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ESTÉTICA E TEOLOGIA: DESAFIOS TÃO ANTIGOS E TÃO NOVOS

Aesthetics and Theology: Challenges so Old and so New

“A humanidade pode viver sem a ciência, pode viver sem pão, mas unicamente sem a beleza já não poderia viver, porque nada mais haveria para se fazer no mundo.”

(Dostoievsky, citado pelo Papa Bento XVI no Discurso por ocasião do encontro com os artistas na Capela Sistina)

A relação entre o cristianismo e a estética, compreendida tanto como reflexão acerca do belo (natural ou artístico) quanto como teoria da sensibilidade, nem sempre foi pacífica. Ao sobrevoarmos o período medieval, constatamos, por um lado, o temor e a suspeita diante do que nos comove pelos sentidos, pelo que reluz e encanta sem possuir consistência ontológica ou equivalente beleza interior e, por outro, o enlevo diante de formas, cores e sons que são como vestígios da magnificência do Criador.

Em relação à primeira perspectiva, a tradição judaico-cristã, talvez, tenha constatado, de modo menos otimista que a tradição grega, que a conciliação entre o belo e o bom, conhecida por kalokagathia, não pode se elevar à regra. Se o anjo do mal é capaz de se revestir de tentadora forma bela, o homem que, isento de pecado, foi humilhado para nos salvar, “não tinha beleza nem esplendor para atrair o nosso olhar nem formosura capaz de nos deleitar” (Is 53,2). A beleza não se apresenta como garantia e, por isso, nem todos os autores medievais a incluem entre os atributos do Ser, os chamados transcendentais (ECO, 2010ECO, U. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Record, 2010.). Tal concepção repercute claramente no modo como se avalia a arte no período. Embora considere a beleza visível como “imagem da beleza invisível” (Hugo de São Vítor, Hierarchiam coelestem expositio, PL 175, col. 978 e 954, apud ECO, 2010ECO, U. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Record, 2010., p. 121), o filósofo e teólogo Hugo de São Vítor defende que o louvor a Deus se dê mediante a contemplação de imagens feias, uma vez que as belas nos prendem ao mundo imperfeito, impedindo o voo em direção Àquele que não se conforma aos limitados atrativos à nossa volta. Tal desconfiança em relação à beleza não se aplicava somente ao plano visual, no qual a imagem corre o risco de se converter em ídolo, mas também ao plano auditivo. Basta lembrar o célebre testemunho de Santo Agostinho, que, ao tratar sobre os prazeres do ouvido nas Confissões (livro X, cap. XXXIII), expressa o seu receio de que a beleza das salmodias deleite o fiel pela pura sensorialidade, distraindo-o do conteúdo discursivo dos textos declamados.

