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PENSAR OUTRAMENTE O SILÊNCIO: POR UMA DESCOLONIZAÇÃO DA LINGUAGEM TEOLÓGICA NA CONTEMPORANEIDADE

Thinking Diff erently About Silence: Toward a Decolonization of Theological Language in Contemporary Times

RESUMO

A presente investigação tem como escopo repensar a questão do silêncio, tema tão caro à filosofia e à literatura contemporâneas e porque não dizer tão urgente para a teologia, sem cair, contudo, nas malhas dos discursos de tipo kata-bólicos ou de se entregar aos discursos de corte sim-bólicos provenientes da ontologia moderna. Trata-se, portanto, de propugnar uma terceira via para a teologia que passe pelo crivo da exaltação dos discursos para-bólicos que sejam capazes de justificar a premência de se ter de abrir um novo (antigo) espaço de linguagem para redizer o silêncio desde a ótica ético-profético advinda da primazia concedida ao outro como Bem para além do Ser, traço do infinito. A temática de fundo é por si só muito complexa uma vez que se está a lidar com o paradoxo da glória e da perdição advindo do silêncio pelo fato de ele evocar ao mesmo tempo a reverência e o indizível do mistério e, por outro lado, remeter à inumanidade ou ao fundo mortífero que atravessa a condição humana/social marcada pela naturalização da solidão. Diante desses desafios, essa abordagem se deixa inspirar pela tentativa de estabelecer uma fecunda intriga entre a filosofia da alteridade do filósofo franco-lituano Emmanuel Levinas e a teologia, tendo-se em mente reforçar a ideia/experiência radical do cristianismo de que a encarnação muda tudo.

PALAVRAS-CHAVE
Silêncio; Linguagem; Outro; Ética; Teologia

ABSTRACT

The present investigation has as scope to rethink the question of silence, a theme so dear to contemporary philosophy and literature and why not say so urgent for theology, without falling, however, into the net of kata-bolic speeches or surrendering to the sym-bolic cutting discourses from modern ontology. It is, therefore, a question of advocating a third way for theology that passes through the sieve of the exaltation of para-bolic speeches that are capable of justifying the urgency of having to open a new (old) space of language to reduce the silence since the ethical-prophetic perspective arising from the primacy granted to the other as Good beyond Being, a trace of infinity. The background theme is very complex in itself, since one is dealing with the paradox of glory and perdition arising from silence due to the fact that it evokes at the same time the reverence and the unspeakable of the mystery and, on the other hand, refers to the inhumanity or deadly background that crosses the human/social condition marked by the naturalization of solitude. Faced with these challenges, this approach gets inspired by the attempt to establish a fruitful intrigue between the philosophy of otherness of the French-Lithuanian philosopher Emmanuel Levinas and the theology, bearing in mind to reinforce the idea/radical experience of Christianity that the incarnation changes all.

KEYWORDS
Silence; Language; Other; Ethics; Theology

Introdução

Essa investigação visa ater-se à questão do silêncio com o intuito de postular uma autêntica descolonização da linguagem teológica na contemporaneidade, tendo-se em mente a persistência dos discursos sobre Deus em conferir primazia à conceptualização do Mistério antes de dar vazão ao caráter genuinamente (para)-bólico da linguagem compatível ao Segredo. Em vista de se alcançar tal escopo trata-se de evocar a provocação hiperbólica que nos vem do pensamento do filósofo judeu Emmanuel Levinas. Há de se enfatizar que especialmente seu escrito filosófico Parole et silence (LEVINAS, 2009bLEVINAS, E. Parole et silence: et autres conférences inédites au Collège Philosophique. Paris: Bernard Grasset/IMEC, 2009b.), dá “a pensar” ao leitor que se veja interpelado a teologizar outramente o silêncio tendo em vista exorcizar a teologia contemporânea da tentação idolátrica da Razão, tal como procurar-se-á advogar ao longo dessa investigação.

Por um lado, urge ressaltar, seguindo o pensamento do filósofo judeu, que toda vez que o discurso de tipo (kata)bólico1 1 Recordar que o prefixo Kata do grego significa um movimento “para baixo” ou evoca a forma que pode ser praticada para se desenvolver habilidades particulares por parte daquele que conhece. Da mesma forma, aparece associado à mentalidade baseada no domínio das coisas vistas (de cima para baixo) acompanhada do poder ou da postura rigorosa de se tentar desvelar aquilo que, em princípio, lhe parecia enigmático e/ou desconhecido. Acrescenta-se, pois, à linguagem katabólica a preocupação com a enunciação rigorosa sobre o que se torna conhecido ou reconhecido. Com isso procura-se acentuar a performance da parte de quem conhece/fala sobre as coisas que outrora se encontravam escondidas, no segredo. Eis que em função dessas considerações linguísticas vale recordar que o substantivo bolé, do verbo grego ballein significa a ação de se lançar, de se atirar “sobre” algo ainda desconhecido como no caso do Mistério [de outrem]. Logo, a linguagem katabólica se associa a um esforço de discursar sobre as coisas a fim de dominar pela força do conhecimento e da linguagem teorético-enunciativa, algo que ainda está oculto ou que se encontra imerso no silêncio das coisas escondidas. tenha a pretensão de representar ou de tematizar o enigma de maneira a situar-se “diante de”, o silêncio tende a se tornar inócuo, seja pelo pensamento (ideias) que dispensa a linguagem, seja pela linguagem do estruturalismo sem subjetividade a ponto de desconsiderar a criatividade do escritor e do leitor a partir dos quais se produz o sentido. Há, portanto, por detrás dessas tendências linguageiras a pretensão de colonizar o Mistério a ponto de reduzir a questão do silêncio ao non-sens, isto é, ao Nada. Tudo isso legitimado pelo exercício de uma linguagem direta do real, seja ela de corte transcendental focada no Eu, ou mesmo de traços estruturalistas, como acabamos de evocar, devido a sua pretensão de dar acesso ao sentido da palavra Deus com base ao seu silêncio.

Por outro lado, soma-se a isso o fato de que ao se dar conta da existência de um paradoxo entre a “miséria e a grandeza da linguagem” o filósofo não deixe de associá-lo também ao que ele denomina de “inumanidade que subjaz ao mundo silencioso” (LEVINAS, 2009bLEVINAS, E. Parole et silence: et autres conférences inédites au Collège Philosophique. Paris: Bernard Grasset/IMEC, 2009b., p. 69). Enfim, pelos motivos evocados, sua reflexão nos servirá de inspiração à medida que doravante ao se tentar tirar do esquecimento o silêncio [de Deus], a teologia não renuncie a matizar as questões éticas e antropológicas que subjazem à novidade de seu discurso com o risco de se deixar seduzir pela ontologização do mistério, sem outrem.

Portanto, uma vez situado brevemente o estado da questão do silêncio no horizonte do pensamento do filósofo lituano, trata-se de avançar e dar novos passos a fim de entrar no cerne da contribuição do autor para a temática que nos interessa a respeito da descolonização da linguagem teológica do Mistério.

1 Da exaltação do silêncio do ser como linguagem ao silêncio como thanatos

Em primeiro lugar, trata-se de ressaltar que diante da tentativa de abandonar o paradoxo implícito às duas maneiras de abordagem da linguagem evocadas anteriormente, urge evocar tanto o avanço como certo limite que conduzem a filosofia e a literatura contemporâneas a se focarem no caráter eminentemente ontológico da linguagem/silêncio a fim de se dar um passo que nos conduza para além da ontologia. Em princípio, graças a essa nova perspectiva, a filosofia e a literatura podem se apresentar como alternativa à tendência discurso direto e ao fonocentrismo ainda tão em voga na cultura científica como a nossa, entregue às definições do real. Outrossim, debruçadas sobre a novidade da voz do ser, tendem a declinar-se diante do mistério a ponto de poderem propugnar uma linguagem (in)direta a respeito do ser. Estão convencidas de que todo acesso imediato ao mistério não faz jus ao que nele [ser] resiste à definição e ao palavreado que decorre dela [linguagem]. Afinal, segundo a perspectiva ontológica da linguagem, o segredo escapa às malhas do saber graças ao ser como verbo, isto é, à verbalidade do ser como dom.

Leva-se, portanto, em conta que no horizonte do ser, o silêncio esteja intimamente associado à escuta do enigma do ser, o que sugere também ter-se de deslocar a ênfase de um discurso de tipo (kata)bólico para um discurso (sim)bólico a respeito de sua palavra/silêncio. Desde a ótica ontológica e da linguagem do ser que brota daí, é possível voltar à questão de Deus tendo depurado o discurso teológico da contaminação do pensamento e da linguagem onto-teológica da tradição metafísica ocidental. Eis, pois, que de posse dessas considerações compreende-se que o filósofo tenha partido da constatação de que, na contemporaneidade, se perceba uma exaltação do silêncio em nome da valorização do ser antes do que na fixação da linguagem direta do ente. Isso tem a ver naturalmente com esse deslocamento da linguagem em torno do pensamento metafísico ao pensamento da diferença ontológica.

