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TEOLOGIA NEGRA E MULHERISMO AFRICANA. O PODER DAS MULHERES NEGRAS DE MATRIGESTAR POTÊNCIAS DE VIDA

Black Theology and Africana Womanist. The Power of Black Women to Matrigest Life Powers

RESUMO

Com o objetivo de tecer um contradiscurso ao discurso teológico hegemônico que, privilegiando a interlocução com a filosofia ocidental, é racista e patriarcal, apresentamos, ainda de modo seminal, o quefazer teológico na interlocução com o pensamento negro, a filosofia africana e, de modo especial, o mulherismo africana. O método da pesquisa está marcado pela análise bibliográfica e a descrição da experiência de encontrar-se na Igreja das Santas Pretas. Os resultados desta pesquisa, como todo pensamento, são inacabados. Desejamos apresentar à comunidade acadêmica algumas referências da filosofia africana como possível interlocutora da teologia, para que esta possa superar a cumplicidade e dependência da filosofia ocidental e, consequentemente, do racismo e do patriarcado. Também desejamos colocar os processos de resistências e reexistências das mulheres negras no centro da reflexão teológica e demonstrar que eles fazem parte de uma memória ancestral que informa o ser afrodiaspórico. A teoria do mulherismo africana pode ser um instrumental útil, também para a teologia, para interpretar esses processos e, com isso, sinalizar outros caminhos para nossas relações de gênero.

PALAVRAS-CHAVE
Teologia negra; Mulherismo africana; Mulheres negras; Igreja das Santas Pretas

ABSTRACT

With the aim of weaving a counter-discourse to the hegemonic theological discourse which, privileging dialogue with Western philosophy, is racist and patriarcal we present, still in a seminal way, the theological work in the dialogue with black thought, African philosophy and, in a special way, African womanism. The research method is marked by the bibliographical analysis and the description of the experience of being in the Igreja das Santas Pretas. The results of this research, like all thoughts, are unfinished. The results of this research, like all thoughts, are unfinished. We wish to present to the academic community some references of African philosophy as a posible interlocutor of theology, so that it can overcome the complicity and dependence of Western philosophy and, consequently, of racism and patriarchy. We also want to place the processes of resistance and re-existence of black women at the center of theological reflection and demonstrate that they are part of an ancestral memory that informs the Afrodiasporic being. The theory of African matriarchy can be a useful instrument, also for theology, to interpret these processes and, with that, signal other paths for our gender relations.

KEYWORDS
Black Theology; Africana womanism; Black women

Introdução

Partindo da perspectiva decolonial, de modo especial, na busca da afirmação ontológica e epistêmica dos sujeitos subalternizados, este texto busca superar o limite epistemológico da teologia eurocentrada. Neste marco, como mulher negra, explicito o meu locus enunciativo, isto é, o lugar geopolítico e corpo-político do conhecimento. Esses são requisitos básicos para um novo modo de produzir conhecimento, diferente da pretensão de universalismo, neutralidade e objetividade do pensamento hegemônico. Assim, evitamos cair novamente em generalizações e em um novo universalismo abstrato; uma vez que o universalismo abstrato é um particularismo que se estabelece como hegemónico e se apresenta desincorporado, desinteressado e sem pertencimento a qualquer localização geopolítica. Recordarmos que sempre falamos a partir de um determinado lugar situado nas estruturas de poder, pois “todo conhecimento se situa, epistemicamente, ou no lado dominante, ou no lado subalterno das relações de poder e isto tem a ver com a geopolítica e a corpo-política do conhecimento” (GROSFOGUEL, 2008GROSFOGUEL, R. Negros marxistas o marxismos negros? Tabula Rasa, 28, p. 11-22, 2018., p. 119). Ao “esconder o lugar do sujeito da enunciação, a dominação e a expansão coloniais europeias/euro-americanas conseguiram construir por todo o globo uma hierarquia de conhecimento superior e inferior e, consequentemente, de povos superiores e inferiores” (GROSFOGUEL, 2008GROSFOGUEL, R. Negros marxistas o marxismos negros? Tabula Rasa, 28, p. 11-22, 2018., p. 120). E com isso, também, se estruturou o racismo epistêmico, que afirma a superioridade do pensamento branco e a inferioridade do pensamento negro (GROSFOGUEL, 2018GROSFOGUEL, R. Negros marxistas o marxismos negros? Tabula Rasa, 28, p. 11-22, 2018., p. 11). Já passou o momento de a razão teológica superar sua dependência com a filosofia eurocentrada e dialogar com filosofias outras, de outras matrizes civilizacionais, mais especificamente com a filosofia africana.

Neste horizonte, pensamos Teologia negra decolonial tanto como chave hermenêutica para interpretar a experiência da comunidade afro-brasileira como instrumento para fomentar o agenciamento e libertação negra, através de um discurso teológico-religioso para além da matriz euro-americana. Para este objetivo, de forma ainda seminal, entramos em interlocução com o projeto político do quilombismo, as teorias da afrocentricidade e do mulherismo africana, cuja principais referências são Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento, Molef K. Asante, Cheik Anta Diop, Cleonora Hudson-Weens, Nah Dove, Aza Njeri1 1 Meu primeiro contato com as epistemologias africanas se deu em junho de 2020, quando participei do Congresso Internacional promovido pela UFBA, intitulado Yorubantu: epistemologia iorubá e batu. Este contato com as epistemologias africanas, para além das questões acadêmicas, contribui para a construção da identidade negra. Por isso, volto a afirmar o caráter subjetivo do conhecimento e, ao mesmo tempo, sinalizar um caminho para pensar teologia negra em diálogo com as diversas correntes de pensamento negro/africano. Ver: https://www.youtube.com/@yorubantuepistemologiasyor2830 . Em outros escritos dialogamos com outras correntes do pensamento negro, mais ligado à fenomenologia. Contudo, não podemos cair no mesmo erro de hierarquizar o conhecimento e as epistemologias outras. A teologia deve ser uma disciplina radicalmente aberta à alteridade e à diferença, para poder tecer uma narrativa capaz de assumir toda e qualquer experiência de humanização como lugar da manifestação do divino.

1 No espelho da Igreja das Santas Pretas

No início de 2018, o padre afro-brasileiro Mauro da Silva, curador do Museu social do Muquifu2 2 O Muquifu (Museu de Quilombos e favelas urbanas) é um museu social, que nasceu da demanda comunitária pelo direito de ter sua memória respeitada, pois essas comunidades vivem em constantes ameaças de remoção por conta da disputa territorial. Isso acontece porque elas se encontram, paradoxalmente, na zona sul de Belo Horizonte, a região mais rica da cidade. Uma região sob grande especulação imobiliária. E, por isso, há um processo de gentrificação (expulsão das populações pobres, negras e de demais “indesejados/as” dos espaços cobiçados pelos grandes empreendimentos comerciais) e de negação do direito dos pobres à cidade, à vida. Duas das cincos favelas já foram desintegradas, suas casas destruídas, seus vínculos quebrados, suas histórias silenciadas. Outras favelas do mesmo Aglomerado estão sob a mesma ameaça de desintegração total. e pároco no Aglomerado Santa Lúcia, me convidou para falar sobre a teologia negra presente na iconografia da Capela Maria Estrela da Manhã, vinculada à Igreja Católica. Negra do sul do Brasil, negra de pele clara, que só conhecia Igrejas eurocentradas e predominantemente brancas, ao aceitar este convite me encontrei, pela primeira vez, com uma Igreja Negra. Não eram apenas os membros desta igreja que eram negros, como acontece nas Igrejas Evangélicas pentecostais, nas quais a teologia eurocentrada e colonizadora permanece, praticamente, intacta. Tratava-se de uma Igreja Negra (liturgia, eclesiologia, sacramentologia, etc.) fruto da resistência afrodiaspórica. Além disso, se tratava de uma Igreja gestada por um grupo de 14 mulheres pretas, pobres, periféricas e poucas, que se reuniam desde a década de 1960. E juntas sonhavam com uma “Igreja de verdade”.

Em meio à luta cotidiana pela vida e resistência contra o poder patriarcal clerical e a necropolítica, essas mulheres pretas e faveladas gestaram a tão sonhada “igreja de verdade”. Neste lugar sagrado, foi edificado o templo religioso, a Capela Maria Estrela da Manhã, no Aglomerado Santa Lúcia – um conjunto de 5 favelas na região sul da cidade de Belo Horizonte. Essa Igreja de verdade é a Igreja encarnada na história da comunidade afrodiaspórica, que é retratada iconograficamente.

Essa Iconografia é um afresco que, em execução desde junho de 2016 pelos artistas Cleiton Gos e Marcial Ávila, idealizado pelo pe. Mauro, cobre todas as paredes da Capela (mais de 100m2 2 O Muquifu (Museu de Quilombos e favelas urbanas) é um museu social, que nasceu da demanda comunitária pelo direito de ter sua memória respeitada, pois essas comunidades vivem em constantes ameaças de remoção por conta da disputa territorial. Isso acontece porque elas se encontram, paradoxalmente, na zona sul de Belo Horizonte, a região mais rica da cidade. Uma região sob grande especulação imobiliária. E, por isso, há um processo de gentrificação (expulsão das populações pobres, negras e de demais “indesejados/as” dos espaços cobiçados pelos grandes empreendimentos comerciais) e de negação do direito dos pobres à cidade, à vida. Duas das cincos favelas já foram desintegradas, suas casas destruídas, seus vínculos quebrados, suas histórias silenciadas. Outras favelas do mesmo Aglomerado estão sob a mesma ameaça de desintegração total. de pintura). Essa Iconografia é uma forma de homenagear o grupo de 14 mulheres pretas, pobres, periférica e poucas. Por isso, o nome da Iconografia é Igreja da Santas Pretas. A Iconografia Igreja das Santas Pretas faz um paralelo entre as 14 mulheres pretas que fundaram a comunidade e a vida de Maria, mãe de Jesus, retratada nos Evangelhos com traços da cultura afro-brasileira. São 14 cenas distribuídas em sete dores de Maria e sete alegrias de Maria, porque a comunidade aprendeu a contar a história de horror mesclada com a história de esperança (CALDEIRA, 2020aCALDEIRA, C. Teoquilombismo. Resistencias espirituales afrobrasileñas. Concilium, v. 384, p. 75-86, 2020a., p.84). Hoje a Capela Maria Estrela da Manhã é, carinhosamente, conhecida pelo nome da Iconografia que ela carrega, ou seja, Igreja das Santas Pretas. A Igreja das Santas Pretas surge como um movimento de resistência e reexistência de mulheres negras no contexto de racismo estrutural, se tornando um espaço de humanização da comunidade afrodiaspórica.