Todavia, o mesmo santo reconhece, entre as linhas melódicas e o afeto de piedade, um “parentesco oculto” (AGOSTINHO DE HIPONA, 1973AGOSTINHO DE HIPONA, Santo. Confissões: de magistro. São Paulo: Abril, 1973. (Os pensadores, 6)., p. 219), que predispõe à atitude orante, como ele mesmo experimentou no seu percurso de conversão. Enquanto demonstra, nas Confissões, a sua ambivalência no tocante à música, o autor ressalta inequivocamente, nos Comentários aos Salmos (Enarrationes in psalmos), o segundo ajuizamento possível da arte e do belo pelo cristianismo medieval. Segundo o bispo de Hipona, a maneira mais consentânea para se louvar um Deus que se situa para além do discurso verbal humano é recorrer ao júbilo, canto sem palavras1 1 O gênero musical júbilo (jubilus) é tratado, especificamente, nos Comentários aos Salmos 32 e 99. . Só o júbilo, inefável por não se inserir no registro dos significados excludentes das palavras, poderia aludir ao Sumo Inefável. Diante da experiência sobreabundante de aproximação à divindade não cabe se calar, como nos recomendaria tantos séculos mais tarde o sétimo e último aforismo do Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein (WITTGENSTEIN, 1994WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. 2.ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994., p. 281), mas, sim, “jubilar, para que o coração regozije sem palavras, e a imensidão do regozijo não encontre limite nas sílabas” (Agostinho de Hipona, Enarrationes in psalmos, 32, ii, Sermão I, 8, apud Mammì, 2000MAMMÌ, L. Canticum novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Agostinho. Estudos Avançados, São Paulo, v.14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., 352). Semelhante elogio ao belo musical, aplicado ao âmbito litúrgico, encontra-se, já no século XII, em Hildegarda de Bingen, para quem “as palavras simbolizam o corpo e a música (sinfonia) simboliza o espírito; a harmonia celestial manifesta a Divindade e as palavras propalam a humanidade do Filho de Deus” (HILDEGARDA DE BINGEN, 1978Hildegarda de Bingen. Scivias III, 13.12. In: Id. Hildegardis Bingensis Scivias, Turnhout, Brepols, 1978., p. 631). Numa perspectiva não hierárquica em relação a outros modos de expressão humana, a positividade da música sensível encontra-se igualmente implícita em São Bernardo de Claraval, que, apesar de tecer duras críticas à iconografia, situa a arte sonora, como recorda o Papa Bento XVI, no projeto original divino, a ponto de que um canto monástico mal executado poderia cair numa regio dissimilitudinis (“zona de dessemelhança”), ou seja, de afastamento a Deus (BENTO XVI, 2008BENTO XVI, Papa. Encontro com o mundo da cultura no Collège des Bernadins. Viagem Apostólica à França: Encontro com o mundo da cultura no Collège des Bernardins (Paris, 12 de setembro de 2008) Disponível em: vatican.va. Acesso em: 01 dez. 2022.
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). Assim, a música não poderia equivaler a mero passatempo, exigindo comprometido engajamento.

No que concerne ao belo visual, mais apto que a música para estabelecer referências a significados extra-artísticos, é bastante conhecida a missão didascálica atribuída às imagens pictóricas e escultóricas na Idade Média, que se sintetiza na seguinte frase: pictura est laicorum litteratura (“a pintura é a literatura dos leigos”). Além disso, como bem explica Umberto Eco, embora o monge Alcuíno de Iorque acredite ser

mais fácil amar ‘os objetos de belo aspecto, os doces sabores, os sons suaves’, e assim por diante, do que amar a Deus (...), se saborearmos estas coisas com a finalidade de melhor amar a Deus, então poderemos também secundar a inclinação para o amor ornamenti, para as igrejas suntuosas, para o bel canto e para a bela música.

(ECO, 2010ECO, U. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Record, 2010., p. 20)

Curiosamente, até a frívola admiração, no espaço religioso, pelos ornamentos em si mesmos é passível de reabilitação por um autor medieval do século XIII. De acordo com Lucas, bispo de Tui, na Galícia,

há, na igreja, formas pintadas de animais, pássaros e serpentes, e outras coisas, que são destinadas para o simples adorno e beleza (...), pois a casa de Deus deve brilhar com variado louvor, de modo que a sua beleza exterior conduza os homens a ela e não inflija cansaço nos presentes (...) a beleza exterior da casa de Deus acalma os olhos”.

(Lymberoupoulou, Bracewell-Homer, Robinson, 2012, Reader Text 1.1.4 e Gilbert, 1985, p. 136-137, apud WOODS, 2013WOODS, K. W (Ed.). Art & Visual Culture 1100-1600: Medieval to Renaissance. London: Tate Publishing in association with The Open University, 2013., p. 3)

Recordando a famosa fórmula de Ricardo de São Vítor “per visibilia ad invisibilia” (“pelo visível ao invisível”), poderíamos dizer que, nesses casos, o visível que serve de caminho à divindade inalcançável aos olhos e sentidos humanos é, sem dúvida, o belo visível e sensível.