Em suma, partindo-se dessa constatação, é verdade que num primeiro momento o pensamento ontológico tenha aberto a possibilidade de se estabelecer uma crítica ao tratamento dispensado ao Mistério por parte da linguagem metafísica. Do ponto de vista do discurso filosófico-teológico tratou-se, naturalmente, de esvaziar o saber de tipo teorético-demonstrativo a respeito do Mistério a fim de se exaltar as categorias poéticas como sendo as mais compatíveis com a lógica do desvelamento do ser enquanto verbo. Nesse sentido, compreende-se que, doravante, a Poética passe a ocupar um lugar de destaque no interior da ontologia. Afinal, ela se mostra muito mais apropriada e afim da escuta do Ser e de sua voz do que a linguagem teorética.

1.1 Da Poética do Ser à profética do outro

Entretanto, há de se ter presente, que se retomamos a ótica assumida pelo filósofo franco-lituano a respeito da exaltação do silêncio subjacente à filosofia e à literatura modernas, não se poderá olvidar que essa se torna passível da mais dura crítica por conta da ênfase na impessoalidade do Ser. De modo mais contundente, essa exaltação, segundo o filósofo, se consolidou na contemporaneidade em função da reabilitação do Ser e não do Outro como Bem para além do Ser. Ao invés de se exaltar a voz/apelo e a bondade de outrem em detrimento do silêncio anônimo do ser, e, por antonomásia, de se conferir uma novidade (para)bólico-pro-fética à linguagem antropo-teológica decorrente da ética inaugurada pelo contato com o outro Bem para além do Ser, a filosofia e a literatura contemporâneas se entregam à poética do discurso ontológico em torno da voz impessoal do Ser-Haver. Desse modo, elas se esquecem do outro-humano/divino que como Logos-pessoal que se faz carne, não pode deixar de ser associado ao outro/messias [do Ser] graças à Revelação que o advento do outro introduz na relação com sua Palavra/tempo como um autêntico kairós. Essa Revelação, portanto, interrompe a temporalidade ontológica do anonimato do Há do Ser.

Nessa esteira, compreende-se que a exaltação do silêncio propugnado pela filosofia e pela literatura contemporâneas, não trouxe de fato uma solução definitiva e radical para o problema originário do silêncio como talvez pretendesse a ontologia. Aliás, se é verdade que a reabilitação do ser e sua linguagem/discurso poética têm a pretensão de ressignificar a questão do Sagrado e de conceder um novo sentido à palavra Deus, o fato é que desde o horizonte da linguagem impessoal e abstrata, o Ser se revela sem Eros, sem corpo, enfim, um ser descarnado, sem fome, sem sofrimento e sem alegria. Nessa ótica, a filosofia e a literatura contemporâneas tendem a se olvidar de que o Logos feito carne aponte para o fato irredutível de o acesso ao sentido genuíno do silêncio ter de ser buscado fora da ontologia no Bem para além do Ser, melhor dizendo, na Revelação do outro enquanto ele mesmo assiste sua significação sem referência a nada, enfim, a Revelação do outro diz respeito à significância da significação sem contexto, ou dito de maneira negativa, a Revelação diz respeito “a não-fenomenalidade do rosto” (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 107).

E na revelação a linguagem consiste na relação com um ser que, em certo sentido, não é em relação a mim; ou, se se preferir, só está em relação comigo na medida em que está inteiramente em relação a si, Kath’auto, ser que se coloca para além de todo o atributo, o qual teria justamente como efeito qualificá-lo, ou seja, reduzi-lo ao que lhe é comum com outros seres; ser, por conseguinte, perfeitamente nu [...] É nessa revelação que a linguagem, como sistema de signos, somente pode constituir-se

(LEVINAS, 1988LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 60).

Em outras palavras, falar do silêncio com sentido depende originariamente da Revelação do outro e não da Manifestação do Ser.

1.2 O silêncio e a pulsão de morte

Ao lado da crítica ao caráter poético-ontológico do mistério pela valorização do caráter profético-ético da linguagem, há de se ter presente um outro problema de ordem antropológica evocado brevemente pelo filósofo em seu texto, mas que interessa sobremaneira a nossa investigação. Diz respeito ao fato de o pensador judeu alertar para uma outra questão subjacente ao que facilmente passa desapercebida pelos discursos que lidam com o silêncio frente ao Mistério. A saber, frisa o autor que embora associado “ao lugar natural da paz e da harmonia das esferas” (LEVINAS, 2009bLEVINAS, E. Parole et silence: et autres conférences inédites au Collège Philosophique. Paris: Bernard Grasset/IMEC, 2009b., p. 69), o silêncio não deixa de evocar igualmente “as águas paradas, isto é, águas adormecidas nas quais se perpetua o ódio, a resignação e a lassidão” (LEVINAS, 2009bLEVINAS, E. Parole et silence: et autres conférences inédites au Collège Philosophique. Paris: Bernard Grasset/IMEC, 2009b., p. 70). Nesse contexto, o filósofo chama atenção que o silêncio tende também para o lado obscuro e não menos pernicioso da existência concreta. Esse, portanto, não tem necessariamente a ver com a questão ontológica de fundo ou com a face oculta do mistério a se desvendar por meio da irrupção da palavra e da linguagem. Antes, o silêncio aponta para o caráter trágico da existência. Trata-se, assim, de um problema de ordem eminentemente humana. No caso, o silêncio pode remeter a inumanidade do ser humano uma vez que se se o toma como um ser determinado pelo estado [biológico] de natureza, ele pode se encontrar imobilizado e incapacitado de ingressar no âmbito da vida propriamente cultural, simbólica, linguística etc., da humanidade. Por esse motivo, “a humanidade do humano se viria entregue ao ressentimento e à lassidão”, enfim, a mais radical desfiguração devido a solidão e a violência do ser (LEVINAS, 2016LEVINAS, E. Algumas reflexões sobre a filosofia do Hitlerismo. In: DAVIDSON A. I.; LEVINAS, E.; MUSIL, R. Reflexões sobre o nacional socialismo. Belo Horizonte: Âyiné, 2016. p. 45-67., p. 63).

Por sua vez, essa “energia animal” não diz respeito só ao sujeito e sua desumanidade individual, mas ela “comanda o segredo do social, do político, da luta, da perda e da vitória. Vida dos Estados animalmente predeterminadas sem questões morais”. Ora, se se mantém nessa condição, “a política será a priori inscrita nos cromossomas” (LEVINAS, 1982LEVINAS, E. L’au-delà du verset. Lectures et discours talmudiques. Paris: Les Editions de Minuit, 1982., p. 76-77). Logo, a naturalização do humano pelas forças animais diz respeito à vida política embasada na guerra sendo, portanto, portadora de um silêncio que pode ser associado a “ausência do outro” a partir de onde emergem as questões morais fundamentais para a humanidade. Eis que o silêncio presidido pela força animal da política se opõe ao silêncio/escuta do outro. E não apenas isso, essa força é capaz de silenciar o outro fazendo-o vítima de todo tipo de racismo que tem sua origem na exaltação do estado natural (biológico) do homem.

Nessa esteira, pode-se salientar o fato de que não poucas vezes o calar-se dizer respeito, não tanto a uma escolha de um sujeito falante que deliberadamente opta por declinar-se da palavra por uma deferência ao mistério ou, ao contrário, de um silenciar-se proveniente do fenômeno da afasia de tipo traumático-psicológica. Antes, o calar-se ou o silenciar-se se deve a impossibilidade de vencer os obstáculos que mantém a existência submersa nos determinismos da História do qual o ser humano não pode deixar de padecê-los sem, contudo, poder desvencilhar-se deles. Mergulhado, pois, na história como “destino – dos gregos: Moira – o tempo fugidio se revela como irrecuperável a ponto de determinar ou condicionar radicalmente a Liberdade” (LEVINAS, 2016LEVINAS, E. Algumas reflexões sobre a filosofia do Hitlerismo. In: DAVIDSON A. I.; LEVINAS, E.; MUSIL, R. Reflexões sobre o nacional socialismo. Belo Horizonte: Âyiné, 2016. p. 45-67., p. 53). Resta, portanto, ter-se de admitir que a verdade e a novidade do silêncio não vêm à tona em função do caráter causal-explicativo de corte biológico e sequer do caráter psíquico e político da humanidade do ser humano, mas ata-se à dimensão eminentemente antropológico-cultural que faz com que a humanidade possa interromper o curso antropofágico do tempo linear.

Afinal, há de se reconhecer, por um lado, que o silêncio nos remete, paradoxalmente, à impossibilidade de a humanidade livre poder se libertar da História que condiciona a liberdade e, por outro, de o Espírito humano ser capaz de introduzir na história a reparação ou o perdão pela experiência da culpabilidade, de sorte a inaugurar um lugar para o silêncio no âmago de sua própria humanidade vencendo assim a pulsão de morte que dormita no âmago do silêncio quando o ser humano se vê aprisionado radicalmente a sua “condição bio-corporal e biopolítica da qual não pode se desvencilhar senão por uma contração com relação ao seu ser” (LEVINAS, 2016LEVINAS, E. Algumas reflexões sobre a filosofia do Hitlerismo. In: DAVIDSON A. I.; LEVINAS, E.; MUSIL, R. Reflexões sobre o nacional socialismo. Belo Horizonte: Âyiné, 2016. p. 45-67., p. 53).