Fui convidada para interpretar teologicamente essa Iconografia. Eu não conhecia a Igreja, achava que seria mais uma Igreja tradicional, como são todas as nossas Igrejas, com pouca variação. Mas, essa Igreja se tornou como um espelho para mim. Nela e através dela descobri que eu vivia descentrada e com a percepção estética colonizada. Ali dentro da Igreja das Santas Pretas, descobri que não dispunha de lentes para ver e compreender a experiência que levou à criação da Iconografia Igreja das Santas Pretas. Por décadas, havia sido educada no paradigma eurocentrado. Como eu podia dizer qualquer palavra sobre uma experiência que era nitidamente uma experiência que enfrentava e rompia com esse paradigma? Apesar desta percepção do limite paradigmático, me reconheci e me identifiquei com aquela Igreja, que de forma magistral retratava a santidade e sacralidade da vida negra, dos corpos de mulheres negras. Não conheço nenhuma outra Igreja no Brasil, que elevou os corpos de mulheres à dignidade de Mãe do Redentor como fez a Igreja das Santas Pretas. Embora no Brasil o mesmo catolicismo tem Nossa Senhora da Aparecida como uma mulher negra, que merece um estudo à parte, o que vemos na Igreja das Santas Pretas é um coletivo de mulheres negras que é elevado em sua dignidade ao status de mãe do Redentor. E é essa visão do coletivo de mulheres pretas que impacta e subverte a nossa percepção colonizada acerca do lugar dos corpos pretos dentro do templo. A identificação com a Iconografia da Igreja das Santas Pretas é uma experiência muito forte para nós mulheres negras que vivemos em uma sociedade que estigmatiza, inferioriza, demoniza e sensualiza os nossos corpos. Por um momento, dentro da Igreja, você pode se reconhecer naquela Iconografia e reconhecer sua mãe, irmãs, irmãos, avós, avôs, tias e tios...enfim, toda a sua família, toda a sua ancestralidade. Porque, de fato, a Iconografia tem as 14 mulheres negras como protagonistas, mas, esse protagonismo está voltado para o cuidado com toda a comunidade. É como vislumbrar a sua própria existência negra sendo nutrida por sua ancestralidade e reconhecer que sua existência só foi possível porque sua ancestralidade lutou por você. É compreender que estamos no mundo sendo sustentados por muitas pessoas que nos antecederam.

Foi essa experiência que, ao me colocar diante dos meus limites paradigmáticos e descentramento, me colocou em rota de conversão epistêmica para o trilho civilizacional africano. Diante da epifania da Igreja das Santas Pretas, percebi que a reflexão teológica necessitava de uma nominação própria para poder dizer qualquer palavra acerca desta singular experiência. Eu não tinha palavras para descrever o que estava ali diante de mim. Sentia que estava próxima da Bíblia e, paradoxalmente, distante das culturas afrodiaspóricas e suas epistemologias próprias, portanto, distante de mim mesma. Digno isso, porque conhecia as narrativas bíblicas acerca do protagonismo das mulheres africanas (CALDEIRA, 2013CALDEIRA, C. Hermenêutica Negra Feminista: um ensaio de interpretação de Cântico dos Cânticos 1.5-6. Estudos Feministas, v. 21, p. 1189-1210, 2013., p. 1189-1210) e, sobretudo, da influência da África no mundo bíblico (CALDEIRA; ARTUSO, 2020bCALDEIRA, C; ARTUSO, V. Sacerdotisas africanas no mundo bíblico. Leitura decolonial de Êxodo 4.24-26. Revista Estudos Feministas, v. 28, p. 1-27, 2020b., p. 1-27). Mas, eu não possuía conhecimento de nossa própria história para poder interpretar a nossa resistência e reexistência, pois estive capturada pela história única do eurocentrismo. A Igreja das Santas Pretas tornou-se, portanto, para mim um divisor de águas, assim como a sarça ardente para Moisés no Monte Horeb descrito em Êxodo 3. 2-6a:

Apareceu-lhe o Anjo do Senhor numa chama de fogo, no meio de uma sarça; Moisés olhou, e eis que a sarça ardia no fogo e a sarça não se consumia. Então, disse consigo mesmo: Irei para lá e verei essa grande maravilha; por que a sarça não se queima? Vendo o Senhor que ele se voltava para ver, Deus [a divindade], do meio da sarça, o chamou e disse: Moisés! Moisés! Ele respondeu: Eis-me aqui! Deus [a divindade] continuou: Não te chegues para cá; tira as sandálias dos pés; porque o lugar em que estás é terra santa. Disse mais: Eu sou o Deus [a divindade dos teus ancestrais] de teu pai, o Deus [a divindade] de Abraão, o Deus [a divindade] de Isaque e o Deus [a divindade]de Jacó...

Quando eu ainda estava tentando entender o que era aquilo (a Igreja das Santas Pretas), uma das três rainhas do Congado, que estava ali naquele dia, me disse: “Sabe a Nossa Senhora do Rosário? Ela é uma divindade há muito tempo cultuada em África, que atravessou o Atlântico com os nossos antepassados”. É de conhecimento popular que Nossa Senhora do Rosário e São Benedito são os santos católicos adorados pelos pretos. Mas, essa narrativa da rainha do congado, na qual Nossa Senhora do Rosário é uma entidade adorada em África e que atravessou o Atlântico, não é a narrativa oficial da Igreja católica, nem mesmo da Igreja das Santas Pretas. E, de uma narrativa periférica, tornou-se para mim central. Assim, como a divindade se apresentou à Moisés evocando a sua ancestralidade (eu sou a divindade de Abraão, Isaque e Jacó), na Igreja das Santas Pretas, ouvi o chamado da ancestralidade, porque não há resistência espiritual afrodiaspórica que não esteja intrinsecamente vinculada à ancestralidade. A ancestralidade, segundo filósofo afro-brasileiro Eduardo David de Oliveira, consiste numa

(...) cosmovisão de mundo que se reflete na concepção de universo, de tempo, na noção africana de pessoa, na fundamental importância da palavra e na oralidade como modo de transmissão de conhecimento, na categoria primordial da Força Vital, na concepção de poder e de produção, na estruturação da família, nos ritos de iniciação e socialização dos africanos

(OLIVEIRA, 2003OLIVEIRA, E. D. CosmoviSão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: LCR, Ibeca, 2003., p. 71).

O que se percebe, então, é que nem mesmo o colonialismo e a escravidão, com tudo o que significou para nós, em termos de desterro e descarrilhamento, conseguiu suprimir a memória ancestral que informa nosso ser e a cultura afro-brasileira.

A Igreja das Santas Pretas, portanto, explicitou algo que estava implícito em mim, a saber, o meu próprio descarrilhamento e descentramento de minhas raízes africanas, da memória ancestral que minha avó, tias e mãe alimentaram desde a minha infância. A única coisa que consegui perceber, de fato, foi a necessidade de um novo paradigma teológico para dar conta das resistências afrodiaspóricas em contexto brasileiro. Foi quando balbuciei pela primeira vez o conceito Teoquilombismo, para sinalizar que essa experiência da Igreja das Santas Pretas está intrinsecamente vinculada às resistências afro-brasileira e que necessitamos de novos instrumentais para interpretá-las. Teoquilombismo, portanto, surge como uma tentativa de fazer justiça epistêmica para com os saberes e epistemologias africanas e afrodiaspóricas. E, assim, reparar o débito histórico do cristianismo para com as culturas africanas e afrodiaspóricas. Na esperança de ver emergir um outro cristianismo do encontro entre a fé cristã e essas culturas africanas (CALDEIRA; CHAGAS, 2022CALDEIRA, C. CHAGAS, F. A. Questões críticas nos estudos da teologia negra em perspectiva decolonial. Theologica Xaveriana, v. 72, p. 1-27, 2022., p. 18). Teoquilombismo, como o nome já alude, está ligado à experiência do Quilombo como maneira, por excelência, da resistência e reexistência afro-brasileira.

2 Quilombismo um projeto político-epistêmico afro-brasileiro

O Teoquilombismo quer ser uma reflexão teológica que coloca a resistência afro-brasileira no centro: mulheres, homens, jovens e crianças pretas; e não a Bíblia, isto é, não a tradição. Isso não significa relativizar a Bíblia ou ignorá-la. Trata-se de uma questão de “hermenêutica reversa”, como tem sido utilizada por muitos teólogos e teólogas africanas (MASHAU; FREDERIKS, 2008MASHAU, D T.; FREDERIKS, M. T. Coming of age in African theology: The quest for authentic theology in African soil. Exchange, South Africa, n. 37, 109-123, 2008., p. 116-117). Essa hermenêutica reversa segue na mesma linha do método da Teologia da Libertação, dando primazia ao contexto e não à tradição. Importa ressaltar que Teoquilombismo não trata apenas de teologizar a experiência de resistência da comunidade afro-brasileira, mas, sobretudo, elaborar um discurso que ajude na reconstituição fenomenológica da identidade afrodiaspórica, isto é, no agenciamento negro.

