Acessibilidade / Reportar erro

A TEOGASTRONOMIA: UMA ESTÉTICA TEOLÓGICA SUI GENERIS

RESUMO

Neste artigo, o A. apresenta uma nova abordagem teológica, denominada “teogastronomia”. Esta estética teológica defende que a relação que uma pessoa, um povo e uma civilização estabelecem com sua “gastro-nomia” – no sentido etimológico do termo – tem um valor teofânico e é detentora de uma discreta fecundidade pastoral e teórica. Para demonstrar esta hipótese, o artigo procede em três momentos. Em primeiro lugar, reflete sobre o conceito de teogastronomia, bem como sobre a relação entre esta abordagem e o saber religioso da revelação bíblica. Em seguida, situa esta estética teológica em seu “berço” literário e espiritual próprio, a saber, os escritos sapienciais. Por fim, mostra como este ramo sapiencial da teologia pode levar-nos a revisitar, em profundidade, o núcleo vivo da fé cristã: o mistério pascal de Jesus Cristo, expressão definitiva de sua livre decisão de dar a própria vida como alimento pela multidão incontável de homens e mulheres em busca de vida em plenitude.

PALAVRAS-CHAVE
Teogastronomia; Sabedoria; Estética Teológica; Mistério Pascal

ABSTRACT

This article presents a new theological approach, called “theogastronomy”. This theological aesthetic argues that the relationship that a person, a people and a civilization establish with their “gastro-nomy” – in the etymological sense of the term – has a theophanic value and holds a discreet pastoral and theoretical fecundity. To demonstrate this hypothesis, the present article proceeds in three stages. First, it reflects on the concept of theogastronomy, as well as on the relationship between this approach and the religious knowledge of the biblical Revelation. Then, it places this theological aesthetic in its own literary and spiritual “cradle”, namely, the sapiential writings. Finally, it shows how this sapiential branch of theology can lead us to revisit, in depth, the living core of the Christian faith: the paschal mystery of Jesus Christ, the definitive expression of his free choice to give his life as food for the countless multitude of men and women seeking life in its fullness.

KEYWORDS
Theogastronomy; Wisdom; Theological Aesthetics; Paschal Mystery

Introdução

Para cumprir a sua missão no mundo, a Igreja reconhece o seu dever permanente de “investigar a todo momento os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho” (Gaudium et Spes 4,1). Ora, esses sinais que devem ser investigados e discernidos manifestam-se de várias maneiras: na história dos povos, na vida das Igrejas, nos movimentos sociais, nas buscas das pessoas etc. Alguns desses sinais já se tornaram palavras, projetos e instituições. Outros, porém, são difusos, ocultos na sensibilidade da “carne” e no não-dito da história dos povos, das comunidades de fé, das dinâmicas sociais e da vida dos indivíduos. Por isso, desejando aprofundar esta tarefa eclesial, em vista de encontrar novas vias de acesso a esses elementos não notados e não-ditos, a investigação teogastronômica busca perscrutar, teologicamente, as “entranhas” da história das pessoas e dos povos, a partir de alguns sinais identificáveis, ligados ao mundo da alimentação1 1 Este artigo é fruto da tese doutoral “La vie comme nourriture. Pour un discernement eucharistique de l’humain fragmenté” (A vida como alimento. Para um discernimento eucarístico do humano fragmentado), defendida em 2019, no Centre Sèvres – Facultés Jésuites de Paris. O trabalho foi orientado pelo prof. Christoph Theobald SJ e está à espera da publicação. Para ler alguns textos já publicados, na perspectiva indicada neste artigo, ver: ADÃO, F. S. “Da devoração à hospitalidade. Uma narrativa alimentar à moda antiga”. Revista Ingesta, v. 1, n. 1, 2019, p. 283-296. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistaingesta/article/view/151707. Acesso em: 16 nov. 2022; ADÃO, F. S. “Toda vida é pão. Uma abordagem eucarística do discernimento e acompanhamento de jovens”. ITAICI – Revista de Espiritualidade Inaciana, n. 121 (setembro 2020), p. 11ss; ADÃO, F. S. “Toute vie est pain. Une approche eucharistique du discernement et de l’accompagnement des jeunes”. Lumen Vitae, vol. LXXV, 2020.3, p. 279-290. .

Essa nova abordagem visa a uma ajuda mútua: por um lado, a carne e as entranhas humanas serão ajudadas a nomear tanto as forças de nutrição e de vida quanto as forças de intoxicação e de morte que carregam dentro de si; por outro lado, a teologia será ajudada a encontrar novas mediações simbólicas e cognitivas para a reflexão da fé e a redescobrir a importância de sua tarefa maiêutica na vida das pessoas e no desenvolvimento das culturas. Tudo isso se torna possível quando enxergamos no singularíssimo gesto eucarístico de Jesus uma proposta existencial universal – a vida é sempre recebida, transformada e dada como um alimento –, considerando, assim, o saber discreto e concreto transmitido pelo mundo culinário como uma forma privilegiada de tomada de consciência do processo salvífico e de acesso espiritual ao vínculo intrínseco entre o mistério trinitário de Deus, o mistério do ser humano e o mistério de toda a criação.

A hipótese fundamental desta estética teológica sui generis é a seguinte: uma atenção sapiencial à relação de uma pessoa, um povo ou uma civilização com a comida – seus modos próprios de plantar e colher, cozinhar e comer, estar à mesa e falar do alimento, enfim, sua “gastro-nomia” (no sentido etimológico do termo, que explicitaremos mais adiante) – tem um valor teofânico. Para que essa discreta manifestação de Deus seja reconhecida, nomeada e sistematizada, um saber novo e instigante pode brotar do diálogo respeitoso e fecundo entre as modernas ciências da alimentação e uma teologia bíblica atenta ao vínculo entre o fenômeno alimentar e a revelação divina ao povo de Israel. Para explicitar melhor esta hipótese e fundamentá-la metodologicamente, nosso artigo está estruturado em três partes: 1) primeiramente, refletiremos sobre o conceito de teogastronomia, bem como sobre a relação entre esta abordagem aparentemente nova e o saber religioso dos povos antigos, assumido e levado à radicalidade pela revelação bíblica; 2) em seguida, situaremos esta estética teológica em seu “berço” literário e espiritual próprio, a saber, os escritos sapienciais; 3) por fim, mostraremos como a perspectiva, aparentemente lúdica e periférica, deste ramo sapiencial da teologia leva-nos a revisitar, em profundidade, o núcleo vivo e pulsante da fé cristã: o mistério pascal de Jesus Cristo, expressão definitiva de sua livre decisão de dar a própria vida como alimento por seus discípulos e discípulas e, mais amplamente, pela multidão incontável de homens e mulheres em busca de vida em plenitude.

1 A investigação das “entranhas” humanas: uma mediação gastronômica

A atenção sociológica, antropológica e teológica ao fenômeno alimentar não é, de modo algum, uma novidade nas pesquisas acadêmicas2 2 As ciências sociais e antropológicas estudam esse assunto há quase um século, pois a herança e os hábitos alimentares de um povo podem ser considerados como “fatos sociais totais”. Essa relação com experiências repetitivas e sensíveis revela um conjunto de noções simbólicas relacionadas a essas experiências. Ver, por exemplo, MAUSS, M. Essai sur le don. PUF: Paris, 2012; LEVI-STRAUSS, C. Mythologiques. Le cru et le cuit. Paris: Plon, 1964 (principalmente a introdução). Além disso, a introdução de uma perspectiva culinária nos estudos bíblicos e dogmáticos não é estranha à reflexão teológica contemporânea. Veja, por exemplo, Bonnet, S. La cuisine d’Emmaüs. Paris: Cerf, 1979; BOURGEOIS, D. La cuisine de la création: le régime alimentaire biblique comme thème théologique. Pierre d’angle, v. 2, 1996; SCHUT, M. (Ed.). Food & Faith: Justice, Joy, and Daily Bread. New York: Morehouse Publishing, 2002; CAMPBELL, C. C. Stations of the Banquet: Faith Foundations for Food Justice. Collegeville: Liturgical Press, 2003; Pagazzi, G. C.; Manzi, F. Le regard du Fils. Christologie phénoménologique. Namur: Lessius, 2006; Méndez Montoya, A. F. The Theology of Food. Eating and the Eucharist. New Jersey: Wiley-Blackwell, 2009; BARRIOS TAO, H. Comida, mesa y banquete: de la Primera a la Segunda Alianza. Theologica Xaveriana, v. 58, n. 166, p. 347-380, jul./dic. 2008; SOZA, J. R. Food and God: A Theological Approach to Eating, Diet, and Weight Control. Eugene: Wipf & Stock, 2009; MÉNDEZ MONTOYA, A. F. Festín del deseo: Hacia una teología alimentaria. México: Jus, 2010; um número da revista Interpretation, dedicado à teologia do alimento: The Theology of Food. Interpretation: a Journal of Bible and Theology. v. 67, n. 4, Oct. 2013; Pagazzi, G. C. La cucina del Risorto. Gesù “cuoco” per l’umanità affamata. Bologna: EMI, 2014. Em português, temos a tradução do livro: WIRZBA, N. Alimento e fé: uma teologia da alimentação. São Paulo: Loyola, 2014; a tese de doutorado em Turismo, Lazer e Cultura: LAVRADOR, J. L. P. A mesa entre os homens: comensalidade e gastronomia nos textos bíblicos, um discurso para os nossos tempos (Universidade de Coimbra, 2016); e a dissertação de mestrado em Teologia: BARROSO, A. S. O alimento como locus theologicus: um itinerário da revelação encarnada na comensalidade (FAJE, 2021). . Muitos são os modos de se tratar esta questão: há interesses de tipo histórico, outros mais socio-dinâmicos, outros ainda trazem uma entonação mais explicitamente espiritual. De fato, a alimentação é um dado universal da experiência humana e perpassa também, de maneiras variadas, as narrativas e os ritos das várias religiões mundiais. A abordagem defendida neste artigo é herdeira e parceira de todas essas pesquisas, mas traz algo de específico: trata-se da proposta de articular esta diversidade de perspectivas e a fé bíblica, a partir de uma expansão do conceito de gastronomia, orientando o saber daí resultante não somente à elaboração de um sistema conceitual, mas à própria realização da singularidade das pessoas, compreendidas constitutivamente como “únicas em relação”3 3 Tomamos emprestada, aqui, uma expressão frequentemente utilizada por Christoph Theobald em sua reflexão sobre a relação entre a realização humana e o mistério trinitário de Deus. Ver, por exemplo, THEOBALD, Christoph. Présences d’Évangile I: lire l’Évangile et l’Apocalypse en Algérie et ailleurs. Paris: Atelier, 2011, p. 220. . Por que razão a gastronomia se revela como uma interlocutora privilegiada, quando temos por objetivo uma ajuda ao desenvolvimento cada vez mais pleno da singularidade relacional de uma pessoa humana? Um breve exame dos três níveis de compreensão – interrelacionados entre si – do chamado movimento gastronômico pode esclarecer melhor suas potencialidades até então escondidas ou pouco consideradas no ambiente universitário, em geral, e teológico, em particular.