Portanto, se o problema do silêncio não se distancia do corpo, isso significa que a única maneira de poder reabilitar a experiência do silêncio que não seja mortífera e destruidora como no caso da naturalização do homem, é a de que o ser humano possa, desde o próprio corpo, passar da pulsão de morte ao amor da vida, o que finalmente se dá num primeiro momento pela contração em relação ao mundo, isto é, pelo viver de..., da “fruição das coisas que o mundo lhe oferece ao paladar para saborear” (LEVINAS, 1988LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 146), de sorte a interromper a lógica mortífera da naturalização do corpo por meio do advento da posição, isto é, “da hipóstase de um corpo que não esteja mais simplesmente submetido a força do Elemental” (LEVINAS, 1988LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 96). Somente nessas condições em que a solidão humana vem carregada de uma interioridade a emergir do cultivo de uma “moral dos alimentos” (LEVINAS, 1988LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 102) é que se abre a possibilidade de o silêncio não ser nem se tornar enlouquecedor, sinônimo do barulho ensurdecedor do Ser. Ao contrário, de ser um silêncio fecundo a partir do qual se pode esperar pacientemente a irrupção de outrem, cuja visitação inaugura um sentido ético para o silêncio “graças ao Bem para além do Ser” (LEVINAS, 2016LEVINAS, E. Algumas reflexões sobre a filosofia do Hitlerismo. In: DAVIDSON A. I.; LEVINAS, E.; MUSIL, R. Reflexões sobre o nacional socialismo. Belo Horizonte: Âyiné, 2016. p. 45-67., p. 67).

2 O silêncio vindo de outra margem e suas interpelações teológicas

Em função das considerações anteriores provenientes do pensamento do filósofo, resta-nos deixar defrontarmos com algumas indagações fundamentais em vista de fazer avançar nossa reflexão em torno do problema teológico do silêncio. Num primeiro registo, admitindo-se que na atualidade a teologia não se faça mais à deriva da intriga com a filosofia e a literatura, não seria de se reconhecer que esse vivo contato deve suscitar nela uma apropriação crítica com relação a maneira como se aborda a questão do silêncio, sobretudo, se se tem em mente que enquanto discurso e linguagem a teologia esteja a lidar com o mistério da Revelação de um Deus que se faz carne e, portanto, com o Mistério de um Deus que se inscreve no horizonte do Bem do outro, para além do Ser? E mais. Levando-se em conta que se admita certa proximidade entre teologia, filosofia e literatura na contemporaneidade, não seria de bom tom reconhecer que a teologia seja induzida a se dizer com categorias filosóficas e literárias muito embora tenha de ser avessa à tentativa de se reduzir o mistério/silêncio do Outro/Deus às formas do discurso meramente poético-ontológico sem colocar ênfase em seu caráter profético-escriturístico e/ou ético-metafísico?

Ainda noutra perspectiva, ao focar-se agora no caráter inumano subjacente ao silêncio apontado pelo filósofo em seu escrito, não seria de se interrogar em que sentido a teologia preocupada em exaltar o silêncio a fim de se resguardar o mistério da balbúrdia e do palavreado compulsivo, e não tanto polarizada pela suspeição da filosofia e da literatura contemporâneas, tenha de se mostrar susceptível a um juízo crítico por conta da vida nua ou da existência humana que não poucas vezes se vê instada pelos sentimentos primários a se deixar conduzir pela pulsão de morte? Ou dito de maneira positiva, por conta da valorização do caráter eminentemente carnal da antropologia – versus impessoalidade/imaterial do ser –, não compete à teologia ter de contemplar em sua prática o caráter corporal do ser humano a ponto de se poder reabilitar a dimensão ao mesmo tempo padecente e fruitiva da vida, de sorte que a solidão assuma um caráter humanizante capaz de fazer com que o ser humano “possa viver de esperar a vinda de outrem” (LEVINAS, 1988LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 106) sem que o silêncio deflagre nele a angústia [de ser] de ter de se apressar em antecipar o futuro a fim de preencher as carências e necessidades suscitadas pelo ser/existir?

Como se pode notar, dado a questão do paradoxo que envolve a teologia no que concerne à pretensão de dizer/calar-se diante do mistério e que, necessariamente, exige dela uma matização cuidadosa a respeito das questões evocadas em torno da tensão linguagem/silêncio, isso sugere, em princípio, certo pudor da parte dos discursos uma vez que qualquer resposta imediata e apressada corre o risco de ser leviana e corroborar os impasses da filosofia e literatura contemporâneas. Apesar disso, tendo-se em vista a almejada teologia que se deve praticar no interior do cristianismo, para o qual a encarnação muda tudo, faz-se mister recordar que ao menos se trata de lidar com o duplo registro irredutível que está em jogo quando se pensa o silêncio. A saber, não se pode olvidar da íntima relação entre o teológico e o antropológico que, aliás, são de igual estatura quando se trata de debruçar sobre a questão do silêncio/linguagem remetidos à decifração “daquilo que está no segredo desde a fundação do mundo” (Mt 13,34-35)2 2 Esta e as demais citações bíblicas do corrente texto estão referidas à BÍBLIA do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2002. . Isso, portanto, exigirá de nossa investigação alguns passos ulteriores.

Motivados, pois, pela impostação do problema tal como propugna o filósofo franco-lituano, visa-se esboçar um sentido genuíno do/para o silêncio que permita ultrapassar qualquer aproximação do niilismo subjacente à forma de teologia do cristianismo que descure da crítica aos seus próprios pressupostos ao mesmo tempo em que se abandone o determinismo antropológico que, porventura, esteja na base do silêncio com o qual a teologia deve estar em contínuo confronto a fim de não ser ingênua e vítima dos dogmatismos ou da irreflexão facilmente postos em questão.

2.1 A filosofia da alteridade e a voz do outro

Diante do estado da questão levantado anteriormente, urge reconhecer que o filósofo lituano se apresse em formular e propugnar a sua tese ético-metafísica a respeito do silêncio, a saber, a de que anterior ao silêncio ambíguo do ser, focado na visão do ser que se doa no silêncio, está sempre a ecoar o som, ou melhor, “a voz do outro que vem da outra margem” (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 194). Nesse contexto, a questão da diferença entre o ver e o escutar trata de ser matizada pois, segundo ele, é desse terreno que se pode avançar na abordagem (des)ontologizada do silêncio.

Há com efeito no som – e na consciência compreendida como audição – uma ruptura do mundo sempre acabado da visão e da arte. O som, todo inteiro, é repercussão, clarão, escândalo. Enquanto na visão uma forma esposa o conteúdo e o acalma, o som é como o transbordamento da qualidade sensível por ela mesmo. Escutar verdadeiramente um som é escutar uma palavra. O som puro é verbo [...] A filosofia e a sociologia contemporâneas nos habituaram a subestimar a relação social direta das pessoas que falam e preferir o silêncio ou as relações complexas determinadas pelos quadros da civilização = os costumes, o direito, a cultura

(LEVINAS, 1987LEVINAS, E. Hors Sujet. Paris: Fata Morgana, 1987., p. 219).

Esse outro-humano está continuamente a suscitar uma responsabilidade visceral e a solicitar uma acolhida graças à sua passagem ou visitação de outrem, cujo Rosto fala e interdita o assassínio – e toda forma de saber claro e distinto sobre ele, porquanto o outro é traço do infinito. E a resposta a outrem que vem de alhures se opõe radicalmente à perspectiva que o silêncio assume, não apenas no âmbito do senso comum ou mesmo da ótica da psicologia e da política, mas, sobretudo, no horizonte filosófico-literário do sentido ontológico atribuído à linguagem para a qual a lógica da finitude do ser é interrompida pelo infinito do outro. Eis, pois, que por detrás da questão do silêncio, o filósofo franco-lituano tem em mente enfrentar o embate que se estabelece com a ontologia do Segundo Heidegger. Trata-se de entrar de chofre na problemática do ser enquanto linguagem, antes que ocupar-se da manifestação a partir da qual se dá a compreensão do ser e a nomeação dos entes pelo Dasein, todos eles referidos à clareira do Ser.

Evidente, há de se notar que se se prossegue com a intuição da crítica do filósofo à exaltação do silêncio pela filosofia e literatura contemporâneas, tal como foi enunciada há pouco, será necessário indagar sobre o impacto da mesma sobre o objeto de nossa investigação. Em outras palavras, é mister interrogar se essa suspeita incide sobre a escolha do modo de fazer teologia? É sabido que uma das vertentes da teologia em voga na contemporaneidade tem-se ocupado de se aproximar da filosofia e da literatura via ontologia, seja porque se trata de assimilar a crítica de Heidegger à onto-teologia contra a representação de Deus, seja porque se trata de trilhar os caminhos de uma teologia impactada pela viragem onto-fenomenológico-hermenêutica do pensamento, próxima, portanto, da reabilitação das tradições escriturístico-literárias, antes do que de uma teologia especulativa calcada nas definições e nos conceitos sobre Deus. Em contrapartida, essa viragem parece sugerir a necessidade de ter-se de pensar outramente o silêncio do que tratá-lo desde a ótica da ontologia, por uma inflexão que passe pela ética (altero)lógica e “pela injunção da palavra viva da Revelação e da escritura de outrem a ‘ensinar’ o sentido do silêncio” (LEVINAS, 1987LEVINAS, E. Hors Sujet. Paris: Fata Morgana, 1987., p. 221).