Entre a Idade Média e o nosso tempo, muitas mudanças ocorreram no que diz respeito à relação da fé cristã com o belo e a arte. Primeiramente, filósofos e teólogos contemporâneos buscaram uma reconciliação com as dimensões do corpo e da sensibilidade. Enquanto isso, o papel positivo da beleza artística na formação e no desenvolvimento da espiritualidade cristã foi majoritariamente aceito pela Igreja a partir da segunda metade do século XX, como atestam a mensagem do Papa Paulo VI na conclusão do Concílio Vaticano II, endereçada “Aos artistas” (08/12/1965), a Carta do Papa João Paulo II aos artistas (04/04/1999) e o discurso do Papa BentoFRANCISCO, Papa. Exortação apostólica Evangelii Gaudium. A Alegria do Evangelho Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus; Loyola, 2013. XVI “por ocasião do encontro com os artistas na Capela Sistina” (21/11/2009). Em segundo lugar, a estética moderna, em continuidade com os acontecimentos sociais transformadores do século XVIII, compreendeu a mais pura contemplação estética como destituída de um fim exterior, ou seja, como independente de funções políticas, cívicas, didáticas ou religiosas. Com o processo de secularização, aprofundado na segunda metade do século XIX, a experiência estética, dotada de sugestivas semelhanças fenomenológicas com a experiência religiosa, chega a substituir a segunda: o teatro de Bayreuth, palco dos dramas musicais wagnerianos, torna-se uma espécie de novo “centro de peregrinação” para os europeus esvaziados de um norte religioso. E a autonomia da arte se torna tão almejada a ponto de artistas e intelectuais também do século XIX propalarem o ideal de uma “arte pela arte” (art pour l’art), por vezes acompanhado da defesa do esteticismo, no qual o cultivo de qualidades estéticas nem sempre se conjuga com o cultivo de valores morais. Tal indiferença da estética à vida vem sendo questionada, nas últimas décadas, especialmente pela corrente da estética ambiental (environmental aesthetics), que, em sintonia com os prementes problemas ecológicos, tenta resgatar a reflexão acerca da experiência estética proporcionada pela natureza, esquecida em grande parte do século XX e, hoje, redescoberta como grande aliada para o desenvolvimento de uma consciência ambiental. Em terceiro lugar, neste resumido panorama, os artistas, a partir da segunda metade do século XIX, exploraram motivos, tratamentos e linguagens que escapavam radicalmente de um ideal clássico de beleza, regido por critérios como a integridade, a devida proporção e a simetria. Se obras baseadas em padrões não ocidentais de beleza, no grotesco e, até, no repulsivo são capazes de gerar intensa comoção em quem as ouve ou contempla, a arte e a estética não poderiam ter como único e principal foco o tradicional conceito de beleza. Conceito que também costumava incluir, no campo artístico, a unicidade da obra, contestada pelos meios de reprodução técnica desenvolvidos, sobretudo, a partir da segunda metade do século XIX e expandidos a um nível sem precedentes nesta era digital. Exemplarmente tratado por Walter Benjamin (A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, 1955), tal ponto nos remete a uma das preocupações fundamentais da Escola de Frankfurt: as problemáticas implicações da indústria cultural nos campos da organização social e da apreciação artística.