O primeiro nível é o mais imediato e diz respeito ao surgimento da gastronomia nos tempos modernos, na França. Esta maneira original de conceber a relação com a comida possui uma especificidade: já assegurada a necessidade humana de se nutrir, a tarefa gastronômica se relaciona com a busca do prazer à mesa (DÓRIA, 2009DÓRIA, C. A. A culinária materialista. A construção racional do alimento e do prazer gastronômico. São Paulo: Senac, 2009., p. 125). Neste modo de lidar com os alimentos, um grupo humano sai, então, da relação primeira que advém da necessidade de se nutrir para sobreviver, em vista de entrar no domínio da alegria, da festa, do lúdico. O horizonte já não é mais a lei universal da nutrição, mas o desejo – de alguma maneira supérfluo e gratuito – de inovação e de personalização autoral.

No entanto, nenhuma busca do prazer gustativo se concretiza se não formos capazes de transformar e materializar uma boa ideia. Por isso, a gastronomia, neste segundo nível de compreensão, refere-se também ao “conjunto de saberes sobre a construção do prazer ao comer” (DÓRIA, 2010DÓRIA, C. A. Estrelas no céu da boca. Escritos sobre culinária e gastronomia. 2.ed. São Paulo: Senac, 2010., p. 16). Este nível reflexivo – constitutivamente orientado à prática – reúne, aprofunda e expande o conhecimento acumulado pela humanidade ao longo dos milênios, em sua relação com a cozinha “necessária”, mais ligada à lei da nutrição. São, assim, saberes ordenados e sistemáticos sobre técnicas diversas, que vão da colheita à seleção de bons ingredientes, do uso dos instrumentos culinários ao domínio mais preciso do tempo de cocção, de uma compreensão mais consciente dos fenômenos físico-químicos envolvidos no simples ato de cozinhar a uma implicação e assimilação corporal desses saberes, traduzidos num grande número de gestos culinários.

Até aqui, nós estamos trilhando o caminho aberto pelo já maduro movimento gastronômico mundial. Porém, um olhar interessado mais nas pessoas do que nos produtos feitos por elas – por melhores que sejam! – busca desvendar um terceiro nível de compreensão, ainda incipientemente explorado pelos pesquisadores e pesquisadoras. Quando consideramos os dois níveis anteriores de conhecimento, prestando atenção à etimologia da palavra, nós descobrimos que uma investigação gastro-nômica – de γαστήρ, gastér, “estômago, ventre” + νόμος, nómos, “lei, norma” – é capaz de manifestar uma normatividade guardada e escondida nas entranhas: os critérios, os gostos, os valores, bem como as dificuldades, as desordens e os riscos enfrentados por cada pessoa, inserida numa determinada cultura culinária. A teogastronomia entra em diálogo com os dois primeiros níveis, tentando ajudar a emergir este nível mais profundo de autoconsciência pessoal e sociocultural.

O que surge, aqui, é uma abordagem ao mundo culinário semelhante à exposta pelo biblista português, José Tolentino Mendonça. Em um de seus livros teológico-espirituais, ele afirma:

A cozinha é metáfora da própria existência, pois distingue-nos uma certa capacidade de viver na transformação, numa mobilidade que não é só geográfica, mas total. Em cada uma das nossas cozinhas dão-se tantas transformações que elas se tornam quase invisíveis. A cozinha é o lugar da instabilidade, da procura, da incerteza, das misturas inesperadas, das soluções criativas mais imprevistas. Por isso está desarrumada tantas vezes, porque vive nessa latência de recomposição. Na cozinha torna-se claro que a transformação que damos às coisas reflete aquela que acontece no interior de nós

(TOLENTINO MENDONÇA, 2008TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita. Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008., p. 159).

O fato culinário e gastronômico, por dizer respeito a todo ser humano – desde quem come sem ter consciência das implicações de seu ato até homens e mulheres cientistas que se perguntam sobre os vínculos entre essa prática e as demais dimensões de uma cultura e de uma sociedade – permite o diálogo com uma ampla gama de interlocutores. É assim que a teogastronomia, além de se ser concebida como um ato propriamente teológico, pretende ser um auxílio da fé cristã a todo movimento humano em direção à saúde integral e a uma vida mais transbordante, afastando as ameaças que conduzem ao adoecimento e à morte de uma pessoa e de um povo.

No entanto, como insinuamos em nossa introdução, não pensemos que esta perspectiva é algo absolutamente novo: a tradição bíblica também é testemunha de que a relação com o ato de comer é uma forma privilegiada de conhecer a humanidade, suas buscas, suas contradições, suas instituições, suas relações e sua espiritualidade. Desde o momento em que decidimos focar nosso olhar no fenômeno alimentar, podemos descobrir o quanto esse tema é onipresente nas Escrituras de Israel e dos cristãos e cristãs, desde os relatos das origens – que reconhecem no ato de comer o primeiro dom e o primeiro limite dirigidos à humanidade vivente – até os fins vislumbrados pelo Apocalipse – que anuncia a plena felicidade dos convidados para o banquete de casamento do Cordeiro.

Além disso, o ato de comer junto torna-se, explicitamente, a marca fundadora da identidade do povo de Israel e de sua concepção de aliança com Deus na ceia pascal do Êxodo. Para o cristianismo, o “sublime sacramento” surge na ressignificação eucarística deste ato de comensalidade, vivida e proposta por Jesus, nos relatos dos Evangelhos. É ainda em torno das refeições que aparecem as críticas mais amarguradas dos adversários de Jesus, que não entendem a razão pela qual ele deseja comer junto com pessoas consideradas pecadoras e impuras. Com efeito, os narradores bíblicos não consideram a relação com a comida, a bebida e os convidados um elemento secundário na existência de uma pessoa ou de um povo e na sua relação com Deus e com o mundo: o que está em jogo aqui é, de fato, um modo de viver e de morrer e, em última análise, o acesso a uma vida e uma morte santas.

Para exemplificar a centralidade desta perspectiva na Torah, vejamos um instigante resumo apresentado por Tolentino Mendonça:

Não podemos esquecer que o primeiro mandato que Deus estabeleceu para Adão e Eva, no relato do jardim, foi de categoria alimentar (“Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás de morrer”, Gn 2,16.17); que a terra prometida é sobretudo definida em termos de seus recursos alimentares, terra onde “corre leite e mel” (Dt 6,3; 8,8; 11,9; 26,9-10.15; 27,3; 31,20; 32,13-14); que o objetivo da grande marcha de Moisés com o povo, do Mar Vermelho ao rio Jordão, é “comer e regozijar-se” diante do Senhor Deus (Dt 27,7). A consumação do Êxodo expressa-se numa idealização da comensalidade, no país que o Senhor escolheu, uma comensalidade celebrada na abundância dos frutos da colheita e na solidariedade entre todos os membros do povo, estendendo-se mesmo até às suas fronteiras: “virá então [à tua porta] o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva que vivem nas tuas cidades, e eles comerão e se saciarão” (Dt 14,29)

(TOLENTINO MENDONÇA, 2008TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita. Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008., p. 163).

Uma reflexão teológica que escolhe o saber gastronômico como interlocutor e mediador epistemológico, nos três níveis acima expostos, ajuda-nos a ler estes textos bíblicos a partir e para além de sua materialidade imediata, com uma respeitosa atenção às “entranhas”. Essa parte oculta do corpo traz consigo uma riqueza física e simbólica sempre surpreendente, pois manifesta – discretamente – a relação com nossas origens, com nossa interioridade e com as necessidades do outro. De fato, nas Escrituras, as entranhas revelam três dimensões fundamentais da pessoa humana: as origens da vida, na gestação; a conservação da vida, na relação com a fome e a comida; e a criação de vínculos vitais, na capacidade de compaixão para com as fomes e as dores do outro4 4 Estes elementos serão desenvolvidos, de modo diverso, na literatura profética, retomando o paradigma do banquete acessível a todos e associando-o à pacificação prometida para os tempos messiânicos, quando o Espírito de Profecia será, enfim, derramado sobre todos. Ver: TOLENTINO MENDONÇA, 2008, p. 164. . Assim, as Escrituras autorizam – e até encorajam – a linha de investigação aqui explicitada. E isso ganha uma densidade ainda maior quando voltamos nosso olhar para o modo como os Evangelhos narram a prática de Jesus, apresentando-o como alguém que não considerou nenhuma mesa indigna de sua presença. A teogastronomia se interessa, particularmente, em sua pedagogia de anúncio da Boa Notícia do Reino, que revela, gradualmente, a relação entre o dom dos alimentos e o dom de si, como um caminho fecundo para uma vida unificada, realizada e salva.

Haveria ainda muito a dizer, também sobre as outras seções do mundo bíblico. No entanto, julgamos que a exposição feita até agora já é suficiente para demonstrar que a abordagem teológica aqui proposta não se compreende como uma inovação desenraizada, e sim como a retomada, o aprofundamento e a universalização dos vínculos discretos entre alimentação, revelação e salvação, expressos em filigrana no conjunto das Escrituras santas. Com efeito, de modo semelhante às narrativas do mundo bíblico, a lenta gestação de uma pessoa única e singular no seio de um povo sempre deixa “estelas-testemunhas” das relações e utopias, dos desejos e conflitos que construíram sua história. Se quisermos revisitar os fundamentos da fé a partir da experiência concreta das pessoas e dos povos, é importante ouvir testemunhas alternativas que mantêm viva sua memória histórico-cultural e revelam o que os move em profundidade.

Acessar os “motores” profundos: este não é um projeto fácil porque, como diz repetidamente a fé cristã, cada pessoa é – para si e para os outros – um verdadeiro mistério. Ainda mais difícil seria o projeto de identificar os prováveis impulsionadores das expectativas, dos desejos e dos erros coletivos de um povo. No entanto, os mistérios são hospitaleiros e sempre deixam portas abertas. Cabe, portanto, ao pesquisador escolher aquele portal que parece mais adequado à sua busca. A seguir, explicitaremos melhor quais são os contornos e as delimitações do “portal” que nós elegemos.

2 Uma sabedoria servidora da irrupção profética: a função parabólica

A nossa intenção de ajudar a abrir amplas portas de acesso à interioridade das pessoas – a partir do patrimônio comum da humanidade – levou-nos a identificar no fundamental e universal ato de comer um portal particularmente rico e privilegiado. Como acabamos de mostrar, essa abordagem leva a sério a “carne” e o corpo, a relação sensível e não-verbal com a realidade, afetando o ser humano em dimensões profundas e muito diversas: fisiológicas, sociais, culturais, simbólicas, espirituais etc. Tal caminho também permite o acesso, desde o início, a um campo de diálogo ao alcance de toda e qualquer pessoa, independentemente de sua formação acadêmica, respeitando o que a nutre física e simbolicamente, e ajudando-a a identificar um movimento interior discreto, uma inteligência implícita e uma busca muitas vezes não nomeada.

