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TEMPO DE CANTAR: A NECESSIDADE DE ULTRAPASSAR O SILÊNCIO

RESUMO

Ao reconhecerem a limitação da linguagem discursiva diante da experiência íntima com Deus, diversos místicos cristãos adotaram ou recomendaram o silêncio como resposta para tal experiência. Contudo, em seus Comentários aos Salmos, Santo Agostinho, embora endosse a reiterada desconfiança pelo logos, contraindica o silêncio. Diante do que não se pode falar nem se calar, a solução seria jubilar, aconselha o santo, remetendo-se a um gênero musical do período, o jubilus, canto de exultação sem palavras. Neste artigo, examinar-se-á essa curiosa prescrição, verificando, primeiramente, quais as limitações do silêncio como modo de expressão (seja em geral, seja da experiência mística) e, em segundo lugar, de que forma a música poderia se manifestar como resposta mais consentânea a uma experiência do transcendente. Para tanto, recorrer-se-á a textos não só de Santo Agostinho, mas de autores contemporâneos como Ludwig Wittgenstein, Vladimir Jankélévitch e Susanne Langer, sensíveis ao tema do inefável.

PALAVRAS-CHAVE
Silêncio; Júbilo; Expressão; Inefável; Música

ABSTRACT

By considering the limitation of discursive language before the intimate experience with God, many Christian mystics adopted or recommended silence as a response to that experience. Nevertheless, in his Expositions of the Psalms, Saint Augustine, despite endorsing the recurrent suspicion regarding logos, advises against silence. Before something that can neither be talked about nor fallen silent before, the solution would be to sing with jubilus, a song of exultation without words, practiced at that time. The present article will examine this curious prescription, checking firstly the possible limitations of silence as a form of expression (be it general or mystical experience) and, secondly, how music could reveal itself as the most adequate response to an experience of the transcendent. For this purpose, besides Saint Augustine’s Expositions, texts by contemporary authors including Ludwig Wittgenstein, Vladimir Jankélévitch and Susanne Langer will be considered, all of whom were attentive to the theme of ineffability.

KEYWORDS
Silence; Jubilus ; Expression; Ineffable; Music

Introdução

As reflexões tecidas neste artigo têm como principal motivação as análises de Santo Agostinho, encontradas nos Comentários aos Salmos 32 e 99, sobre um gênero musical de sua época, o jubilus, canto litúrgico meramente vocalizado de atribuída origem agrícola, dotado, como bem indica seu nome, de caráter exultante. O bispo de Hipona recomenda ao fiel ou à comunidade que responda justamente com a entonação sem palavras do jubilus à íntima e intensa comunhão com o divino, diante da qual seria inadequado não só falar, mas também calar-se. Assim, as limitações próprias à linguagem e à privação da linguagem seriam compensadas pelas possibilidades da música e, especialmente, de uma música descolada, por completo, do discurso verbal.

No presente artigo, destacaremos, num primeiro momento, a frequente valorização positiva do silêncio como atitude espiritual pelas tradições místicas neoplatônica e cristã para, em seguida, introduzirmos as referências agostinianas ao jubilus que se opõem, de algum modo, a tal valorização. Nesse segundo momento, descreveremos e contextualizaremos o gênero musical em questão, a partir do estudo Canticum novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho, de autoria de Lorenzo Mammì, ao qual retornaremos em outras etapas do trabalho. A partir da rejeição do silêncio e da recomendação do jubilus por parte do teólogo de Tagaste, chegaremos a dois problemas fundamentais, que discutiremos respectivamente na terceira e na quarta seção do artigo. Em primeiro lugar (seção 3), por que não caberia se silenciar durante, ou mesmo após, o preenchimento jubiloso da alma pelo divino? Nesse sentido, quais seriam as possíveis “contraindicações” do silêncio tanto para a expressão do contato com o Sumo Inefável quanto para a expressão de outras experiências? Em segundo lugar (seção 4), por que o gênero musical jubilus – e, em certa medida, toda a música – seria capaz de oferecer uma resposta mais consentânea a um evento de ordem espiritual?

Embora tenham sido motivados pela leitura dos mencionados Comentários aos Salmos, não examinaremos tais problemas exclusivamente a partir do pensamento agostiniano. Recorreremos, igualmente, a escritores católicos de outras épocas (São João da Cruz, Sor Juana Inés de la Cruz e Santa Elisabeth da Trindade) e a filósofos contemporâneos que discutiram, em conjunção ou não, os temas antecipados e interligados por Santo Agostinho, a saber: os limites da linguagem discursiva e as possibilidades da música como expressão (do) inefável (Ludwig Wittgenstein, Vladimir Jankélévitch e Susanne K. Langer). Embora apareçam eventualmente ao longo do estudo, abordaremos, em separado, dois desses filósofos na quarta seção do artigo. Nesta, identificaremos, primeiramente, os possíveis motivos para a recomendação do canto sem palavras no contexto específico dos Comentários aos Salmos (tópico 4.1) e, posteriormente, buscaremos outras justificativas capazes de sustentar tal recomendação a partir das obras de Langer (tópico 4.2) e de Jankélévitch (tópico 4.3).

A partir do percurso proposto, constataremos que o bispo de Hipona soube identificar traços fundamentais da linguagem (em sentido amplo), do silêncio humano e da música capazes de ultrapassar um período histórico específico e o contexto mais circunscrito da espiritualidade cristã, enunciando fecundas questões para reflexões antropológicas, estéticas e linguísticas.

1 A valorização mística do silêncio

Ao longo da tradição judaico-cristã, observamos sugestiva valorização do silêncio nos âmbitos dos conteúdos da fé e da vida espiritual. Numa de suas mais poéticas teofanias (1Rs 19,11-13), o Deus do Antigo Testamento se manifesta ao profeta Elias não no “estrondo do relâmpago, mas, sim, com a suavidade de uma brisa leve” (JANKÉLÉVITCH, 2018, p. 199), ou seja, de um rumor quase imperceptível, próximo ao silêncio. Embora seja identificado ao Verbo no Prólogo do Evangelho segundo São João (Jo 1,1), Deus não costuma responder às nossas dúvidas por meio de palavras unívocas. Assim, para se reconhecer os sinais, por vezes equívocos, que ecoam do Criador, é preciso ter a atenção redobrada. Em síntese, é preciso estar em silêncio para se fruir e interpretar o silêncio divino. O próprio Cristo assume tal atitude (Mc 1,35; Lc 5,16), ao passar inúmeras noites “no recolhimento, no silêncio, longe das turbas, velando e orando” (FOUCAULD, 1958FOUCAULD, C. de. Textos espirituais. Lisboa: Aster, 1958., p. 151), talvez, como aventa São Charles de Foucauld, só para nos dar exemplo, uma vez que já estava permanentemente unido ao Pai.

Os místicos cristãos também souberam valorizar de modo especial o silêncio. Considerando a assimilação, por parte do cristianismo, da cultura de matriz grega, o apreço de nossos místicos pelo silêncio comunica-se com a reverência do iniciado aos antigos mistérios, diante dos quais deveria fechar os olhos e a boca1 1 Costuma-se vincular o termo “mistério” à raiz grega mnvw, cujo significado seria justamente fechar (os olhos ou lábios) em atitude de reverência. Contudo, tal etimologia revela-se questionável, segundo alguns autores (LIA, P. In: Enciclopedia Filosofica, 2006, p. 7470). , ou com o pensamento neoplatônico, para o qual, segundo Plotino, o ser humano em busca do reencontro com o Uno deveria abdicar da palavra, nos últimos passos de sua ascese, e abraçar “um ‘verbo mudo’, lógos siōpōn. A partir daqui, não cabe mais questionar: basta compreender e calar-se (...). Sem ousar proferir uma única palavra, o sábio lança-se em direção a Deus após ter dispensado o verbo”2 2 Referência à Enéada III 8, 6, de Plotino. (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 197).

Por conseguinte, nossas fontes bíblicas, nossas filiações filosóficas e nossa própria experiência de Deus parecem respaldar o enaltecimento místico do silêncio, compreendido como atitude ou resposta mais adequada à aproximação divina. Nesse sentido, o místico alemão Angelus Silesius, pressupondo, em conformidade com o neoplatonismo, a natureza supraessencial de Deus, defende, num dos aforismos que compõem O peregrino querubínico: “Deus é tão superior a tudo que nada pode expressá-Lo. / Por isso, adorá-Lo-ás melhor em silêncio” (SILESIUS, 2005SILESIUS, A. El peregrino querúbico. Madrid: Siruela, 2005., p. 89). E, em outro aforismo, o autor do século XVII, reforçando a correspondência entre o silêncio de Deus e a atitude esperada do fiel, expressa interrogativamente um incômodo ainda bastante atual: “Acreditas, pobre homem, que o grito de tua boca / Seja o louvor adequado para a divindade silenciosa?” (SILESIUS, 2005SILESIUS, A. El peregrino querúbico. Madrid: Siruela, 2005., p. 89).

Na mística carmelitana, vinculada, desde sua origem, a uma vida de recolhimento, localizamos igualmente uma especial valorização do silêncio. Esta poderia ocorrer tanto num expresso louvor à quietude quanto, implicitamente, no próprio ato radical do místico que prefere se calar a narrar sua experiência de intimidade com o transcendente, por encontrar menos riscos no silêncio que no discurso.

A fim de exemplificar a primeira possibilidade, caberia citar um dos escritos de uma monja carmelita do fim do século XIX, Santa Elisabeth da Trindade. Pianista promissora antes de ingressar no convento, a jovem monja também revela ouvidos apurados para o silêncio, que, em sua experiência espiritual, associa-se diretamente à atitude de adoração:

Ah, a adoração! Eis uma palavra do Céu! Parece-me que pode ser definida como êxtase de amor. É o amor vencido pela beleza, pela força, pela grandiosidade imensa do Objeto amado, que “cai numa espécie de desfalecimento”, num silêncio pleno, profundo, o silêncio do qual falava Davi quando exclamava: “O Silêncio é o Teu louvor!” Sim, esse é o mais belo louvor, pois é eternamente entoado no seio da tranquila Trindade. É também “o último esforço da alma que transborda e nada mais pode dizer...” (Lacordaire)3 3 Elisabeth da Trindade refere-se, aqui, a uma tradução do segundo versículo do Salmo 65 (64), proposta pelas versões de Áquila, São Jerônimo e pela versão aramaica (BÍBLIA TEB, 2020, p. 1012-1013). Em A Bíblia de Jerusalém, a mesma passagem, de tradução incerta, é apresentada como: “A ti convém o louvor / em Sião, ó Deus”, opção que, seguindo o texto da Septuaginta, é adotada preferencialmente nas edições de nossa época. Segundo Boylan, no que concerne a esse versículo, “embora a oração ‘Para Ti, o silêncio é um hino de louvor’ sugira o pensamento belo e verdadeiro de que Deus está tão acima do louvor humano a ponto de nossa humilde adoração em silêncio se apresentar como um tributo maior à glória de Deus que o mais belo dos cantos sagrados”, “a interpretação das versões [da Septuaginta e da Siríaca] é muito mais natural e provável [que o texto massorético], considerando a ocasião e o significado geral do Salmo” (BOYLAN, 1936, p. 238). De qualquer modo, a interpretação citada pela santa carmelita revela que a possibilidade de um louvor silencioso, recusada pelas passagens dos Comentários aos Salmos 32 e 99, já seria admissível na época de Santo Agostinho. Contudo, dada a abordagem filosófica deste estudo, foge ao nosso escopo verificar quando tal possibilidade emerge ou se intensifica historicamente.