Durante o longo período de escravidão, permanente negação e demonização dos nossos referenciais simbólicos e culturais, a resistência afro-brasileira gestou o quilombo3 3 Quilombo era composto de negros que fugiam da escravidão e constituíam a resistência afro-brasileira de ordem ética, política, econômica, cultural e espiritual. Em toda a América houve resistência semelhante, tais como: os cimarrónes, em países de colonizaç ão espanhola; os palanques, em Cuba e na Colômbia; os marrons, nas Guianas e nos Estados Unidos. O conceito remonta o kilombo africano, mais especificamente entre os povos de língua bantu (MUNANGA, 1996, p. 57-63). para expressar a maneira relacional de ser-no-mundo e, assim, abrir espaço de reexistir. O quilombo, cuja origem remonta o kilombo africano, mais especificamente entre os povos de origem bantu, surgiu como um mecanismo de resistência ao sistema desumano da escravidão/colonialismo, se tornando um protesto radical e experiência social de resistência e reelaboração dos valores socioculturais dos africanos escravizados, no contexto de uma sociedade latifundiária-escravista. O quilombo emerge como única maneira da mulher negra e do homem negro recuperarem sua humanidade, isto é, a sua capacidade de ser para si mesmo e ser com e para os outros (MOURA, 2001MOURA. C. A quilombagem como expressão de protesto radical. In MOURA, C. (Org.). Os quilombos na dinâmica social do Brasil. Maceió: EDUFAL, 2001. Disponível em: https://movimentorevista.com.br/2019/11/a-quilombagem-como-expressao-de-protesto-radical/ Acesso em: 15 abr. 2019.
https://movimentorevista.com.br/2019/11/...
).

Historicamente, durante três séculos de escravidão negra o quilombo — enquanto instituição em si – foi um núcleo negro onde se experimentavam um sistema social alternativo ao contexto de opressão do sistema colonial. Houve quilombos tão bem organizados que chegaram a colocar em risco o sistema colonial. Palmares é o mais conhecido e relevante quilombo da história brasileira. Ele ficou conhecido como República de Palmares. E, portanto, é considerado a primeira tentativa de fundar um Estado livre na América (MOURA, 2019MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019., p.189-220).

Após a abolição do trabalho escravo, houve uma passagem do quilombo enquanto instituição a instrumento ideológico, isto é, ele se tornou símbolo de resistência afro-brasileira na luta por autoafirmação e autocompreensão. Para o intelectual e ativista Abdias Nascimento, o quilombo atua como uma ideia-força, uma energia que inspira modelos de organizações dinâmicas e alternativas. Longe de ser algo estático, o quilombo ou “quilombismo está em constante reatualização, atendendo exigências do tempo histórico e situações do meio geográfico” (MOURA, 2019MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019., p. 282). Assim, a mística do quilombo passou a alimentar o sonho de liberdade negra fornecendo elementos para a construção da consciência histórica nacional, sobretudo, com a reafirmação da herança africana e construção da identidade afro-brasileira (NASCIMENTO, 1995NASCIMENTO, B. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. Afrodiáspora, v. 3, n. 6-7, p.41-49, 1995., p. 41-49).

Sempre com a habilidade de contextualização, o quilombo é um movimento geral de longa duração que pode ser identificado nas favelas, nos morros, nos assentamentos (VINHAS, 2018VINHAS, W. Revisitando Maria Beatriz Nascimento: a continuidade histórica entre os sistemas sociais negros do passado e os assentamentos em favelas urbanas e comunidades rurais da atualidade. Revista da ABPN, v. 10, n. 25, p. 271-293, mar. / jun. 2018., p. 271-293). Sua essência consiste em ser “um local onde a liberdade era praticada, onde os laços étnicos e ancestrais eram revigorados” e, sobretudo, exercia “um papel fundamental na consciência histórica dos negros” (NASCIMENTO, 1995NASCIMENTO, B. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. Afrodiáspora, v. 3, n. 6-7, p.41-49, 1995., p. 41-49).

A partir da sociologia preta, Clóvis Moura afirma que um dos fatores mais subversivos no quilombo reside na superação do complexo de hierarquização racial, pois sua população será “diferenciada etnicamente sem que sobre essas diferenças se monte uma escala hierárquica que desse valor positivo (ou negativo) a cada conotação étnica, graduando os agentes sociais segundo a sua cor” (MOURA, 2001MOURA. C. A quilombagem como expressão de protesto radical. In MOURA, C. (Org.). Os quilombos na dinâmica social do Brasil. Maceió: EDUFAL, 2001. Disponível em: https://movimentorevista.com.br/2019/11/a-quilombagem-como-expressao-de-protesto-radical/ Acesso em: 15 abr. 2019.
https://movimentorevista.com.br/2019/11/...
). O quilombo rompe com a classificação social hierarquizada, que estabelecia a inferiorização da população não-branca em relação ao branco. Nesse sentido, o intelectual Kabengele Munanga explicita a cartografia do quilombo como campo de iniciação, não apenas à resistência, mas, ao advento de uma autêntica democracia plurirracial, de caráter pluriversal e transcultural. Pois, o quilombo era um campo aberto a todos os oprimidos da sociedade — negros, índios e brancos -, antecipando assim um modelo de democracia plurirracial, ainda por se instaurar no Brasil e alhures; visto que suas práticas e estratégias se realizavam dentro de um modelo transcultural, que visava formar identidades estáveis e abertas para além dos limites da sua cultura. Os quilombolas cultivavam uma abertura extrema em duplo sentido: tanto para dar como para receber influências culturais de outras comunidades, sem abrir mão de sua existência enquanto cultura distinta e sem desrespeitar o que havia de comum entre os seres humanos. Assim, os quilombolas visavam a “formação de identidades abertas, produzidas pela comunicação incessante com o outro, e não de identidades fechadas, geradas por barricadas culturais que excluem o outro” (MUNANGA, 1996MUNANGA, K. Origem e histórico do quilombo na África. Revista USP, n. 28, p. 57-63, 1996., p. 63).

Essa maneira relacional de ser-no-mundo dos quilombolas pode ser considerada hoje o princípio fundamental dos processos de subjetivação dos afro-brasileiros denominado de quilombismo, em que a ideia de reexistência é expressa como “afirmação humana, ética e cultural”, por meio do qual a população afro-brasileira integra uma prática de libertação e assume o controle de sua própria história, a saber, um projeto político decolonial. Abdias Nascimento recorda que o quilombismo, caracterizado como um movimento nacionalista, não pode ser confundido com xenofobismo, mas sim como uma luta anti-imperialista que se articula ao Pan-africanismo e sustenta uma solidariedade radical com todos os povos em luta contra a exploração, a opressão, o racismo e as desigualdades de todas as formas, de classe, de raça, de gênero e de religião (NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, A. O Quilombismo: documentos de uma militância Pan-Africana. São Paulo: Ed. Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019., p. 284).

3 O paradigma da afrocentricidade

Embora a questão da proposta de assunção de epistemologias outras aparece como uma novidade do pensamento decolonial, à sua maneira, ela vem sendo defendida há décadas por pensadores negros afrocentrados, tais como Cheik A. Diop, Ana Mazama, Molef K. Asante e outros. De maneira especial, tem o paradigma da “afrocentricidade”, que é “um tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos” (ASANTE, 2009ASANTE, M. K. A afrocentricidade: notas sobre uma posição de disciplinar. In: NASCIMENTO, E. L (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 93-110., p. 93). A afrocentricidade afirma que “nós africanos devemos operar como agentes autoconscientes, não mais satisfeitos em ser definidos e manipulados de fora. Cada vez mais controlamos nosso destino por meio de uma autodefinição positiva e assertiva” (MAZAMA, 2009MAZAMA, A. Afrocentricidade como um novo paradigma. In: NASCIMENTO, E. L (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009, p. 111-127., p. 111).

A Afrocentricidade surgiu em 1980 com a publicação do livro Afrocentricidade, por Molef Kete Asante, seguido por A ideia afrocêntrica (1987) e Kemet, afrocentricidade e conhecimento (1990), do mesmo autor. Trata-se de uma proposta epistemológica de lugar – uma vez que os africanos foram deslocados em termos culturais, psicológicos, econômicos e históricos – para afirmar que toda avaliação das condições dos africanos (e afrodescentendes) seja realizada com base em uma localização centrada em África e diáspora africana. Para Asante, a afrocentricidade é uma questão de localização capaz de “reorientar os africanos a uma posição centrada”, sobretudo, porque os afrodescendentes vêm atuando na margem da experiência eurocêntrica que tem objetificado os conhecimentos e culturas africanas em prol dos seus interesses, relegando aos afrodescendentes à periferia daquilo que se convencionou chamar de “real”, isto é, um descentramento. A ideia de conscientização está no centro da afrocentricidade por ser o que a torna diferente da africanidade. Afrocentricidade é a conscientização sobre a agência dos povos africanos. Essa é a chave para a reorientação e a recentralização, de modo que a pessoa possa atuar como agente, e não como vítima ou dependente (ASANTE, 2009ASANTE, M. K. A afrocentricidade: notas sobre uma posição de disciplinar. In: NASCIMENTO, E. L (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 93-110., p. 94).

É a capacidade de agência ou desagência que determina o quanto um indivíduo é agente de sua própria libertação. Um agente, nestes termos, é um ser humano capaz de agir de forma independente em função de seus interesses. Já a agência é a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana [...]. Por outro lado, quando consideramos questões de lugar, situação, contexto e ocasião que envolvam participantes africanos, é importante observar o conceito de agência em oposição ao de desagência. Dizemos que se encontra desagência em qualquer situação na qual o africano seja descartado como ator ou protagonista em seu próprio mundo (ASANTE, 2009ASANTE, M. K. A afrocentricidade: notas sobre uma posição de disciplinar. In: NASCIMENTO, E. L (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 93-110., p. 94-95)4 4 Para que um projeto possa ser considerado afrocentrado Asante afirma que algumas características básicas são imprescindíveis: Interesse pela localização; Compromisso com a descoberta do lugar africano como sujeito; Defesa dos elementos culturais africanos; Compromisso com o refinamento léxico; Compromisso com uma nova narrativa da história da África (ASANTE, 2009, p. 93 e 96). . De igual modo, partindo da psicologia afrocentrada, Wade W. Nobles atesta que a opressão racial atua como descentramento do indivíduo africano ou afrodiaspórico, promovendo um senso alterado de consciência.