Para atingir seus objetivos, a teogastronomia propõe um deslocamento epistemológico e se deixa inspirar por um saber próprio às “periferias” da tradição bíblica: um saber que nos conduzirá, pouco a pouco, ao centro do mistério da fé cristã. Nós falamos, aqui, da sabedoria5 5 A tradição teológica latino-americana já havia falado sobre o papel mediador da sabedoria (Ver: J. C. Scannone) no acesso à racionalidade histórica da fé de um povo. Ver: IRARRAZAVAL, D. Notas sobre a atividade teológica dos pobres. In: RICHARD (Org.), 1987, p. 367-376. . Vejamos a razão pela qual este tipo específico de saber é a matriz existencial, espiritual e metodológica da abordagem teológica exposta neste artigo.

Em um artigo intitulado “Sabedoria: textos periféricos?”, um exegeta luterano brasileiro, Milton Schwantes, interroga sua própria tradição eclesial – mais sensível à profecia – sobre a recepção da teologia sapiencial. Ele se propõe a “chamar a atenção sobre este silêncio da teologia sobre a sabedoria” (SCHWANTES, 2008SCHWANTES, M. Sabedoria: textos periféricos? Estudos de Religião, ano XXII, n. 34, jan/jun. 2008., p. 55)6 6 A esse respeito, Milton Schwantes dá um exemplo: A Teologia do Antigo Testamento, de Gerhard von Rad, concentra-se nas tradições históricas e nas tradições proféticas do antigo Israel. O autor menciona a sabedoria, mas não em profundidade. Somente no final de sua vida (1970), ele veio a publicar um livro sobre a sabedoria bíblica. Segundo Schwantes, esse não é o “problema de um pensador, no caso, von Rad, mas da teologia bíblica, da teologia das igrejas, enfim da religião judaico-cristã, em especial na cristã”. Ver: SCHWANTES, 2008, p. 55. . Segundo ele, as igrejas concentraram a atenção na Torah (ensinamento), que privilegia as narrativas e os mandamentos, e nos Nebi’im (profetas), que privilegiam a palavra e os gestos proféticos. Em consequência, ele denuncia um desconhecimento da tradição dos Ketubim (escritos), que privilegiam a sabedoria, assim como a incompreensão sobre a particularidade deste saber teológico (SCHWANTES, 2008SCHWANTES, M. Sabedoria: textos periféricos? Estudos de Religião, ano XXII, n. 34, jan/jun. 2008., p. 63).

Após ter examinado o contexto onde nasceram os textos sapienciais bíblicos7 7 O autor se refere a Alexandria, onde a sabedoria ajudou a acelerar a aproximação entre a fé bíblica e a cultura grega. Ver: SCHWANTES, 2008, p. 56. e indicado a sabedoria como matriz de uma tradição muito antiga sobre Jesus de Nazaré8 8 No Novo Testamento, o exegeta chama a atenção para as descobertas a respeito do tom sapiencial da fonte Q e da carta de Tiago. Ver: SCHWANTES, 2008, p. 55-57. , Schwantes procura demonstrar a especificidade da teologia da terceira parte do cânon bíblico judaico. Ele resume assim sua mensagem, formulando um alerta à fé e à liturgia eclesiais:

O núcleo dos Escritos é sapiencial. Em conjunto com a oração, esta parte do cânon é sábia. Mesmo as orações não raro se configuram dentro da sapiencialidade. Horizontes contidos não necessariamente obscurecem o dia-a-dia. Cancelas fechadas ainda não acabam com a vida, ainda que a encurtam. Tempestades no horizonte tendem a aproximar pessoas, corpos, pois o medo que vem pode agrupar. Desse jeito o Cântico celebra a vida, se bem que a escravidão ronda a vida. Javé não está excluído, mas também não é central. No centro estamos nós, pessoas, e aquilo que fazemos ou deixamos de fazer. Teologia sem paz com a Antropologia é, pois, alienação. Eis o problema da fé, hoje. É que nos domingos se celebra a Deus sem nós

(SCHWANTES, 2008SCHWANTES, M. Sabedoria: textos periféricos? Estudos de Religião, ano XXII, n. 34, jan/jun. 2008., p. 61).

Após este duro e incisivo diagnóstico, Schwantes considera que a dificuldade que as igrejas encontram em receber a teologia dos livros sapienciais está fundada em dois “problemas”: a sabedoria permanece no ambiente da criação e fala muito pouco de Deus (SCHWANTES, 2008SCHWANTES, M. Sabedoria: textos periféricos? Estudos de Religião, ano XXII, n. 34, jan/jun. 2008., p. 61). No entanto, conclui, sua grandeza consiste justamente em “sua densidade humana” (SCHWANTES, 2008SCHWANTES, M. Sabedoria: textos periféricos? Estudos de Religião, ano XXII, n. 34, jan/jun. 2008., p. 64).

Diante dessa análise provocadora, nós podemos nos interrogar: o que o desaparecimento da referência central à YHWH na terceira seção do cânon judaico nos revela do próprio mistério da relação de Deus com seu povo? Por que esse Deus confessado pela fé bíblica, após Sua revelação na Torah e a emergência profética de parceiros de Sua Aliança, deixa o centro – Seu centro – à palavra de um outro? Nos limites deste artigo, nós só podemos formular uma hipótese hermenêutica, baseada na transmissão da santidade à maneira de Jesus. A Sabedoria bíblica seria uma testemunha literária de uma verdade teológica e soteriológica: após a constituição dos fundamentos – narrativo-jurídicos e proféticos – da Aliança, Deus deixa a centralidade a seus parceiros, a fim de que eles aprendam, por sua vez, a recebê-la e a deixá-la livremente em favor de outros. Se aceitarmos esta hipótese, devemos reconhecer que a Aliança bíblica não encontraria seu cumprimento nem na apoteose de um eleito nem em um antropocentrismo glorioso, mas em uma progressiva kénosis – abaixamento e esvaziamento – de um povo ou de uma pessoa amados, que escolhem deixar o centro vazio, em vista da emergência de outros parceiros livres e igualmente únicos, no seio dessa mesma relação vital.

Esta hipótese de uma sabedoria “mediadora”, orientada à irrupção sempre surpreendente de outros parceiros da Aliança, encontra apoio na descoberta de um vínculo entre a sabedoria e o fenômeno profético na Bíblia. Schwantes faz referência ao estudo de H. Wolff, que identifica uma relação entre os círculos sapienciais e as raízes intelectuais do profeta Amós9 9 Ver: WOLFF, H. W. Amos’ geistige Heimat. [Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament, 18]. Neukirchen: Neukirchener Verlag, 1964. 66 p. Apud SCHWANTES, 2008, p. 64. Sobre o estudo de seu professor H. Wolff, que aproximou a teologia javista de Amós dos círculos sapienciais, Schwantes afirma: “À medida que aproximássemos o evento teológico javista do evento cultural e teológico da sabedoria, por excelência universalista, certamente haveríamos de compreender de modo novo a profecia”. Ver: SCHWANTES, 2008, p. 64-65. . Segundo o exegeta brasileiro, este estudo provoca um deslocamento hermenêutico em relação à intervenção divina no chamado de cada um:

Enquanto pensávamos que fosse possível atribuir as origens proféticas tão-somente à inspiração vocacional, ao Deus que em sua absoluta diferença se lança à consciência humana, podíamos fazer de conta que as mediações histórico-religiosas seriam dispensáveis. Se “a palavra” é só “de Deus”, então para que querer mediá-la?

(SCHWANTES, 2008SCHWANTES, M. Sabedoria: textos periféricos? Estudos de Religião, ano XXII, n. 34, jan/jun. 2008., p. 64).

Tudo o que acabamos de expor faz eco a uma interessante intuição do filósofo e teólogo galego Andrés Torres Queiruga. Ele desenvolveu uma nova categoria teológica para repensar o modo como a Escritura considera o processo de revelação divina: trata-se de uma “maiêutica histórica”10 10 Queiruga retoma o significado socrático da maiêutica: “A significação básica da ‘maiêutica’ está expressa no Teeteto (148a-151e) com o estilo inigualável do diálogo socrático. Sócrates, filho de parteira (maia), afirma praticar a mesma arte de sua mãe: a maiêutica (maieutiké techne). Mediante sua palavra tira para a luz – ‘ajuda a dar à luz’ – o que estava dentro do interlocutor”. Ver: Queiruga, 2010, p. 119. . O processo de revelação representado por esta categoria é assim resumido por ele:

Dão-se os dois elementos básicos: a palavra externa do mediador (do maieuta) e o envio do ouvinte à sua própria realidade. O mediador, com sua palavra e com seu gesto, ajuda os demais a descobrirem a realidade que já vivem e que já são, a presença que os estava acompanhando, a verdade vinda de Deus que eram, estão sendo e são chamados a ser. A palavra externa é necessária, porque sem ela não se produziria a descoberta – fides ex auditu –; porém, ela não remete o sujeito para fora de si mesmo ou de sua situação, senão para dentro, num processo de reconhecimento e apropriação

(QUEIRUGA, 2010QUEIRUGA, A. T. Repensar a revelação. A revelação divina na realização humana. São Paulo: Paulinas, 2010., p. 119).

Para repensar a revelação a partir da experiência – a do mundo bíblico e a dos seres humanos de hoje –, Queiruga propõe uma categoria conscientemente híbrida, combinando um conceito extrabíblico, derivado da filosofia grega, e um adjetivo que insere nele uma dinâmica específica das Escrituras. No entanto, ele mesmo considera os riscos dessa categoria filosófica, sem o acréscimo proposto:

Não cabe certamente ignorar que sua ascendência socrática possa sobrecarregá-la também com o peso do essencialismo e do apriorismo gregos, impossibilitando sua aplicação i-mediata, sob pena de encerrá-la na imanência do sujeito e no jogo cíclico da “anamnese”. A qualificação terá, pois, de tentar mostrar sua compatibilidade com a abertura à liberdade de Deus e à novidade da história. Daí a denominação maiêutica histórica

(QUEIRUGA, 2010QUEIRUGA, A. T. Repensar a revelação. A revelação divina na realização humana. São Paulo: Paulinas, 2010., p. 118).

O maior risco desta perspectiva seria considerar essa categoria de modo absoluto, como se ela pudesse dar conta de tudo o que a fé atribui ao mistério da revelação divina. A teogastronomia se identifica com a concepção de revelação expressa por esta categoria, situando-a em uma abordagem precisa e circunscrita, mais adequada à sua natureza e aos seus objetivos: a de uma teologia sapiencial pós-crítica, que assume as exigências do rigor científico, mas a partir de seu modo próprio de pensar a experiência da fé bíblica no terreno comum da humanidade. Com efeito, a especificidade da tradição sapiencial bíblica repousa em sua atenção às questões universais da humanidade (mais do que nos privilégios de Israel), escolhendo resolutamente um ponto de partida antropológico. De forma consistente e coerente, esta tradição põe entre parênteses as categorias de revelação próprias a Israel, para falar a partir da experiência comum aos seres humanos de outros povos (TRUBLET, 1995TRUBLET, J. (Dir.). La sagesse biblique. De l'Ancien au Nouveau Testament. Paris: Cerf, 1995., Intr.).