(ELISABETH DA TRINDADE, s.d., tradução nossa)

Quanto à preferência, de caráter menos laudatório e mais performativo, pelo silêncio, caberia recordar a decisão tomada por São João da Cruz, ao término de suas explicações (declaraciones) do poema Chama viva de amor. O místico poeta do século XVI, que, como sua sucessora francesa, também louva diretamente a “música callada” em seu Cântico espiritual (JUAN DE LA CRUZ, 2000JUAN DE LA CRUZ, San. Obras completas. 7.ed. Burgos: Monte Carmelo, 2000. (Maestros espirituales carmelitas)., p. 696, 793), opta por não examinar os três últimos versos da Chama, após ter esclarecido três estrofes e meia do texto poético. Tal opção é justificada no parágrafo conclusivo do texto em prosa da obra (em sua primeira versão), nos seguintes termos:

Naquele aspirar de Deus, não gostaria de falar, nem ainda o quero, pois vejo claramente que não tenho como saber dizer, e pareceria menos se o dissesse. (...) Porque, sendo [tal aspiração] cheia de bens e de glória, encheu-a [a alma] de bondade e de glória do Espírito Santo, fazendo, assim, com que ela [a alma] se encantasse por si para além de toda língua e sentido nas profundezas de Deus. E, por isso, aqui o deixo.

(JUAN DE LA CRUZ, 2000JUAN DE LA CRUZ, San. Obras completas. 7.ed. Burgos: Monte Carmelo, 2000. (Maestros espirituales carmelitas)., p. 1128, tradução nossa)

Como seria possível utilizar a linguagem verbal, sobretudo no registro de um discurso explicativo que lida com conceitos e argumentações, para descrever uma experiência para além de “toda língua e sentido”? Diante do que não se expressa apropriadamente pela linguagem, é mais prudente calar-se e abortar a tarefa elucidativa, pela qual o próprio poeta sente, desde o início, certa repulsa (JUAN DE LA CRUZ, 2000JUAN DE LA CRUZ, San. Obras completas. 7.ed. Burgos: Monte Carmelo, 2000. (Maestros espirituales carmelitas)., p. 945). Muitos séculos mais tarde, um filósofo dotado de acentuada vocação mística, Ludwig Wittgenstein, chegará a uma conclusão semelhante, que também o levará a adotar a mesma atitude do santo carmelita. Após identificar as condições de possibilidade da linguagem proposicional e os conteúdos capazes de se articular discursivamente, o pensador austríaco reconhece uma faixa que concerne a algo mais essencial, relativo não a “como o mundo é, mas que ele é” (Tractatus Logico-Philosophicus 6.44, in: WITTGENSTEIN, 2020WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. 3.ed. 4.reimpressão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020., p. 259, grifos do autor), improjetável na moldura das proposições. Na aproximação ao registro místico do inefável4 4 “Por certo, há o inefável. Isso se mostra, é o Místico.” (Tractatus Logico-Philosophicus 6.522, in: WITTGENSTEIN, 2020, p. 261, grifo do autor) , cumpre seguir o exemplo de Plotino e ser coerente como São João da Cruz, cônscio dos disparates (dislates5 5 Cf. Prólogo do Cântico espiritual (JUAN DE LA CRUZ, 2000, p. 692, 1134). ) a que tal discurso inevitavelmente nos conduz. Mais que louvar o silêncio, é necessário assumi-lo radicalmente e interromper qualquer tentativa de explicação. “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” (Tractatus Logico-Philosophicus 7, in: WITTGENSTEIN, 2020WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. 3.ed. 4.reimpressão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020., p. 261): com essas célebres palavras, Wittgenstein conclui seu Tractatus Logico-Philosophicus, em sintonia, portanto, com toda uma tradição mística de abordagem negativa.

2 A solução agostiniana: não se deve falar, nem se calar; deve-se jubilar

Embora tenha sido reiteradamente enaltecido e praticado por místicos cristãos e não cristãos de diferentes séculos, o silêncio nem sempre foi tido como a resposta pertinente – ou como a única resposta possível – às experiências de aproximação à divindade. Como adiantamos em nossa introdução, uma das reprovações mais clássicas a ele foi formulada por Santo Agostinho, mais precisamente em seus Comentários aos Salmos (Enarrationes in Psalmos) 32 e 99.

Ao interpretarem salmos que lidam com o louvor de natureza musical a Deus6 6 No terceiro versículo do Salmo 33 (32),1-3, lemos: “Ó justos, exultai em Iahweh, / aos retos convém o louvor. / Celebrai a Iahweh com harpa, / tocai-lhe a lira de dez cordas; / cantai-lhe um cântico novo, / tocai com arte na hora da ovação!” Já o Salmo 100 (99),1-2 inicia com a seguinte prescrição: “Aclamai a Iahweh, terra inteira, / servi a Iahweh com alegria, / ide a ele com gritos jubilosos!” , tais textos, de grande valor tanto para história da espiritualidade cristã quanto para a história da música e da estética ocidental, refletem acerca de um gênero musical litúrgico em particular: o jubilus (júbilo). Segundo Lorenzo Mammì, especialista em Santo Agostinho e crítico de arte, o substantivo jubilus

foi introduzido nas versões latinas da Bíblia para traduzir o hebraico terua (ou tecah), tremolo ou staccato produzido pelo shofar, trombeta de chifre de carneiro. A gama sonora do shofar não ia além dos primeiros harmônicos. Sendo incapaz de escalas melódicas, o instrumento era utilizado apenas para sinais militares ou rituais. Por extensão, terua passou a indicar um grito ritmado de guerra, sendo citado nesse sentido em muitas passagens do Antigo Testamento. Nos Salmos, indica um grito ou uma fórmula ritual, ligada aos sacrifícios e às procissões.

(MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 350)

Essa antiga prática já havia se perdido no Império Romano, uma vez que “a terua deixou de ser praticada depois da diáspora” (MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 350). Contudo, algo nela se assemelha ao jubilus, “que, no latim da época imperial, indica gritos estandardizados de soldados ou de camponeses” (MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 350). Ambos, provavelmente, compartilhavam um caráter rítmico e se aplicavam a contextos de exaltação ou aclamação (seja pela vitória num combate, seja por uma colheita generosa). No caso específico do jubilus cristão, este, em continuidade com as práticas da música popular do período (cantos de lavoura), deve “ter sido algo parecido a um curto refrão em ritmo claro e marcado, que a assembleia inteira pudesse cantar junto com o sacerdote” (MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 350). Além disso, de acordo com as valiosas informações fornecidas por Santo Agostinho, o jubilus se configurava como um canto sem palavras, entoado como pura vocalização, ainda que, como nos explica Mammì, não possa ser confundido com as conhecidas formas melismáticas do canto gregoriano, devido à sua dimensão rítmica e comunitária, já mencionada. Cabe destacar que, justamente por sua constituição exclusivamente vocálica,

o jubilus parece ser uma conquista estética do Cristianismo. O pensamento clássico desconhece a ideia de um canto que dispense as palavras. O canto melismático também é estranho à tradição judaica, sobretudo após a destruição do segundo Templo em 70 d.C., quando, em sinal de luto, foram abolidos do culto os instrumentos e todas as manifestações musicais mais elaboradas. A partir de então, a música hebraica se destinou exclusivamente à leitura salmódica da Bíblia, e sua dependência do texto tornou-se absoluta.

(MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 349-350)

Após essa breve síntese sobre o júbilo, verifiquemos de que modo Santo Agostinho relaciona tal gênero musical litúrgico com uma recusa contundente ao silêncio, nos dois Comentários aos Salmos citados. Começando pelo Salmo 99, o bispo de Hipona observa o seguinte processo de transformação naquele que sente a profunda presença de Deus:

Antes de experimentar, julgavas poder falar de Deus; começas a perceber, e verificas ser impossível traduzir o que experimentas. Sabendo ser impossível explicar o que percebes, calarás? Não louvarás? Emudecerás os louvores de Deus e não darás graças àquele que se deu a conhecer? Louvavas quando buscavas; ao encontrares, calarás? De modo nenhum. Não serás ingrato. (...) Louvar, mas como? (...) Escuta, contudo, o salmo: “Jubilai diante do Senhor, terra inteira”. Ouviste o júbilo da terra inteira, se teu júbilo se expande diante do Senhor.7 7 Na maior parte das vezes, utilizamos, como traduções das passagens selecionadas dos Comentários aos Salmos, a edição da coleção “Patrística” da editora Paulus, mas, em alguns momentos, optamos pelas traduções de Mammì, seja por sua maior clareza, seja por evidenciar aspectos que procuramos ressaltar.

(AGOSTINHO DE HIPONA, 1997bAGOSTINHO DE HIPONA, Santo. Comentários aos Salmos. Salmos 51-100. São Paulo: Paulus, 1997b. v. 2., v. 2, p. 1172)

Já no Comentário ao Salmo 32, identificamos uma passagem que associa mais estreitamente a recomendação do júbilo, contraposta à rejeição ao silêncio, com a natureza vocálica do primeiro. Como explica o autor das Confissões,

Pois, aqueles que cantam na colheita, na vinha, em algum trabalho pesado, começando a exultar de alegria por meio das palavras dos cânticos e estando repletos de tanta alegria que não podem exprimi-la, deixam as sílabas das palavras e emitem sons jubilosos. O júbilo é som significativo de que o coração está concebendo o indizível8 8 No texto original, o termo utilizado não é o adjetivo substantivado “indizível”, mas “algo que não pode ser dito” (“quod dicere non potest”). (AGOSTINHO DE HIPONA, apud MAMMÌ, 2000, p. 362) . E diante de quem é conveniente tal júbilo senão diante do Deus inefável? Inefável é aquilo de que é impossível falar. E se não podes falar e não deves calar, o que resta senão jubilar? O coração rejubila sem palavras e a imensidão do gáudio não se limita a sílabas. “Cantai-lhe bem com júbilo”.

(AGOSTINHO DE HIPONA, 1997aAGOSTINHO DE HIPONA, Santo. Comentários aos Salmos. Salmos 1-50. São Paulo: Paulus, 1997a. v. 1., v. 1, p. 392-393)

É impossível ler esse excerto e não se recordar da já mencionada conclusão do Tractatus Logico-Philosophicus, escrito cerca de 1.500 anos mais tarde. Por um lado, Santo Agostinho parece estar de acordo com Wittgenstein9 9 É importante lembrar que Wittgenstein era leitor de Santo Agostinho, como comprovam as Investigações filosóficas, cuja primeira parte se inicia com a citação de uma passagem do bispo de Hipona (WITTGENSTEIN, 1979, p. 9). Assim, talvez, a semelhança entre o aforismo final do Tractatus e a passagem citada do Comentário ao Salmo 32 não seja meramente casual. e com muitos escritores místicos, ao considerar “a linguagem um instrumento tanto mais limitado quanto mais o conteúdo a ser expresso é de natureza espiritual. Há conteúdos grandes demais para caber na linguagem humana” (MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 356). Por outro lado, diante de tal constatação comum, o bispo de Hipona contradiz a norma prescrita pelo filósofo austríaco, propondo uma diferente resposta para o contato com o Inefável: “e se não podes falar e não deves calar, o que resta senão jubilar?”10 10 “(...) et si eum fari non potes, et tacere non debes, quid restat nisi ut iubiles” (AGOSTINHO DE HIPONA, apud MAMMÌ, 2000, p. 362). .

Chegamos aqui aos problemas centrais do presente artigo. Por que, ao contrário do que repete toda uma tradição mística com a qual Wittgenstein se encontra em continuidade, Santo Agostinho não nos pede para fazer silêncio “diante” do Inefável? E, além disso, por que o canto – e, nesse contexto, especialmente, o canto do jubilus – é indicado pelo teólogo dos primeiros séculos do cristianismo como via de expressão pertinente para o que não poderia ser dito? Analisemos tais questões em separado.

3 Por que não se deve calar?

Poderíamos aventar alguns motivos pelos quais o silêncio não é recomendado por Santo Agostinho. Primeiramente, constatamos que Wittgenstein, no Tractatus, e o próprio São João da Cruz, nas declaraciones elaboradas para a Chama viva de amor, estão se movendo dentro dos limites da linguagem discursiva, que, como sabemos, não se prestaria a explicar ou, ao menos, a elucidar por completo o inefável. Portanto, aquele ou aquela que trilha tal caminho limitado há de se deparar, em algum momento, com a necessidade de negar os predicados construídos pela linguagem ou, até, de negar o próprio recurso da fala. Por sua vez, Santo Agostinho, nos dois Comentários aos Salmos, emprega o discurso não só como meio no qual a reflexão internamente se tece, mas para aludir a uma via não discursiva capaz de expressar, de modo mais satisfatório e intenso, a alegria do encontro (inefável) com Deus (inefável). Embora o texto não deixe de proporcionar alguma compreensão dos traços de tal encontro, a compreensão mais plena e verdadeira da experiência em questão se efetua, segundo o autor, em outro nível, no jubilus, definido como “compreender e não saber explicar com palavras o que se canta com o coração” (AGOSTINHO DE HIPONA, apud MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 352).

