de Belo Monte? 90,3% muita relevância; 6,3 % mais ou menos; e 3,3% muita relevância, porém negativa, pois atrapalhava o empreendimento. Como responde um entrevistado:

Muito relevante. Muito, muito, muito. Por isso, fortaleceu as CEBs, fortaleceu os sindicatos, todas as organizações foram fortalecidas com o apoio da Igreja. Dom Erwin, grande Pastor. A IC tem um grande papel: papel de denúncia, dar nome mesmo, porque os causadores desses conflitos têm nome e endereço. Eles não são anônimos e nem são ocultos. É uma Igreja de Jesus Cristo que anuncia e denuncia. Anuncia a vida, o Evangelho, e denuncia as injustiças, a morte, a violência.

(ENTREVISTA nº. 02, ALTAMIRA, 2018ENTREVISTADO N. 2. Base de dados da pesquisa qualitativa. Altamira, 2018.).

Outro dado importante é o que desvela a firmeza do pensamento da IC, que permaneceu com a sua mesma posição, durante todo o tempo do conflito, fato que não se verificou com outros atores que eram contrários à construção da usina. A defesa da vida em todas as suas formas é valor e princípio inegociáveis para a Igreja, como se atesta nas palavras de dom Erwin:

Para mim, o problema, desde o início, não é que o Brasil precise de energia. Isso é lógico. Ninguém vai questionar isso. O problema é a captação da energia. Será que a única maneira de captar energia é sacrificar um rio do tamanho do Xingu? Porque o que está acontecendo é o sacrifício do meio ambiente, o sacrifício do rio. E, mesmo que o Ibama, naquele tempo, tenha elencado 40 condicionantes, e a Funai, outras 23 (hoje, no total, são 54), elas não foram cumpridas. Quem anda pela cidade sabe perfeitamente o absurdo que aconteceu. O que se construiu foi um monumento à insanidade.

(KRAÜTLER, 2016KRAÜTLER, E. Um monumento à insanidade. Dom Total, 18 abr. 2016. Entrevista concedida a Marceu Vieira. Disponível em: https://domtotal.com/periscopio/1975/2016/04/um-monumento-a-insanidade/. Acesso em: 21 nov. 2021.
https://domtotal.com/periscopio/1975/201...
).

Os dados da pesquisa corroboram nessa direção. Quando perguntados sobre a participação da IC nos conflitos em torno de Belo Monte, as respostas compõem o seguinte quadro: 60% todos, 23,3% quase todas, 13,3% algumas, 3,3% uma. Diante desses dados, é possível entender a participação efetiva da IC, neste campo de disputas. Os dados da pesquisa também apresentam que a práxis socioambiental da Prelazia de enfrentamento do projeto se deu em três frentes distintas: a primeira foi na aproximação direta com atores que detinham poder de decisão na elaboração e consecução do projeto como agências financiadoras e membros de governos e do parlamento; a segunda, internamente a ela mesma, deu-se pela formação da rede de Comunidades Eclesiais de Base e do papel que ela desempenhou na formação da consciência crítica dos membros da própria Prelazia; terceira, pela participação direta nos três níveis que configuram estes tipos de conflitos, a saber, as mídias, os embates diretos, em especial, reuniões e audiências públicas e, por fim, os protestos. Esse é o cenário do campo de disputa, no qual a Prelazia se torna uma atriz relevante e porta voz do grupo contrário à Usina Hidrelétrica de Belo Monte — UHBM. A relevante participação da Igreja do Xingu no conflito de Belo Monte ultrapassa os limites de sua circunscrição canônica precisamente pela identidade sinodal assumida.