Ao examinar o povo africano em toda a diáspora, poder-se-ia dizer que, coletivamente, precisamos ‘voltar atrás e reconstituir o que esquecemos’ [Sankofa]. Eu diria ainda que o que nós, coletivamente, esquecemos ou, de modo mais preciso, o que nosso opressor tentou esvaziar de nossa menta foi o significado de ser africano. Também acredito que, embora tenha sido pavoroso o ataque contra o senso de ser dos africanos, ele não conseguiu destruir o africano dentro de nós. Entretanto alterou a percepção ou a crença em nosso senso de africanidade intrínseco; e esse senso alterado de consciência é o problema fundamental dos africanos e afro-americanos e diaspóricos

(NOBLES, 2009NOBLES, W. Sakhu Shete. Retomando e reapropriando um foco psicológico afrocentrado. In: NASCIMENTO, E. L (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 277-297., p. 277).

Neste horizonte de uma experiência de vida marcada pelo estado alterado de consciência, necessitamos de um paradigma outro das relações de gênero, que esteja mais em conformidade com elementos culturais africanos, que nos são transmitidos pelas avós, avôs, mães, tias e tios. Desta maneira, será possível contribuir com esse centramento tão fundamental para a nossa saúde psíquica e libertação de toda nossa comunidade.

4 Ajustando as lentes com o Mulherismo Africana

Partimos, portanto, do reconhecimento de que nós afrodescendentes, apesar de nossas diferenças, partilhamos da comum experiência de opressão racial e juntos devemos lutar contra esse sistema que nos desumaniza. Nosso interesse pelo mulherismo africana5 5 O mulherismo africana uma vertente nova de pensamento gestado por Cleonora Hudson-Weems na década de 1980, mas, pouco conhecido no Brasil e tem como principais nomes, além de Hudson-Weems (Mulherismo africana: uma visão geral, 2000), Nah Dove – Mulherismo africana: uma teoria afrocêntrica (1998); Katherine Bankhole – Mulheres africanas nos Estados Unidos (2009) e, no âmbito nacional, contamos com os trabalhos de Anin Urasse – Uma introdução aos 18 princípios do Mulherismo Africana (2019); Ama Mizani – O impacto do feminismo na comunidade preta e a busca de reapropriação histórica (2014) e Katiúscia Ribeiro – Mulherismo Africana, uma perspectiva política e epistêmica de mulheres negras (2016) (NJERI; RIBEIRO, 2019, p. 596). reside na busca de superar o domínio constitutivo dos povos africanos e afrodiaspóricos que está na base do sistema mundo moderno colonial, generificado e racializado, dentro do projeto teórico que o pensamento decolonial denomina como a recolocação de epistemes e saberes subalternizados na conjuntura da globalização, com vistas a uma verdadeira democratização e total descolonização cultural do mundo contemporâneo. Essa perspectiva decolonial é perfeitamente conjugável com o projeto político do quilombismo vinculado à matriz cultural africana, pois acreditamos que a experiência afrodiaspórica necessita de ser interpretada com outros paradigmas, que não sejam os mesmos paradigmas ocidentais utilizados para o sequestro, cárcere e dominação.

4.1 Mulherismo africana de Cleonora Hudson Weems

Ao considerar o feminismo em todas as suas vertentes indissoluvelmente vinculado à agenda eurocêntrica, a afro-americana Cleonora Hudson-Weens, no intuito de distanciar-se desta agenda que não favorece a mulher negra e, consequentemente, a comunidade negra/africana, cunha o conceito do mulherismo africana (womanist afrikana), na década de 1980. Com isso, Hudson-Weens desejava apresentar uma alternativa teórica e política ao feminismo que, segundo ela, em sua origem foi criado por mulheres brancas de classe-média e, portanto, reflete suas realidades e anseios. Segundo Hudson-Weens, o feminismo excluía as mulheres negras e pobres de suas pautas e permanece vinculado ao liberalismo econômico e, muitas vezes, aos seus pares masculinos, o patriarcado. Hudson-Weens tece duras críticas ao feminismo, reforçando a sua forte base histórica racista e eurocêntrica, questionando assim sua legitimidade para embasar a luta política de mulheres negras, ainda que seja feito o recorte no feminismo negro ou mesmo no feminismo africano (HUDSON-WEENS, 2020, p. 52-60).

Sua proposta embasa-se nos legados civilizatórios africanos que dão testemunho de outras maneiras de relacionamentos entre os gêneros que, na encruzilhada da diáspora, informou as vivências afrodiaspóricas. Assim como o feminismo negro, o mulherismo africana se inscreve na genealogia do discurso da abolicionista Sojourner Truth, cuja luta primordial foi contra a opressão racial e não contra a opressão de gênero sem, contudo, negar sua realidade nas particularidades de cada grupo. O mulherismo africana é o paradigma que explicita a posição africana sobre as questões de gênero, enfatizando uma perspectiva centrada na família, incluindo o homem e, ao mesmo tempo, destacando o protagonismo da mulher africana na luta cooperativa contra a opressão racial; em um contexto multicultural e multidisciplinar para as mulheres africanas na África e diáspora.

O mulherismo africana, portanto, permite definirmos quem somos através de nossas próprias experiências, assim, evidenciando as nossas particularidades e nossa humanidade.

Clenora Hudson-Weems (2016) apresenta-nos também os princípios fundamentais mulheristas que são esmiuçados por Urasse (2019)URASSE, A. Uma introdução aos 18 princípios do Mulherismo Africana. In: PANAFRICANISTAS, União dos Coletivos. Coleção Pensamento Preto: Epistemologias do Renascimento Africano. Diàspora Africana: Editora Filhos da África, 2019. v. 3, p. 302-315.: terminologia própria e autodefinição; centralidade na família; genuína irmandade no feminino; fortaleza, unidade e autenticidade; flexibilidade de papéis, colaboração com os homens na luta de emancipação e compatibilidade com o homem; respeito, reconhecimento pelo outro e espiritualidade; respeito aos mais velhos; adaptabilidade e ambição; maternidade e sustento dos filhos. E advertem que ―Os princípios acima descritos, longe de prescrições teórico-normativas, são características reais, palpáveis e observáveis nas comunidades africanas em geral, seja no continente, seja na diáspora‖

(URASSE, 2019URASSE, A. Uma introdução aos 18 princípios do Mulherismo Africana. In: PANAFRICANISTAS, União dos Coletivos. Coleção Pensamento Preto: Epistemologias do Renascimento Africano. Diàspora Africana: Editora Filhos da África, 2019. v. 3, p. 302-315., p. 303 apud QUEIROZ, 2021QUEIROZ. R. P. F. A cota é pouca e o corte é fundo: Analisando o videoclipe pra que me chama? De Xênia Franca por meio de epistemologias negras. Tropos, v.10, n.1, p. 1-28, 2021., p. 16).

Dentro do princípio autonominação, Hudson-Weens problematiza a questão da nominação que – remete à uma cosmovisão e uma agenda – na cosmologia africana o Nommo (O poder generativo e produtivo da palavra falada) denota que algo só passa a existir a partir da nomeação correta. Portanto, o nome é essencial à existência, tornando-se, assim, difícil a autolibertação e autorrealização a partir de um nome impróprio para si mesmo. E, considerando, que o processo de sequestro, cárcere, espólio implicou em nossa nominação pelo poder hegemônico, o mulherismo africana emerge como autonomeação e autodefinição das mulheres Africana6 6 O Africana no singular e letra maiúscula é de Hudson-Weens para denotar todas as mulheres africanas e africanas em diásporas. para levar a cabo o sentido de sua identidade (HUDSON-WEENS, 2020, p. 50), que não pode ser interpretado como deslegitimação da luta dos feminismos. Mas, o paradigma do mulherismo africana como primeiro passo no processo de autodefinição, tem por responsabilidade “nomear a nós mesmos, para que ninguém faça isto” e, também, “definindo a nós mesmos e a nossa realidade, exercitando conscientemente estes elementos a partir de nossa própria perspectiva, autêntica Africana” (HUDSON-WEENS, 2020, p. 72). A feminista afro-americana Patrícia Hill Collins, por sua vez, também fala da importância da autodefinição, que advém dos espaços de sociabilização negra, como primeiro passo para o empoderamento, pois se um grupo não se define a si mesmo, então será definido por e em benefício de outro (COLLINSCOLLINS, P. H. Black Feminist Thought: Knowledge. Consciousness and the Politics of Empowerment. Nueva York: Routledge, 2000. apud VELASCO, 2012VELASCO, M.J. Introducción. Construyendo puentes: em diálogo desde/con el feminismo negro. In: VELASCO, M. J. Feminismos negros: una ontologia. Madrid: Traficantes de sueños, 2012. p. 27-56., p. 37). O mulherismo africana emerge como uma designação específica para as mulheres negras, cujo “principal objetivo é criar critérios próprios das mulheres africanas para avaliar suas realidades tanto no pensamento quanto na ação” (HUDSON-WEEMS, 2020, p. 22), isto é, colocando-se dentro do paradigma da afrocentricidade. Acerca do significado do termo mulherismo africana Hudson-Weens explica que:

A primeira parte da cunhagem, Africana, identifica o contexto étnico da mulher que está sendo considerada, e essa referência à sua etnia, estabelecendo sua identidade cultural, relacionando-se diretamente com a sua ancestralidade e base terrestre – África. A segunda parte do termo, Mulherismo, além de nos levar de volta ao rico legado da feminilidade Africana, recorda o poderoso discurso improvisado de Sojourner Truth ‘E não sou eu uma mulher?’, no qual ela luta com as forças alienantes dominantes em sua vida, lutando como Mulher Africana, questionando a ideia aceita de feminilidade. Mesmo que ela tenha ido a uma convenção de mulheres brancas em Akron, Ohio, e m 1852, para expressar sua opinião sobre o absurdo da subjugação feminina, ela foi forçada a falar primeiro sobre a questão racial, ela foi vaiada e zombada porque ela era negra, não porque ela era uma mulher, já que ela estava entre a comunidade de mulheres

(HUDSON-WEEMS, 2020, p. 22).