Além da abertura a algo que não poderia ser oferecido pelo próprio escrito de teor explicativo, o contexto dos dois salmos comentados também justificaria a examinada rejeição ao silêncio. Ao contrário do louvor silencioso experimentado e formulado por Santa Elisabeth da Trindade, o louvor descrito por esses salmos – e associado ao gênero musical jubilus – é expansivo, manifestando-se em sonoridades intensas e vibrantes. Assim, o Salmo 33 (32) preconiza que os fiéis dirijam, exultantes, seu “cântico novo” a Javé, tocando “com arte” a cítara e a “lira de dez cordas”, “na hora da ovação” (grifo nosso). Enquanto isso, o Salmo 100 (99) conclama a “Terra inteira” a aclamar a Javé “com alegria” e “com gritos jubilosos”. Tal afeto entusiasmado contrasta radicalmente com a introspecção silenciosa. Desse modo, não se deveria calar, quando a própria palavra de Deus nos convida a responder a Ele com um louvor exultante que se opõe diametralmente ao silêncio.11 11 Como indaga Santo Agostinho na passagem do Comentário ao Salmo 99, já citada: “Sabendo ser impossível explicar o que percebes, calarás? Não louvarás?”.

Outra justificativa bastante óbvia pode ser extraída do excerto do Comentário ao Salmo 99, incluído na seção anterior. O mutismo facilmente seria compreendido como sinal de ingratidão. Pelo menos, assim ocorre no campo de nossas relações interpessoais. Aprendemos, desde cedo, pelas regras básicas da boa educação, que devemos exteriorizar o reconhecimento de um favor prestado por alguém ao menos com um simples “obrigado”. Não se pode admitir que uma pessoa de algum modo agraciada evite por completo a linguagem formada por palavras, por gestos ou pela combinação entre ambos. Nesse raciocínio, não haveria ingratidão maior que não compartilhar, senão com o Pai celestial “que vê no segredo” (Mt 6,6), ao menos com nossa comunidade de fé, a concessão da maior graça passível de experimentação a nós, humanos: o conhecimento íntimo de Deus.12 12 No texto de Santo Agostinho, a ingratidão do fiel aparece diretamente vinculada à ausência de uma resposta dirigida a Deus (“e não darás graças àquele que se deu a conhecer?”) e não à comunidade. Essa posição nos causa certo estranhamento hoje, em virtude não só da onisciência de Deus (que não precisaria da exteriorização do sentimento de um indivíduo como atestado de gratidão), mas também da concepção aprofundada pela mística moderna de que a resposta silenciosa do místico seria condizente com a manifestação da graça divina (ponto tratado na primeira seção). E, tendo em vista a elevação da graça experimentada, a resposta deve manifestar-se, proporcionalmente, como fervorosa ação de graças.

Voltamos aqui ao tema da intensidade, que, por si só, sem se vincular a fontes bíblicas nem ao problema da gratidão, também serviria de justificativa para a prescrição agostiniana. Embora Santa Elisabeth da Trindade, citando o frade dominicano Lacordaire, interprete certa modalidade de silêncio como expressão de uma “alma que transborda e nada mais pode dizer”, geralmente pensamos que uma emoção por demais intensa tende a transbordar em sentido literal, ou seja, a “ultrapassar as bordas” de um corpo fechado em si mesmo. Assim como o “louvor silencioso”, o transbordamento introspectivo é praticamente um oximoro, figura, por sinal, cara aos místicos.13 13 Se tomarmos o verbo latino laudare, empregado nos Comentários aos Salmos e origem do nosso verbo “louvar”, verificaremos que, em sua etimologia, o termo está associado a algo que se chama ou se nomeia, posteriormente de modo favorável, como no contexto de um elogio fúnebre (ERNOUT; MEILLET, 1979, p. 346). Assim, a ideia de um “louvor silencioso” seria um tanto contraditória, embora, como vimos, tenha sido usada por alguns místicos e, até mesmo, por São Jerônimo na tradução do Salmo 65 (64). Quanto à concepção de um “transbordamento introspectivo”, esta só faria sentido numa topologia, como aquela proposta por Santa Teresa de Jesus em suas Moradas, na qual a alma, ao ser constituída por “camadas”, permitiria o extravasamento do conteúdo vivido de um nível mais superficial para outro mais profundo. Logo, retomando o exemplo agostiniano, o júbilo experimentado pelo fiel (e pela comunidade) é tão acentuado que não se pode contê-lo, sufocá-lo no mutismo: é necessário extravasá-lo.

Relendo os textos completos dos comentários aos dois salmos, verificamos a presença de vários termos que ressaltam a intensidade da alegria, vinculada, sob clara influência paulina, à sobreabundância da graça (o que permite, por sua vez, a analogia entre o jubilus e a atividade agrícola). Assim, Santo Agostinho recorre a palavras e expressões como “a imensidão do gáudio”, “abundância da messe” (AGOSTINHO DE HIPONA, 1997bAGOSTINHO DE HIPONA, Santo. Comentários aos Salmos. Salmos 51-100. São Paulo: Paulus, 1997b. v. 2., v. 2, p. 1168), “a fecundidade e a fertilidade da terra” (AGOSTINHO DE HIPONA, 1997bAGOSTINHO DE HIPONA, Santo. Comentários aos Salmos. Salmos 51-100. São Paulo: Paulus, 1997b. v. 2., v. 2, p. 1168), “expansão alegre” (AGOSTINHO DE HIPONA, 1997bAGOSTINHO DE HIPONA, Santo. Comentários aos Salmos. Salmos 51-100. São Paulo: Paulus, 1997b. v. 2., v. 2, p. 1169). Além disso, ao tratar diretamente sobre o jubilus, relaciona, numa mesma passagem, tal intensidade emotiva à tendência ao extravasamento, como ocorre no Comentário ao Salmo 99:

O júbilo é som alegre, sem palavras. É a voz da alma, transbordante de alegria, a exprimir quanto possível seu afeto, sem dar-lhe sentido preciso. O homem, com alegria e exultação inexprimíveis e ininteligíveis, deixa transbordar sua alegria, sem palavras. Demonstra na voz a alegria, mas repleto de excessivo gáudio, não o explica oralmente.

(AGOSTINHO DE HIPONA, 1997bAGOSTINHO DE HIPONA, Santo. Comentários aos Salmos. Salmos 51-100. São Paulo: Paulus, 1997b. v. 2., v. 2, p. 1168, grifos nossos)

Pensemos agora na possibilidade de que esse “excessivo gáudio” não seja exteriorizado, mas simplesmente guardado na interioridade do sujeito, sem deixar rastros sensíveis. Chegamos aqui a uma outra razão para a insuficiência do silêncio: este poderia ser confundido com um vazio de experiência (não por Deus, obviamente, mas pelo indivíduo ou pela comunidade religiosa que se depara com o mutismo alheio), problema que, provavelmente, já se encontrava implícito na omissão verbal própria à ingratidão, abordada nos Comentários. Como observamos na história da espiritualidade cristã e, até, em outras tradições religiosas, o místico costuma sentir-se impelido a comunicar, registrar, atestar ou mostrar, para se usar um conceito wittgensteiniano14 14 O verbo “mostrar” (zeigen) aparece, no Tractatus, em explícita oposição ao âmbito do dizível (Tractatus Logico-Philosophicus 6.36, in: WITTGENSTEIN, 2020, p. 253) e, por isso, aproxima-se, como vimos, aos âmbitos do místico e do inefável (Tractatus Logico-Philosophicus 6.522, in: WITTGENSTEIN, 2020, p. 261). , a efetividade e a fecundidade do que (o/a) tocou, ainda que em termos aproximados. Tal deficiência do silêncio é explicada de modo primoroso por uma autora do século XVII, Sor Juana Inés de la Cruz. Segundo a poeta mexicana,

como este [o silêncio] é coisa negativa, embora explique muito com a ênfase de não explicar, é necessário colocar nele algum breve rótulo para que se entenda o que se pretende que diga o silêncio; caso contrário, nada dirá o silêncio, porque este é seu próprio ofício: nada dizer. (...) Não diz [São Paulo] o que viu, mas diz que não o pode dizer, de modo que, sobre aquelas coisas que não se podem dizer, é preciso ao menos dizer que não se podem dizer, para que se entenda que o calar não é não ter o que dizer, mas não caber nas vozes o muito que há a dizer.

(JUANA INÉS DE LA CRUZ. Respuesta de la poetisa a la muy ilustre Sor Filotea de la Cruz, tradução nossa)

Para melhor compreender essa passagem, cabe recorrer aqui ao pensamento de Vladimir Jankélévitch, que, em certa continuidade com as místicas neoplatônica e cristã, identifica dois polos opostos nos quais se inserem as realidades para nós inexprimíveis (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 120-124). De um “lado”, há o inexprimível negativo, chamado pelo filósofo francês de indizível, que, representado, sobretudo, pela morte, alude ao que não podemos definir nem sequer descrever devido à absoluta esterilidade ou ao fato de não se oferecer, empregando a terminologia kantiana, à nossa “experiência possível”. Também se aproximaria ao polo do indizível o que não é, de todo, vazio para a sensibilidade, mas que se mostra aquém da racionalidade, como o mal e os sortilégios (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 177). No “lado” oposto, encontra-se o inefável, o inexprimível inesgotavelmente positivo da música, do “mistério de Deus”, do “mistério do amor, que é mistério poético por excelência” (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 120), cuja fecundidade sempre há de transbordar o discurso. Sugestivamente, Jankélévitch nos aproxima dessa oposição por duas experiências de caráter privativo, apreciadas pela mística cristã: a escuridão e o próprio silêncio. Nesse sentido, indaga o filósofo: “A distância entre a negatividade indizível e a positividade inefável não é tão grande quanto aquela que separa as trevas cegas da noite transparente ou o silêncio mudo do silêncio tácito?” (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 121).

Podemos pensar que, diante de quem está vivendo um desses silêncios, seria plausível captar, em certo grau, o vazio do “silêncio mudo” ou a plenitude do “silêncio tácito”, seja pelo olhar, seja pela expressão corporal do sujeito silencioso. No entanto, o silêncio, tomado isoladamente, poderia ser inconclusivo em sua qualidade, até para aqueles que convivem, de modo íntimo, com quem o expressa. Assim nos comprova uma tocante passagem do filme A livraria (The Bookshop), dirigido por Isabel Coixet e baseado no romance de Penelope Fitzgerald. Em determinado momento do longa-metragem, a personagem Kattie abre-se, numa conversa à beira-mar, para a protagonista Florence Green, confessando seu desconforto em relação ao namorado, Milo North:

Ainda não sei o que ele pensa de mim. Ou se sente algo por mim. Ou se, na verdade, é dotado de qualquer sentimento. Acho que faz parte da personalidade dele. Manter você tentando adivinhar o tempo todo. Você sabe o que dizem: com esse tipo de homem nunca se sabe se ele está escondendo uma rica vida interior ou absolutamente nada.

(COIXET, 2017COIXET, I. (Dir.). The Bookshop. Diagonal Televisió et al., 2017. [Filme cinematográfico]., tradução nossa)15 15 Longa-metragem disponível na plataforma de streaming Netflix.

Se o silêncio de uma pessoa próxima já se revela ambíguo para quem o presencia, o silêncio de quem se encontra geográfica ou temporalmente distante se dilui no vazio. Como saber se o silêncio de uma carta nunca respondida resultou do fato de o destinatário nada ter a dizer (esterilidade que se aproxima ao polo do indizível) ou de não caber em sua voz “o muito que há a dizer” (fecundidade característica ao polo do inefável)? Clareia-se, assim, a recomendação de Sor Juana Inés de la Cruz: “sobre aquelas coisas que não se podem dizer, é preciso ao menos dizer que não se podem dizer”. Nessa perspectiva, a estratégia para assinalar a vivência do inefável, pelo menos no plano do discurso, não é se calar, mas demarcar o silêncio com a palavra.