À luz dessas reflexões, nós podemos compreender melhor o papel fundamental da tradição sapiencial no Novo Testamento e em todos os tempos. A constituição de uma vida salva e realizada supõe o desenvolvimento de uma dinâmica – trinitária – de recepção, de transformação e de doação, semelhantes a um processo culinário. No entanto, na lenta passagem da infância à maturidade ou de uma humanidade tribal a uma humanidade globalizada, vamos compreendendo que cada “passagem” do antigo ao novo é marcada por uma experiência de crise – muitas vezes dolorosa e difícil de ser integrada. Chega uma hora em que somos levados a tomar consciência de uma verdade existencial: o mistério da vida é atravessado, de um extremo a outro, pelo mistério da morte.

Ora, o dom livre, radical e definitivo da vida de Jesus, no drama da cruz, não vem no começo do seu ministério, assim como ele não vem no começo da vida de cada um. Jesus, na sua relação com os discípulos e as multidões, utilizava um tipo de comunicação sapiencial para lhes dar acesso aos mistérios do novo Reino – uma nova qualidade de vida e de relação – que ele anunciava: as parábolas. Com as parábolas, Jesus tenta fazer “que aquela gente entre no jogo da sua lógica, e, uma vez entradas, a surpresa do Reino de Deus pode então irromper” (TOLENTINO MENDONÇA, 2012TOLENTINO MENDONÇA, J. Nenhum caminho será longo. Para uma teologia da amizade. Prior Velho: Paulinas, 2012., p. 158). Em que consiste esse “jogo”?

A parábola é um tipo de narrativa que mantém uma autonomia e uma distância em relação à história: “ilumina o presente, mas de um modo oblíquo. Passa pela história, mas sem fixar completamente o seu trânsito” (TOLENTINO MENDONÇA, 2015TOLENTINO MENDONÇA, J. A construção de Jesus. A surpresa de um retrato. Prior Velho: Paulinas, 2015., p. 59). É justamente este deslocamento semântico e temporal que “produz um olhar novo sobre o aqui e o agora” (TOLENTINO MENDONÇA, 2015TOLENTINO MENDONÇA, J. A construção de Jesus. A surpresa de um retrato. Prior Velho: Paulinas, 2015., p. 59). As parábolas – particularmente as de Jesus – propõem um reenquadramento da realidade, pertencendo a um tipo de linguagem que J. Zumstein denomina “linguagem de mudança”11 11 Ver: ZUMSTEIN, J. “Jésus et les paraboles”. In: DELORME, J. Les paraboles évangéliques. Perspectives nouvelles. Paris: Cerf, 1989, p. 102. Apud TOLENTINO MENDONÇA, 2008, p. 222. . Ao contrário da “linguagem de reforço”, mais didática e explicativa, a linguagem de mudança quer “não apenas explicitar ou aprofundar uma questão, mas sobretudo ‘abalar e modificar a concepção que o destinatário potencial tem da realidade’” (TOLENTINO MENDONÇA, 2008TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita. Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008., p. 222)12 12 Segundo Tolentino, “Zumstein defende que esta mudança pode ser de dois tipos: uma mudança de certos fatores no interior de um sistema, permanecendo este estável, ou uma mudança do sistema em si mesmo, um reenquadramento (isto é, questionar profundamente a imagem que o destinatário/leitor tem da realidade, dando-lhe um sentido outro, a fim de que este descubra possibilidades ou alternativas novas)”. TOLENTINO MENDONÇA, 2008, p. 222-223. .

Para isso, os temas das parábolas de Jesus são acessíveis a todos, pois eles pertencem ao contexto da vida ordinária. É o que nos diz o hermeneuta francês Paul Ricœur:

A primeira coisa que pode interpelar-nos é que as parábolas são relatos radicalmente profanos. Não há nem deuses, nem demônios, nem anjos, nem milagres, nem tempo anterior ao tempo, como nos relatos fundadores, nem mesmo acontecimentos fundadores como o relato do Êxodo. Nada disso, mas precisamente gente como nós: proprietários palestinenses partindo em viagem e alugando os seus campos, gerentes e trabalhadores, semeadores e pescadores, pais e filhos; numa palavra: gente comum fazendo coisas comuns. Vendendo e comprando, lançando uma rede ao mar e por aí afora. Aqui se encontra o paradoxo inicial: por um lado estas histórias são – como disse um crítico – relatos da normalidade, mas por outro lado, é o Reino de Deus que é dito ser como isso. O extraordinário é como o ordinário

(RICŒUR, 2001RICŒUR, P. L’herméneutique biblique. Paris: Cerf, 2001. apud TOLENTINO MENDONÇA, 2008TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita. Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008., p. 99).

Modelados por este ordinário ligado ao extraordinário, as parábolas são como um espelho que nos ajuda a ver um objeto a partir de ângulos diferentes. Trata-se de um espelho que convida a olhar além dele: como o espelho de Alice no País das Maravilhas, o leitor ou o ouvinte é levado a “descobrir o que separa um mundo espartilhado, injusto e triste de um mundo ainda mais encantado que o da pequena personagem inventada por Lewis Carroll” (TOLENTINO MENDONÇA, 2008TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita. Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008., p. 245). Pensemos, por exemplo, na menção ao grão de trigo, ao sal da terra, ao fermento na massa – realidades ligadas à alimentação – para ajudar os ouvintes a compreenderem a relação entre vida, morte e dom no surgimento de uma novidade radical, possibilitada por uma relação entre diferentes. Entretanto, a mudança desejada pela parábola não se reduz à compreensão: provocando uma descoberta que “pede de nós mediação para que a desejada transfiguração do mundo, realmente, aconteça” (TOLENTINO MENDONÇA, 2008TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita. Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008., p. 245), ela nos convida a uma mudança de vida.

Chegamos ao fim desta seção, na qual nos propusemos a delimitar o campo epistemológico da teogastronomia. Esta abordagem teológica deve ser compreendida como um saber de tipo sapiencial e histórico-maiêutico, que detém uma função parabólica, orientada à vinda do Reino na vida de uma pessoa e nos valores de uma cultura. Nós queremos, assim, dar continuidade às parábolas de Jesus que, diferentemente daquelas de outros mestres de sua época, não são a expressão de um exercício intelectual ou de um ensinamento moral, mas “a sabedoria paradoxal que contêm é uma provocação que profeticamente anuncia o Reino” (TOLENTINO MENDONÇA, 2015TOLENTINO MENDONÇA, J. A construção de Jesus. A surpresa de um retrato. Prior Velho: Paulinas, 2015., p. 59). Nossa parábola teogastronômica contemporânea – a vida recebida, transformada e doada como um alimento – filia-se, deliberadamente, nesta tradição sapiencial: uma mediação “pascal” a serviço de um novo olhar sobre nossa realidade comum e da irrupção imprevisível da profecia na vida única de cada um.

Para concluir nossa reflexão, convém, ainda, apontar alguns elementos que indiquem de que maneira este saber maiêutico e parabólico, além de ser uma ajuda para as pessoas de cada tempo e lugar em seu caminho de autotransformação, também auxilia o conjunto da teologia em sua tarefa contínua de aprofundamento, ressignificação e transmissão do centro vivo e pulsante da fé cristã: o mistério pascal de Jesus Cristo como acesso do mundo criado à vida trinitária de Deus.

3 Uma intelecção “estética” de nossa vida pascal: entre a Palavra e a Mesa

A esta altura de nossa reflexão, já deve ter ficado claro que a teogastronomia baseia-se na firme decisão de colaborar na elaboração de um saber descentrado e parcial. Por um lado, saber descentrado, pois, como em toda teologia sapiencial, não se busca simplesmente forjar conceitos e definições próprias, mas se visa a suscitar no outro o surgimento de uma palavra, de um gesto, de uma escolha profundamente únicos e irrepetíveis, como expressão da aliança filial com Deus, à maneira da exclamação de Moisés, no livro dos Números: “Quem dera que todo o povo de YHWH fosse profeta!” (Nm 11,29). Neste sentido, trata-se de um conhecimento de tipo simbólico-generativo: por meio de uma releitura parabólica da realidade alimentar, pretende-se criar espaços para a gestação de algo novo, para além daquilo que já conhecemos e experimentamos.

Por outro lado, é um saber parcial, pois temos consciência de que a sabedoria não é e não pode ser a única parceira bíblica a serviço da experiência profética dos outros. Como insinuado na citação bíblica acima, a própria Torah aspira ao surgimento da singularidade profética na vida dos membros deste povo. Mas ela o faz a partir de outro tipo de conhecimento, mais próximo a um modelo sistemático-explicativo: narrativas, leis, ritos e instituições que oferecem a cada pessoa um terreno comum para o seu desenvolvimento e para a constituição – sempre misteriosa – de sua unicidade relacional. Em outras palavras, a Torah constrói o chão e o horizonte comuns; a Sabedoria oferece companhia para as delícias e as durezas do caminho.

Além de estar inscrita na linhagem de um saber bíblico “periférico”, a teogastronomia, por sua valorização de conhecimentos que passam pela apreciação dos sentidos corporais, também se situa numa corrente filosófica ainda hoje considerada periférica: a reflexão estética. Tolentino Mendonça, fazendo referência à reflexão de M. Perniola, defende que a atenção à dimensão estética da experiência humana está longe de ser a opção por uma via fácil, pois “como a metafísica ou a ética, a estética consiste propriamente na reflexão sobre o sentido da vida” (TOLENTINO MENDONÇA, 2008TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita. Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008., p. 51). Além disso, citando S. Dianich, o biblista português nos convida a ver a revelação divina nas Escrituras como um evento que conduz a uma conversão estética:

A Revelação é um acontecimento estético, mas não pode ser compreendido unicamente sob a categoria do belo: o da revelação é um belo sub contrario, a beleza daquele que “não tinha aparência nem beleza pra atrair os nossos olhares”

(TOLENTINO MENDONÇA, 2008TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita. Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008., p. 51).

Com esta evocação do mistério da cruz de Jesus Cristo, nós entramos no grande drama da mensagem evangélica13 13 Como o expressa extensa e profundamente o grande nome da estética teológica do séc. XX, Hans Urs von Balthasar, em sua famosa trilogia: Teo-Fania; Teo-Dramática; Teo-Lógica. : a realização e o dom total de nossa vida passam por renúncias e provações, muitas vezes profundamente dolorosas, e isto explica a dificuldade que temos de nos manter fiéis às nossas próprias escolhas, sobretudo diante de uma crise ou de um impasse. Os relatos evangélicos narram a resistência dos discípulos de Jesus diante do modo como seu Mestre assumia este dado da vida humana. Um desses relatos, pela sua forma e seu conteúdo, situa a proposta teogastronômica em seu devido lugar teológico e espiritual: trata-se da narrativa do encontro do Ressuscitado com os discípulos de Emaús (Lc 24,13-35).