O paradigma do mulherismo africana busca reestabelecer a memória e o legado das mulheres africanas no mundo, visto que ele é uma “ideologia criada e projetada para todas as mulheres de descendência africana. Fundamenta-se em nossa cultura e, portanto, concentra-se necessariamente nas experiências, lutas, necessidades e desejos únicos das mulheres Africana” (HUDSON-WEENS, 2020, p. 44). Ao aperfeiçoar esta terminologia em estrutura teórica e metodológica, o mulherismo africana identifica a participação e o papel da mulher africana na luta, mas não sugere que a subjugação feminina seja a questão mais crítica que nós enfrentamos na luta pela paridade. Antes, ele coloca a luta antirracista no centro, entendendo que esta é uma luta para libertar “toda sua raça”, sobretudo, porque a mulher africana percebe a si mesma como companheira do homem africano e trabalha diligentemente para continuar sua união estabelecida na luta contra a opressão racial. O mulherismo africana coloca, pois, no centro a realidade histórica da comunidade negra e a centralidade da família para as futuras gerações. Isso está ligado à questão da ancestralidade, que tem um peso muito grande na ontologia africana. Ademais, na cultura Africana existe uma igualdade intrínseca e orgânica necessária para a sua sobrevivência, pois não está estruturada sob o paradigma judaico-cristão.

E não podemos ignorar que a maioria das sociedades não-europeias, como aponta John Henrik Clarke, apresenta uma estrutura matrilinear, na qual a linha da descendência começa a ser traçada a partir da mãe. E Clarke recorda que Cheikh Anta Diop demonstrou que nesse sistema ‘matrilinear é o homem que traz o dote à mulher’ (CLARKE, 1984CLARKE, J. H. African Warrior Queens. In: SERTIMA, I. (Ed.). Black women in Antiquity, 1984. Disponível em: https://banhodeassento.wordpress.com/about/rainhas-guerreiras-africanas/. Acesso em: 23 ago. 2021.
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). Nas sociedades africanas, as mulheres não estavam reclusas ao espaço privado da família, como o entendemos na atualidade, mas é conhecido o seu poder político, no governo de nações e, inclusive, em chefiar exércitos7 7 Exemplos de mulheres africanas que exerceram o seu protagonismo na história da humanidade. A primeira rainha da humanidade, Rainha Hatshepsut (1500-1485 a.C), Rainha do Kemet, Egito; Rainha de Sabá (Makeda) (aprox. 900 a.C); Cleópatra (69 a.C); Candace (Etiópia e Núbia) além de se referir à uma rainha específica que tem seu protagonismo registrado na Bíblia (cf. Atos 8.27), também é o título atribuído para chefe de estado ou governadora quando aplicado à uma mulher; Kuseila (general na Mauritânia, 682) e a Rainha Dahia-al Kahina (cristã, mas nacionalista) resistiram bravamente contra a ascensão do islã no norte da África; Jinga ou Ginga (1620-1663), rainha de Angola; A Rainha mãe de Ejisu, Yaa Asantewa (século XIX, Gana) (CLARKE, 1984). . Evidentemente, essas afirmações devem ser compreendidas a partir da cosmopercepção e cosmovivências africanas, que têm uma compreensão expandida de família, que inclui tantos os vivos, como os mortos-vivos (os ancestrais e os Orixás) e aqueles que ainda irão nascer.

4.2 Materno-centrada ou matriarcado? As contribuições de Nah Dove

Através da Teoria dos dois berços, o historiador e antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop descreve o matriarcado como a característica presente no Berço meridional (África), desde tempos imemoriais e que os contatos conflituosos com o Berço Nórdico Patriarcal (Europa) resultaram no apagamento do protagonismo feminino negro (DIOP, 2014DIOP, C. A. A unidade cultural da África negra: esferas do patriarcado e do matriarcado na antiguidade clássica. Angola: Mulemba, 2014., p. 51-101). Em geral, a concepção de matriarcado se refere a sociedades dominadas por mulheres, que Nah Dove, na esteira de Hudons-Weens, afirma distanciar-se do conceito Materno-Centrado, cunhado para melhor denotar o matriarcado de Diop, que se refere a reciprocidade masculina-feminina como base para a ordem social.

Dentro da Matriz Materno-Centrada, equilíbrio entre os princípios feminino e masculino é buscado dos planos físico e material ao espiritual. Materno-centrado literalmente significa construções sociais e culturais conduzidas maternalmente. Em tais sociedades, a linha de herança através da mãe é conhecida como matrilinear ou, qual Amadiume (1987, p. 17) denomina, Materno-focada/matrifocal. Um conceito de sistema Akan (do Gana) é que o Mogya (sangue) é dado à criança pela mãe (Opoku, 1978, p. 99). É importante que, ao contrário da Europa, mesmo as sociedades patrifocais ou paternofocadas na África, em que a linha de descendência é através do pai, buscam relações de poder feminino-masculino recíprocas (Diop, 1959/1990DIOP, C. A. A unidade cultural da África negra: esferas do patriarcado e do matriarcado na antiguidade clássica. Angola: Mulemba, 2014., pp 66-72;. T ‘Shaka, 1995, pp.194-196). As mulheres Ga (do Gana), por exemplo, não levam nomes de seus maridos quando se casam e concessões com a nomeação e linhagem são feitas (Odotei, 1989, 43 p.,46). A mãe é vista como portadora da vida, o canal para a regeneração espiritual dos ancestrais, a portadora da cultura, e do centro de organização social

(DOVE, 2002DOVE, N. Defining a Mother-Centered Matrix to Analyze the Status of Women. Journal of Black Studies, v. 33, n. 1, p. 3-24, 2002. Disponível em: www.jstor.org/stable/3180986. Acesso em: 20 ago. 2021.
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, p. 10-11).

Dove segue argumentado que a família nesta matriz materno-centrada é relacional, que busca uma relação recíproca entre os membros femininos e masculinos, porque acreditam que a base de uma “sociedade justa” está nesta relação equilibrada.

Em contraste à estrutura familiar materno-centrada a individualidade e a prioridade de si sobre os outros é um princípio fundamental do sistema de crenças do berço patriarcal, no qual a família reproduz relações pessoais e sociais hierárquicas como resultado da dominação do masculino sobre o feminino. Todos os descendentes são obrigados a reproduzir essa hierarquia dentro da família, cuja parceria desigual deve ser continuamente justificada para sua permanência. Noções hierárquicas de superioridade e inferioridade racionalizam razões pelas quais a mulher deve ser subserviente ao homem. Este desequilíbrio ou injustiça de gênero é a base para o conflito e agressão, que se reflete na ordem social, com exemplos como desrespeito às mulheres, crianças e idosos. Conceitos como raça e diferença humanas seguem a mesma lógica e são justificados em uma ordenação hierárquica da humanidade. Essas sociedades podem ser chamadas patriarcais, paterno-centradas ou paterno-conduzidas (DOVE, 2002DOVE, N. Defining a Mother-Centered Matrix to Analyze the Status of Women. Journal of Black Studies, v. 33, n. 1, p. 3-24, 2002. Disponível em: www.jstor.org/stable/3180986. Acesso em: 20 ago. 2021.
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, p. 3-24).

Longe, porém, de pensar em relações sociais idílicas entre homens e mulheres como parece sugerir Diop ao falar em “dualismo harmonioso” nos sistemas matriarcais, em ambos os sistemas – matrifocais ou patriarcais – percebe-se uma tentativa incessante dos homens em controlar as mulheres e os seus serviços (AMDIUME, 1987AMDIUME, I. Afrikan matriarcal fondations: The Igbo case. Londres: Kamak House, 1987., p. 84 apud DOVE, 2002DOVE, N. Defining a Mother-Centered Matrix to Analyze the Status of Women. Journal of Black Studies, v. 33, n. 1, p. 3-24, 2002. Disponível em: www.jstor.org/stable/3180986. Acesso em: 20 ago. 2021.
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, p. 3-24). Para Dove, o patriarcado é a manifestação mais concreta desta tensão natural das relações de poder entre o masculino e o feminino (DOVE, 2002DOVE, N. Defining a Mother-Centered Matrix to Analyze the Status of Women. Journal of Black Studies, v. 33, n. 1, p. 3-24, 2002. Disponível em: www.jstor.org/stable/3180986. Acesso em: 20 ago. 2021.
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, p.3-24). O conceito de matriarcado como matriz materno-centrada, portanto, destaca o aspecto da complementariedade na relação feminino-masculino ou a natureza do feminino e do masculino em todas as formas de vida, que é entendida como não hierárquica. Tanto a mulher quanto o homem trabalham juntos em todas as áreas de organização social.

O papel da maternidade ou dos cuidados maternais não se limita às mães ou mulheres, mesmo nas condições contemporâneas. Como Tedla (1995) explica, o conceito de mãe transcende as relações de gênero e de sangue. Um membro da família ou amiga que tenha sido gentil e carinhoso pode ser dita ser uma mãe [...]. Os valores dessa natureza têm sido fundamentais para a sobrevivência dos povos Africanos durante o prolongado e contínuo holocausto. A maternidade, portanto, descreve a natureza das responsabilidades comunitárias envolvidas na criação dos filhos e no cuidar dos outros

(DOVE, 1998DOVE, N. Mulherisma Africana. Uma teoria afrocêntrica. Universidade Temple. Jornal de Estudos Negros, v. 28, n. 5, p. 515-539, 1998. Disponível em: www.stor.org/stable/2784792. Acesso em: 15 ago. 2021.
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, p. 515-539).