Embora a formulação da poeta hispânica difira da conclusão do Tractatus, por não prescrever como resposta à experiência inefável o calar-se tout court, o aforismo wittgensteiniano cumpre, no próprio ato de enunciação, a exigência de “ao menos dizer que [tais coisas] não se podem dizer”. Algo semelhante ocorre no também já citado desfecho da Chama viva de amor, no qual São João da Cruz, de súbito, interrompe a explicação de seus versos sem, contudo, antes destacar o reconhecimento do limite do dizer e sua opção pela desistência da palavra explicativa. Portanto, o desafiador discurso sobre o inefável, assim como a consciência do inefável, parece se esboçar nessa tensão constante entre o registro verbal e tudo aquilo que o nega e o excede.

Também Jankélévitch se atenta a algumas das implicações examinadas, que ultrapassam o âmbito da experiência e dos relatos místicos. Por um lado, admite o vazio de expressividade do silêncio, quando este se manifesta de modo isolado, e, por outro, verifica, em certas construções, a necessidade de conjugar estrategicamente o dizer ao calar-se. Assim podemos constatar numa passagem de L’Ironie, obra de juventude do filósofo, na qual, a partir de uma análise dos diferentes atos humanos, o mero silêncio é colocado em contraste com as reticências, uma espécie de figura de linguagem, dotada de função expressiva. De acordo com o pensador francês,

A meio caminho entre o “silêncio” e a “alusão”, situam-se as reticências, que são uma colaboração ativa entre o silêncio e a palavra, uma palavra reprimida ou engolida: não um ódio reprimido, como o rancor, mas contenção da tagarelice, “serenata interrompida”. Cala-se, quando se poderia falar. As reticências são o discurso expirante, a passagem do explícito ao tácito: ameaçadores ou irônicos, os pontos de suspensão que estrangulam nossas frases representam, de certo modo, a cicatriz deixada pelas palavras que desapareceram. O silêncio é, portanto, uma ausência, enquanto as reticências – isto é, a “figura de silêncio” – são uma interrupção expressiva, uma espécie de valor sonoro, semelhante, neste sentido, às pausas e aos suspiros do discurso musical.

(JANKÉLÉVITCH, 1964JANKÉLÉVITCH, V. L’Ironie. Paris: Flammarion, 1964., p. 89, grifo do autor, tradução nossa)

Como o tema estudado no livro em questão é a ironia, que pressupõe uma consciência do sujeito irônico acerca do caminho e do objetivo de seu discurso, a interrupção deste não resulta da douta nesciência dos místicos, mas de uma estratégia persuasiva. Por isso, no caso da ironia, “cala-se, quando se poderia falar”. Contudo, as reticências também poderiam ser usadas quando se cala porque não se poderia falar ou porque não se poderia mais falar (de modo satisfatório ou conclusivo). Retornando, outra vez, ao exemplo da Chama viva de amor, a decisão expressamente marcada de São João da Cruz de suspender a explicação em prosa dos versos finais do poema permite-nos vislumbrar “a cicatriz deixada pelas palavras que desapareceram”. O místico carmelita cria, assim, por meio da “colaboração ativa entre o silêncio e a palavra”, uma “figura de silêncio”, ou seja, uma “forma significante”, recorrendo aqui à célebre expressão de Clive Bell aplicada à obra de arte16 16 A expressão “forma significante” (“significant form”) foi utilizada pelo crítico de arte Clive Bell, em seu livro Art (1914), como possível resposta à pergunta norteadora da obra: qual seria a qualidade comum aos objetos capazes de proporcionar uma comoção estética? .

Ao analisarmos o risco de uma equivalência entre o silêncio e o vazio de experiência, assim como as possíveis medidas disponíveis, na esfera da própria linguagem discursiva, para que isso não ocorra, chegamos a um ponto fundamental para nossa reflexão. O silêncio poderia se confundir com o nada – e, portanto, não fazer jus ao inefável que, porventura, o provoca – por ser amorfo. Para haver forma, é necessária alguma combinação de elementos: palavras reunidas numa oração, orações entrelaçadas num período, sílabas compondo um verso, notas construindo um tema musical. Como mostra Jankélévitch, o silêncio integra o discurso e a música, mas, para se imbuir de verdadeira expressão, precisa associar-se às palavras (nem que seja minimamente, como orienta Sor Juana Inés de la Cruz) ou às notas. Estabelece-se, assim, uma estreita relação entre forma e expressão, já implícita no termo cunhado por Bell.

Tal relação, embora pressuposta na passagem citada de L’Ironie, não é desenvolvida pelo pensador francês, que, ademais, procura evitar a aplicação do conceito de forma a um dos modos de expressão humana privilegiados por sua obra: a música (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 138-141). Contudo, uma filósofa contemporânea a Jankélévitch, Susanne K. Langer, defenderá reiteradamente, como leitora de Bell, que toda expressão elaborada, dotada de significado ou significação, depende da criação ou da apreensão de uma forma.17 17 É importante ressaltar que, de acordo com Langer, em diálogo com a psicologia da Gestalt, o nível da experiência (especialmente quando dotada de conteúdo) – e não só o nível da comunicação (que, para ela, não deveria ser tomada como a função fundamental dos símbolos) – também costuma incluir alguma apreensão da forma, caso contrário nossa percepção se reduziria a “uma tremenda, estrondosa e imensa confusão” (“one great blooming, buzzing confusion”), empregando as célebres palavras de William James (apud LANGER, 1971, p. 96; 1957, p. 70). Contudo, parece haver, para Langer, níveis de apreensão e de composição de formas na experiência humana, uma vez que a filósofa reconhece a presença de formas particularmente elaboradas, sutis e delicadas nas obras de arte (LANGER, 1930, p. 101-102). Como declara em The Practice of Philosophy, “o significado é expressão, que, por sua vez, depende de uma ordem” (LANGER, 1930LANGER, S. K. The Practice of Philosophy. New York: Henry Holt & Company, 1930., p. 102, grifos nossos, tradução nossa), ou seja, de uma forma articulada, de uma “combinação complexa” (LANGER, 1971LANGER, S. K. Filosofia em nova chave: um estudo do simbolismo da razão, rito e arte. São Paulo: Perspectiva, 1971., p. 100) de elementos. Enfatizando, em continuidade com o primeiro Wittgenstein, um conhecimento que se dá por analogias, a filósofa estadunidense assim sintetiza o pré-requisito lógico para a expressão18 18 Tal pré-requisito é, no entanto, contestado pelo outro autor contemporâneo contemplado neste artigo, Vladimir Jankélévitch, tanto para a expressão poética quanto para a expressão musical (JANKÉLÉVITCH, 2018, p. 96; JANKÉLÉVITCH; BERLOWITZ, 2021, p. 73). : “uma forma expressiva pode exprimir qualquer conjunto de concepções que, por alguma via de projeção, aparece congruente com ela, isto é, parece estar naquela forma” (LANGER, 1957LANGER, S. K. Problems of Art: Ten Philosophical Lectures. New York: Charles Scribner’s Sons, 1957., p. 21-22, grifos nossos, tradução nossa). Naturalmente, Langer não está se referindo a qualquer tipo de expressão, mas à expressão própria aos símbolos, pela qual concebemos o mundo factual e os movimentos da vida subjetiva. Nesse sentido, “toda expressão simbólica envolve uma formulação do que é expresso, isto significa o reconhecimento da forma” (LANGER, 1957LANGER, S. K. Problems of Art: Ten Philosophical Lectures. New York: Charles Scribner’s Sons, 1957., p. 68, grifos nossos, tradução nossa).

Aplicando essas posições teóricas ao silêncio, confirmamos que este, por si só, não constitui uma forma complexa. E, por não apresentar uma combinação de elementos, nosso tema tem seu potencial expressivo reduzido, ponto observado por Jankélévitch, ao contrapor o mutismo à reticência. Se a expressão que contribui para o conhecimento, na perspectiva langeriana, ocorre a partir do estabelecimento de uma analogia entre duas formas, seria impossível conceber determinada experiência, em sua singularidade, a partir de um fenômeno amorfo. O silêncio “favorece uma concentração particularmente atenta” (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 200), é terreno fecundo para a reflexão, mas não seremos capazes de “modelá-lo” numa forma que proporcione uma concepção. Em outras palavras, podemos dizer que concebemos no silêncio, mas dificilmente pelo silêncio. Se, porventura, alguém for capaz de conceber exclusivamente pelo (próprio) silêncio, tal concepção permaneceria demasiado restrita a quem a elabora e estaria fadada a logo se dissipar.

Por não ser uma forma complexa, o silêncio tampouco equivaleria a uma “expressão simbólica”, segundo a teoria dos símbolos proposta por Langer. Esse ponto parece implícito nas considerações de Santo Agostinho sobre o júbilo. Precisamos de um modo para conceber – mesmo que se trate de um conhecer com o coração! – o jubiloso encontro com Deus, e o silêncio, não sendo um símbolo, é inapto para tal tarefa.

No entanto, poderíamos negar terminantemente que o silêncio seja um modo de expressão? É certo que não. Sabemos que ele é capaz de assumir diferentes significados em diferentes contextos: além do “quietismo da não resistência ao mal” (JANKÉLÉVITCH, 1964JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 88, tradução nossa), também identificamos os silêncios da beatitude, da omissão ou da conivência, como atesta nosso famoso ditado: “quem cala consente”... De qualquer maneira, a significação do silêncio depende em demasia do contexto para ser decifrada. Ainda que as variadas formas simbólicas (um texto jurídico, literário, poético, um mito, um rito ou uma obra de arte) exijam um pano de fundo contextual para sua interpretação, a dependência parece se magnificar consideravelmente quando se trata de algo sem forma, destituído de elementos. Também se amplia, no tocante à “expressão” silenciosa, o grau de ambiguidade, que chega, até, a suplantar a ambiguidade expressiva de uma composição musical, na qual ainda somos capazes de localizar, segundo Jankélévitch, algumas pistas de significações (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 107). Assim, interpretar o silêncio poderia se converter, facilmente, num jogo de adivinhação vazio, que, como no caso citado da personagem Kattie, não nos preenche e, além do mais, correria o risco de a nada remeter. Enfim, há muitas razões para Santo Agostinho sustentar que, na aproximação jubilosa a Deus, não deveríamos nos calar.

4 Por que se deve jubilar?

4.1 Uma resposta baseada especificamente em Santo Agostinho

A partir dos elementos recolhidos ao longo deste itinerário, podemos identificar algumas justificativas que levariam Santo Agostinho a recomendar o júbilo como adequada resposta expressiva à elevação espiritual. Em primeiro lugar, o canto entoado com alegria e intensidade corresponde, como já vimos, à efusão do louvor e da ação de graças, descritos nos salmos comentados e experimentados, com frequência, nos ritos e, até, na vida de fé pessoal.

Contudo, o bispo de Hipona acentua, especialmente, a dimensão comunitária do jubilus19 19 Como vimos, tal dimensão comunitária já se encontrava implícita, de certo modo, na necessidade de se evitar o silêncio passível de ser tomado como um vazio de experiência. , também em continuidade com os dois salmos em questão e com a própria identidade desse gênero musical. No Salmo 33 (32), por exemplo, o comando de entoar o louvor é dirigido a um conjunto de indivíduos justos e retos. Ao tocarem para Javé suas cítaras e suas harpas, ao endereçarem a Ele um cântico novo, os fiéis, conectados por um mesmo pulso e pelas mesmas frequências fundamentais, colocam-se numa mútua sintonia que, dificilmente, seria obtida por outros modos de “expressão”, dentre os quais poderíamos incluir a fala e o silêncio. Como sabemos, tal possibilidade da música é amplamente explorada no âmbito religioso, nas mais diversas tradições.