Enquanto algumas das velhas suspeitas teimam em retornar com o crescimento de grupos conservadores cristãos nas primeiras décadas do século XXI, emergem, nesse complexo cenário, novas questões que colocam em diálogo a estética e a teologia. Dentre estas, poderíamos indagar pelo potencial da beleza, tomada em sentido amplo, para um reconhecimento do Reino de Deus no qual já estamos inseridos. Para uma geração saturada de dogmas e traumatizada por farisaísmos, a beleza da Criação ou a beleza produzida por mãos humanas seria um “canal” mais eficaz para experiências epifânicas? O substantivo “canal” nos conduz a duas relevantes questões. Em primeiro lugar, por quais “canais” seria legítimo buscar uma aproximação ao (belo) religioso? Caberia à Igreja servir-se indiscriminadamente dos novos meios para a sua tarefa de evangelização ou seria necessário adaptá-los a fim de conferir a eles um tom de sacralidade? Em segundo lugar, voltando-nos a um tema de natureza mais filosófica, a concepção da arte como mediação deveria ser hoje, em algum grau, recuperada, apesar de ter sido condenada pelas estéticas moderna e contemporânea por reduzir a autonomia da obra artística? O ideal de “arte pela arte” não afastaria a obra de seu fecundo vínculo com o mundo humano? Tal questão ganha especial força numa sociedade que reduz a estética ao culto à aparência, à busca do fitness, ou seja, do que se adequa (fit) a um modelo de beleza pré-estabelecido, nesse caso, de ordem física. O esteticismo costuma converter o belo em algo vazio, em verniz que não satisfaz a nossa necessidade mais profunda de significar a vida. Além disso, os modelos seguidos e cobiçados no Brasil de hoje, usualmente importados, não são passíveis de realização para muitos de nós dotados de um biotipo distinto do europeu. Esse ponto toca uma questão fundamental para toda a América Latina: o dever de preservarmos e de seguirmos configurando os nossos modos de representar e de nos relacionar com a dimensão do Sagrado.

É interessante observar que tanto a arte quanto a religião lidam diretamente com a questão da identidade, tema para nós candente. No encontro entre essas duas formas simbólicas, vislumbramos aquilo que somos e em que cremos a partir de traços, cores, texturas, ritmos, timbres, escalas, gestos, versos, vestimentas e coreografias. Como prova disso, poderíamos citar o pungente documentário Marias: a fé no feminino (2015), dirigido por Joana Mariani e Leticia GiffoniMARIANI, J. e MARIANI, M. (Produtores), MARIANI, J. e GIFFONI, L. (Diretores). Marias: a fé no feminino. [Filme cinematográfico]. Brasil, Cuba, México, Nicarágua, Peru: Vitrine Filmes, 2015.. Somos capazes de compor e reconhecer a nossa identidade latino-americana nas devoções marianas, permeadas de elementos estéticos2 2 Documentário disponível para alugar pela plataforma de streaming You tube: https://www.youtube.com/watch?v=E-o22VIEwe4 . Como diz uma das entrevistadas do documentário, a cubana Silvia Rodríguez Rivero, devota da Virgem da Caridade do Cobre, falar sobre Nossa Senhora equivale, em certa medida, a falar sobre a música e a arte. Não podemos nos esquecer de que o feminino e, em especial, Maria são os privilegiados representantes de uma importante categoria da estética ocidental, a graça. Desde a Antiguidade, tal categoria aponta justamente para um elemento de origem espiritual que cativa a nossa sensibilidade. Quando não “resplandece a graça cintilante envolvendo a beleza” (PLOTINO, 2000PLOTINO. The Six Enneads. Translated by Stephen MacKenna and B. S. Page. Blackmask Online, 2000. E-book., p. 421), nas palavras de Plotino, teríamos uma obra que não passa de “letra morta” (JANKÉLÉVITCH, 1980JANKÉLÉVITCH, V. Le Je-ne-sais-quoi et le Presque-rien. La Méconnaissance, le Malentendu. Paris: Seuil, 1980. v. 2., p. 113), como interpretará, mais tarde, o filósofo contemporâneo Vladimir Jankélévitch. Talvez, a graça, na qual se entrelaçam o estético e o espiritual, seja um eficaz antídoto contra os vazios, anteriormente citados, de uma beleza inautêntica, estereotipada e cosmética, assim como às repetições de fórmulas que impedem a irradiação de uma “aura” na obra de arte.

No seio do cristianismo, quando Deus se fez homem, à sua imagem e semelhança, em Jesus Cristo, todo ser humano foi convidado a reproduzir a beleza que é a expressão formal de sua identidade que nasce e vive do mistério da encarnação (PASTRO, 2006PASTRO, C. Teologia do espaço. São Paulo: Grafa, 2006., p. 2). A palavra se fez carne (Jo, 1,14). Momento em que a beleza se encarnou e fez história. São Gregório de Nissa afirma: “A beleza nos coloca diante de uma presença” e de “um Outro que é maior que nós, um Outro que é além de nós, é o próprio Deus da Beleza” (GREGÓRIO DE NISSA, apud PASTRO, 2012PASTRO, C. O Deus da Beleza. 3.ed. São Paulo: Paulinas, 2012., p. 28), presente não somente no traço estético.