Para a teoria mulherista africana as conquistas da África pelos europeus, desde a antiguidade até o presente, podem ser vistas como conquista do matriarcado pelo patriarcado. E, consequentemente, para Dove, a “conquista da África foi a conquista da mulher” (DOVE, 1998DOVE, N. Mulherisma Africana. Uma teoria afrocêntrica. Universidade Temple. Jornal de Estudos Negros, v. 28, n. 5, p. 515-539, 1998. Disponível em: www.stor.org/stable/2784792. Acesso em: 15 ago. 2021.
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, p. 515-539). E, de igual maneira, a libertação parece passar pela organização social outra, que rompa com a dicotomia hierarquizante do patriarcado, mais especificamente a reAfricanização que é a processo de recuperação de apreciação da nossa herança cultural. Tanto nas culturas bantu quanto nas culturas Iorubá (também grafado como Yorubá, da Nigéria), etnias que constituem nossa cultura afro-brasileira, o poder da mãe é colocado até mesmo acima dos orixás. É o que nos informa Félix Ayoh’omidire a respeito do status da mãe nas culturas iorubanas:

Um ditado iorubá afirma [...] (Nenhum orixá é igual à mãe da gente). [...] a mulher-mãe goza de uma veneração profunda, não somente da parte dos filhos, mas da sociedade inteira. Em alguns trabalhos anteriores, já mencionei que a veneração da mulher-mãe na cultura iorubana é tão profunda que até os rei-sagrados teme a sua intervenção em momentos de crise nacional. Em tais momentos, basta que as mulheres-mães saiam pelas ruas da cidade vestidas de trajes de luto e expondo cada uma o seio esquerdo, a tradição obriga tal rei despótico a suicidar-se porque acredita-se que se chegasse a obter o perdão de todos, sobretudo dos orixás, o fato de ter ofendido o poder feminino já teria desqualificado para sempre. Vale ressaltar que esse poder extraordinário da mulher lhe é conferido graças à maternidade

(AYOH’OMIDIRE, 2003, p. 157).

A pesquisadora nigeriana Oyèrónkẹ́.Oy?ěùmí, vem realizando uma profunda crítica a suposta universalização do patriarcado e, consequentemente, da dominação masculina como sugere a teoria feminista. Talvez ela seja quem melhor nos ajuda a entender como funciona as relações de gênero na cultura iorubá, mais especificamente a cultura Oyó-Iorubá. Para ela, “tanto a noção de assimetria quanto a noção preconcebida de gênero como uma categoria social universal são problemáticas”, uma vez que nas sociedades iorubanas os papeis sociais não são generificados, ou seja, as categorias anatômicas não são usadas como categorias sociais. Sua obra mais conhecida é A invenção das mulheres, publicada em português em 2021, no qual, como o subtítulo anuncia, ela trabalha para construir um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Oyěwùmí demonstra que o “gênero não era um princípio organizador na sociedade iorubá antes da colonização pelo Ocidente”, bem como, eram inexistentes as categorias sociais de ‘homem’ e ‘mulher’, ou seja, não havia nenhum sistema de gênero (OYÈWÙMÍ, 2021, p. 69). Antes, “o princípio básico de organização social era a senoridade, definida pela idade relativa” (OYÈWÙMÍ, 2021, p.69).

Em What Gender is Motherhood? Changing Yorùbé Ideal of Power, Procreation, and Identity in the Age of Modernity (2011), Oyéwùmí segue desconstruindo a ideia de que a sociedade iorubá era originalmente genereficada, por meio de evidências religiosas e linguísticas. Ela afirma que a “introdução do gênero na sociedade, sistemas de conhecimento e pensamento iorubás criou uma abertura para uma mudança epistemológica de uma cosmopercepção não generificada para uma cosmovisão generificada” (OYÈWÙMÍ, 2016OYĚWÙMÍ, O. What Gender is Motherhood? Changing Yorùbá Ideals of Power, Procreation, and Identity in the Age of Modernity (Gender and Cultural Studies in Africa and the Diaspora). Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2016., p.57). Ela recupera a categoria socio-espiritual de Íyá (traduzido para o nosso idioma como mãe) que não derivou de noções de gênero para mostrar a operação epistemológica generificada, sob influência da modernidade colonial na sociedade iorubá que subordinou Ìyá nas narrativas oficiais. Contudo, para aquém e além desta operação epistemológica, Ìyá como uma instituição venerável continua a ressoar em muitas áreas da vida na sociedade Yorubá, que deve ser compreendida como o centro do sistema fundado na senioridade, que Oyěwùmí descreve a partir do princípio matripontente.

A Matripotência descreve os poderes, espiritual e material, derivados do papel procriador de Ìyá. A eficácia de ìyá é mais pronunciada quando são consideradas em relação a sua prole nascida. O ethos matripotente expressa o sistema de senioridade em que Ìyá é a sênior venerada em relação a suas crias. Como todos os humanos têm uma Ìyá, todos nascemos de uma Ìyá, ninguém é maior, mais antigo ou mais velho que Ìyá. Quem procria é a fundadora da sociedade humana, como indicado em Oseetura, o mito fundador iorubá. A unidade social mais fundamental no mundo iorubá é o par Ìyá e prole. Como apenas as anafêmeas procriam, a construção original de Ìyá não é generificada, porque seu raciocínio e significado derivam do papel de Ìyá como cocriadora, como Elédàá (Quem Cria), dos seres humanos... Ìyá também é uma categoria singular, sem comparação com qualquer outra. Além disso, tanto anamacho quanto anafêmea escolhem espiritualmente suas Ìyá da mesma maneira, e as Ìyá estão conectadas com toda a sua prole nascida, de maneira singular, sem qualquer distinção feita pelo tipo de genitália que ela possa ter

(OYĚWÙMÍ, 2016OYĚWÙMÍ, O. What Gender is Motherhood? Changing Yorùbá Ideals of Power, Procreation, and Identity in the Age of Modernity (Gender and Cultural Studies in Africa and the Diaspora). Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2016., p. 57-58).

Evidentemente que pensar Ìyá como uma categoria não-generificada só é possível em uma episteme diferente das epistemes euro-americanas universalizadas e generificadas.

4.3 Recepção criativa do mulhereismo africana em contexto brasileiro

É a recepção do paradigma do mulherismo africana em contexto brasileiro que, a meu ver, irá fazer a conjugação com o projeto político do quilombismo, no sentido de afirmação da particularidade da experiência vivida da comunidade afro-brasileira, sem a qual o advento de uma autêntica democracia não pode advir, isto é, uma democracia celebrativa do pluriversal. Autoras como as filosofas Katiúcia Ribeiro e Aza Njeri são as maiores referencias, por seu interesse, sobretudo, nas camadas subjetivas de experienciar o estado de Maafa8 8 “Os fenômenos de sequestro, cárcere, escravidão, colonização, objetificação, guetificação e genocídio que a população negra, independente da territorialidade, sofre diretamente desde 1500, chama-se Maafa (ANI, 1994). Maafa é, desta maneira, o processo de sequestro e cárcere físico e mental da população negra africana, além do surgimento forçado da afrodiáspora [...] É o genocídio histórico e contemporâneo global contra a saúde física e mental dos povos africanos, afetando-os em todas as áreas de suas vidas: espiritualidade, herança, tradição, cultura, agência, autodeterminação, casamento, identidade, ritos de passagem, economia, política, educação, arte, moral e ética. Desta forma, os africanos sofrem o trauma histórico da sua desumanização e reproduzem as violências, contribuindo -e muitas das vezes facilitando o trabalho -para o genocídio (NJERI, 2019, p. 7)”. e, também, porque elas passam a demarcar a especificidade do território afro-brasileiro, compreendendo que a territorialidade recorta e determina nossa forma de ser e estar no mundo (NJERI; RIBEIRO, 2019NJERI, A; RIBEIRO, K. Mulherismo africana: práticas na diàspora brasileira. Currículo sem Fronteiras, v. 19, n.2, p. 595-608, 2019., p. 596). Pensar essa localização, Afirma Njeri, é também pensar as estratégias de sobrevivência. Considerando que são mais de 500 anos constituindo a maior diáspora africana do mundo, quais foram as estratégias? Quais foram os nossos métodos? Questões que nos remetem à experiência da Igreja das Santas Pretas como modelo desta resistência ética, ontológica, espiritual e, também, epistêmica.

O foco de Njeri é pensar a nossa humanidade solar assumindo a psicologia africana, na esteira de Fu-Kiau (1991)FU-KIAU, K. Self-healing power and Therapy. Old teaching from Africa. Baltimore: Inprint Editions, 1991., na qual o ser humano é um sol nascente e poente. Onde a concepção de matrigestar não está necessariamente atrelada à concepção de gênero ou de útero, mas sim a uma concepção de energia solar, de matrigestão da potência solar que há no outro. Considerando que muitas culturas africanas constituem a cultura afro-brasileira, o mulherismo africana aparece como um instrumental importante. Porque ele se debruça sobre as experiências particulares das mulheres negras e, como recorda Njeri, enquanto um paradigma, este não pode ser assumido como uma identidade, antes, devemos considera-lo como lentes para melhor discernir a experiência vivida da comunidade negra, que se assenta – sobretudo na diáspora brasileira- sobre o matriarcado (NJERI, 2020cNJERI, A. Mulherismo africana. [Rio de Janeiro]: [s/n ], 17 abril. 2020c. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QhbkZmRxHcA. Acesso em: 31 jan. 2022.
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).