A título de exemplo da participação da IC dentre tantos conflitos, há três muito significativos: o primeiro, em 19 de julho de 2006, nas manifestações pró hidrelétrica, Dino Barile, coordenador regional da Secretaria de Agricultura do Pará, em Altamira e, Ary Cavalcante, presidente da ONG Bio Ambiente, acabaram processados por ameaçarem e incitarem a violência aos membros da IC. No evento, disse Cavalcante: “Convoco a vocês, quem tiver coragem de encarar, nós vamos para a guerra e essa cambada de irresponsáveis que quer engessar a nossa região, descer o cacete neles”. Em seguida, vociferou Barile: “A hidrelétrica vai ser construída queira padre, queira freira e aos diabos que os carregue” (MPF, 2007BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria da República no Estado do Pará. Oficio PR/PA/GAB 03 n 0151. Belém: MPF, 2007.). Consta, no mesmo ofício do MPF (2007)BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria da República no Estado do Pará. Oficio PR/PA/GAB 03 n 0151. Belém: MPF, 2007., a ameaça de morte sofrida pelo bispo Dom Erwin Kräutler por meio telefônico, que dizia que ele seria assassinado no dia 29 de dezembro de 2006. Neste ano o bispo havia recebido o prêmio de Direitos Humanos concedido pela Ordem dos Advogados do Brasil, por sua atuação em defesa da vida e do meio ambiente.

No segundo exemplo, em 22 de junho de 2010, o então presidente Lula se irritou com a presença dos manifestantes críticos ao projeto, chamando-os de meninos bem-intencionados (SAVARESE, 2010SAVARESE, M. Lula visita local de obras da usina de Belo Monte e se irrita com manifestantes. UOL Notícias, São Paulo, 22 jun. 2010. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2010/06/22/lula-vai-local-de-obras-de-belo-monte-e-se-irrita-com-manifestantes.htm. Acesso em: 25 de setembro de 2021.
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). O evento foi realizado no estádio municipal, justamente para evitar protestos, mas uma boa parte dos resistentes conseguiu entrar. Estavam presentes, entres tantos manifestantes, as lideranças católicas e lideranças dos movimentos sociais como MXVPS. Esse momento foi emblemático porque estava no palanque a governadora do Estado do Pará, Ana Júlia Carepa, também do PT, que antes era contra o empreendimento. A International Rivers (2010) publicou uma nota sobre essa visita intitulada: Surdo, cego e displicente. Em síntese:

Um forte aparato de repressão, composto pela Força Nacional, pela Tropa de Choque e pela polícia militar, impediu que o protesto de cerca de 400 ribeirinhos, pequenos agricultores, estudantes e professores contra a hidrelétrica de Belo Monte chegasse ao presidente Lula esta semana, em Altamira [...]. Esta semana no Pará, houve espaço para uma só voz, arrogante, displicente e prepotente. Lula, o governo federal e o governo estadual, que até hoje não se dignaram a ouvir os apelos dos ameaçados por Belo Monte.

(INTERNATIONAL RIVERS, 2010INTERNATIONAL RIVERS. Discurso do Pres. Lula no Ato por Belo Monte. International Rivers, 22 de junho de 2010., s/n)

Um terceiro momento emblemático ficou registrado nas páginas dos jornais locais como o portal G1 da Globo: “Paralisação de Belo Monte é comandada por bispo” (BORGES, 2011BORGES, A. Paralisação de Belo Monte é comandada por bispo. Agência Valor, Altamira, 27 out. 2011. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2011/10/paralisacao-de-belo-monte-e-comandada-por-bispo.html. Acesso em: 20 nov. 2021.
https://g1.globo.com/economia/noticia/20...
). A notícia dava conta que o canteiro de obras foi tomado por mais de 200 índios liderados por Dom Erwin Kräutler, então bispo da Prelazia do Xingu. Como se viu, a luta em torno da construção da UHBM gerou um campo de disputas acirrado na Amazônia. Foram conflitos das mais variadas formas e naturezas: terra, água, moradia, trabalho, educação, saúde, saneamento básico. Em todos eles, a IC se fez presente protagonista ora como apoio, ora reivindicadora, sempre como opositora ao projeto. Ela tem um lugar no cenário político da região, por sua autoridade moral e pastoral.