2.2 Da ontologia à linguagem poética

Para dar prosseguimento à reflexão urge fazer uma breve contextualização a respeito da problemática que subjaz à viragem linguística da ontologia de Heidegger a fim de se preparar o terreno para a reabilitação do silêncio que, de fato transcenda a linguagem ontológica naquilo que, segundo Levinas, parece criticável, se comparada ao silêncio sugerido pelo advento de outrem, cujo Rosto é rastro do infinito. Como é sabido, Heidegger em sua obra inacabada do Tempo e Ser ocupou-se de contrapor o silêncio, qual exigência advinda da Ontologia como forma de se dar vazão à escuta e à (ob)-audiência ao Ser, e por antonomásia, de se opor aos discursos katabólicos diretos e ininterruptos do ser advindos da tradição da Metafísica ocidental. Essa tradição, marcada pela tendência ao fonocentrismo impede, terminantemente, de se poder ouvir a voz do Ser que reverbera no mundo. Sendo o Ser irredutível à definição e à nomeação dos entes, presume-se que ele se apresente agora como verbalidade na diferença ontológica ser e ente.

Ao se enfatizar o Ser como dom, faz-se com que o ser emerja em seu Dizer anterior a todos os ditos da linguagem que se fixem na nomeação dos entes, tal como ocorria ainda no contexto de Ser e Tempo. Nesse caso, o Dizer do Ser é da ordem do Nada, isto é, o Dizer remete inexoravelmente ao silêncio do Ser ou ao Ser como silêncio uma vez que ele interdita todo pensamento e linguagem que estejam marcados pela representação e pela tematização do ser. Assim o ser como Dizer, sugere, concomitantemente, o abandono dos discursos derivados da conceptualização focados na quididade do ser. Levando-se, pois, em conta essa ótica inaugurada pelo Ser como Dizer, o silêncio do ser assume a conotação de um saber/linguagem simbólico-ontológica de modo a abandonar o caráter antropológico e/ou estruturalista da linguagem.

Trata-se, pois, da exigência implícita ao Ser de que sendo da ordem da generosidade de ser, não se torne jamais refém de um saber ôntico, a saber, o ser já não se encontra mais submetido a um saber interessado, preocupado e inautêntico de tipo definitório, pois esse tende a reduzir o silêncio do ser à nomeação dos entes no Ser. Ao contrário, no caso de se poder avançar no âmbito da ontologia como linguagem perceber-se-á o fato de a anfibologia do Dizer/Dito ser presidida pelo Dizer. Graças ao paradoxo do ser como Dizer e Silêncio, os inumeráveis Ditos do ser se sincronizam pelo/no Dizer. Desta feita, compete ao Dizer/silêncio ontológico de (sim)-bolizar os ditos, isto é, de reuni-los em torno da temporalidade presente do Ser ou da verbalidade do Dizer no qual todos os ditos se dizem, sem que eles esgotem o fundo insondável da voz/silêncio do ser a dizer neles.

2.3 Entre a verbalidade do ser e a poética linguagem do silêncio

Acrescenta-se à condição eminentemente ontológica da linguagem do ser o fato de que, segundo Heidegger, a linguagem que melhor faça jus ao silêncio [do ser ou do ser como silêncio], seja a poética e, por conseguinte, a literatura, na medida em que a poesia e a prosa tendem a expressar a essância do ser ou de ser como Silêncio. Há de se ter presente que em Tempo e Ser, a poética não diz respeito apenas a um [outro] tipo de linguagem a serviço da voz do ser. Antes, essa se mostra como sendo “a” linguagem originária mesma do Ser, ou seja, a essância do ser se diz como poética se compara aos outros tipos de linguagem tomadas como modalidades do acontecer do ser tais como a linguagem técnica, pragmática, lúdica, ética e metafísica etc., pois “a poesia é produtora de canto – de ressonância e de sonoridade, que são a verbalidade do verbo ou a essência” (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 62).

A propósito disso, há de se ressaltar esse aspecto da ontologia que se conecta intrinsecamente com a questão do Ser como linguagem. A saber, a redescoberta da Humanitas que subjaz a reabilitação do silêncio pela ontologia contemporânea. Por meio dela, o ser em sua condição de dom de ser e de seu dizer originário pode ser escutado e ao mesmo tempo pode ser dito de modo que a existência humana consiste em cuidar, pastorear e dizer-se como palavra fática, a fim de que o ser possa se expressar em linguagem humana bem como de o ser exercer um caráter crítico com relação a toda tentativa de se submeter seu Dizer à violência da linguagem e ao [seu] apagamento pela primazia concedida à linguagem discursiva. Portanto, ao se reabilitar o caráter ontológico da linguagem, Heidegger pudera igualmente inaugurar um outro lugar tanto para humanidade do ser humano (palavra do ser) como para a maneira de como a palavra Deus sai do esquecimento e adentra-se no campo do ser.

Por isso, se Heidegger pode enfatizar incisivamente que o Ser resiste radicalmente à tematização e escapa da reificação, por ser ele verbo e não substantivo, o que se supõe certo silêncio diante de sua doação de sentido graças ao seu próprio Dizer, da mesma forma, urge admitir no contexto da Carta sobre o humanismo a novidade ontológica a respeito de Deus.

Somente a partir da verdade do Ser pode-se pensar a Essência do sagrado. Somente a partir da Essência do sagrado pede-se pensar a Essência da divindade. Somente na luz da Essência da divindade pode-se pensar e dizer o que a palavra Deus pretende significar [...] Ora, essa é a dimensão do sagrado, que, até já como dimensão, permanece inacessível, se a abertura (das Offene) do Ser não se tiver clareado e em sua clareira não estiver próxima do homem. Talvez o que distingue nossa época (dieses Wetalter) é ser-lhe inacessível a dimensão da graça (des Heilen). Talvez seja isso a única desgraça

(HEIDEGGER, 1967HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967., p. 81).

Resta frisar que a teologia [do cristianismo] praticada sob impacto da viragem onto-hermenêutico passa inexoravelmente pelo crivo de um falar de Deus destituído da linguagem metafísica sobre Deus. Como se pode notar no excerto mencionado, o filósofo do Ser pode expressar de maneira acabada como a palavra “Deus” fora retirada da violência da onto-teologia, graças ao retorno ao silêncio do ser como lugar mesmo do falar com sentido a palavra “Deus” pela palavra humana que está a serviço (obediência) do ser pelo fato de “o ser se fazer próximo do homem em seu Dizer” (HEIDEGGER, 1967HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967., p. 81).

Entretanto, apesar de se ter de reconhecer a novidade trazida pela ontologia e de seu alcance tanto em relação à ética como em relação ao problema de Deus, não se pode olvidar que ela se mostre profundamente problemática uma vez que tanto o sentido do agir como o sentido da palavra Deus não se referem originariamente ao problema da Revelação de outrem, indissociável, portanto, da Palavra e do silêncio/ausência graças à proximidade do Rosto. Eis que na ótica da Revelação do Rosto a ética deixa de referir-se à poética do ser para associar-se à profética da responsabilidade radical “de um/único por todos os outros” (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 161). Interpelado pela voz/silêncio do Rosto, Bem para além do ser como vestígio do infinito, a subjetividade exposição e sensibilidade se sente investida do cuidado do Bem do outro até a hipérbole “da substituição e da maternagem como gestação do outro no mesmo” (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 93). E nessa (in)condição, o corpo se faz signo dado a outrem em sacrifício como um Eis-me aqui no acusativo (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 157). É, pois, no âmbito dessa (in)condição de uma subjetividade expulsa de si, num fora de si, isto é, (in)spirada a responder por outrem que o problema “do silêncio de Deus recebe um novo estatuto ético-profético” (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 167). Deus não pode ser ouvido a não ser quando o ser humano tenha se tornado messias do outro. Nesse caso, a questão do apagamento da palavra Deus não se ata ao problema do mal pensar o Ser como preconiza Heidegger. Antes, essa questão diz respeito ao mal pensar o outro. Nessa esteira o autêntico silêncio de Deus está a depender da Revelação do Rosto e do messianismo do outro homem como responsabilidade do dar-se a si mesmo, a outrem pois, como afirma o filósofo lituano:

O Rosto não é um signo que Outrem me dirige, mas sua presença [em uma total nudez]. O rosto Ele é estrangeiro/estranho a toda forma [...]. Ele é como diz o salmista: o estrangeiro sobre a terra. Essa nudez do rosto é desnudamento sem algum ornamento cultural sem forma [...] A existência Kath’auto3 3 Para compreender melhor o significado do termo Kath’auto, vale recorrer a obra Totalidade e Infinito (1988), na qual o filósofo lituano associa o termo ao Rosto do outro. Trata-se de “um ser refratário a toda tipologia, a todo gênero, a toda caracteriologia, a toda classificação, enfim, um ser que não é em relação a mim, mas que está inteiramente em relação a si. Por isso, coloca-se para além de todo atributo, o qual teria justamente como efeito qualificá-lo, ou seja, reduzi-lo ao que lhe é comum com outros seres, por conseguinte, perfeitamente nu” (LEVINAS, 1988, p. 60). é no mundo uma miséria [...] Reconhecer outrem, é reconhecer uma fome. Reconhecer outrem é dar. Mas se trata de um dar ao mestre, ao senhor, àquele que se aborda como um “vós” e que me fala do alto. No rosto a humildade se une à altura. E por conta disso se anuncia a dimensão ética da significação

(LEVINAS, 2009bLEVINAS, E. Parole et silence: et autres conférences inédites au Collège Philosophique. Paris: Bernard Grasset/IMEC, 2009b., p. 372-373).