Njeri e Ribeiro ressaltam que a lutas e estratégias genuínas das experiências de mundo das mulheres negras não eliminam outras existentes, mas as consideram insuficientes para dar conta de uma dor de cunho coletivo do negro. Por isso, o mulherismo africana surge como um modo de deslocamento das mulheres negras desse lugar de violências históricas para assim retirar um coletivo, também negro, da subalternidade comunitária. “O levante da mulher preta é, portanto, o levante de sua comunidade, pois o que potencializa as mulheres pretas serve como combustível para a comunidade africana. Esse levante, essa narrativa, essa potencialidade, identificamos tudo isso no mulherismo africana” (NJERI; RIBEIRO, 2019NJERI, A. Educação afrocêntrica como via de luta antirracista e sobrevivência na maafa. Revista Sul-americana de Filosofia e Educação, n. 31, p.4-17, 2019., p. 601).

Por meio do mulherismo africana busca-se “pensar a realidade dos sujeitos africanos a partir de outro paradigma ontológico, no qual o Ocidente não seja a centralidade dessa construção”; uma vez que a travessia transatlântica foi uma “travessia ontológica, cuja fratura do ser se faz presente num processo de quebras identitárias e de banzo9 9 Banzo é, segundo a Enciclopédia brasileira da diáspora africana de Nei Lopes, o “estado psicopatológico, espécie de nostalgia com depressão profunda, quase sempre fatal, em que caíam alguns africanos escravizados nas Américas. O termo tem origem ou no quicongo mbanzu, ‘pensamento’, ‘lembrança’, ou no quimbundo mbonzo, ‘saudade’, ‘paixão’, ‘mágoa’” (LOPES, 2011). contínuo” (NJERI; AZIZA, 2020bNJERI, A; AZIZA, D. Entre a fumaça e as cinzas: estado de maafa pela perspectiva mulherismo africana e a psicologia africana. Problemata, v. 2, n. 2, p. 57-80. 2020b., p. 39), no meio de uma caminhada descarrilhada no trilho da humanidade. Pensar a questão do ser, a partir da matriz filosófica africana, não é pensar no indivíduo e sim na relacionalidade. Neste horizonte, a fim de ressaltar a diferença entre a ontologia ocidental e a africana, o filósofo camaronês Achille MbembeMBEMBE, A. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona Editores, 2017. recorda que:

[...] nas antigas tradições africanas, o ponto de partida da interrogação acerca da existência humana não é a questão do ser, mas a da relação, da implicação mútua, ou seja, da descoberta e do reconhecimento de uma outra carne diferente da minha. É a questão de saber como me transportar para lugares longínquos, simultaneamente diferentes do meu lugar e implicados nele. Nesta perspectiva, a identidade será não uma questão de substância mas de plasticidade. É uma questão de co-composição, de abertura para o exterior de outra carne, de reciprocidade entre múltiplas carnes e os seus múltiplos nomes e lugares

(2017, p. 51-52, grifo nosso).

Essa ontologia está, portanto, marcada pela xonofilia enquanto prática de fazer o bem-vindos os estrangeiros e veemente oposição à xenofobia como medo de estrangeiro e de diferenças. Ainda neste sentido de uma ontologia relacional, a filosofia e projeto político do Ubuntu aparece para reforçar o paradigma do mulherismo africana, onde “Ubuntu pode ser traduzido como ‘o que é comum a todas as pessoas’ A máxima zulu e xhosa, umuntu ngumuntu ngabantu (uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas) indica que um ser humano só se realiza quando humaniza outros seres humanos”. (NOGUEIRA, 2012NOGUEIRA, R. Ubuntu como modo de existir: elementos gerais para uma ética afroperspectivista. Revista da ABPN, v. 3, n. 6, nov. p. 147-150. 2012., 147-150). De maneira que a proposta teológica de uma ontologia relacional na gratuidade do teólogo Carlos Mendoza Álvarez faz muito mais sentido na cosmopercepção africana, como único caminho para a nossa comum humanização (MENDOZA ÁLVAREZ, 2015MENDOZA ÁLVAREZ, C. Deus ineffabilis: una teología posmoderna de la revelación del fin de los tempos. Barcelona: Herder, 2015., p. 66).

Ao assumirmos o paradigma do mulherismo africana estamos fazendo justiça epistêmica a todas as mulheres negras que, antes do giro decolonial, denunciaram a exclusão ontológica (colonialidade do ser/subjetividade), que requer o racismo moderno enquanto eixo principal da colonialidade do poder, como denunciou no seu célebre discurso de Sojourner Truth: “Acaso, não sou eu uma mulher?”.

Ser afrodiaspórico é ser aquele que busca alicerçar a existência plena nos valores afro-civilizatórios, que são os fundamentos morais, éticos, estéticos, espirituais e comportamentais que dão sustentáculo ao conjunto de produções materiais e imateriais de uma sociedade. E, apesar de século de negação da presença e influência das culturas africanas na constituição da identidade brasileira, os valores afro-civilizatórios fazem parte de nosso cotidiano, como explicita Njeri e Aziza:

As manifestações dos valores africanos estão no nosso dia a dia, no hábito de pedir a bênção ao mais velho, no conhecimento da ciência das plantas, na filosofia da roda, no aquilombamento das casas de quintal, nas mulheres comerciantes, na tecnologia criativa de manter-se vivo. Como afro-brasileiros trazemos a partir da memória, oralidade e tradição, valores humanos herdados das várias etnias e grupos sociais africanos sequestrados para cá por meio do processo de escravidão. Tais valores se ressignificam na realidade sócio-histórica brasileira e permanecem como caminho éticos, morais, comportamentais e estéticos que nos levam ao eixo Sul-Sul com África

(NJERI; AZIZA, 2020bNJERI, A; AZIZA, D. Entre a fumaça e as cinzas: estado de maafa pela perspectiva mulherismo africana e a psicologia africana. Problemata, v. 2, n. 2, p. 57-80. 2020b., p. 61, grifo nosso).

Valores esses que tem centralidade na ancestralidade como um valor afro-civilizatório fundamental do ser africano (Muntu), que é inclusive considerado a marca distintiva do homo africanus, “que compreende o Ser enquanto Força [...], cujo equilíbrio também depende da dimensão vertical, em que o ser como parte de um elo transtemporal de continuidade, onde todo ser humano é a continuidade de quem o antecedeu na sua linhagem familiar” (NJERI; AZIZA, 2020bNJERI, A; AZIZA, D. Entre a fumaça e as cinzas: estado de maafa pela perspectiva mulherismo africana e a psicologia africana. Problemata, v. 2, n. 2, p. 57-80. 2020b., p. 72). Para Njeri e Ribeiro, portanto, o mulherismo africana é uma forma de fortalecer a autoproteção e autodefesa em meios aos processos de luta negra. Por isso, faz-se necessário que negras e negros se tornem agentes da própria história para abrir novas vias de reestabelecimento de sua humanidade, defesa e sobrevivência. O mulherismo africana tem por missão contribuir para a reumanização do povo negro, por meio de práticas de resistências e lutas de nossas ancestrais para resistir na contemporaneidade. “É nos momentos de crise que buscamos o princípio uterino de kuumba (criatividade) e nos colocamos em prática criativa ancestral” (NJERI; RIBEIRO, 2019NJERI, A; RIBEIRO, K. Mulherismo africana: práticas na diàspora brasileira. Currículo sem Fronteiras, v. 19, n.2, p. 595-608, 2019., p. 600)

4.3.1 Mulherismo como gestador de potências – princípio matrigestor de potências

Njeri e Ribeiro ressaltam que através do aquilombamento, o mulherismo africana luta pelo equilíbrio do povo preto mediado por papéis matriarcal e materno-centrado. Trata-se de evidenciar o protagonismo de mães africanas na luta pela recuperação, reconstrução e criação da integridade cultural negra, enraizados nos princípios keméticos de Maat, tais como reciprocidade, equilíbrio, harmonia, justiça, verdade, integridade e ordem (NJERI; RIBEIRO, 2019NJERI, A; RIBEIRO, K. Mulherismo africana: práticas na diàspora brasileira. Currículo sem Fronteiras, v. 19, n.2, p. 595-608, 2019., p. 600). Elas ressaltam que:

[...] a abordagem materno-centrada não necessariamente está ligada à gestação físico-uterina, mas, sim, a todo um conjunto de valores e comportamentos de gestar potências. Quando partimos de uma realidade de gestar a potência, estamos definindo a luta mulherista como a possibilidade de reintegrar as vidas pretas destroçadas pelo racismo de cunho integral

(NJERI; RIBEIRO, 2019NJERI, A; RIBEIRO, K. Mulherismo africana: práticas na diàspora brasileira. Currículo sem Fronteiras, v. 19, n.2, p. 595-608, 2019., p. 600).

Nessa abordagem materno-centrada, por exemplo, acrescenta as filósofas, um Babalorixá (sacerdote na religião dos Orixás) exerce o princípio materno-centrado africano, para além do útero físico, ao mover-se no útero mítico-ancestral, movimentando uma energia que é feminina. Njeri e Ribeiro elenca inúmeros exemplos que podemos perceber o princípio materno-centrado em ação: de parteiras e erveiros (trabalha com ervas), às tias que cuidam das crianças (erês) em suas próprias casas, nas comunidades periféricas, à educadores que gestam a potência de seus alunos, etc. (NJERI; RIBEIRO, 2019NJERI, A; RIBEIRO, K. Mulherismo africana: práticas na diàspora brasileira. Currículo sem Fronteiras, v. 19, n.2, p. 595-608, 2019., p. 600). A luta negra passa pela manutenção do corpo preto vivo e o restabelecimento da sua humanidade, que o pensamento decolonial vai chamar de positivação da cartografia outra, negada e invisibilizada.

Com o mulherismo africana, o desafio está em voltar os nossos olhos à experiência histórica da Igreja das Santas Pretas, tanto na sua iconografia preta quanto nas potências de vida que ali foram e são gestadas por aquele grupo de mulheres pretas e pobres que se aquilombam para resistir diante da dominação neocolonial e a necropolítica do Estado. Olhando para a Igreja das Santas Pretas, com as lentes do mulherismo africana, é possível perceber que o nascimento desta comunidade de fé surge do poder dessas mulheres negras em matrigestar potências de vida. A Igreja das Santas Pretas resiste e reexiste ao modo africano de ser, um modo relacional, não hierarquizado, não generificado e materno-centrado.