Enquanto isso, o Salmo 100 (99) prescreve que a ação de graças seja realizada pela “Terra inteira”. Nesse sentido, o jubilus é capaz de permitir não só a integração entre os seres humanos, mas entre todas as criaturas que, submetidas ao “ritmo da Criação” (MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 356), participam do louvor ao Criador [ponto que remete ao Cântico dos três jovens (Dn 3,57-88) e prenuncia a espiritualidade franciscana20 20 O louvor a Deus a partir da multiplicidade das criaturas também aparece nas Confissões (VII, 13), em passagem que, embora se refira, segundo o texto, ao Salmo 144 (143), resguarda certas semelhanças, no tocante às “criaturas” citadas, com o Cântico dos três jovens (AGOSTINHO DE HIPONA, 1973, p. 141). Já o Cântico em questão é explicitamente citado no capítulo XVI de Sobre a natureza do bem, quando o bispo de Hipona esclarece o papel das privações (de certos cânones de beleza, de luz e de som) na ordem da natureza: “De resto, se nós, retendo o som, intercalamos nossos discursos com um silêncio conveniente, quanto mais que nós, como artífice perfeito de todas as coisas, ele [Deus] produzirá de modo conveniente privações em algumas delas?” (AGOSTINHO DE HIPONA apud ECO, 2007, p. 48). Portanto, como Sor Juana Inés de la Cruz e Jankélévitch (seção 3), Santo Agostinho também reconhece o potencial expressivo do silêncio, quando conjugado com a fala. ]. Retomando a conclusão do santo sintetizada no comentário a esse mesmo salmo: “Ouviste o júbilo da terra inteira, se teu júbilo se expande diante do Senhor”. Talvez, pelo meio verbal, tal conexão com a natureza desprovida de palavras não fosse possível.

É importante ressaltar que, neste trabalho, optamos por não explorar, separadamente, os porquês para a recusa, por parte de Santo Agostinho, de uma resposta discursiva ao encontro com a divindade, limitando-nos apenas à mais óbvia inadequação da linguagem proposicional para articular certos conteúdos que a excedem (nesse caso, de ordem transcendente). No entanto, ao nos voltarmos, neste momento, à recomendação do jubilus, verificamos, como já nos indicam os dois parágrafos anteriores, comparações não só entre a música e o silêncio, mas também entre a música e o discurso verbal, que oferecem novos motivos para uma desvalorização do logos.

No que se refere a este segundo paralelo, o ato de cantar, além de permitir maior comunhão com os seres humanos e com as demais criaturas, oferece especial vantagem em relação ao ato de falar a partir do pensamento agostiniano. De acordo com Mammì, o canto nos distancia da relação mundana e utilitária, que sói caracterizar a comunicação pela linguagem verbal, identificando-se mais ao polo do pulchrum (belo em si) que ao polo do aptum (útil, conveniente)21 21 Esses dois conceitos integram o título da obra perdida de Santo Agostinho, De pulchro et apto, dedicada ao tema do belo. A obra assim como a distinção mencionada são tratadas pelo bispo de Hipona nas Confissões, IV, 13, 15. . Nas palavras do estudioso de Santo Agostinho, “cantar significa abandonar-se aos próprios ritmos vitais, tomando-os não como instrumentos para a satisfação de necessidades ou desejos, mas como valores em si, expressões íntimas de uma beleza universal” (MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 349).

Neste tópico dedicado ao enaltecimento da música em detrimento do silêncio e do discurso, a partir de Santo Agostinho, é importante abrir um parêntese, em algum momento, para destacar que nem sempre o pensador antigo interpreta de modo favorável a prática musical, especialmente quando esta, associando-se à palavra, poderia incorrer numa série de desvios. Em conformidade com a posição majoritária da Igreja que, por tantos séculos, desconfiou da música capaz de se tornar independente do texto verbal e de seduzir por seus meros atrativos sensíveis22 22 Prova de tal desconfiança é a exigência, estabelecida pelo Concílio de Trento (século XVI), de se manter, no canto litúrgico, a inteligibilidade do texto, ameaçada pelos excessos melismáticos: “in tono intelligibili, intelligibili voce, voce clara, cantu intelligibili” (POIZAT, apud DOLAR, 2012, p. 184). , o autor atesta, nas Confissões (X, 33: “O prazer do ouvido”), que peca quando, numa composição litúrgica, a parte musical o “sensibiliza mais do que as letras que se cantam” (AGOSTINHO DE HIPONA, 1973AGOSTINHO DE HIPONA, Santo. Confissões: de magistro. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1973. (Os pensadores)., p. 220). Se, então, a música ainda é admitida, isso se deve à sua função didática de conduzir ao texto sagrado, ou seja, à sua utilidade que a distancia do pulchrum (AGOSTINHO DE HIPONA, 1973AGOSTINHO DE HIPONA, Santo. Confissões: de magistro. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1973. (Os pensadores)., p. 219-220).

A ambivalência do santo em relação à música, constatada pela oposição entre o capítulo das Confissões supracitado e as reflexões acerca do jubilus nos Comentários aos Salmos, decorreria, talvez, da própria diferença entre a expressão musical de teor um tanto aberto e indefinido, por um lado, e a expressão discursiva de teor mais circunscrito, por outro. Como mostra Mammì23 23 Esse ponto também é defendido, com extrema sutileza, pelo filósofo esloveno Mladen Dolar, no texto “O objeto voz” (DOLAR, 2012, p. 167-192). , o inexprimível musical poderia colocar-se, para alguns ouvintes, tanto “abaixo do logos, da razão” (MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 356, grifo nosso), à semelhança do lascivo canto das sereias (para alguns, também destituído de palavras24 24 Tal concepção do canto das sereias é seguida por Debussy em “Sirènes”, terceira peça de seus Noturnos para orquestra (JANKÉLÉVITCH, 2000, p. 85). ), quanto para além da linguagem discursiva e da limitada racionalidade humana, à semelhança do elevado canto de jubilus. Em nossa leitura da referida ambivalência, ousamos afirmar, a partir da terminologia jankélévitchiana, que, na perspectiva de Santo Agostinho, a música, como a noite e o silêncio para a espiritualidade cristã, tende ora ao indizível (Confissões, X, 33), ora ao inefável (Comentários aos Salmos 32 e 99).

Caso só se avizinhasse ao indizível, o canto não poderia ser recomendado como resposta ao Sumo Inefável. É, sobretudo, por sua diferença positiva em relação à linguagem discursiva, por seu excesso de significação inajustável às sílabas, em suma, por sua característica inefabilidade, que cantar se torna uma alternativa quando não se pode nem falar, nem se calar. Portanto, como nosso foco é a extrema fecundidade da experiência musical, cabe aqui fechar o parêntese dedicado à ambivalência agostiniana e retomar especificamente os aspectos positivos da arte sonora.

Dentre estes, o Comentário ao Salmo 99 também parece deixar implícito que o canto do jubilus, além de se apresentar como resposta a uma experiência, parece potencializá-la ou prolongá-la. Assim sugere Santo Agostinho, quando, reforçando o vínculo entre o gênero musical litúrgico e o canto de colheita, afirma, seguindo a tradução de Mammì, que os trabalhadores agrícolas, “contentes pela abundância da colheita e alegres pela fecundidade e fertilidade da terra, cantam de alegria; e, entre cantos que declamam palavras, inserem melodias sem palavras para elevar o espírito exultante” (AGOSTINHO DE HIPONA, apud MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 352, grifo nosso).

É como se o jubilus partisse de um contato com Deus que, pelo desenrolar do canto sem palavras, pudesse se tornar ainda mais estreito. Nesse sentido, a resposta jubilosa ao Inefável distancia-se do registro ou da explicação a posteriori da experiência mística (como ocorre no caso da Chama viva de amor ou do relato do apóstolo Paulo, discutido por Sor Juana Inés de la Cruz), pois, além de se dar na experiência em curso, é mais que resposta ao também desencadear uma elevação do espírito.

Após a identificação de tais aspectos a partir, exclusivamente, dos Comentários aos Salmos, caberia verificar de que modo as obras de dois autores contemporâneos, já discutidos neste trabalho, Susanne K. Langer e Vladimir Jankélévitch, seriam capazes de endossar o elogio ao jubilus (apesar de não abordarem diretamente tal gênero musical).

4.2 Uma resposta a partir do diálogo com Susanne K. Langer

Começando pela filósofa estadunidense, vimos que sua teoria dos símbolos poderia justificar a recusa agostiniana do silêncio, uma vez que este, destituído de partes, não se configura propriamente como uma forma, não carrega nem veicula uma concepção e, assim, encontra-se consideravelmente esvaziado de potencial expressivo. Do mesmo modo, a recomendação do júbilo como resposta condizente com uma experiência inefável poderia ser aprovada pela autora, mesmo que a inefabilidade, segundo ela, não se refira propriamente a um plano transfísico (LANGER, 1971LANGER, S. K. Filosofia em nova chave: um estudo do simbolismo da razão, rito e arte. São Paulo: Perspectiva, 1971., p. 96). Segundo Langer, a música é uma forma complexa, capaz de articular, como as demais artes, conteúdos da “vida sentida”25 25 Cunhada por Henry James, a expressão “vida sentida” (“felt life”) é utilizada pela filósofa estadunidense em: LANGER, 1957, p. 48, 60, 67. , intraduzíveis pela linguagem discursiva, tornando-os concebíveis sonoramente por meio de um processo de abstração distinto do que caracteriza o conhecimento teórico.26 26 Embora a pretensa vocação, atribuída à música, para exprimir conteúdos subjetivos inefáveis já apareça em autores do século XIX, a expressão musical e artística defendida por Langer se distingue nitidamente da compreensão romântica usual, na medida em que se afasta do sentir mais imediato do artista (como veremos, do registro da autoexpressão), para converter-se numa elaboração do sentimento. Como sintetiza a autora, em Filosofia em nova chave, obra na qual esboça sua filosofia da arte a partir da música,

Um compositor não apenas indica, mas articula complexos sutis de sentimento, que a linguagem não pode sequer denominar e muito menos descrever; ele conhece as formas de emoção e sabe manejá-las, “compô”-las. Nós não “compomos” nossas exclamações e nossos chiliques.

(LANGER, 1971LANGER, S. K. Filosofia em nova chave: um estudo do simbolismo da razão, rito e arte. São Paulo: Perspectiva, 1971., p. 222, grifo da autora)

Constatamos, portanto, alguns relevantes pontos em comum entre o pensamento de Langer e a reflexão agostiniana acerca do jubilus. Também para o bispo de Hipona, como vimos, não se pode exprimir com palavras um conteúdo da “vida sentida”, a saber, a extrema alegria, passível, porém, de ser cantada com sons vocálicos. Recordando as já citadas palavras do santo, o júbilo “é a voz da alma, transbordante de alegria, a exprimir quanto possível seu afeto, sem dar-lhe sentido preciso” (nosso grifo), ou, pelo menos, “sem dar-lhe sentido” pela via da razão discursiva. Isso porque, como também verificamos, há outro modo de compreensão, um “compreender e não saber explicar com palavras o que se canta com o coração”.

A possibilidade de se compreender pelo jubilus sugerida por Santo Agostinho vai ao encontro da teoria langeriana sobre a expressão musical e artística. Como a filósofa sugere na passagem de Filosofia em nova chave supracitada e reitera em diversos momentos de sua obra, a mera autoexpressão (exclamações e chiliques) não gera uma forma complexa e, por conseguinte, não proporciona por si mesma uma concepção. Não choramos para que, com a sonoridade de nosso choro, possamos compreender nossa dor, e se outro for capaz de vislumbrá-la em tal circunstância, não será somente em razão da qualidade do choro, mas de todo o contexto em que este aparece. Portanto, o silêncio, talvez, tenha sua limitação relacionada ao seu parentesco com as reações autoexpressivas.