2.4 Do discurso ontológico do silêncio ao discurso pós-metafísico de Deus

Uma vez apresentado o arcabouço do pensamento ontológico no qual o silêncio assume um caráter eminentemente linguístico-existencial, é possível reposicionar a questão do silêncio desde a perspectiva do pensamento ético-metafísico graças ao Bem para além do Ser. Ora, desde essa contextualização pode-se compreender que não é à toa que a crítica subjacente à exaltação do silêncio trazido à baila pelo filósofo lituano tenha precisamente como alvo e referência a ontologia contemporânea. Afinal, ela tem impactado todos os campos do saber na contemporaneidade, a ponto de exercer forte influência sobre a maneira de como a teologia do cristianismo pensa o silêncio, sobretudo se se tem na mente que com a viragem ontológico-hermenêutica do pensamento a teologia em várias ocasiões e por meio de alguns autores atuais tenha ousado reabilitar a poética e a literatura na abordagem do problema de Deus.

Entretanto, apesar de reconhecer o mérito da ontologia em reabilitar o silêncio em chave linguístico-ontológica contra os discursos coerentes da metafísica, resta insanável o problema de caráter antropo-teológico quando se coloca toda ênfase no discurso de Deus apoiado na ontologia da linguagem. Afinal, segundo o filósofo lituano, o ser como verbalidade não deixa de ser identificado ao verbo: haver, caso se confirme o interesse da ontologia de não permitir que o ser seja novamente reduzido à condição de substantivo. Isso, porém, não deixa de se poder associar o Ser ao um Há, isto é, a um ser anônimo e impessoal. Trata-se mesmo de um ser indiferente aos existentes de modo que o Há é portador de um som qual “um incessante murmúrio que já nada pode parar” (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 277) a prescindir da voz dos existentes. E, paradoxalmente, esse “barulho horrível do ser” (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 177) emerge como um som ensurdecedor em seu Silêncio, qual o som que se constata ao se aproximar o ouvido de uma concha de mar.

Em contrapartida, o Bem para além do Ser, cujo acesso é dado pela voz de um Rosto põe radicalmente em questão o barulho perturbador do ser porque o Outro se revela como único e, como tal, sua Revelação põe em questão a impessoalidade do ser por se tratar da palavra de um Rosto de carne que na forma “de um imperativo proclama o interdito: Não Matarás! e/ou que de forma positiva conclama seu interlocutor ao: Ama-me!” (LEVINAS, 2009aLEVINAS, E. Carnets de captivité et autres inédits. Paris: Bernard Grasset/IMEC, 2009a. v. 1. (Collection Oeuvres)., p. 374) pois, o Tu não matarás é o sentido do discurso

A linguagem é uma revelação por excelência. O Rosto fala. A manifestação do Kath’auto – onde o ser nos concerne sem se roubar e sem se trair, consiste para ele, não absolutamente em ser desvelado, não absolutamente a se descobrir ao olhar que o tomaria por tema de interpretação e que teria uma posição absoluta dominando o objeto. A manifestação do Kath’auto consiste para o ser em se dizer a nós, independentemente de toda posição que teríamos tomados a seu respeito, o ser não se coloca na luz de um outro, mas se apresenta a si mesmo na manisfestação que deve somente anunciá-lo, e é presente como dirigindo essa manifestação mesma presente antes da manifestação que somente o manifesta

(LEVINAS, 2009bLEVINAS, E. Parole et silence: et autres conférences inédites au Collège Philosophique. Paris: Bernard Grasset/IMEC, 2009b., p. 369).

Em vista dessa Revelação, trata-se de admitir que no encontro com outrem se está diante de um chamamento do infinito, cujo rastro se faz sentir no Rosto do outro e cuja palavra é viva. Graças a isso, contrário, portanto, ao enfoque ontológico do silêncio trata-se de ir para aquém e além do Dizer do ser lá onde reverbera a voz pessoal do outro a inaugurar a verdadeira humanidade do ser humano. Se, portanto, na escuta do ser se está diante do impessoal (haver) e do ser que se manifesta através de um silêncio enlouquecedor, na escuta de outro, não apenas evita-se cair nas malhas anônimas do ser, mas, positivamente, o homem se torna capaz do Bem ao outro.

Eis que na própria encarnação do verbo/palavra do outro homem a quem se responde em bondade e responsabilidade, reverbera o silêncio da passagem de um Deus pessoal embora sendo da ordem de um Passado (i)memorial visto sempre já de costas. Isso exige, portanto, que o acesso a Deus se dê, antes por uma linguagem (para)bólica4 4 Interessa-nos evocar a etimologia do termo para remetê-lo imediatamente ao efeito ou a função que o parabólico exerce no interior da linguagem. Formada pelo prefixo para do grego – estar ao lado –, mais ballein que significa jogar ou atirar, o termo parece enfatizar que uma determinada coisa escondida só adquire sentido se for colocada ao lado de uma outra, de sorte que dessa intriga emerja o sentido. No contexto da filosofia da alteridade, o caráter parabólico subjacente ao discurso aponta para o fato de que a significação ocorra graças ao contato e à proximidade de outro como linguagem antes mesmo de se referir a um texto. Nesse caso, a aproximação do outro como tal, inaugura uma autêntica revelação de corte ético-metafísica. Isso significa que a Palavra interdita a compreensão ao mesmo tempo em que libera o ouvinte à adesão a outrem segundo a responsabilidade que se deve ao infinito do Rosto que passa. É por todos esses motivos que nos parece que o discurso parabólico se mostre mais original para a reabilitação do ineditismo da Revelação da teologia do cristianismo que os discursos diretos, de corte teoréticos ou mesmo do que os discursos indiretos de corte diacrítico-poéticos a respeito do Segredo e do silêncio que se deve a ele, em nome do Deus, Logos que se faz carne. de cunho ético-profético do que por uma linguagem (sim)bólica de corte ontológico-poética

A palavra profética responde essencialmente à epifania do rosto, duplica todo o discurso, não como discurso sobre temas morais, mas como momento irredutível do discurso suscitado essencialmente pela revelação do rosto enquanto ele atesta a presença do terceiro, de toda a humanidade, nos olhos que me observam

(LEVINAS, 1988LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988., p.191).

Haja vista que o filósofo lituano faz questão de matizar a diferença entre uma linguagem que advém da relação com outrem como Revelação do Rosto, cujo signo não remete a outro signo ou à significação cultural, de uma linguagem diacrítica cujos signos estão referidos entre si na língua e, consequentemente, à cultura em forma de poesia. Aliás, se é que se pode dizer de estilo literário para caracterizar a Revelação de outrem, urge associá-lo à prosa por seu caráter linguístico-crítico, antes que à poesia que é sedutora e, porque não dizer, enganadora por ser da ordem do ser impessoal.

A linguagem do signo que me transmite o apelo de Outrem não vem do signo enquanto ele significa as significações, mas enquanto nele ressoa a linguagem pela qual Outrem se apresenta como Outrem [...] [Contra isso], eis que todas as formas da existência humana – a arte, política, ciência e a própria linguagem podem se interpretar como modalidades da cultura [..] O signo cultural é entregue, de qualquer forma, na ausência daquele que entrega o signo. Essa ausência não é necessariamente um distanciamento advindo daquele que deixou um traço equívoco de sua passagem. Antes, essa ausência encontra-se no caráter de alguma maneira enigmática e consequentemente equívoca de todo signo que corresponde precisamente ao que Saussure e Merleau-Ponty denominam de caráter diacrítico. O signo é deixado à sua vida própria; ele ressoa sua própria sonoridade, ele é poesia. Desde então todo signo e toda arte são plásticas – e de alguma forma cifradas [...]. Ora a linguagem é uma maneira de significar de tal maneira que aquele que significa está presente ele mesmo nessa manifestação para decifrar a todo instante os signos que ele entrega, e para quebrar seu próprio sistema e seu estilo próprio. Ela é essencialmente ruptura do ritmo, ela é essencialmente prosa. A prosa é uma maneira de significar na qual aquele que entrega o signo não se ausenta desse signo e perturba seu ritmo sedutor, rompe e interrompe sua graciosa continuidade. A prosa é crítica [...] Dito de maneira clara, a linguagem decifra e não está para ser decifrada. Ela é a forma sob a qual se produz a manifestação do ser que não está imediatamente escondido por sua própria aparição [que se manifesta kath’auto]. A linguagem é uma revelação por excelência

(LEVINAS, 2009aLEVINAS, E. Carnets de captivité et autres inédits. Paris: Bernard Grasset/IMEC, 2009a. v. 1. (Collection Oeuvres)., p. 367-368)

Outrossim, enquanto prosa, o discurso deve ser capaz de fazer jus à interpelação de Outrem indissociável do cuidado da fome do outro humano. Tudo isso em nome da (dia)cronia inaugurada pelo tempo da visitação/revelação do outro, jamais sincronizável por um discurso de tipo ontológico (sim)bólico. Enfim, se a teologia quiser de fato dizer o silêncio outramente que o ser, terá que deslocar-se do impessoal do ser ao infinito do outro, Bem para além do Ser.