A palavra beleza utilizada por Hans Urs Von Balthasar no século XX foi revolucionária ao pensamento teológico, pois apresenta a via da estética como manifestação da forma da Revelação do Amor Trinitário: “A nossa palavra inicial chama-se beleza” (BALTHASAR, 2005BALTHASAR H. U. V. Gloria I. La percezione della forma. Jaca Book, Milano, 2005., p. 9-10), foi assim que Balthasar iniciou sua grande obra, Glória. Para o teólogo suíço,

Deus vem primariamente a nós não como mestre (verdadeiro), nem como redentor (bom), mas para mostrar e irradiar Ele mesmo, a glória de seu eterno amor trinitário, com aquela ausência de interesse que o verdadeiro amor tem com a verdadeira beleza. O mundo, com sua própria glória foi criado para glória de Deus e também será salvo para a glória de Deus.

(BALTHASAR, 1993BALTHASAR H. U. V. My Work in Retrospect. San Francisco: Ignatius press, 1993., p. 80)

Para Balthasar, a graça consiste em se fazer ver, dizendo respeito, objetivamente, ao arrebatamento e, subjetivamente, originando o movimento do ser humano para Deus, pois não pode haver percepção teológica fora da Lux tuae claritatis (BALTHASAR, 2005BALTHASAR H. U. V. Gloria I. La percezione della forma. Jaca Book, Milano, 2005., p. 24). Assim somos surpreendidos diante do Amor Absoluto e atraídos para a glória trinitária, envolvendo toda a vida (BALTHASAR, 1989BALTHASAR H. U. V. Gloria. v. 7. Nuevo Testamento. Madrid: Encuentro, 1989., p. 315). Um exemplo desse movimento, que alude novamente à já citada fórmula de Ricardo de São Vítor, encontra-se no Prefácio de Natal ao qual Balthasar (2005, p. 105)BALTHASAR H. U. V. Glória: uma estética teológica. Madrid: Encuentro, 1985. recorre para desenvolver este aspecto: “pelo mistério do Verbo Encarnado, a nova luz da tua glória encheu os olhos do nosso espírito, para que, contemplando a Deus visível, sejamos arrebatados (rapiamur) por Ele ao amor das coisas invisíveis” (in: Missale Romanum, 1920MISSALE ROMANUM ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratus auctoritate Pauli P.P. VI promulgatum editio Typica tertia, Roma: Typis Poliglotis Vaticanis, 2002., p.323).

Na exortação apostólica Evangelii Gaudium, o Papa Francisco destaca que a “a graça supõe a cultura, e o dom de Deus se encarna na cultura que o recebe” (n. 115). Reconhecer a presença da graça, ou seja, reconhecer a presença, como já mencionamos, de um componente espiritual que, teologicamente, pode ser concebido como o próprio Espírito, aponta para reconhecer a beleza do amor de Deus como a fonte de toda graça. Assim, a beleza nascida da encarnação provoca e interpela a inquietação e a admiração, ela nos enche de esperança, aproxima do mistério de Deus, inserindo o ser humano na realidade autêntica do mundo. Olhar para a realidade de uma sociedade ferida e marginalizada nos faria amar e desejar oferecer a beleza de Deus. Simone Weil vê que no “ser humano, o desejo de amar a beleza do mundo é, essencialmente, o desejo da Encarnação. [...] Somente a Encarnação pode satisfazê-lo” (WEIL, 1952WEIL, S. Attente de Dieu. Paris: La Colombe, 1952., p. 129). Como complementa, “a beleza é verdadeiramente, como disse Platão, uma encarnação de Deus. A beleza do mundo não é distinta da realidade do mundo” (WEIL, 1950WEIL, S. La Connaissance surnaturelle. Paris: Gallimard, 1950., p. 312).