Contudo, como podemos inferir da indicada necessidade de extravasamento (seção 3), Santo Agostinho dá margem a uma interpretação do canto sem palavras como atividade de caráter espontâneo e de natureza autoexpressiva, como um “transbordar” da alegria gestada pelo coração e como fruto de uma “entrega” a uma instância mais alta. No entanto, a suposta espontaneidade do jubilus contrasta com as evidências históricas a respeito de tal gênero musical trazidas por Mammì. Segundo Hilário de Poitiers, o jubilus primitivo não era “um grito espontâneo, mas uma aclamação estandardizada” (MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 350). E, como destacamos, tal padronização parecia incluir “um curto refrão em ritmo claro e marcado”, cantado em conjunto. Livres exclamações de louvor não poderiam ser de tal modo delimitadas (rítmica e melodicamente) nem concertadas num canto comunitário.27 27 Não podemos deixar de recordar aqui outra prática religiosa, mais familiar à nossa realidade, o dom de línguas, caracterizado por uma entonação sem palavras ou sem palavras inteligíveis, e nos perguntar se ele se aproximaria mais à autoexpressão ou à expressão simbólica. Assim, embora a distinção langeriana entre expressão e autoexpressão gere, por si mesma, questionamentos e sua aplicação a um autor de outra época seja especialmente delicada, contamos com alguns fatores que afastam o jubilus da autoexpressão. Tal afastamento que faz do canto sem palavras, em oposição ao puro silêncio, uma expressão simbólica, ou seja, uma formulação garantidora de uma concepção, também concede significativa vantagem à resposta cantada, ausente na resposta silenciosa.

Se o canto de júbilo compõe, numa forma, num gesto musical (“aclamação estandardizada”) a exultação religiosa, permitindo-nos concebê-la, tal significação possui para Langer, como vimos, uma condição de possibilidade: a presença de certa semelhança entre as formas da figuração e do afigurado28 28 Tal pré-requisito wittgensteiniano para a figuração parece impugnar o tratamento da divindade, realidade transcendente às formas a nós disponíveis. No entanto, observamos que mesmo o discurso apofático busca, por vezes, uma correspondência entre o afigurado (divino) e a figuração, ao recorrer, a fim de sugerir o que ultrapassa qualquer imagem, a “imagens” capazes de desafiar a visualidade, como a “não imagem” da escuridão, frequente na mística cristã. Assim, de algum modo, uma “forma” é buscada para se obter uma concepção aproximada (ou seja, certa “forma”) do que está para além de toda a forma. Nesse paradoxo constitutivo, costumam transitar os relatos das experiências místicas. . É interessante observar que, no trecho do Comentário ao Salmo 32 transcrito na segunda seção, Santo Agostinho marca justamente uma correspondência entre o canto sem palavras e a experiência ou a realidade supralinguística que tal canto expressa. De acordo com o santo, cabe rever: “O júbilo é som significativo de que o coração está concebendo o indizível. E diante de quem é conveniente tal júbilo senão diante do Deus inefável?”

A título de síntese, em nossa linha de raciocínio influenciada por Langer, o canto sem palavras se articula numa forma (algo que não se aplicaria ao silêncio isoladamente, embora este também se encontre destituído de palavras); e tal forma é elaborada por meio de um recurso simbólico (a música) capaz de se organizar sem recorrer ao discurso verbal, estabelecendo, assim, uma analogia entre formas (a forma do canto e a forma da concepção acerca da divindade ou do regozijo místico), pela qual se torna possível expressar simbolicamente o Inefável.

Curiosamente, tal “janela” aberta pela música para a expressão do que não poderia ser dito discursivamente é um ponto que aproxima Santo Agostinho a Langer, enquanto afasta ambos do primeiro Wittgenstein. Como explica Adrienne Dengerink Chaplin, “ao contrário de Wittgenstein, Langer não acreditava que devêssemos permanecer em silêncio sobre o que não poderíamos falar em termos científicos. Ela não partilha a conclusão derrotista de Wittgenstein” (CHAPLIN, 2020CHAPLIN, A. D. The Philosophy of Susanne Langer: Embodied Meaning in Logic, Art and Feeling. London: Bloomsbury Academic, 2020. E-book., tradução nossa). E a especialista na filósofa estadunidense ainda completa:

A solução de Langer para o problema de Wittgenstein não foi permanecer em silêncio, mas estender o repertório de formas simbólicas para além de expressões linguísticas discursivas a fim de incluir formas de expressão não verbais, não linguísticas e não discursivas. Isso permitiu a articulação de experiências de esferas outras que o mundo físico, tal como expresso no mito, na arte e no rito.

(CHAPLIN, 2020CHAPLIN, A. D. The Philosophy of Susanne Langer: Embodied Meaning in Logic, Art and Feeling. London: Bloomsbury Academic, 2020. E-book., tradução nossa, grifos da autora)

Resguardadas as devidas diferenças entre Langer e Santo Agostinho29 29 Dentre tais diferenças, poderíamos citar: a separação histórica entre ambos, as diferentes ordens ontológicas a que pertencem as realidades inefáveis por eles privilegiadas (o inefável imanente por Langer e o inefável transcendente pelo bispo de Hipona), as particularidades das ferramentas conceituais a eles disponíveis, além da ênfase concedida por cada um às formas simbólicas não discursivas. , as palavras de Chaplin poderiam se referir, em certa medida, à solução, dada pelo segundo, nos Comentários aos Salmos, ao desafiador problema da inefabilidade.

4.3 Uma resposta a partir do diálogo com Vladimir Jankélévitch

A prescrição do bispo de Hipona poderia ser apoiada por, pelo menos, duas justificativas extraídas do pensamento de Vladimir Jankélévitch. Primeiramente, embora não vincule, de modo categórico, a expressão de uma peça musical a um conteúdo de origem extramusical (por exemplo, a vida do “sentimento”), como o faz Langer, Jankélévitch associa diretamente a música ao registro e ao regime do inefável. A indeterminação semântica de uma composição remete a uma extrema fecundidade, que a coloca além e não aquém da limitada expressão verbal de pretensão unívoca. Em sua estética, o filósofo francês aplica estratégias e conceitos importados da teologia mística ao âmbito imanente do fenômeno musical. Assim, não só as “trevas mais que luminosas do silêncio” de Pseudo-Dionísio (PSEUDO DIONISIO AREOPAGITA, 1990PSEUDO DIONISIO AREOPAGITA. Obras completas. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 1990., p. 371, tradução nossa), mas também a música parece se oferecer à “nossa entrevisão como uma espécie de penumbra na qual incontáveis figuras prestes a nascer se desvelam de modo nebuloso” (JANKÉLÉVITCH, 1966, p. 75, tradução nossa) ou vaporoso. No nada que excede a capacidade de representação humana, abre-se um todo de possibilidades. Como sintetiza o autor contemporâneo, “a música nada significa; portanto, tudo significa” (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 59, grifos nossos). É possível inferir, portanto, que um modo de expressão inefável, como a música (e, de acordo com Jankélévitch, a inefabilidade pertence a toda a música e não só ao canto sem palavras), seja uma resposta particularmente apropriada, não só para o teólogo cristão quanto para o agnóstico filósofo francês, a uma experiência igualmente inefável.

Em segundo lugar, encontramos, em Jankélévitch, uma correspondência curiosa e contraintuitiva que poderia justificar a recomendação agostiniana do jubilus (se transposta ao pensamento jankélévitchiano e, até certo ponto, quando examinada no próprio contexto dos Comentários aos Salmos). Segundo o filósofo francês,

A música, com efeito, já é uma espécie de silêncio, pois impõe silêncio aos ruídos e, de início, ao ruído insuportável por excelência que é aquele das palavras. O mais nobre de todos os ruídos, a palavra – pois é aquele pelo qual os homens se fazem compreender uns aos outros – torna-se, ao entrar em concorrência com a música, o mais indiscreto e o mais impertinente. A música é o silêncio das palavras, como a poesia é o silêncio da prosa: alivia o peso opressor do logos e impede que o homem se identifique exclusivamente com o ato de falar.

(JANKÉLÉVITCH; BERLOWITZ, 2021JANKÉLÉVITCH, V.; BERLOWITZ, B. Em algum lugar do inacabado. São Paulo: Perspectiva, 2021., p. 256-257)

Por um lado, além de habitar por meio das pausas o interior de uma composição musical, o silêncio é tanto a nascente quanto a foz de toda a música. Por outro, como indica a passagem acima, o silêncio se identifica, em certa medida, com a própria música, quando, pelo termo silêncio, compreendemos, sobretudo, a cessação da fala humana. Cessação que é extremamente benfazeja, pois, como mencionamos, a palavra (no contexto discursivo) é, de acordo com a perspectiva do filósofo, limitada e, além disso, pouco sutil, redutiva em suas generalizações, “banal e volúvel” (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 189), com forte propensão a transformar-se em verborragia. Por calar o “ruído insuportável por excelência”, a música poderia se manifestar não só como “uma espécie de silêncio” e um “silêncio das palavras”, mas também como um “silêncio relativo” (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 189), um “silêncio melodioso” (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 189) e um “silêncio audível” (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 201). A relação entre o silêncio e o fenômeno musical é tão íntima para o autor a ponto de um se apresentar como condição de possibilidade para o outro. Assim como “é necessário o silêncio para se escutar a música” (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 189), “deve-se fazer música para obter o silêncio” (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 189).

À primeira vista, a aproximação entre a música e o silêncio parece tornar a resposta entoada no jubilus não muito distinta da resposta silenciosa prescrita pelo Tractatus. Como defende Jankélévitch: “Cantar dispensa o dizer... Cantar é um modo de calar-se!” (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 190). E, assim, podemos chegar, por uma espécie de silogismo poético, à solução ao problema do inefável proposta pelo bispo de Hipona. Se, como premissa maior, recorremos novamente ao consagrado aforismo wittgensteiniano, “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”, e, como premissa menor, à recém-citada exclamação jankélévitchiana, “Cantar é um modo de calar-se!”, obteremos a conclusão agostiniana, reformulada nos seguintes termos: “Sobre aquilo de que não se pode falar, cabe cantar”.

Como vimos, fora do “silogismo” aqui montado, ou seja, no contexto do próprio Comentário ao Salmo 32, Santo Agostinho não concordaria exatamente com a ideia de que “cantar é um modo de calar-se”, posto que, pelos motivos identificados, “uma espécie de silêncio” não caberia como resposta na situação descrita. No entanto, a posição do filósofo francês se ajusta à do doutor da Igreja na medida em que, para o primeiro, cantar aproxima-se do calar, conforme sublinhamos, por fugir da lógica discursiva e por se revelar como um silêncio relativo. E, graças a tal relatividade, o “silêncio melodioso”, que também é “ruído melodioso, (...) ruído mensurado e encantado” (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 189), não se confunde com a ausência, mas se apresenta como figura expressiva, ponto, como vimos, observado por Jankélévitch em L’Ironie e especialmente desenvolvido pela obra de Langer.

A diferença entre um pretenso silêncio “absoluto” e a música, para Jankélévitch, também se encontra implícita na afirmação do filósofo, anteriormente citada, de que a segunda “alivia o peso opressor do logos e impede que o homem se identifique exclusivamente com o ato de falar”. Verificamos, nessas palavras, uma preocupação antropológica, expressa no reconhecimento de faculdades constitutivas do ser humano. Costuma-se assinalar, como um de nossos traços específicos, o domínio da linguagem verbal, que se conjuga diretamente com nossa racionalidade. Para alguns autores, a razão humana chega a se limitar unicamente à razão discursiva, capaz de se projetar na forma de proposições da linguagem. Contudo, Jankélévitch defende que o ser humano (assim como o mundo humano) não se reduz ao falado, posição que nos remete a Ernst Cassirer e à sua seguidora Susanne Langer, para os quais não só as formas simbólicas discursivas compõem nossa humanidade. E, dentre as “formas” não discursivas, a música ganha, sem dúvida, especial destaque na filosofia jankélévitchiana. Assim, se pensarmos que o ser humano se identifica com a linguagem e a música (encontrando nestas sua especificidade), ambas devem ser exclusivas à nossa espécie.30 30 Embora se trate de tema um tanto controverso, Jankélévitch enfatiza a pertença da música à experiência humana não só na passagem citada, mas também na última página de A música e o inefável (JANKÉLÉVITCH, 2018, p. 204). Já Langer defende, de modo explícito, a inadequação de se atribuir uma capacidade de criação e/ou de apreciação artística a animais não humanos (LANGER, 1970, p. 142), seja porque seus atos meramente autoexpressivos não poderiam configurar uma obra de arte, seja porque se encontrariam desprovidos do poder de elaboração simbólica. Por outro lado, o mero silêncio também “aliviaria o peso opressor do logos”, mas não nos define como humanos. Compreendido como simples ocorrência acústica, ou seja, como ausência sonora, o mutismo também se verifica em outros seres vivos, ainda que, no ser humano, adquira características próprias, na medida em que se apresenta como possibilidade estabelecida em contraponto com nossa específica capacidade linguística. Para definir-nos como humanos, o silêncio precisa, assim, ser considerado em sua constituição relativa, pressupondo uma relação (ainda que interiorizada) com as palavras ou, no contexto musical, conjugando-se com notas e manifestando-se em sonoridades não verbais dentro de uma construção complexa.