A linguagem longe de supor universalidade e generalidade, torna-as apenas possíveis. A linguagem supõe interlocutores, uma pluralidade. O seu comércio não é a representação de um pelo outro, nem uma participação na universalidade, no plano comum da linguagem. O seu comércio, di-lo-emos desde já, é ético [...] A relação da linguagem supõe a transcendência, a separação radical, a estranheza dos interlocutores, a revelação do Outro a mim

(LEVINAS, 1988LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 60)

Nesse caso, a exaltação do silêncio com sentido só se justifica como não-violento ao Segredo, se ela passar da ênfase na produção de uma filosofia e literatura poéticas para uma filosofia e literatura lidas em chave parabólico-profética, isto é, se ela se deixar atravessar pelo “apelo ético que vem da Revelação do Bem e que solicita o cuidado do outro como estrangeiro” (LEVINAS, 1982LEVINAS, E. L’au-delà du verset. Lectures et discours talmudiques. Paris: Les Editions de Minuit, 1982., p. 78). Ora, o impacto dessa visão parabólico-profético sobre o cristianismo induz a pensar que a teologia cristã não poderá se isolar do caráter antropológico dos discursos que abordam o silêncio caso ela de fato não queira cair nas malhas de um discurso de Deus que, ao invés de partir da Revelação do Bem para além do Ser, se veja seduzida pela questão da Manifestação ou do desvelamento do Ser. Trata-se, portanto, de mostrar a seguir, como o discurso parabólico, qual um “discurso interrompido que não (sin)croniza o saber na ontologia” (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 183), permite salvaguardar a novidade da Revelação de modo a situar o Mistério e o silêncio de Deus para além do Ser.

3 O discurso parabólico e a questão do silêncio

Tomemos aqui como pretexto para tratar a questão do silêncio/segredo os textos da literatura bíblica, não tanto do ponto de vista puramente teológico, isto é, preocupados em nos fixar sobre a questão de Deus sem dúvida evidente e subjacente ao texto, mas na ótica eminentemente antropo-teológica. Trata-se de nos ocuparmos da lógica do discurso do humano que foge aos padrões do discurso katabólico ou mesmo da ordem do simbólico5 5 Para além do caráter equívoco do termo simbólico, interessa-nos, em princípio, ressaltar mais sua função do que propriamente sua definição. Portanto, o ponto de vista do espaço trata-se de uma realidade que visa aproximar ou rejuntar duas ou mais partes que estavam distantes e, do ponto de vista do tempo, diz respeito àquilo que sincroniza o que estava ausente ou retirado de modo a torná-lo presente ou atual. Nesse sentido, o simbólico atravessa vasta gama de objetos, pensamentos, palavras, leituras e textos. Desde essa ótica compreende-se há de recordar-se que a linguagem simbólica procure fornecer imagens aos conceitos de sorte que, diferente da linguagem katabólica, mais lhe interesse trazer à tona os sentimentos, os afetos dos acontecimentos que as coisas estão a provocar, do que se deter na definição da coisa em si. na maneira de referir-se ao silêncio. Antes, a escritura bíblica em questão permite uma abordagem parabólica da condição humana, sobretudo, por focar-se na questão do segredo [do humano] em função da relação com a Revelação e o silêncio de outrem [de Deus]. Nessa mesma esteira, é possível dirimir os desafios com os quais a humanidade se depara diante da possibilidade de o silêncio encontrar sua justificativa última na violência proveniente do estado do seu aprisionamento ao seu corpo quando desprovido da relação e da palavra que vem da boca de outrem.

3.1 A condição humana parabólica

Tendo-se, pois, em vista esse esclarecimento, parece sugestivo aproximar-se da escritura paulina de Colossenses 3,3 para ater-se à maneira explicitamente enigmática com que ele se ocupa da condição humana. Referindo-se à nova condição do ser humano em Cristo, desde a nova criação referida ao batismo, é possível dizer como Paulo: “Se ressuscitastes com Cristo aspirai às coisas do alto, não às terrenas. Pois morrestes, e vossa vida está escondida em Cristo com Deus. E mais adiante, no versículo 9, o autor salienta: “porque vos despojastes da velha condição com suas práticas e vos revestistes da nova, que pelo conhecimento vai se renovando à imagem do seu Criador [...] revesti-vos de compaixão, entranhável, amabilidade, humildade, modéstia, paciência”. O que interessa salientar em contato com a literalidade do texto diz respeito a duas expressões eloquentes que aparecem no seio da escritura, a saber, a vida humana escondida em Cristo e o conhecimento humano que como uma sabedoria crística se vai renovando à imagem do seu Criador.

Reafirmando-se aqui o fato de que não haja interesse em colocar ênfase no caráter meramente teológico sem que esse esteja atado imediatamente a dimensão antropológica da teologia, trata-se de recordar que o segredo da condição humana mantém-se escondido [em Cristo com Deus], de sorte que o conhecimento do humano não pode se dar de maneira mundana, isto é, de maneira reificante ou de maneira direta por via de uma representação ou de um conceito. Isso vem reforçado pela constatação fundamental de que a nova humanidade [em cristo] fora despojada da velha condição e das práticas vinculadas àquela, graças à nova condição crística a partir da qual o conhecimento se renova segundo à imagem do Criador.

Ora, o que chama a atenção, do ponto de vista de uma antropo-teológica, é que a condição humana se mostre aí (in)condicionalmente modificada, alterada, pela relação com outrem, seja ele o Cristo, seja ele o outro homem com quem se está em contato ou em proximidade como imagem do Messias. O outro se revela como aquele que vem liberar o ser humano seja do silêncio obsequioso de onde pode surgir a violência, seja da sedução de se tentar tematizar o segredo ou o enigma de outrem que subjaz a essa nova condição humana dada pela relação com Cristo.

Em outras palavras, essa nova situação se deve ao fato de que o outro se apresente, nesse sentido, como um messias a liberar o ser humano da pulsão de morte, tal como ocorre quando entregue ao conhecimento mundano de si, do próprio mundo e de Deus. Desse modo ele pode se entregar confiante a um conhecimento (des)mundanizado que procede de uma outra lógica que, no caso, passa pelo crivo da verticalidade e da assimetria inauguradas pela altura do outro em relação à altura daquele eu que se encontra em relação com ele. Essa nova maneira de conhecer coloca-se frontalmente contrária à maneira da simetria e da horizontalidade da relação de um frente a frente de dois indivíduos. Nesse sentido, a revelação do outro/messias introduz no conhecimento humano uma espécie de declinação diante do mistério [do outro] a ponto de o sujeito poder silenciar-se diante do respectivo Segredo de outrem. E mais, o messias mantém-se escondido com o ser humano ao qual ele veio em socorro a fim de liberá-lo do conhecimento direto, imediato ou katabólico a respeito do Mistério.

Percebe-se, nesse caso, que o advento (revelação) do outro como messias estabelece uma proximidade, qual relação lado a lado do humano com outrem, de modo a inaugurar um conhecimento de tipo (para)bólico do Segredo no qual o próprio ser humano encontra-se escondido no seio do Mistério. Graças a isso o conhecimento humano, seguindo o texto Paulino, “se renova segundo à imagem do Criador”. Ora, a palavra Criador, evoca a condição daquele que se encontra fora, que está separado da criatura. Há, pois, de se considerar que nesse caso o Criador está para aquém da arché de modo a manter consigo o segredo da criação desde a fundação do mundo de sorte que, da parte da condição humana, o conhecimento progride segundo à imagem do Criador, isto é, progride às apalpadelas da Revelação do Deus de Jesus Cristo que irrompe como aquele que é anterior ao conhecido e ao sabido da parte do ser humano com quem estabelece uma relação. Por isso Paulo pode introduzir no contexto desse texto a palavra eleição para referir-se à condição humana, e acrescentar: “Portanto, como eleitos de Deus, consagrados e amados, revesti-vos de compaixão” (Col 3,12). Compreende-se, portanto, que a Eleição do ser humano pelo Criador se associe ao amor do Criador de modo que a condição humana se funda no dom, isto é, no dar-se do amado que ao amar a criatura a faz progredir no conhecimento prático do mistério segundo a (com)paixão.

3.2 Uma leitura intertextual do silêncio e a teologia parabólica

É de se notar que no contexto da liturgia especificamente dominical na qual se celebra o memorial da Páscoa do Senhor, esse texto de Paulo (Col 3,12) adquira a força de um evento ao ser associado ao evangelho de Lucas 12,21. E graças à celebração na qual a leitura intertextual se torna palavra viva, tem-se então acesso ao sentido eminentemente parabólico do evangelho proclamado nessa ocasião. Ao se enfatizar aqui o caráter vivo do memorial no qual a palavra se faz carne, é possível perceber a fecundidade do silêncio do Mistério que o acompanha. Além disso, é de se realçar, que o contexto mais amplo do evangelho trata da história de um homem que se aproxima de Jesus para lhe pedir que seu irmão reparta com ele sua herança. E para além da via da explicação ou da argumentação, isto é, do recurso de um discurso direto que Jesus poderia ter lançado mão a fim de explicar o sentido da pobreza e o demérito da riqueza, o fato instigante é que ele introduza no âmbito da conversação uma parábola. Desse modo o discurso parabólico interrompe a linguagem de corte katabólico porque o Segredo não pode ser contemplado por nenhuma definição. Afinal, nenhuma descrição dá conta do mistério que o envolve.

Em suma, ele supõe um silêncio que não pode ser acessado por nenhum discurso coerente, lógico, definitório e definitivo. Antes pelo contrário, Jesus, o outro, o messias que libera [todo] homem do discurso direto, passa a narrar a situação de um homem do campo que colhe uma enorme safra. A narrativa como sempre insiste na hipérbole ou no excesso a respeito do que se pretende narrar, a saber, o exagero da (pre)-ocupação com o acúmulo dos bens que faz do colhedor alguém refém desse acúmulo. E o narrador acrescenta, para terminar a palavra: loucura... Trata-se mesmo da loucura que a riqueza provoca no colhedor de modo a se tornar rico/acumulador de si mesmo em contraposição àquele que se torna rico em/para deus.