Nesta narrativa, após o fracasso da realização do projeto dos discípulos em relação a Jesus, dois deles são postos diante da possibilidade de deixar nascer em seu coração a fé pascal. Mas isto supõe a revelação da causa principal de sua cegueira: a incapacidade de crer no que já havia sido anunciado – “Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória?” (TOLENTINO MENDONÇA, 2014TOLENTINO MENDONÇA, J. O tesouro escondido. Para uma arte da procura interior. 8.ed. Lisboa: Paulinas, 2014., p. 106). Assim, no caminho de Emaús, a fé dos discípulos é progressivamente conduzida a um deslocamento interior, graças a duas experiências de uma inversão de papéis. Primeiro, depois de ter escutado a leitura que os discípulos faziam dos acontecimentos, aquele que aparentemente ignorava a gravidade da situação abre-lhes novas portas de acesso à inteligência das Escrituras: Moisés e os Profetas, ou seja, por um lado, o chão e a promessa e, por outro, as consequências de assumir uma unicidade relacional descentrada. Em seguida, no limiar do vilarejo, o terceiro peregrino abandona a condição de estrangeiro, graças a um convite hospitaleiro e, já na intimidade da casa, preside a mesa e age como mestre14 14 Tolentino afirma: “As casas em Lucas são territórios onde Jesus desenvolve preferencialmente o seu ministério em ordem à revelação. A casa chega mesmo a representar uma alternativa ao Templo, e a tudo o que ele simboliza. O centro das casas, no Evangelho, é a mesa e também o movimento de Jesus é nessa direção”. Ver: TOLENTINO MENDONÇA, 2014, p. 106-107. . Seu gesto atesta que “Ele não só toma o pão como se dá naquele pão, num gesto que reenvia para a dádiva total, na hora máxima da cruz” (TOLENTINO MENDONÇA, 2014TOLENTINO MENDONÇA, J. O tesouro escondido. Para uma arte da procura interior. 8.ed. Lisboa: Paulinas, 2014., p. 107). Ao longo do relato, o leitor acompanha o desenvolvimento de uma experiência sensível ou “estética” de uma “intimidade que se constrói no regresso ao Caminho, à Palavra e à Mesa onde se dá a Fração do Pão” (TOLENTINO MENDONÇA, 2014TOLENTINO MENDONÇA, J. O tesouro escondido. Para uma arte da procura interior. 8.ed. Lisboa: Paulinas, 2014., p. 103-104).

A revelação inesperada de uma conexão intrínseca entre a palavra, a mesa e a cruz – graças ao estrangeiro que, progressivamente, se revela Senhor das três – introduz os discípulos na fé pascal: seus olhos, enfim, se abrem. Simultaneamente, Jesus desaparece, e eles reconhecem sua Presença soberana entre eles ao longo do caminho. Aos leitores cabe a conclusão: “Os olhos deles, como os nossos olhos, são abertos pela Fé” (TOLENTINO MENDONÇA, 2014TOLENTINO MENDONÇA, J. O tesouro escondido. Para uma arte da procura interior. 8.ed. Lisboa: Paulinas, 2014., p. 108). É desta maneira que a teogastronomia aplica, em suas reflexões, o “método de Emaús” – a articulação entre a hermenêutica da Palavra e a práxis da Mesa –, buscando explicitar esta conexão íntima entre palavra, mesa e cruz na vida de qualquer pessoa que deseje irradiar sua singularidade, ao ajudar outras pessoas a se tornarem realmente únicas.

Concluiremos nosso artigo com um exemplo da maneira como as questões levantadas pelo movimento gastronômico mundial e pela teologia contemporânea estão interrelacionadas neste terreno profundo de nossa humanidade comum. Podemos nos perguntar: como se manifestam, atualmente, as utopias e as frustrações do movimento gastronômico mundial? Como o desejo de singularidade – e as crises que o acompanham – é também um tema recorrente neste movimento? Para responder a essas perguntas, nós podemos identificar algumas pistas nas diferenças valorativas entre o tradicional ofício do cozinheiro e da cozinheira e a meta almejada pelos jovens profissionais desta área: ser reconhecidos pelos seus pares e pelos clientes como um ou uma chef de cozinha. Em que consiste esta mudança?

Carlos Alberto Dória, sociólogo da alimentação brasileiro, chama a atenção para duas curiosidades na compreensão social do ofício do chef de cozinha. A primeira diz respeito à sua inserção no mundo da arte – e já não mais no artesanato. Aquele ou aquela que é reconhecido como chef de cozinha é considerado um “criador que transcende esse terreno cristalino do trabalho manual, situando-se no campo dos que estão ‘antenados’ com as tendências mais profundas da cultura” (DÓRIA, 2009DÓRIA, C. A. A culinária materialista. A construção racional do alimento e do prazer gastronômico. São Paulo: Senac, 2009., p. 232). A segunda curiosidade diz respeito à atribuição de uma espécie de função sacerdotal a este profissional, graças à sua capacidade de criar uma espécie de harmonização destinada a desaparecer: “além do sabor, ele combina cor, aroma, textura, crocância e temperatura na construção de um espetáculo de arte evanescente, no qual o comensal ultima o sacrifício” (DÓRIA, 2009DÓRIA, C. A. A culinária materialista. A construção racional do alimento e do prazer gastronômico. São Paulo: Senac, 2009., p. 216). Essas duas alterações podem estar ligadas a uma crise e a uma ampliação da compreensão da experiência estética:

A gastronomia atual parece anunciar que uma experiência estética também pode se apoiar nesse sentido antes banido do campo das manifestações artísticas, fossem elas quais fossem. E, mais do que isso, que esse sentido menor tem modernamente uma função integradora, criando, momentaneamente, um sujeito como totalidade que antes não existia e que, na medida em que a arte reconheceu a crise do suporte, ficou flanando no éter. A materialidade brutal do comer parece ativar esse problema

(DÓRIA, 2009DÓRIA, C. A. A culinária materialista. A construção racional do alimento e do prazer gastronômico. São Paulo: Senac, 2009., p. 238).

No entanto, quando parte da sociedade está disposta a reconhecer homens e mulheres com o título de chefs de cozinha como intérpretes do mundo da cultura, alguns desses profissionais passam por uma séria crise existencial. Surge, em muitos deles, uma questão ética: faz sentido ir tão longe na experimentação culinária, quando a fome continua sendo uma realidade tão presente em tantos países?15 15 Dória cita, entre outros, um desabafo do reputado chef catalão Santi Santamaria: “Ninguém mais tem tempo de se emocionar com umas verduras assadas, um frango caipira... Os homens irritados necessitam de êxtases mentais, necessitam de êxtases culinários. Por quê? Porque temos que criar sempre novas necessidades. Em outras palavras, o problema não é culinário, mas do homem, da sociedade que vive irritada, crispada. O cidadão está comendo e está vendo crianças mortas na televisão, está vivendo misérias e pegando o seu garfo como se nada se passasse”. Ver: DÓRIA, 2010, p. 196. Ou seja, ao chegar ao ápice do reconhecimento, ao excesso gratuito de um banquete, à realização de um caminho autoral e artístico, aparece a pergunta: como diminuir a distância entre nós e os outros? Podemos, de fato, viver pacificamente no deleite sem eles? Estas perguntas não são fruto de uma necessidade lógica, mas de um livre impulso ético. O que está em jogo aqui é o amadurecimento da questão moderna da emergência do sujeito e sua relação com a alteridade.

Segundo uma leitura teológica da história ocidental, proposta pelo teólogo jesuíta franco-germânico Christoph Theobald, esta questão moderna pode ser assimilada à lenta e desafiadora constituição de uma “multidão de únicos”16 16 Essa expressão remete à reflexão proposta por Christoph Theobald sobre a relação entre a singularidade de Jesus e a nossa. Ver: THEOBALD, 2007, p. 821-837. , desejada e promovida pela revelação bíblica. De acordo com o teólogo, a emergência da consciência de uma humanidade formada por pessoas singulares está profundamente ligada à confissão da fé em Jesus como Filho único de Deus. Mas nos tempos modernos, sobretudo com as grandes navegações, surge um fenômeno relacionado com a chamada globalização: “o contexto mediterrâneo que viu nascer a confissão da unicidade do Filho expandiu-se progressivamente para tornar-se, hoje, mundial” (THEOBALD, 2007THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007., p. 823). O movimento gastronômico, surgido em contexto mediterrâneo, também está imerso nesta cultura que aprendeu a confessar e a valorizar o “único”, a singularidade de alguém.

No entanto, essa mesma expansão levou o cristianismo e a cultura ocidentais a descobrirem “a particularidade de seu universalismo”, pois eles tiveram que se confrontar com outros “vetores de globalização”, especialmente no Oriente (THEOBALD, 2007THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007., p. 823-824). Esta comparação com outras tradições e culturas teve, como consequência, uma relativização radical dos valores sustentados por cada uma delas. Em relação a isso, Theobald enumera algumas críticas dos países do sul ao centro da tradição cristã ocidental:

No hemisfério sul do globo, reprova-se nossa racionalidade que torna tudo homogêneo e nossa concepção “absolutista” do indivíduo e de sua unicidade, forças acusadas de produzir violências de todos os tipos, desestruturações culturais e exclusões sem nome. Opõe-se a isso um “holismo” cósmico que pretende ser mais modesto e que “desabsolutiza” e “relativiza” a unicidade em benefício do movimento cíclico de emergência e de desaparecimento de uma pluralidade insuperável de centros de vida, integrando nesse quadro as grandes conquistas da racionalidade técnica e econômica

(THEOBALD, 2007THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007., p. 830).

Essas repreensões sugerem que a relação dos povos à singularidade de cada um não é, absolutamente, a mesma. Entretanto, a crítica legítima sobre um individualismo absolutista deveria relativizar o valor do que cada tradição e cada pessoa tem de único? As críticas não seriam, elas mesmas, testemunhas de um desejo de respeito à especificidade de outras tradições? Com efeito, o contato entre essas civilizações diferentes pode desvelar um caminho mais justo na compreensão do mistério da unicidade: assumindo e atravessando a comparação até o fim, nós poderemos chegar, enfim, ao que cada um possui de incomparável (THEOBALD, 2007THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007., p. 825). Por isso, como antecipamos na primeira seção de nosso artigo, a reflexão proposta pelo teólogo jesuíta tenta pensar, de modo sempre articulado, a unicidade e a relação – no caso de Jesus, mas também no caso de cada pessoa (THEOBALD, 2007THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007., p. 822).