Portanto, se Jankélévitch, em sintonia com Santo Agostinho, recomenda-nos o canto quando não couber o dizer, afirmando que ,“onde falta a palavra, começa a música, onde as palavras se detêm, o homem só pode cantar” (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 120), isso ocorre porque é o ser humano quem pode cantar em vez de dizer, quem pode se aproximar do silêncio sem se calar por completo graças à possibilidade de elaboração de uma obra em registro distinto do logos.

Conclusão

Como vimos, a instigante prescrição, feita por Santo Agostinho nos Comentários aos Salmos 32 e 99, de que o fiel ou a comunidade, ao experimentar um contato íntimo com Deus, não poderia falar, nem se calar, mas, sim, jubilar provocou a reflexão deste artigo. Em nítido contraste com o célebre aforismo do primeiro Wittgenstein e com o frequente elogio, detectado tanto no neoplatonismo quanto na mística cristã, do silêncio como elevada atitude espiritual, a rejeição a uma resposta silenciosa exigiu ser analisada, em suas possíveis justificativas. Em seguida, investigamos igualmente de que modo se sustentaria a recomendação de uma resposta musical, entoada pelo canto sem palavras do jubilus. Para tanto, recorremos não só às fontes agostinianas, mas a filósofos contemporâneos (sobretudo Susanne K. Langer e Vladimir Jankélévitch) que, por diferentes vias, parecem sustentar a prescrição do santo.

Como motivos para a recusa de uma resposta silenciosa, que também nos permitiram constatar algumas “contraindicações” do mutismo fora do âmbito espiritual, identificamos: o fato de Santo Agostinho não se limitar ao discurso verbal como via de comunicação e explicação do sentimento inefável de júbilo, utilizando-se do discurso para apontar a outro meio expressivo (a música); a influência do contexto bíblico dos dois salmos comentados pelo bispo de Hipona, que ressaltam um louvor exteriorizado, incompatível com a introspecção do silêncio; a tendência de o mutismo, se praticado por uma pessoa agraciada, ser facilmente tomado como sinal de ingratidão (pelo próximo ou, especialmente, por Deus); a intensidade da experiência espiritual vivida, relacionada à sobreabundância divina, parece exigir um extravasamento; o risco de a postura silenciosa ser confundida com o vazio de experiência; além do reduzido potencial expressivo do silêncio, por este não possuir forma complexa, o que concorreria para sua ambiguidade e seu caráter inconclusivo. Também nos deparamos, nessa etapa, com possíveis estratégias para preencher de significado o silêncio, especialmente quando a ausência total de palavras parece contrastar com a riqueza da experiência inefável. A partir de tais estratégias, que incluem a conjugação do silêncio com a palavra, confirmamos a natureza amorfa do primeiro e a necessidade de criar com ele uma forma a fim de torná-lo propriamente expressivo.

No tocante às razões para a recomendação do jubilus oferecidas nos Comentários aos Salmos, identificamos que: o caráter efusivo do canto se encontra em sintonia com a intensidade da alegria espiritual e responde à mencionada exigência de extravasamento; o canto proporciona, mais que o silêncio e que a fala, um louvor praticado de maneira comunitária e, até, cósmica, uma vez que descobrimos, pela música, o “ritmo da Criação” que compartilhamos com todas as criaturas; o ser humano, ao cantar, distancia-se de uma relação utilitária com o mundo, predominante no trato verbal, descortinando o belo em si (pulchrum); a música, especialmente o canto sem palavras, na visão de Santo Agostinho, pode situar-se, por sua diferença em relação à linguagem discursiva, num nível suprarracional, o que a aproxima ao registro do inefável; e, finalmente, o fiel ou a comunidade é capaz de potencializar ou prolongar sua experiência pela prática do canto. É importante esclarecer, nesta conclusão, que nem todas as razões enumeradas no tópico 4.1 são uma prerrogativa da música ou do canto sem palavras. Por um lado, o caráter mais efusivo do canto em sintonia com o ato de louvor e com o transbordamento emotivo assim como a adequação da prática musical a uma vivência em conjunto não parecem ser compartilhados pelo silêncio. Por outro lado, não só a música, como também o silêncio, poderia favorecer a descoberta de ritmos internos, uma relação menos utilitária com o mundo e a elevação do espírito, além de sugerir, como “silêncio tácito”, o degustar de uma realidade supralinguística e suprarracional.

Examinando as justificativas para o jubilus como resposta ao encontro com o inefável a partir de autores contemporâneos, chegamos às seguintes conclusões. De acordo com o pensamento de Langer, a música é dotada de uma forma complexa e, assim, organiza e veicula uma concepção, ou seja, apresenta-se como uma expressão simbólica. Como também observamos, tais propriedades não se aplicam ao silêncio, que compartilha, em certos pontos, das limitações próprias às reações autoexpressivas. A expressão simbólica da música lida com a elaboração de conteúdos da vida do “sentimento”, intraduzíveis pela via discursiva, apresentando-os, graças a analogias entre as formas da figuração e do afigurado, ao nosso conhecimento, por um processo distinto do que ocorre no âmbito teórico. Esses pontos poderiam, assim, endossar a recomendação examinada. Pelo fato de não se apresentar como articulação complexa, o silêncio não logra expressar satisfatoriamente a plenitude espiritual. Por outro lado, o jubilus oferece uma forma para a expressão de um sentimento discursivamente inexprimível, devido à semelhança entre sua constituição não verbal e o afeto inefável referido, que passa a ser conhecido pelo “coração” de quem o entoa. Podemos, assim, concluir, a partir de Langer, que o gênero em questão, ao contrário do silêncio, apresentava, a quem o praticava ou a quem o observava, a inefável qualidade de uma experiência religiosa comunitária, da qual só nos restam precários traços pela escrita de testemunhas da época, como o próprio Santo Agostinho.

Por fim, recorrendo a Jankélévitch, constatamos, primeiramente, que a inefabilidade atribuída por ele à expressividade musical faz da arte sonora uma resposta particularmente consentânea à natureza inefável do júbilo espiritual vivido. Além disso, a correspondência estabelecida entre a música e o silêncio permite que a primeira, como “silêncio relativo”, surja como alternativa propriamente humana para se abdicar da palavra limitada sem o risco de se cair no vazio de expressão, no qual a fecundidade inefável facilmente se confunde com a esterilidade quase indizível.

Para finalizar este artigo, recordamos aqui de Aldous Huxley, para quem, “depois do silêncio, aquilo que mais se aproxima a expressar o inexprimível é a música” (HUXLEY, 1931HUXLEY, A. Music at Night and Other Essays. New York: Doubleday Doran & Company, 1931., p. 17, tradução nossa). De acordo com nossas conclusões, em sintonia com a prescrição agostiniana, tal afirmação nos parece equivocada. Sem ousar dizer que haja um modo de expressão humana especialmente apto para lidar com o inefável, contamos com elementos suficientes para sustentar que a música possibilita um tratamento mais pleno do inexprimível positivo que o silêncio, cuja capacidade propriamente expressiva se revela, como vimos, um tanto questionável.