Considerações finais

Percorrer esse caminho sinodal é importante para compreender historicamente a identidade da Igreja presente no Xingu. É a partir da categoria sinodalidade que se dá a razão dos acontecimentos que levou esta Igreja Particular a ser uma importante atriz do cenário do conflito socioambiental na Região de Belo Monte. Assumidos nas Assembleias do povo de Deus da prelazia, os rumos do CVII, as Conferências do CELAM e as Assembleias da CNBB são os fundamentos que sustentam a cosmovisão daquela instituição que se tornou uma referência no campo de disputas socioambientais na Amazônia. Vale ressaltar que essa caminhada se insere na dinâmica do ensino socioambiental da Igreja, que começa quando o Papa Paulo VI diz que “Cristo aponta para Amazônia”, em 1971. Na última década, o Papa Francisco tem se dedicado a uma intensa reflexão sobre a crise ambiental, na qual o mundo vive hoje. Com dois conceitos importantes: Ecologia integral e casa comum (FRANCISCO, 2015FRANCISCO, Papa. Carta encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.; 2019FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Pós-Sinodal – Querida Amazônia. Ao Povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade. São Paulo: Paulinas, 2019.), o atual pontífice tem ajudado a Igreja universal a compreender seu lugar no mundo de hoje e, particularmente, confirmou a identidade da Igreja no Xingu, quando de sua luta socioambiental.

O pontificado do Papa Francisco convida a Igreja à sinodalidade, formada de carismas e dons que estão a serviço da vida da humanidade. Nesse sentido, todos são chamados à diakonia, em especial, aqueles que têm o serviço de governar como missão. O governo na Igreja é um carisma, e como as comunidades são diversas, exige a comunhão dos membros.

Este artigo analisou descritivamente a relevância social, política e eclesial da Igreja no Xingu como fruto da sinodalidade e compromisso com o ser Igreja. Desvelou a vida e missão de uma Igreja sinodal em sua essência. O estudo inserido na dinâmica socioambiental, que exige um olhar sobre a complexidade das ciências, isto é, na interdisciplinaridade da sociologia, da filosofia, da ecologia, da teologia e da economia. O estudo de caso da Prelazia do Xingu, no que tange a sua metodologia, compreendeu o papel da Igreja Católica nos conflitos socioambientais na Amazônia. O marco conceitual da pesquisa foram a sinodalidade, a parte dos conceitos de Igreja, e autodefinição, organização e autoridade; a identidade sinodal do CVII, das conferências do CELAM, as CEB e da Teologia da Libertação, das assembleias do Norte I e II da CNBB.

Na tentativa de apresentar que a vida e missão da Prelazia do Xingu é uma consequência do caminho sinodal assumido desde o Concílio Vaticano II até a prática socioambiental desta Igreja particular, conclui-se que a relevância social, política e eclesial da Prelazia do Xingu reside precisamente no modo de ser Igreja, caminho que se faz juntos, e sinaliza a sua sinodalidade.