Evidente, nesse caso preciso, o narrador da parábola se coloca “ao lado de” o seu ouvinte, de sorte que é a própria história que medeia a conversação. Daí que o discurso que se configura na relação entre o plantador e Jesus é (in)direto, isto é, da ordem do Bem para além do Ser. Por isso ele também excede a esfera de um discurso de tipo (sim)bólico de corte ontológico que não dá conta de seu Segredo porque, afinal, a atenção ao Segredo se volta para a parábola que agora identifica-se ao próprio narrador. Com isso, tanto a maneira e a forma do discurso, quanto o conteúdo do discurso, são indiretos. Ora, a forma do discurso é (para)bólico e não (kata)bólico e sequer de cunho (sim)bólico. Não se opta por explicar de maneira direta nem de maneira sincrônica o sentido, isto é, não se trata de explicitar em que consiste a verdadeira riqueza de um homem, senão mantendo-se vivo um silêncio. E além disso, o conteúdo também é parabólico porque o próprio Jesus em sua vida concreta se identifica com a parábola que ele narra. Afinal, ele pode ser identificado com aquele que tem plantado em excesso não para si, mas para o outro (deus) de forma que [sua] preocupação com a colheita não é para si, mas de colher para o outro (o dono da messe) que é o Pai.

Em síntese, o segredo da existência humana aparece triplamente contemplado no âmbito da (pará)bola. Primeiro, porque não é suficiente ao ser humano reter-se em um saber direto como aquele do conhecimento imediato/binário, objetivo das coisas e de seu próprio mistério escondido com Deus. Segundo, porque o saber a respeito do segredo do humano é dado pelo outro, que como messias, vem revelar e incarnar o modo parabólico de se viver no mundo sem ser do mundo, o que um discurso meramente simbólico tomado no sentido ontológico, também não dá conta do Segredo por conta do caráter impessoal do ser que está no fundo de sua poética. E terceiro, porque a violência humana é avessa ao Mistério que se mantém no escondido de nossa humanidade desde a fundação do mundo. Sem esse Mistério torna-se impossível libertar-se do ressentimento e da lassidão, uma vez que somente a palavra, Revelação [do outro] que vem do fundo do silêncio, pode revelar o autêntico sentido da humanidade, a saber, a de que ela é destinada a viver de desejar outrem e não de se entregar à pulsão de morte que a faz mergulhar na loucura da solidão de ser rico de si mesmo sem outrem ou de uma política de acumular bens e excluir a possibilidade de compartilhá-los com os outros.

3.3 A revelação parabólica do silêncio

E para concluir, é possível perceber o elo intratextual que se estabelece entre as escrituras a respeito do segredo da condição humana e de seu discurso mais apropriado. Trata-se aqui de evidenciar que Colossenses e Lucas tocam na questão crucial da humanidade assim como oferecem a chave hermenêutica para adentrar-se no mistério do homem e do mundo que não ao modo do discurso katabólico ou mesmo ao modo de um discurso simbólico para o qual a categoria do tempo leva em conta a necessidade de se ter de sincronizar os Ditos outrora isolados, em nome da aproximação que subjaz ao Dizer do Ser enquanto verbo: Haver. Eis, que, em contrapartida, a ênfase no tempo como instante da duração da eternidade do amor; tempo kairológico do Bem que corta, separa e que atravessa o tempo de cima abaixo a ponto de inaugurar a cada instante o presente do amor, somente um discurso de corte parabólico é capaz de contemplar. É, pois, na própria imediação da Revelação do outro (messias) que conta/narra a parábola – sendo que o narrador, o Cristo, é ele mesmo identificado como a própria parábola encarnada, viva-Revelação, que o interlocutor/ouvinte poderá experimentar visceralmente o sabor do saber do amor que, por sua vez apresenta duas faces.

A primeira face mais crítica da Parábola como revelação, de fato revela o pecado como idolatria, isto é, a idolatria de transformar uma coisa em deus. Ela, a Parábola-Revelação, sugere a conversão. Trata-se daquela em que o interlocutor sente, experimenta e/ou percebe-se (sensação) graças à presença, lado a lado do narrador, que ele mesmo é um rico/ganancioso até nas mínimas coisas. De que ele vive do apego, do acúmulo de bens para si sendo que eles lhe são dados do alto para serem destinados aos outros. E trata-se aqui não apenas de bens materiais, que aliás, na esteira de uma linguagem coerente e de um discurso direto do texto pareceria sugerir. Antes trata-se de todo tipo de bens que não se destinam ao Bem do outro e, portanto, como maneira de se viver mundanamente, isto é, de se viver focado no domínio, na posse, na espoliação movida por uma política da força e da apropriação dos dons alheios ao considerá-los como se fossem coisas/objetos, quando na verdade são dados [dons] tanto para a fruição como para a doação a outrem. Nesse caso, ele se percebe como um idólatra como afirma Paulo em Colossenses quando exorta os cristãos: “mortificai tudo o que em vós pertence à terra [...] que é uma espécie de idolatria” (Col 3,5).

A segunda face, certamente, a mais positiva da Revelação do mistério, diz respeito ao fato de que o ser humano sente, experimenta visceralmente de estar lado a lado – não diante de..., ou frente a frente – com a parábola e mais, de encontrar-se lado a lado com o narrador que a conta. Nesse caso, sua vida, naquele mesmo instante da proclamação da parábola da qual ele é todo-ouvido, se vê marcada pela riqueza de Deus a quem se voltam todos os dons como bens dados para sua alegria. Ele se percebe não como possuidor, mas como receptor do amante do amado, de sorte que nesse mesmo instante da duração da eternidade do amor – da ordem da sensação antes que da percepção – vivido e experimentado no momento da proclamação da parábola, tanto o ouvinte como o narrador se veem envolvidos na (in)esperada Revelação/palavra/silêncio que interrompe toda lógica do pensar e do saber marcados pelo interesse e pelo afã do ser que não se deixa orientar pelo Bem para além do Ser. Urge recordar com o filósofo, que a lógica do bem subverte a ordem do ser pois,

O Bem investe a liberdade – ele ama-me antes que eu o tenha amado. Por esta anterioridade – o amor é amor. O Bem não é o termo de uma necessidade susceptível de satisfação – ele não é o termo de uma necessidade erótica, de uma relação com o Sedutor que se assemelha, ao ponto de confundir-se, com o Bem, que não é o seu outro, mas o seu imitador. O Bem, como o Infinito não tem outro; não porque seja o todo, mas porque é o Bem, e porque nada escapa à sua bondade

(LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., nota 8. p. 32-22).

Há de se acrescentar que, da parte do ouvinte, esse se torna ardentemente desejoso de dar o pão de sua boca, de sua colheita a outrem, e não apenas isso, “em dar-se, oferecer-se a outrem” (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 76), como sinal do cumprimento da parábola viva que é o próprio Jesus doador de todos os dons do Pai sem reter a própria vida a si. Por isso, é que por meio da leitura intertextual do evangelho com a palavra paulina é possível compreender por dentro, o cumprimento, a realização, enfim, a Revelação como sensação de que “a vossa vida está escondida em Cristo com Deus” de modo a se poder sentir reverberar em seu próprio corpo as palavras complementares de que “como eleitos de Deus, consagrados e amados, revesti-vos de compaixão, suportai-vos mutuamente, perdoai-vos, se alguém tem queixa do outro, como o Senhor vos perdoou, fazei assim também vós. E acima de tudo, o amor, que é o laço da perfeição” (Col 3,12).

Em suma, a duração do instante da Revelação como sensação é vivida como eternidade. Trata-se de vivê-la no ato mesmo da experiência parabólica do encontro com outro como uma experiência indireta do amor. E o discurso do amor nesse caso, é da ordem de uma sabedoria do amor embasada na Revelação do amor. Assim sendo, ela diz respeito a um discurso (para)bólico porque a experiência do amor se identifica com a experiência em Cristo, isto é, uma experiência de viver em comunhão com a parábola de Deus feito carne em Jesus, que de rico se fez pobre a fim de enriquecer a humanidade com sua graça. Essa parábola que se cumpre na própria carne do Filho, se mantém viva e enigmaticamente presente e ausente por meio de seu Espírito. Nesse caso, compete ao Espírito completar na humanidade o mistério da encarnação, a fim de que essa possa revelar ao mundo o amor do Filho como modo de responder ao Pai que ama infinitamente.

Considerações finais

À guisa de conclusão, urge enfatizar, ainda que de maneira provisória e inacabada, que a descolonização almejada para a linguagem teológica remete o leitor para fora das formas de discursos de tipo katabólico que tenham a pretensão de dar acesso direto e imediato ao Segredo por meio dos conceitos, pois nesse âmbito, expurga-se facilmente o silêncio de seu horizonte, movido pelo afã incontível do saber que resvala na idolatria da Razão a respeito de Deus. Da mesma maneira, trata-se de dar um passo para além dos discursos simbólicos calcados na poética maneira de o Ser se dizer em ditos, em sua impessoalidade no mundo. Afinal, nessa esteira a poética implícita à filosofia e à literatura contemporâneas não permitem tomar distância daquele silêncio horrível e enlouquecedor do ser anônimo a ponto de o Segredo e o silêncio se manterem sob a égide de um mundo asséptico, indolor e indiferente à voz do outro. Seduzidos pelas belas formas dos discursos simbólicos de corte ontológico, há que se notar que os poetas enquanto subjetividades ao serviço do ser acabam neutralizadas de modo a se tornarem sujeitos insensíveis e apáticos, tanto em relação à fruição/fome como ao padecimento/alegria de um Rosto.