Entretanto, como sabemos por triste experiência, o reconhecimento da singularidade e do caráter incomparável de cada um não conduz, necessariamente, a uma relação fecunda com o diferente. Referindo-se ao termo grego monos, utilizado no Novo Testamento para falar da unicidade de Jesus – o Monogénès, o Único gerado –, Theobald chama a atenção para a etimologia desta palavra: ela pode significar, ao mesmo tempo, único e sozinho. Assim, esse termo põe em evidência a ambivalência fundamental de toda singularidade: o único pode permanecer sozinho, sem outro “de sua espécie”. Segundo o teólogo, o caminho trilhado e proposto por Jesus, em vista de superar esta ambivalência existencial, é “o dom de si, a morte do grão para dar frutos” (THEOBALD, 2007THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007., p. 826)17 17 Theobald refere-se aqui à passagem do Evangelho de João – “Se o grão de trigo caído na terra não morrer, fica sozinho (monos), mas se morrer, dá muitos frutos” (Jo 12,24). . Isso marca a distinção entre uma “unicidade de singularidade” – característica primária de todo existente – e uma “unicidade de excelência” – a fecundidade vivida por Jesus e proposta àqueles e àquelas que querem seguir seu caminho de vida (THEOBALD, 2007THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007., p. 825)18 18 Theobald retoma as categorias criadas por Stanilas Breton. BRETON, S. Unicité et monotéisme. Paris: Cerf, 1981. .

Theobald identifica a “unicidade de excelência” de Jesus à santidade que “ele compartilha com o Deus único e três vezes santo e que ele comunica aos seus e a toda a humanidade, a cada um de maneira absolutamente única e incomparável” (THEOBALD, 2007THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007., p. 825)19 19 Segundo Theobald, a santidade, segundo a tradição bíblica, sempre tem duas dimensões: uma interior – autenticidade, ou seja, uma concordância entre pensamento, palavras e ações; outra “externa” ou ética – traduzida pela “regra de ouro” e compartilhada por muitas culturas e civilizações: “O que você quiser que os outros façam por você, faça por eles” (Mt 7,12). Ver: THEOBALD, 2007, p. 827-828. . Para comunicar sua santidade, Jesus quis cumprir seu engajamento ético de um modo desmedido: além da simpatia e da compaixão ativa em relação ao sofrimento do outro, ele manifestou a “coragem de se expor à violência dos outros”, de “tomar sobre [si] a violência deles” (THEOBALD, 2002THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: FEDOU, M. (Dir.). Le Fils unique et ses frères. Unicité du Christ et pluralisme religieux. Paris: Éditions Facultés Jésuites de Paris, 2002., p. 136). Nós podemos compreender a razão pela qual Theobald afirma que é justamente aí “onde se instala a última tentação do homem” (THEOBALD, 2002THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: FEDOU, M. (Dir.). Le Fils unique et ses frères. Unicité du Christ et pluralisme religieux. Paris: Éditions Facultés Jésuites de Paris, 2002., p. 134): a santidade à maneira de Jesus, isto é, a proposta evangélica para levar ao cumprimento nossa própria singularidade “põe à prova, rudemente, a concordância do sujeito consigo mesmo e suspende sua irradiação à sua capacidade de se apagar em favor de outros” (THEOBALD, 2002THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: FEDOU, M. (Dir.). Le Fils unique et ses frères. Unicité du Christ et pluralisme religieux. Paris: Éditions Facultés Jésuites de Paris, 2002., p. 136). Assim, o cumprimento da unicidade, segundo a prática de Jesus Cristo, passa sempre pelo dom da vida: uma pessoa torna-se verdadeiramente única – no sentido de uma unicidade de excelência – quando ela “dá sua vida por uma multidão”, ou seja, que ela vive e perde a vida “para que cada um possa ter acesso à sua própria unicidade” (THEOBALD, 2007THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007., p. 826).

Não é isso que, de alguma maneira, acontece a cada dia, de modo oculto, em todas as cozinhas do mundo? As cozinhas domésticas, lugares de incontáveis atos descentrados e “sem beleza para atrair o olhar”, são um “laboratório da fé pascal”20 20 Expressão forjada por José Tolentino Mendonça, para falar da narrativa dos discípulos de Emaús. Ver: Tolentino Mendonça, 2014, p. 101. , semelhante àquele vivido pelos discípulos de Emaús. Ao mesmo tempo, à luz desta leitura teológica, podemos suspeitar qual é o núcleo – talvez ainda não completamente nomeado – da crise de alguns grandes chefs de cozinha. Tendo garantido o reconhecimento público de sua “unicidade de singularidade”, eles se esbarram no acesso sempre difícil e dramático a uma “unicidade de excelência”, ao desejo da singularidade dos outros, ao caminho de fecundidade e reconciliação que passa pela escolha livre de oferecer sua vida única, inclusive carregando sobre si as consequências das fraturas, das violências e das fomes injustas da história de um povo21 21 A este respeito, Theobald refere-se à reflexão de Pierre Claverie, bispo mártir da Argélia, sobre a relação dos cristãos com as “linhas de fratura” dentro de uma sociedade e entre civilizações: “Desequilíbrios e rupturas nos corpos, nos corações, nos espíritos, nas relações humanas e sociais encontraram cura e reconciliação em [Jesus] porque ele os tomou sobre si. Ele coloca seus seguidores nessas mesmas linhas de fratura, com a mesma missão de cura e reconciliação”. Ver: THEOBALD, 2007, p. 832. .

Todos os avanços e todas as contradições presentes no movimento gastronômico mundial22 22 Ao citar a cooperação entre o físico-químico francês Hervé This e o renomado chef catalão Ferran Adrià, no processo de inovação gastronômica, Dória destaca a migração de ambos para o campo da formação de crianças e jovens: “Reconhece-se hoje o término de um período fértil de namoro ou cooperação, e não deixa de ser interessante notar como esses dois líderes do processo de cooperação – This e Adrià – se dirigiram, cada um a seu modo, para o ensino de hábitos de comer para jovens e crianças, com a criação de fundações de caráter nitidamente educacional”. Ver: DÓRIA, 2009, p. 185. – indo das relações com pequenos agricultores aos valores difundidos pelos grandes programas de televisão, passando pelas cozinhas domésticas quotidianas e pelo drama da fome que persiste no mundo – são matéria de investigação para a teogastronomia. De fato, isso pode ajudar a teologia a compreender, de modo profundamente concreto, o mistério da fecundidade messiânica do dom de Jesus na cruz: esse mistério nos leva a olhar as ambições e os medos que nos levam a trair ou a renegar nosso próprio projeto de vida, assim como as violências que podem interromper uma vida única (a nossa e a dos outros). Mas esse mesmo mistério também pode nos conduzir a identificar e a apreciar o dom inédito de uma multidão incontável de homens e mulheres que, talvez sem saberem que estão se tornando irmãos e irmãs de Jesus, escolhem romper sua vida para que esta “multidão de únicos” se expanda cada vez mais.

Entretanto, precisamos reconhecer que este mistério sempre foi a “pedra angular” (Sl 117; Mt 21,42; At 4,11) e a “pedra de tropeço” (Is 8,14; Rm 9,33; 1P 2,8) da fé cristã – também para os que professam publicamente esta fé. Para que nós sejamos capazes de encarar o modo como esta relação entre o dom de si e o esvaziamento de si toma corpo em nosso povo e em nossa própria vida, precisamos de tempo, de ajuda e de parábolas. E é exatamente isso o que a teogastronomia pretende oferecer.

Conclusão

Nosso artigo quis explicitar, de um modo ao mesmo tempo sucinto e sério, as implicações teóricas e práticas de uma reflexão teogastronômica. Como nosso propósito era apresentar os fundamentos metodológicos desta teologia estética e sapiencial, quisemos traçar pontes com conceitos arraigados na tradição teológica, como, por exemplo, a relação entre os mistérios pascal, eucarístico e trinitário. Tais conceitos da teologia cristã correspondem, analogicamente, à fundação e à memória da identidade de um povo “separado”, graças aos escritos da Torah, mas que, em momentos de encontro com novas culturas, devem ser abordados a partir de outras linguagens mais acessíveis à nossa humanidade comum – no nosso caso, a linguagem do movimento gastronômico. Esperamos ter conseguido mostrar a solidez desta proposta, que ainda deverá ser posta à prova pelo avanço das pesquisas e pelos frutos na formação dos cristãos e cristãs e no diálogo com os que não compartilham desta fé.

Este encontro fraterno e hospitaleiro com outro mundo simbólico, num primeiro momento “estrangeiro” às nossas utopias e frustrações, oferece à teologia a possibilidade de aprofundar e expandir sua compreensão de seus conceitos tradicionais. É por isso que, situando-a na grande Tradição eclesial e teológica, a teogastronomia lança uma nova luz sobre as sucessivas refeições ao longo da história da revelação e da salvação, que encontram seu ápice no gesto eucarístico de Jesus, como antecipação e explicitação do sentido de sua doação pascal. Como sabemos, de acordo com a fé cristã, não há Paz – uma unificação pessoal, social e espiritual – sem Páscoa, sem uma passagem contínua do Antigo ao Novo, onde a vida recebida – de um modo sempre único – torna-se, na liberdade do amor, uma vida doada – também de um modo único. O caminho para essa configuração pascal da vida supõe uma conversão eucarística, que, além da recepção e da doação, deve aprender a passar pela transformação de si, que está sempre ligada a um reconhecimento agradecido e a uma capacidade de autofração: “Ele tomou o pão, deu graças, o partiu e o deu...”. Seguindo esse caminho humano-divino aberto por Jesus, seus discípulos e discípulas são convidados a se deixarem transformar, até que suas vidas se tornem alimento para as vidas dos outros.

Se a refeição compartilhada se tornou o lugar histórico e espiritual da presença sacramental deste mistério, esta experiência existencial universal permanece, para nós, um “lugar” de revelação. Por isso, a teogastronomia se propõe a convidar Jesus a sentar-se à mesa de cada pessoa e de cada povo de nosso tempo, a fim de que ele realize seu gesto eucarístico sobre o “fruto da terra e do trabalho humano” oferecido nesses lugares. Este convite a que Jesus se sente à nossa mesa, como nos Evangelhos, sempre nos conduz a uma consciência mais profunda sobre nossos desejos, potencialidades e resistências em ir até o fim no cumprimento de nossos próprios projetos de vida e comunhão.

Em torno desta “mesa” teológica, preparada por uma sabedoria que deseja ardentemente que venha à luz a profecia escondida nos outros, esperamos redescobrir o apelo a avançar livremente em direção ao dom de si, a única força de vinculação capaz de nos tornar alegre e realmente presentes uns aos outros. Conduzidos por esta refeição mistagógica ao coração do mysterium fidei, os irmãos e irmãs de Jesus, o Primogênito, serão convidados a saborear a alegria de ver, anunciar e realizar em seu mundo o que Ele viu, anunciou e realizou no dele: a santidade do Espírito ativo nas entranhas da criação do Pai, fonte da Vida incessantemente entregue como Alimento.