Siglas

  • CDC  = Código de Direito Canônico
  • CEB  = Comunidade Eclesial de Base
  • CELAM  = Conselho Episcopal Latino-Americano
  • CIC  = Catecismo da Igreja Católica
  • CIMI  = Conselho Indigenista Missionário
  • CNBB  = Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
  • CONSEP  = Conselho Episcopal Permanente
  • CPT  = Comissão Pastoral da Terra
  • CVII  = Concílio Vaticano II
  • IBAMA  = Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis
  • IBGE  = Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
  • IC  = Igreja Católica
  • JAC  = Juventude Agrária Católica
  • JEC  = Juventude Estudantil Católica
  • JOC  = Juventude Operária Católica
  • JUC  = Juventude Universitária Católica
  • LG  = Lumen gentium
  • LS  = Laudato si’
  • MPST  = Movimento Pela Sobrevivência na Transamazônica
  • MXVPS  = Movimento Xingu Vivo Para Sempre
  • PT  = Partido dos Trabalhadores
  • TL  = Teologia da Libertação
  • UHBM  = Usina Hidrelétrica de Belo Monte
  • 1
    Das ciências sociais, atores são sempre indivíduos, grupos ou instituições que têm identidade própria reconhecidas por outros e capacidade de modificar o cenário no qual estão inseridos.
  • 2
    “Os conflitos ambientais surgem das distintas práticas de apropriação técnica, social e cultural do mundo material e que a base cognitiva para os discursos e as ações dos sujeitos neles envolvidos configura-se de acordo com suas visões sobre a utilização do espaço. Os conflitos se materializam quando essas concepções de espaço são transferidas para o espaço vivido, pois, [...] qualquer planejamento, concepção ou representação do espaço é uma redução da realidade conforme a percepção dos seus idealizadores”. (ZHOURI; LASCHEFSKI, p. 17, 2010ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. Desenvolvimento e conflitos ambientais: um novo campo de investigação. In: ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. (Org.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.).
  • 3
    “Congar define recepção como o processo pelo qual um corpo eclesial torna seu, na verdade, uma determinação que ele próprio não se concedeu, ao reconhecer, na medida promulgada, uma regra apropriada à sua existência. Neste sentido, a recepção comporta um afluxo próprio de consentimento, eventualmente de julgamento, onde se expressa a vida de um corpo que põe em funcionamento recursos espirituais novos” (COUTINHO, 2005COUTINHO, R. S. A recepção como “pragmática argumentativa” uma visita ao conceito pelo olhar habermasiano. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 37, n. 103, p. 337-366, set./dez. 2005., p. 340).
  • 4
    A categoria campo tem sua construção teórica mais pertinente na sociologia de Pierre Bourdieu, como uma categoria que aporta ao mundo da ciência uma noção importante de inter-relações entre atores em um determinando espaço simbólico. No campo da sustentabilidade, o paradigma da Ecologia Integral encontra possibilidade de compreensão e espaço de consolidação, precisamente porque tem como fundamento um princípio comum que é o princípio da justiça socioambiental. Campo é o espaço simbólico no qual atores disputam seu espaço (SANTOS; FRAXE, 2020SANTOS, S. M. S.; FRAXE, T. J. P. Ecologia Integral: nova racionalidade ambiental fundada na justiça social. In: FOLMANN, J. I. (Org). Ecologia Integral: abordagens (im)pertinentes. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020., NASCIMENTO, 2012aNASCIMENTO, E. P. do. Sustentabilidade: o campo da disputa de nosso futuro civilizacional. In: LÉNA, Ph.; NASCIMENTO, E. P do. Enfrentando os limites do crescimento: sustentabilidade, decrescimento e prosperidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2012a. e 2012bNASCIMENTO, E. P. do. Trajetória da sustentabilidade: do ambiental ao social, do social ao econômico. Estudos Avançados, v. 24, n. 74, p. 51-64, jan./abr. 2012b.).

Referências

  • A CÚRIA ROMANA. A Santa Sé Disponível em: http://w2.vatican.va/content/romancuria/pt.html Acesso em: 12 maio 2020.
    » http://w2.vatican.va/content/romancuria/pt.html
  • ASSMANN, H. Teología desde la práxis de la liberación: ensayos teológicos desde la américa dependiente, 2.ed. Salamanca, Sígueme, 1976.
  • BARAUSSE, P. T. O discipulado e o seguimento de Cristo ressuscitado São Paulo: Loyola, 2013.
  • BEOZZO, J. O. Pacto das Catacumbas: por uma igreja servidora e pobre. São Paulo: Paulinas, 2015.
  • BORGES, A. Paralisação de Belo Monte é comandada por bispo. Agência Valor, Altamira, 27 out. 2011. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2011/10/paralisacao-de-belo-monte-e-comandada-por-bispo.html Acesso em: 20 nov. 2021.
    » https://g1.globo.com/economia/noticia/2011/10/paralisacao-de-belo-monte-e-comandada-por-bispo.html
  • BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria da República no Estado do Pará. Oficio PR/PA/GAB 03 n 0151 Belém: MPF, 2007.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2021
  • Aceito
    04 Ago 2022
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