O Papa Francisco, na exortação apostólica Evangelii Gaudium, ao convidar à transformação missionária da Igreja, indica o “caminho da beleza” como elemento essencial do anúncio do Evangelho: “É bom que toda a catequese preste uma especial atenção à “via da beleza (via pulchritudinis)” (n.152). Para ele: “anunciar Cristo significa mostrar que crer n’Ele e segui-Lo não é algo apenas verdadeiro e justo, mas também belo, capaz de cumular a vida dum novo esplendor e duma alegria profunda, mesmo no meio das provações” (n. 156). Não se trata de promover um relativismo estético, mas de “recuperar a estima da beleza para poder chegar ao coração do homem e fazer resplandecer nele a verdade e a bondade do Ressuscitado” (n. 167). O Papa Francisco deseja a beleza na evangelização, retomando, a partir de uma base teológica, o clássico vínculo entre o belo e o bom. Nesse sentido, traduz a máxima do cristão encarnado e a caminho de sua configuração com o Cristo: “é preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diversas formas de beleza que se manifestam em diferentes âmbitos culturais” (n. 167). A verdade, a bondade e a beleza, identificadas entre si, são o ponto axial da misericórdia que é o Cristo mesmo. É para essa misericórdia que Francisco convoca e suscita a práxis de cada cristão (n. 149). O amor misericordioso que desvela a beleza de todo ser humano. A beleza irrepreensível do amor de Deus torna-se meio de sentir o Seu amor para Dele viver e, assim, amar. A harmonia da verdade, da bondade e da beleza faz compreender que Deus é o centro.

O Papa Francisco nos surpreende ainda com a estética proposta na Laudato si’. Extrai, de toda relação do ser humano com Deus e do ser humano com a natureza ou de todo cosmo, o movimento para a glória de Deus. De tal relação, decorre a vivência da bondade, do belo, da harmonia como força encantadora da beleza do Criador, que se revela e se plenifica em Cristo, Verbo encarnado. Este é palavra que se fez imagem, o Deus invisível que se torna visível, audível e resplandece na beleza da salvação. O Papa afirma ainda, na Laudato si’:

Se nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos.

(n. 150)

Em continuidade com a avaliação positiva da produção artística para a vida espiritual, presente desde a Idade Média, e conectado com as mais recentes preocupações da estética ambiental, Francisco articula a relação que existe entre a arte e a natureza, pois para ele: “As artes expressam a beleza da fé e proclamam a mensagem da grandeza da criação de Deus”. […] Quando admiramos uma obra de arte ou uma maravilha da natureza descobrimos que tudo nos fala d’Ele e do seu amor” (n. 151).

A beleza nos toca, descortina o inefável e nos remete ao exercício do Amor. Em Jesus Cristo, o Verbo encarnado, o amor de Deus e ao próximo fundem-se em um único movimento. Assim, é Cristo, a beleza redentora, que salvará o mundo, a maior expressão de amor. A autêntica beleza abre o coração humano e revela seus desejos mais profundos de viver a beleza do crucificado e ressuscitado.

  • 1
    O gênero musical júbilo (jubilus) é tratado, especificamente, nos Comentários aos Salmos 32 e 99.
  • 2
    Documentário disponível para alugar pela plataforma de streaming You tube: https://www.youtube.com/watch?v=E-o22VIEwe4

Referências

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  • BENTO XVI, Papa. Encontro com o mundo da cultura no Collège des Bernadins Viagem Apostólica à França: Encontro com o mundo da cultura no Collège des Bernardins (Paris, 12 de setembro de 2008) Disponível em: vatican.va Acesso em: 01 dez. 2022.
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  • BENTO XVI, Papa. Discurso por ocasião do encontro com os artistas na Capela Sistina Sábado, 21 de Novembro de 2009. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2009/november/documents/hf_ben-xvi_spe_20091121_artisti.html Acesso em: 05 dez. 2022.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022
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