  • 1
    Este artigo é fruto da tese doutoral “La vie comme nourriture. Pour un discernement eucharistique de l’humain fragmenté” (A vida como alimento. Para um discernimento eucarístico do humano fragmentado), defendida em 2019, no Centre Sèvres – Facultés Jésuites de Paris. O trabalho foi orientado pelo prof. Christoph Theobald SJ e está à espera da publicação. Para ler alguns textos já publicados, na perspectiva indicada neste artigo, ver: ADÃO, F. S. “Da devoração à hospitalidade. Uma narrativa alimentar à moda antiga”. Revista Ingesta, v. 1, n. 1, 2019, p. 283-296ADÃO, F. S. “Da devoração à hospitalidade. Uma narrativa alimentar à moda antiga”. Revista Ingesta, v. 1, n. 1, 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistaingesta/article/view/151707. Acesso em: 16 nov. 2022.
    https://www.revistas.usp.br/revistainges...
    . Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistaingesta/article/view/151707. Acesso em: 16 nov. 2022; ADÃO, F. S. “Toda vida é pão. Uma abordagem eucarística do discernimento e acompanhamento de jovens”. ITAICI – Revista de Espiritualidade Inaciana, n. 121 (setembro 2020)ADÃO, F. S. “Toda vida é pão. Uma abordagem eucarística do discernimento e acompanhamento de jovens”. ITAICI – Revista de Espiritualidade Inaciana, n. 121, p. 11ss, set. 2020., p. 11ss; ADÃO, F. S. “Toute vie est pain. Une approche eucharistique du discernement et de l’accompagnement des jeunes”. Lumen Vitae, vol. LXXV, 2020.3, p. 279-290ADÃO, F. S. “Toute vie est pain. Une approche eucharistique du discernement et de l’accompagnement des jeunes”. Lumen Vitae, vol. LXXV, n. 3, p. 279-290, 2020..
  • 2
    As ciências sociais e antropológicas estudam esse assunto há quase um século, pois a herança e os hábitos alimentares de um povo podem ser considerados como “fatos sociais totais”. Essa relação com experiências repetitivas e sensíveis revela um conjunto de noções simbólicas relacionadas a essas experiências. Ver, por exemplo, MAUSS, M. Essai sur le don. PUF: Paris, 2012MAUSS, M. Essai sur le don. PUF: Paris, 2012.; LEVI-STRAUSS, C. Mythologiques. Le cru et le cuit. Paris: Plon, 1964LEVI-STRAUSS, C. Mythologiques. Le cru et le cuit. Paris: Plon, 1964. (principalmente a introdução). Além disso, a introdução de uma perspectiva culinária nos estudos bíblicos e dogmáticos não é estranha à reflexão teológica contemporânea. Veja, por exemplo, Bonnet, S. La cuisine d’Emmaüs. Paris: Cerf, 1979Bonnet, S. La cuisine d’Emmaüs. Paris: Cerf, 1979.; BOURGEOIS, D. La cuisine de la création: le régime alimentaire biblique comme thème théologique. Pierre d’angle, v. 2, 1996BOURGEOIS, D. La cuisine de la création: le régime alimentaire biblique comme thème théologique. Pierre d’angle, v. 2, 1996.; SCHUT, M. (Ed.). Food & Faith: Justice, Joy, and Daily Bread. New York: Morehouse Publishing, 2002SCHUT, M. (Ed.). Food & Faith. Justice, Joy, and Daily Bread. New York: Morehouse Publishing, 2002.; CAMPBELL, C. C. Stations of the Banquet: Faith Foundations for Food Justice. Collegeville: Liturgical Press, 2003CAMPBELL, C. C. Stations of the Banquet. Faith Foundations for Food Justice. Collegeville: Liturgical Press, 2003.; Pagazzi, G. C.; Manzi, F. Le regard du Fils. Christologie phénoménologique. Namur: Lessius, 2006Pagazzi, G. C.; Manzi, F. Le regard du Fils. Christologie phénoménologique. Namur: Lessius, 2006.; Méndez Montoya, A. F. The Theology of Food. Eating and the Eucharist. New Jersey: Wiley-Blackwell, 2009Méndez Montoya, A. The Theology of Food. Eating and the Eucharist. New Jersey: Wiley-Blackwell, 2009.; BARRIOS TAO, H. Comida, mesa y banquete: de la Primera a la Segunda Alianza. Theologica Xaveriana, v. 58, n. 166, p. 347-380, jul./dic. 2008BARRIOS TAO, H. Comida, mesa y banquete: de la Primera a la Segunda Alianza. Theologica Xaveriana, v. 58, n. 166, p. 347-380, jul./dic. 2008.; SOZA, J. R. Food and God: A Theological Approach to Eating, Diet, and Weight Control. Eugene: Wipf & Stock, 2009SOZA, J. R. Food and God. A Theological Approach to Eating, Diet, and Weight Control. Eugene: Wipf & Stock, 2009.; MÉNDEZ MONTOYA, A. F. Festín del deseo: Hacia una teología alimentaria. México: Jus, 2010Méndez Montoya, A. Festín del deseo: Hacia una teología alimentaria. México: Jus, 2010.; um número da revista Interpretation, dedicado à teologia do alimento: The Theology of Food. Interpretation: a Journal of Bible and Theology. v. 67, n. 4, Oct. 2013; Pagazzi, G. C. La cucina del Risorto. Gesù “cuoco” per l’umanità affamata. Bologna: EMI, 2014Pagazzi, G. C. La cucina del Risorto. Gesù “cuoco” per l’umanità affamata. Bologna: EMI, 2014.. Em português, temos a tradução do livro: WIRZBA, N. Alimento e fé: uma teologia da alimentação. São Paulo: Loyola, 2014WIRZBA, N. Alimento e fé: uma teologia da alimentação. São Paulo: Loyola, 2014; a tese de doutorado em Turismo, Lazer e Cultura: LAVRADOR, J. L. P. A mesa entre os homens: comensalidade e gastronomia nos textos bíblicos, um discurso para os nossos tempos (Universidade de Coimbra, 2016)LAVRADOR, J. L. P. A mesa entre os homens: comensalidade e gastronomia nos textos bíblicos, um discurso para os nossos tempos. 471 p. Tese (Doutourado em Turismo, Lazer e Cultura) – Universidade de Coimbra, Coimbra, 2016. Disponível em: https://eg.uc.pt/bitstream/10316/90514/1/A%20Mesa%20entre%20os%20Homens.pdf. Acesso em: 12 set. 2022.
    https://eg.uc.pt/bitstream/10316/90514/1...
    ; e a dissertação de mestrado em Teologia: BARROSO, A. S. O alimento como locus theologicus: um itinerário da revelação encarnada na comensalidade (FAJE, 2021)BARROSO, A. S. O alimento como locus theologicus: um itinerário da revelação encarnada na comensalidade. 114 p. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, 2021. Disponível em: https://faculdadejesuita.edu.br/wp-content/uploads/2022/06/O-ALIMENTO-COMO-LOCUS-THEOLOGICUS-UM-ITINERARIO-DA-REVELACAO-ENCARNADA-NA-COMENSALIDADE.pdf. Acesso em: 12 set. 2022.
    https://faculdadejesuita.edu.br/wp-conte...
    .
  • 3
    Tomamos emprestada, aqui, uma expressão frequentemente utilizada por Christoph Theobald em sua reflexão sobre a relação entre a realização humana e o mistério trinitário de Deus. Ver, por exemplo, THEOBALD, Christoph. Présences d’Évangile I: lire l’Évangile et l’Apocalypse en Algérie et ailleurs. Paris: Atelier, 2011, p. 220THEOBALD, C. Présences d’Évangile I: lire l’Évangile et l’Apocalypse en Algérie et ailleurs. Paris: Atelier, 2011..
  • 4
    Estes elementos serão desenvolvidos, de modo diverso, na literatura profética, retomando o paradigma do banquete acessível a todos e associando-o à pacificação prometida para os tempos messiânicos, quando o Espírito de Profecia será, enfim, derramado sobre todos. Ver: TOLENTINO MENDONÇA, 2008TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita. Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008., p. 164.
  • 5
    A tradição teológica latino-americana já havia falado sobre o papel mediador da sabedoria (Ver: J. C. Scannone) no acesso à racionalidade histórica da fé de um povo. Ver: IRARRAZAVAL, D. Notas sobre a atividade teológica dos pobres. In: RICHARD (Org.), 1987RICHARD, P. (Org.). Raízes da teologia latino-americana. São Paulo: Paulinas, 1987., p. 367-376.
  • 6
    A esse respeito, Milton Schwantes dá um exemplo: A Teologia do Antigo Testamento, de Gerhard von Rad, concentra-se nas tradições históricas e nas tradições proféticas do antigo Israel. O autor menciona a sabedoria, mas não em profundidade. Somente no final de sua vida (1970), ele veio a publicar um livro sobre a sabedoria bíblica. Segundo Schwantes, esse não é o “problema de um pensador, no caso, von Rad, mas da teologia bíblica, da teologia das igrejas, enfim da religião judaico-cristã, em especial na cristã”. Ver: SCHWANTES, 2008SCHWANTES, M. Sabedoria: textos periféricos? Estudos de Religião, ano XXII, n. 34, jan/jun. 2008., p. 55.
  • 7
    O autor se refere a Alexandria, onde a sabedoria ajudou a acelerar a aproximação entre a fé bíblica e a cultura grega. Ver: SCHWANTES, 2008SCHWANTES, M. Sabedoria: textos periféricos? Estudos de Religião, ano XXII, n. 34, jan/jun. 2008., p. 56.
  • 8
    No Novo Testamento, o exegeta chama a atenção para as descobertas a respeito do tom sapiencial da fonte Q e da carta de Tiago. Ver: SCHWANTES, 2008SCHWANTES, M. Sabedoria: textos periféricos? Estudos de Religião, ano XXII, n. 34, jan/jun. 2008., p. 55-57.
  • 9
    Ver: WOLFF, H. W. Amos’ geistige Heimat. [Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament, 18]. Neukirchen: Neukirchener Verlag, 1964. 66 p. Apud SCHWANTES, 2008SCHWANTES, M. Sabedoria: textos periféricos? Estudos de Religião, ano XXII, n. 34, jan/jun. 2008., p. 64. Sobre o estudo de seu professor H. Wolff, que aproximou a teologia javista de Amós dos círculos sapienciais, Schwantes afirma: “À medida que aproximássemos o evento teológico javista do evento cultural e teológico da sabedoria, por excelência universalista, certamente haveríamos de compreender de modo novo a profecia”. Ver: SCHWANTES, 2008SCHWANTES, M. Sabedoria: textos periféricos? Estudos de Religião, ano XXII, n. 34, jan/jun. 2008., p. 64-65.
  • 10
    Queiruga retoma o significado socrático da maiêutica: “A significação básica da ‘maiêutica’ está expressa no Teeteto (148a-151e) com o estilo inigualável do diálogo socrático. Sócrates, filho de parteira (maia), afirma praticar a mesma arte de sua mãe: a maiêutica (maieutiké techne). Mediante sua palavra tira para a luz – ‘ajuda a dar à luz’ – o que estava dentro do interlocutor”. Ver: Queiruga, 2010QUEIRUGA, A. T. Repensar a revelação. A revelação divina na realização humana. São Paulo: Paulinas, 2010., p. 119.
  • 11
    Ver: ZUMSTEIN, J. “Jésus et les paraboles”. In: DELORME, J. Les paraboles évangéliques. Perspectives nouvelles. Paris: Cerf, 1989, p. 102. Apud TOLENTINO MENDONÇA, 2008TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita. Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008., p. 222.
  • 12
    Segundo Tolentino, “Zumstein defende que esta mudança pode ser de dois tipos: uma mudança de certos fatores no interior de um sistema, permanecendo este estável, ou uma mudança do sistema em si mesmo, um reenquadramento (isto é, questionar profundamente a imagem que o destinatário/leitor tem da realidade, dando-lhe um sentido outro, a fim de que este descubra possibilidades ou alternativas novas)”. TOLENTINO MENDONÇA, 2008TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita. Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008., p. 222-223.
  • 13
    Como o expressa extensa e profundamente o grande nome da estética teológica do séc. XX, Hans Urs von Balthasar, em sua famosa trilogia: Teo-Fania; Teo-Dramática; Teo-Lógica.
  • 14
    Tolentino afirma: “As casas em Lucas são territórios onde Jesus desenvolve preferencialmente o seu ministério em ordem à revelação. A casa chega mesmo a representar uma alternativa ao Templo, e a tudo o que ele simboliza. O centro das casas, no Evangelho, é a mesa e também o movimento de Jesus é nessa direção”. Ver: TOLENTINO MENDONÇA, 2014TOLENTINO MENDONÇA, J. O tesouro escondido. Para uma arte da procura interior. 8.ed. Lisboa: Paulinas, 2014., p. 106-107.
  • 15
    Dória cita, entre outros, um desabafo do reputado chef catalão Santi Santamaria: “Ninguém mais tem tempo de se emocionar com umas verduras assadas, um frango caipira... Os homens irritados necessitam de êxtases mentais, necessitam de êxtases culinários. Por quê? Porque temos que criar sempre novas necessidades. Em outras palavras, o problema não é culinário, mas do homem, da sociedade que vive irritada, crispada. O cidadão está comendo e está vendo crianças mortas na televisão, está vivendo misérias e pegando o seu garfo como se nada se passasse”. Ver: DÓRIA, 2010DÓRIA, C. A. Estrelas no céu da boca. Escritos sobre culinária e gastronomia. 2.ed. São Paulo: Senac, 2010., p. 196.
  • 16
    Essa expressão remete à reflexão proposta por Christoph Theobald sobre a relação entre a singularidade de Jesus e a nossa. Ver: THEOBALD, 2007THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007., p. 821-837.
  • 17
    Theobald refere-se aqui à passagem do Evangelho de João – “Se o grão de trigo caído na terra não morrer, fica sozinho (monos), mas se morrer, dá muitos frutos” (Jo 12,24).
  • 18
    Theobald retoma as categorias criadas por Stanilas Breton. BRETON, S. Unicité et monotéisme. Paris: Cerf, 1981.
  • 19
    Segundo Theobald, a santidade, segundo a tradição bíblica, sempre tem duas dimensões: uma interior – autenticidade, ou seja, uma concordância entre pensamento, palavras e ações; outra “externa” ou ética – traduzida pela “regra de ouro” e compartilhada por muitas culturas e civilizações: “O que você quiser que os outros façam por você, faça por eles” (Mt 7,12). Ver: THEOBALD, 2007THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007., p. 827-828.
  • 20
    Expressão forjada por José Tolentino Mendonça, para falar da narrativa dos discípulos de Emaús. Ver: Tolentino Mendonça, 2014TOLENTINO MENDONÇA, J. O tesouro escondido. Para uma arte da procura interior. 8.ed. Lisboa: Paulinas, 2014., p. 101.
  • 21
    A este respeito, Theobald refere-se à reflexão de Pierre Claverie, bispo mártir da Argélia, sobre a relação dos cristãos com as “linhas de fratura” dentro de uma sociedade e entre civilizações: “Desequilíbrios e rupturas nos corpos, nos corações, nos espíritos, nas relações humanas e sociais encontraram cura e reconciliação em [Jesus] porque ele os tomou sobre si. Ele coloca seus seguidores nessas mesmas linhas de fratura, com a mesma missão de cura e reconciliação”. Ver: THEOBALD, 2007THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007., p. 832.
  • 22
    Ao citar a cooperação entre o físico-químico francês Hervé This e o renomado chef catalão Ferran Adrià, no processo de inovação gastronômica, Dória destaca a migração de ambos para o campo da formação de crianças e jovens: “Reconhece-se hoje o término de um período fértil de namoro ou cooperação, e não deixa de ser interessante notar como esses dois líderes do processo de cooperação – This e Adrià – se dirigiram, cada um a seu modo, para o ensino de hábitos de comer para jovens e crianças, com a criação de fundações de caráter nitidamente educacional”. Ver: DÓRIA, 2009DÓRIA, C. A. A culinária materialista. A construção racional do alimento e do prazer gastronômico. São Paulo: Senac, 2009., p. 185.