  • 1
    Costuma-se vincular o termo “mistério” à raiz grega mnvw, cujo significado seria justamente fechar (os olhos ou lábios) em atitude de reverência. Contudo, tal etimologia revela-se questionável, segundo alguns autores (LIA, P. In: Enciclopedia Filosofica, 2006ENCICLOPEDIA FILOSOFICA. Fondazione Centro Studi Filosofici di Gallarate. Milano: Bompiani, 2006. v. 8., p. 7470).
  • 2
    Referência à Enéada III 8, 6, de Plotino.
  • 3
    Elisabeth da Trindade refere-se, aqui, a uma tradução do segundo versículo do Salmo 65 (64), proposta pelas versões de Áquila, São Jerônimo e pela versão aramaica (BÍBLIA TEB, 2020BÍBLIA TEB: notas integrais tradução ecumênica. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2020. (Coleção de livros da literatura judaica e cristã)., p. 1012-1013). Em A Bíblia de JerusalémA BÍBLIA DE JERUSALÉM. 7. impressão. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1995., a mesma passagem, de tradução incerta, é apresentada como: “A ti convém o louvor / em Sião, ó Deus”, opção que, seguindo o texto da Septuaginta, é adotada preferencialmente nas edições de nossa época. Segundo Boylan, no que concerne a esse versículo, “embora a oração ‘Para Ti, o silêncio é um hino de louvor’ sugira o pensamento belo e verdadeiro de que Deus está tão acima do louvor humano a ponto de nossa humilde adoração em silêncio se apresentar como um tributo maior à glória de Deus que o mais belo dos cantos sagrados”, “a interpretação das versões [da Septuaginta e da Siríaca] é muito mais natural e provável [que o texto massorético], considerando a ocasião e o significado geral do Salmo” (BOYLAN, 1936BOYLE, P. C. The Psalms: a Study of the Vulgate Psalter in the Light of the Hebrew Text. Psalms I – LXXI. Dublin: M. H. Gill and Son, 1936. v. 1., p. 238). De qualquer modo, a interpretação citada pela santa carmelita revela que a possibilidade de um louvor silencioso, recusada pelas passagens dos Comentários aos Salmos 32 e 99, já seria admissível na época de Santo Agostinho. Contudo, dada a abordagem filosófica deste estudo, foge ao nosso escopo verificar quando tal possibilidade emerge ou se intensifica historicamente.
  • 4
    “Por certo, há o inefável. Isso se mostra, é o Místico.” (Tractatus Logico-Philosophicus 6.522, in: WITTGENSTEIN, 2020WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. 3.ed. 4.reimpressão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020., p. 261, grifo do autor)
  • 5
    Cf. Prólogo do Cântico espiritual (JUAN DE LA CRUZ, 2000JUAN DE LA CRUZ, San. Obras completas. 7.ed. Burgos: Monte Carmelo, 2000. (Maestros espirituales carmelitas)., p. 692, 1134).
  • 6
    No terceiro versículo do Salmo 33 (32),1-3, lemos: “Ó justos, exultai em Iahweh, / aos retos convém o louvor. / Celebrai a Iahweh com harpa, / tocai-lhe a lira de dez cordas; / cantai-lhe um cântico novo, / tocai com arte na hora da ovação!” Já o Salmo 100 (99),1-2 inicia com a seguinte prescrição: “Aclamai a Iahweh, terra inteira, / servi a Iahweh com alegria, / ide a ele com gritos jubilosos!”
  • 7
    Na maior parte das vezes, utilizamos, como traduções das passagens selecionadas dos Comentários aos Salmos, a edição da coleção “Patrística” da editora Paulus, mas, em alguns momentos, optamos pelas traduções de Mammì, seja por sua maior clareza, seja por evidenciar aspectos que procuramos ressaltar.
  • 8
    No texto original, o termo utilizado não é o adjetivo substantivado “indizível”, mas “algo que não pode ser dito” (“quod dicere non potest”). (AGOSTINHO DE HIPONA, apud MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 362)
  • 9
    É importante lembrar que Wittgenstein era leitor de Santo Agostinho, como comprovam as Investigações filosóficas, cuja primeira parte se inicia com a citação de uma passagem do bispo de Hipona (WITTGENSTEIN, 1979WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores)., p. 9). Assim, talvez, a semelhança entre o aforismo final do Tractatus e a passagem citada do Comentário ao Salmo 32 não seja meramente casual.
  • 10
    “(...) et si eum fari non potes, et tacere non debes, quid restat nisi ut iubiles” (AGOSTINHO DE HIPONA, apud MAMMÌ, 2000MAMMÌ, L. Canticum Novum: música sem palavras e palavras sem som no pensamento de Santo Agostinho. Estudos avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 347-366, jan./abr. 2000., p. 362).
  • 11
    Como indaga Santo Agostinho na passagem do Comentário ao Salmo 99, já citada: “Sabendo ser impossível explicar o que percebes, calarás? Não louvarás?”.
  • 12
    No texto de Santo Agostinho, a ingratidão do fiel aparece diretamente vinculada à ausência de uma resposta dirigida a Deus (“e não darás graças àquele que se deu a conhecer?”) e não à comunidade. Essa posição nos causa certo estranhamento hoje, em virtude não só da onisciência de Deus (que não precisaria da exteriorização do sentimento de um indivíduo como atestado de gratidão), mas também da concepção aprofundada pela mística moderna de que a resposta silenciosa do místico seria condizente com a manifestação da graça divina (ponto tratado na primeira seção).
  • 13
    Se tomarmos o verbo latino laudare, empregado nos Comentários aos Salmos e origem do nosso verbo “louvar”, verificaremos que, em sua etimologia, o termo está associado a algo que se chama ou se nomeia, posteriormente de modo favorável, como no contexto de um elogio fúnebre (ERNOUT; MEILLET, 1979ERNOUT, A; MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des mots. 4.ed. Paris: Klincksieck, 1979., p. 346). Assim, a ideia de um “louvor silencioso” seria um tanto contraditória, embora, como vimos, tenha sido usada por alguns místicos e, até mesmo, por São Jerônimo na tradução do Salmo 65 (64). Quanto à concepção de um “transbordamento introspectivo”, esta só faria sentido numa topologia, como aquela proposta por Santa Teresa de JesusTERESA DE JESUS, Santa. Castelo interior ou Moradas. São Paulo: Paulus, 2019. em suas Moradas, na qual a alma, ao ser constituída por “camadas”, permitiria o extravasamento do conteúdo vivido de um nível mais superficial para outro mais profundo.
  • 14
    O verbo “mostrar” (zeigen) aparece, no Tractatus, em explícita oposição ao âmbito do dizível (Tractatus Logico-Philosophicus 6.36, in: WITTGENSTEIN, 2020WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. 3.ed. 4.reimpressão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020., p. 253) e, por isso, aproxima-se, como vimos, aos âmbitos do místico e do inefável (Tractatus Logico-Philosophicus 6.522, in: WITTGENSTEIN, 2020WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. 3.ed. 4.reimpressão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020., p. 261).
  • 15
    Longa-metragem disponível na plataforma de streaming Netflix.
  • 16
    A expressão “forma significante” (“significant form”) foi utilizada pelo crítico de arte Clive Bell, em seu livro Art (1914), como possível resposta à pergunta norteadora da obra: qual seria a qualidade comum aos objetos capazes de proporcionar uma comoção estética?
  • 17
    É importante ressaltar que, de acordo com Langer, em diálogo com a psicologia da Gestalt, o nível da experiência (especialmente quando dotada de conteúdo) – e não só o nível da comunicação (que, para ela, não deveria ser tomada como a função fundamental dos símbolos) – também costuma incluir alguma apreensão da forma, caso contrário nossa percepção se reduziria a “uma tremenda, estrondosa e imensa confusão” (“one great blooming, buzzing confusion”), empregando as célebres palavras de William James (apud LANGER, 1971LANGER, S. K. Filosofia em nova chave: um estudo do simbolismo da razão, rito e arte. São Paulo: Perspectiva, 1971., p. 96; 1957, p. 70). Contudo, parece haver, para Langer, níveis de apreensão e de composição de formas na experiência humana, uma vez que a filósofa reconhece a presença de formas particularmente elaboradas, sutis e delicadas nas obras de arte (LANGER, 1930LANGER, S. K. The Practice of Philosophy. New York: Henry Holt & Company, 1930., p. 101-102).
  • 18
    Tal pré-requisito é, no entanto, contestado pelo outro autor contemporâneo contemplado neste artigo, Vladimir Jankélévitch, tanto para a expressão poética quanto para a expressão musical (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 96; JANKÉLÉVITCH; BERLOWITZ, 2021JANKÉLÉVITCH, V.; BERLOWITZ, B. Em algum lugar do inacabado. São Paulo: Perspectiva, 2021., p. 73).
  • 19
    Como vimos, tal dimensão comunitária já se encontrava implícita, de certo modo, na necessidade de se evitar o silêncio passível de ser tomado como um vazio de experiência.
  • 20
    O louvor a Deus a partir da multiplicidade das criaturas também aparece nas Confissões (VII, 13), em passagem que, embora se refira, segundo o texto, ao Salmo 144 (143), resguarda certas semelhanças, no tocante às “criaturas” citadas, com o Cântico dos três jovens (AGOSTINHO DE HIPONA, 1973AGOSTINHO DE HIPONA, Santo. Confissões: de magistro. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1973. (Os pensadores)., p. 141). Já o Cântico em questão é explicitamente citado no capítulo XVI de Sobre a natureza do bem, quando o bispo de Hipona esclarece o papel das privações (de certos cânones de beleza, de luz e de som) na ordem da natureza: “De resto, se nós, retendo o som, intercalamos nossos discursos com um silêncio conveniente, quanto mais que nós, como artífice perfeito de todas as coisas, ele [Deus] produzirá de modo conveniente privações em algumas delas?” (AGOSTINHO DE HIPONA apud ECO, 2007ECO, U. História da feiúra. Rio de Janeiro: Record, 2007., p. 48). Portanto, como Sor Juana Inés de la Cruz e Jankélévitch (seção 3), Santo Agostinho também reconhece o potencial expressivo do silêncio, quando conjugado com a fala.
  • 21
    Esses dois conceitos integram o título da obra perdida de Santo Agostinho, De pulchro et apto, dedicada ao tema do belo. A obra assim como a distinção mencionada são tratadas pelo bispo de Hipona nas Confissões, IV, 13, 15.
  • 22
    Prova de tal desconfiança é a exigência, estabelecida pelo Concílio de Trento (século XVI), de se manter, no canto litúrgico, a inteligibilidade do texto, ameaçada pelos excessos melismáticos: “in tono intelligibili, intelligibili voce, voce clara, cantu intelligibili” (POIZAT, apud DOLAR, 2012DOLAR, M. O objeto voz. Prometeus, Aracaju, ano 5, n. 10, p. 167-192, jul./dez. 2012., p. 184).
  • 23
    Esse ponto também é defendido, com extrema sutileza, pelo filósofo esloveno Mladen Dolar, no texto “O objeto voz” (DOLAR, 2012DOLAR, M. O objeto voz. Prometeus, Aracaju, ano 5, n. 10, p. 167-192, jul./dez. 2012., p. 167-192).
  • 24
    Tal concepção do canto das sereias é seguida por Debussy em “Sirènes”, terceira peça de seus Noturnos para orquestra (JANKÉLÉVITCH, 2000, p. 85).
  • 25
    Cunhada por Henry James, a expressão “vida sentida” (“felt life”) é utilizada pela filósofa estadunidense em: LANGER, 1957LANGER, S. K. Problems of Art: Ten Philosophical Lectures. New York: Charles Scribner’s Sons, 1957., p. 48, 60, 67.
  • 26
    Embora a pretensa vocação, atribuída à música, para exprimir conteúdos subjetivos inefáveis já apareça em autores do século XIX, a expressão musical e artística defendida por Langer se distingue nitidamente da compreensão romântica usual, na medida em que se afasta do sentir mais imediato do artista (como veremos, do registro da autoexpressão), para converter-se numa elaboração do sentimento.
  • 27
    Não podemos deixar de recordar aqui outra prática religiosa, mais familiar à nossa realidade, o dom de línguas, caracterizado por uma entonação sem palavras ou sem palavras inteligíveis, e nos perguntar se ele se aproximaria mais à autoexpressão ou à expressão simbólica.
  • 28
    Tal pré-requisito wittgensteiniano para a figuração parece impugnar o tratamento da divindade, realidade transcendente às formas a nós disponíveis. No entanto, observamos que mesmo o discurso apofático busca, por vezes, uma correspondência entre o afigurado (divino) e a figuração, ao recorrer, a fim de sugerir o que ultrapassa qualquer imagem, a “imagens” capazes de desafiar a visualidade, como a “não imagem” da escuridão, frequente na mística cristã. Assim, de algum modo, uma “forma” é buscada para se obter uma concepção aproximada (ou seja, certa “forma”) do que está para além de toda a forma. Nesse paradoxo constitutivo, costumam transitar os relatos das experiências místicas.
  • 29
    Dentre tais diferenças, poderíamos citar: a separação histórica entre ambos, as diferentes ordens ontológicas a que pertencem as realidades inefáveis por eles privilegiadas (o inefável imanente por Langer e o inefável transcendente pelo bispo de Hipona), as particularidades das ferramentas conceituais a eles disponíveis, além da ênfase concedida por cada um às formas simbólicas não discursivas.
  • 30
    Embora se trate de tema um tanto controverso, Jankélévitch enfatiza a pertença da música à experiência humana não só na passagem citada, mas também na última página de A música e o inefável (JANKÉLÉVITCH, 2018JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 204). Já Langer defende, de modo explícito, a inadequação de se atribuir uma capacidade de criação e/ou de apreciação artística a animais não humanos (LANGER, 1970LANGER, S. K. Mind: an Essay on Human Feeling. Baltimore, London: The John Hopkins Press, 1970. v. 1., p. 142), seja porque seus atos meramente autoexpressivos não poderiam configurar uma obra de arte, seja porque se encontrariam desprovidos do poder de elaboração simbólica.

Referências

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  • AGOSTINHO DE HIPONA, Santo. Confissões: de magistro. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1973. (Os pensadores).
  • AGOSTINHO DE HIPONA, Santo. Comentários aos Salmos Salmos 1-50. São Paulo: Paulus, 1997a. v. 1.
  • AGOSTINHO DE HIPONA, Santo. Comentários aos Salmos Salmos 51-100. São Paulo: Paulus, 1997b. v. 2.
  • AGOSTINHO DE HIPONA, Santo. On the Nature of Good In: New Advent. Fathers of the Church, 2021. Disponível em: https://www.newadvent.org/fathers/1407.htm Acesso em: 30 mar. 2023.
    » https://www.newadvent.org/fathers/1407.htm
  • BÁEZ, S. J. Quando tudo se cala: o silêncio na Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2011.
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  • CHAPLIN, A. D. The Philosophy of Susanne Langer: Embodied Meaning in Logic, Art and Feeling. London: Bloomsbury Academic, 2020. E-book.
  • COIXET, I. (Dir.). The Bookshop Diagonal Televisió et al, 2017. [Filme cinematográfico].
  • DOLAR, M. O objeto voz. Prometeus, Aracaju, ano 5, n. 10, p. 167-192, jul./dez. 2012.
  • ECO, U. História da feiúra Rio de Janeiro: Record, 2007.
  • ELISABETH DA TRINDADE. I Have Found God Complete Works. General Introduction; Major Spiritual Writings. Washington (D.C.): ICS Publications, s. d. v. I.. E-book.
  • ENCICLOPEDIA FILOSOFICA. Fondazione Centro Studi Filosofici di Gallarate. Milano: Bompiani, 2006. v. 8.
  • ERNOUT, A; MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des mots. 4.ed. Paris: Klincksieck, 1979.
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  • JANKÉLÉVITCH, V. L’Ironie Paris: Flammarion, 1964.
  • JANKÉLÉVITCH, V. La Mort Paris: Flammarion, 1966.
  • JANKÉLÉVITCH, V. A música e o inefável São Paulo: Perspectiva, 2018.
  • JANKÉLÉVITCH, V.; BERLOWITZ, B. Em algum lugar do inacabado São Paulo: Perspectiva, 2021.
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  • WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus 3.ed. 4.reimpressão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2023
  • Aceito
    03 Abr 2023
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