Nessa esfera, dizer a palavra Deus com sentido dispensa facilmente a carnalidade do sujeito uma vez que a Poética linguagem do ser se considera por si só capaz de tirar a palavra Deus do esquecimento da ontoteologia. O Silêncio de Deus adquire sua positividade muito mais em função da manutenção do segredo do Ser como Nada do que propriamente da palavra ética do ser humano dirigida a outrem, traço do infinito de onde o Passado imemorial está a se significar a si mesmo na palavra do ser humano encarregado de cuidar de outrem.

Em suma, a fim de se abandonar o paradoxo insuperável dos discursos teoréticos e/ou ontológicos a respeito do mistério e de seu silêncio, urge aventurar-se no labor de uma teologia do cristianismo que passe pelo crivo das formas parabólicas e, porque não dizer, das formas hiperbólicas da prosa que somente a parábola de outrem confere ao discurso de Deus e de seu silêncio. Essas remetem inexoravelmente ao caráter ético-metafísico da escuta de Deus no silêncio dos rostos humanos que estão a demandar “um sujeito que já não é susceptível de generalização, não é um sujeito em geral” (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 35), mas uma responsabilidade radical de um sujeito/nome feito carne: “expiação, substituição e maternidade para-outro” (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 35). Em última instância, a encarnação do Verbo feito carne em cada sujeito que fala em nome de outrem – profeta – supõe ter-se de guardar, esconder e proteger, em seu próprio corpo, aquele que ainda não tem voz nem pode falar e sequer ser escutado num mundo feito do anonimato do Ser. Trata-se, assim, de pôr em evidência a tessitura de uma teologia [do cristianismo] cujo pensamento gire em torno do Bem para além do ser e que, em certo sentido, se constitua como uma teologia pós-hermenêutica embora sendo da ordem de uma prosa de caráter ético-metafísica. Afinal, ela não pode perder de vista a elevação, o abaixamento, enfim, a separação que mantém a oscilação entre a chegada e a partida que somente outrem pode instaurar. A pressuposta Revelação se dá na aproximação, no lado a lado, na forma de parábase6 6 Cabe ressaltar que no contexto da comédia grega, a parábase é um ponto da peça em que todos os atores saem de cena e o coro é deixado para se dirigir diretamente ao público. Nesse sentido, quando aludimos em nosso texto à parábase temos em vista enfatizar que é próprio da parábola nos colocar no lado a lado com o narrador de sorte que num dado momento o leitor tenha que se ver com a ausência do narrador, inclusive, com seu silêncio, a fim de que o leitor possa dar-se conta que a Revelação é paradoxalmente constituída dessa ambivalência da presença e da ausência em relação àquele que se revela. , graças à visitação de um rosto que se faz parábola do “reino de um Deus não-tematizável” (LEVINAS, 2011LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011., p. 73) em meio a um mundo inumano e avesso à hospitalidade de outrem. Nisso consiste, precisamente, a autêntica descolonização esperada da linguagem teológica uma vez que ela deve contar com o fato de que a “Revelação do outro” (LEVINAS, 1988LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 60) dê origem a um discurso da experiência de alguma coisa de absolutamente estranho, e que, portanto, a teologia ouse enveredar pelo caminho de um conhecimento puro próprio de um traumatismo de espanto.

  • 1
    Recordar que o prefixo Kata do grego significa um movimento “para baixo” ou evoca a forma que pode ser praticada para se desenvolver habilidades particulares por parte daquele que conhece. Da mesma forma, aparece associado à mentalidade baseada no domínio das coisas vistas (de cima para baixo) acompanhada do poder ou da postura rigorosa de se tentar desvelar aquilo que, em princípio, lhe parecia enigmático e/ou desconhecido. Acrescenta-se, pois, à linguagem katabólica a preocupação com a enunciação rigorosa sobre o que se torna conhecido ou reconhecido. Com isso procura-se acentuar a performance da parte de quem conhece/fala sobre as coisas que outrora se encontravam escondidas, no segredo. Eis que em função dessas considerações linguísticas vale recordar que o substantivo bolé, do verbo grego ballein significa a ação de se lançar, de se atirar “sobre” algo ainda desconhecido como no caso do Mistério [de outrem]. Logo, a linguagem katabólica se associa a um esforço de discursar sobre as coisas a fim de dominar pela força do conhecimento e da linguagem teorético-enunciativa, algo que ainda está oculto ou que se encontra imerso no silêncio das coisas escondidas.
  • 2
    Esta e as demais citações bíblicas do corrente texto estão referidas à BÍBLIA do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2002BÍBLIA do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2002..
  • 3
    Para compreender melhor o significado do termo Kath’auto, vale recorrer a obra Totalidade e Infinito (1988), na qual o filósofo lituano associa o termo ao Rosto do outro. Trata-se de “um ser refratário a toda tipologia, a todo gênero, a toda caracteriologia, a toda classificação, enfim, um ser que não é em relação a mim, mas que está inteiramente em relação a si. Por isso, coloca-se para além de todo atributo, o qual teria justamente como efeito qualificá-lo, ou seja, reduzi-lo ao que lhe é comum com outros seres, por conseguinte, perfeitamente nu” (LEVINAS, 1988LEVINAS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 60).
  • 4
    Interessa-nos evocar a etimologia do termo para remetê-lo imediatamente ao efeito ou a função que o parabólico exerce no interior da linguagem. Formada pelo prefixo para do grego – estar ao lado –, mais ballein que significa jogar ou atirar, o termo parece enfatizar que uma determinada coisa escondida só adquire sentido se for colocada ao lado de uma outra, de sorte que dessa intriga emerja o sentido. No contexto da filosofia da alteridade, o caráter parabólico subjacente ao discurso aponta para o fato de que a significação ocorra graças ao contato e à proximidade de outro como linguagem antes mesmo de se referir a um texto. Nesse caso, a aproximação do outro como tal, inaugura uma autêntica revelação de corte ético-metafísica. Isso significa que a Palavra interdita a compreensão ao mesmo tempo em que libera o ouvinte à adesão a outrem segundo a responsabilidade que se deve ao infinito do Rosto que passa. É por todos esses motivos que nos parece que o discurso parabólico se mostre mais original para a reabilitação do ineditismo da Revelação da teologia do cristianismo que os discursos diretos, de corte teoréticos ou mesmo do que os discursos indiretos de corte diacrítico-poéticos a respeito do Segredo e do silêncio que se deve a ele, em nome do Deus, Logos que se faz carne.
  • 5
    Para além do caráter equívoco do termo simbólico, interessa-nos, em princípio, ressaltar mais sua função do que propriamente sua definição. Portanto, o ponto de vista do espaço trata-se de uma realidade que visa aproximar ou rejuntar duas ou mais partes que estavam distantes e, do ponto de vista do tempo, diz respeito àquilo que sincroniza o que estava ausente ou retirado de modo a torná-lo presente ou atual. Nesse sentido, o simbólico atravessa vasta gama de objetos, pensamentos, palavras, leituras e textos. Desde essa ótica compreende-se há de recordar-se que a linguagem simbólica procure fornecer imagens aos conceitos de sorte que, diferente da linguagem katabólica, mais lhe interesse trazer à tona os sentimentos, os afetos dos acontecimentos que as coisas estão a provocar, do que se deter na definição da coisa em si.
  • 6
    Cabe ressaltar que no contexto da comédia grega, a parábase é um ponto da peça em que todos os atores saem de cena e o coro é deixado para se dirigir diretamente ao público. Nesse sentido, quando aludimos em nosso texto à parábase temos em vista enfatizar que é próprio da parábola nos colocar no lado a lado com o narrador de sorte que num dado momento o leitor tenha que se ver com a ausência do narrador, inclusive, com seu silêncio, a fim de que o leitor possa dar-se conta que a Revelação é paradoxalmente constituída dessa ambivalência da presença e da ausência em relação àquele que se revela.

Referências

  • BÍBLIA do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2002.
  • HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
  • LEVINAS, E. L’au-delà du verset. Lectures et discours talmudiques Paris: Les Editions de Minuit, 1982.
  • LEVINAS, E. Hors Sujet Paris: Fata Morgana, 1987.
  • LEVINAS, E. Totalidade e Infinito Lisboa: Edições 70, 1988.
  • LEVINAS, E. Carnets de captivité et autres inédits. Paris: Bernard Grasset/IMEC, 2009a. v. 1. (Collection Oeuvres).
  • LEVINAS, E. Parole et silence: et autres conférences inédites au Collège Philosophique. Paris: Bernard Grasset/IMEC, 2009b.
  • LEVINAS, E. De outro modo que ser ou para lá da essência Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011.
  • LEVINAS, E. Algumas reflexões sobre a filosofia do Hitlerismo. In: DAVIDSON A. I.; LEVINAS, E.; MUSIL, R. Reflexões sobre o nacional socialismo Belo Horizonte: Âyiné, 2016. p. 45-67.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2022
  • Aceito
    03 Abr 2023
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