Referências

  • ADÃO, F. S. “Da devoração à hospitalidade. Uma narrativa alimentar à moda antiga”. Revista Ingesta, v. 1, n. 1, 2019 Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistaingesta/article/view/151707 Acesso em: 16 nov. 2022.
    » https://www.revistas.usp.br/revistaingesta/article/view/151707
  • ADÃO, F. S. “Toda vida é pão. Uma abordagem eucarística do discernimento e acompanhamento de jovens”. ITAICI – Revista de Espiritualidade Inaciana, n. 121, p. 11ss, set. 2020.
  • ADÃO, F. S. “Toute vie est pain. Une approche eucharistique du discernement et de l’accompagnement des jeunes”. Lumen Vitae, vol. LXXV, n. 3, p. 279-290, 2020.
  • BARRIOS TAO, H. Comida, mesa y banquete: de la Primera a la Segunda Alianza. Theologica Xaveriana, v. 58, n. 166, p. 347-380, jul./dic. 2008.
  • BARROSO, A. S. O alimento como locus theologicus: um itinerário da revelação encarnada na comensalidade. 114 p. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, 2021. Disponível em: https://faculdadejesuita.edu.br/wp-content/uploads/2022/06/O-ALIMENTO-COMO-LOCUS-THEOLOGICUS-UM-ITINERARIO-DA-REVELACAO-ENCARNADA-NA-COMENSALIDADE.pdf Acesso em: 12 set. 2022.
    » https://faculdadejesuita.edu.br/wp-content/uploads/2022/06/O-ALIMENTO-COMO-LOCUS-THEOLOGICUS-UM-ITINERARIO-DA-REVELACAO-ENCARNADA-NA-COMENSALIDADE.pdf
  • Bonnet, S. La cuisine d’Emmaüs Paris: Cerf, 1979.
  • BOURGEOIS, D. La cuisine de la création: le régime alimentaire biblique comme thème théologique. Pierre d’angle, v. 2, 1996.
  • CAMPBELL, C. C. Stations of the Banquet Faith Foundations for Food Justice. Collegeville: Liturgical Press, 2003.
  • DÓRIA, C. A. A culinária materialista A construção racional do alimento e do prazer gastronômico. São Paulo: Senac, 2009.
  • DÓRIA, C. A. Estrelas no céu da boca Escritos sobre culinária e gastronomia. 2.ed. São Paulo: Senac, 2010.
  • LAVRADOR, J. L. P. A mesa entre os homens: comensalidade e gastronomia nos textos bíblicos, um discurso para os nossos tempos. 471 p. Tese (Doutourado em Turismo, Lazer e Cultura) – Universidade de Coimbra, Coimbra, 2016. Disponível em: https://eg.uc.pt/bitstream/10316/90514/1/A%20Mesa%20entre%20os%20Homens.pdf Acesso em: 12 set. 2022.
    » https://eg.uc.pt/bitstream/10316/90514/1/A%20Mesa%20entre%20os%20Homens.pdf
  • LEVI-STRAUSS, C. Mythologiques Le cru et le cuit. Paris: Plon, 1964.
  • MAUSS, M. Essai sur le don PUF: Paris, 2012.
  • Méndez Montoya, A. The Theology of Food Eating and the Eucharist. New Jersey: Wiley-Blackwell, 2009.
  • Méndez Montoya, A. Festín del deseo: Hacia una teología alimentaria. México: Jus, 2010.
  • Pagazzi, G. C. La cucina del Risorto Gesù “cuoco” per l’umanità affamata. Bologna: EMI, 2014.
  • Pagazzi, G. C.; Manzi, F. Le regard du Fils Christologie phénoménologique. Namur: Lessius, 2006.
  • RICHARD, P. (Org.). Raízes da teologia latino-americana São Paulo: Paulinas, 1987.
  • RICŒUR, P. L’herméneutique biblique Paris: Cerf, 2001.
  • SCHUT, M. (Ed.). Food & Faith Justice, Joy, and Daily Bread. New York: Morehouse Publishing, 2002.
  • SCHWANTES, M. Sabedoria: textos periféricos? Estudos de Religião, ano XXII, n. 34, jan/jun. 2008.
  • SOZA, J. R. Food and God A Theological Approach to Eating, Diet, and Weight Control. Eugene: Wipf & Stock, 2009.
  • THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: FEDOU, M. (Dir.). Le Fils unique et ses frères Unicité du Christ et pluralisme religieux. Paris: Éditions Facultés Jésuites de Paris, 2002.
  • THEOBALD, C. Le Fils unique et ses frères. In: Le christianisme comme style Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007.
  • THEOBALD, C. Présences d’Évangile I: lire l’Évangile et l’Apocalypse en Algérie et ailleurs. Paris: Atelier, 2011.
  • TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita. Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008.
  • TOLENTINO MENDONÇA, J. Nenhum caminho será longo. Para uma teologia da amizade. Prior Velho: Paulinas, 2012.
  • TOLENTINO MENDONÇA, J. O tesouro escondido. Para uma arte da procura interior. 8.ed. Lisboa: Paulinas, 2014.
  • TOLENTINO MENDONÇA, J. A construção de Jesus. A surpresa de um retrato. Prior Velho: Paulinas, 2015.
  • QUEIRUGA, A. T. Repensar a revelação. A revelação divina na realização humana. São Paulo: Paulinas, 2010.
  • TRUBLET, J. (Dir.). La sagesse biblique. De l'Ancien au Nouveau Testament. Paris: Cerf, 1995.
  • WIRZBA, N. Alimento e fé: uma teologia da alimentação. São Paulo: Loyola, 2014

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2022
  • Aceito
    10 Dez 2022
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) Avenida Doutor Cristiano Guimarães, 2127 - Bairro Planalto, Minas Gerais - Belo Horizonte, Cep: 31720-300, Tel: 55 (31) 3115.7000 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: editor.pt@faculdadejesuita.edu.br