O mulherismo africana parece ser uma ferramenta útil para aproximarmos da resistência da Igreja das Santas Pretas, uma vez que nos coloca no trilho civilizacional africano, como o resultado dos processos de subjetivação da comunidade negra; e ali poder identificar os princípios materno-centrados, quer seja no chá da Dona Jovem que é servido há décadas durante a Missa, quer seja na forma como essas mulheres pretas se organizaram para gestar uma Igreja capaz de acolher toda a comunidade. Uma coisa importante de dizer sobre a Igreja das Santas Pretas, é que nessa resistência há uma revalorização das culturas afrodiaspóricas, de maneira especial, o congado. Ele faz parte da vida da comunidade e foram incorporados à Iconografia Igreja das Santa/s Pretas. Essa Igreja se tornou um espaço fundamental de valorização das vidas negras.

O que podemos perceber é que nossa ação política e espiritualidade seriam diferentes se a comunidade negra cristã fosse gestada dentro do princípio materno-centrada, por mulheres pretas, como aconteceu na Igreja da Santas Pretas. Seriamos cristãos negros diferentes se tivéssemos nascido em um berço cristão que valorizasse a cosmopercepção africana, materno-centrada. Certamente isso abalaria significativamente as estruturas do cristianismo eurocentrado e, consequentemente, do sistema mundo moderno colonial patriarcal. O que estou conjecturando, não é uma impossibilidade, apesar de ser um fato que o cristianismo eurocentrado foi crucial para a implementação do colonialismo e do sistema de escravidão negra; de maneira que para muitas pessoas não existe nada de bom no cristianismo para o povo negro. Mas, a Igreja das Santas Pretas e muitas outras comunidades periféricas testemunham que é possível encontrar na fé cristã uma fonte de resistência e reexistência da comunidade afrodiaspórica.

É importante recordar que um cristianismo negro/africano esteve nas origens do cristianismo, no continente africano. Mas isso foi ocultado para implementar a agência colonizadora, impondo a versão eurocentrada do cristianismo como modelo. Contudo, com o movimento crescente do despertar da consciência negra e os processos de descolonização que ele engendrou, há mais de quarenta anos se gestou a teologia africana que assume as culturas africanas como lugar da manifestação do divino. E afirmação eurocentrada da incompatibilidade da fé cristã com as culturas africanas tem sido fortemente contestada. De modo especial, isso acontece, por exemplo, com o surgimento da cristologia dos ancestrais muito bem sistematizada e consolidada na África, recolocando a devoção aos ancestrais no seu devido lugar, a saber: no centro da vida de todo e qualquer africano (CALDEIRA, 2021CALDEIRA, C. Theoquilombismo: Black Theology Between Political Theology and Theology of Inculturation. Perspectiva Teológica, v. 53, n. 1, p. 137-159, 2021., p. 137-159). Cabe a nós, teólogas e teólogos negros, assumirmos as culturas afrodiaspóricas como esse lugar da manifestação do divino, que liberta do cativeiro e promove a humanização da comunidade negra.

Considerações finais

Iniciamos este texto explicitando o nosso lugar de enunciação de mulher negra, renunciando, assim, toda pretensão de objetividade e neutralidade. Nosso desejo é reafirmar que não existe nenhum conhecimento desinteressado. Pelo contrário, sempre falamos de um lugar determinado nas estruturas de poder. E isso se aplica a todo e qualquer conhecimento, inclusive à teologia que, historicamente, se situou epistemicamente do lado dominante e legitimou o epistemicídio e a escravidão negra. Com efeito, assim ela serviu o eurocentrismo. Mas, a teologia também se alimenta do eurocentrismo, de modo especial, mantendo uma interlocução exclusiva com a filosofia ocidental. Em qualquer faculdade de teologia, no Brasil, o que se considera teologia autêntica e boa é a teologia euro-americana, que por sua vez dialoga com a filosofia do mesmo lugar.

Um país que tem quase 60% da população negra, quase ninguém se questiona porquê a experiência negra não tem espaço na reflexão teológica, salvo raras exceções. Por esse racismo epistêmico que, considera o pensamento branco superior e o pensamento negro inferior, a teologia carece de lentes para interpretar a resistência e reexistência afrodiaspórica. Com as lentes eurocentradas, que são também generificadas e racistas, a teologia não consegue perceber a manifestação da Ruah divina nos corpos de mulheres negras, que estão na periferia do mundo matrigestando, a todo o tempo, potências de vida e libertação. Por isso, o mulherismo africana nos parece útil para auxiliar neste ajuste de lentes, para passar da civilização ocidental à civilização africana. É preciso iluminar nossa existência com as sabedorias africanas, para sairmos desta estrutura de dominação que a racionalidade moderna inseriu a todos.

  • 1
    Meu primeiro contato com as epistemologias africanas se deu em junho de 2020, quando participei do Congresso Internacional promovido pela UFBA, intitulado Yorubantu: epistemologia iorubá e batu. Este contato com as epistemologias africanas, para além das questões acadêmicas, contribui para a construção da identidade negra. Por isso, volto a afirmar o caráter subjetivo do conhecimento e, ao mesmo tempo, sinalizar um caminho para pensar teologia negra em diálogo com as diversas correntes de pensamento negro/africano. Ver: https://www.youtube.com/@yorubantuepistemologiasyor2830
  • 2
    O Muquifu (Museu de Quilombos e favelas urbanas) é um museu social, que nasceu da demanda comunitária pelo direito de ter sua memória respeitada, pois essas comunidades vivem em constantes ameaças de remoção por conta da disputa territorial. Isso acontece porque elas se encontram, paradoxalmente, na zona sul de Belo Horizonte, a região mais rica da cidade. Uma região sob grande especulação imobiliária. E, por isso, há um processo de gentrificação (expulsão das populações pobres, negras e de demais “indesejados/as” dos espaços cobiçados pelos grandes empreendimentos comerciais) e de negação do direito dos pobres à cidade, à vida. Duas das cincos favelas já foram desintegradas, suas casas destruídas, seus vínculos quebrados, suas histórias silenciadas. Outras favelas do mesmo Aglomerado estão sob a mesma ameaça de desintegração total.
  • 3
    Quilombo era composto de negros que fugiam da escravidão e constituíam a resistência afro-brasileira de ordem ética, política, econômica, cultural e espiritual. Em toda a América houve resistência semelhante, tais como: os cimarrónes, em países de colonizaç ão espanhola; os palanques, em Cuba e na Colômbia; os marrons, nas Guianas e nos Estados Unidos. O conceito remonta o kilombo africano, mais especificamente entre os povos de língua bantu (MUNANGA, 1996MUNANGA, K. Origem e histórico do quilombo na África. Revista USP, n. 28, p. 57-63, 1996., p. 57-63).
  • 4
    Para que um projeto possa ser considerado afrocentrado Asante afirma que algumas características básicas são imprescindíveis: Interesse pela localização; Compromisso com a descoberta do lugar africano como sujeito; Defesa dos elementos culturais africanos; Compromisso com o refinamento léxico; Compromisso com uma nova narrativa da história da África (ASANTE, 2009ASANTE, M. K. A afrocentricidade: notas sobre uma posição de disciplinar. In: NASCIMENTO, E. L (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 93-110., p. 93 e 96).
  • 5
    O mulherismo africana uma vertente nova de pensamento gestado por Cleonora Hudson-Weems na década de 1980, mas, pouco conhecido no Brasil e tem como principais nomes, além de Hudson-Weems (Mulherismo africana: uma visão geral, 2000), Nah Dove – Mulherismo africana: uma teoria afrocêntrica (1998); Katherine Bankhole – Mulheres africanas nos Estados Unidos (2009) e, no âmbito nacional, contamos com os trabalhos de Anin Urasse – Uma introdução aos 18 princípios do Mulherismo Africana (2019); Ama Mizani – O impacto do feminismo na comunidade preta e a busca de reapropriação histórica (2014) e Katiúscia Ribeiro – Mulherismo Africana, uma perspectiva política e epistêmica de mulheres negras (2016) (NJERI; RIBEIRO, 2019NJERI, A; RIBEIRO, K. Mulherismo africana: práticas na diàspora brasileira. Currículo sem Fronteiras, v. 19, n.2, p. 595-608, 2019., p. 596).
  • 6
    O Africana no singular e letra maiúscula é de Hudson-Weens para denotar todas as mulheres africanas e africanas em diásporas.
  • 7
    Exemplos de mulheres africanas que exerceram o seu protagonismo na história da humanidade. A primeira rainha da humanidade, Rainha Hatshepsut (1500-1485 a.C), Rainha do Kemet, Egito; Rainha de Sabá (Makeda) (aprox. 900 a.C); Cleópatra (69 a.C); Candace (Etiópia e Núbia) além de se referir à uma rainha específica que tem seu protagonismo registrado na Bíblia (cf. Atos 8.27), também é o título atribuído para chefe de estado ou governadora quando aplicado à uma mulher; Kuseila (general na Mauritânia, 682) e a Rainha Dahia-al Kahina (cristã, mas nacionalista) resistiram bravamente contra a ascensão do islã no norte da África; Jinga ou Ginga (1620-1663), rainha de Angola; A Rainha mãe de Ejisu, Yaa Asantewa (século XIX, Gana) (CLARKE, 1984CLARKE, J. H. African Warrior Queens. In: SERTIMA, I. (Ed.). Black women in Antiquity, 1984. Disponível em: https://banhodeassento.wordpress.com/about/rainhas-guerreiras-africanas/. Acesso em: 23 ago. 2021.
    https://banhodeassento.wordpress.com/abo...
    ).
  • 8
    “Os fenômenos de sequestro, cárcere, escravidão, colonização, objetificação, guetificação e genocídio que a população negra, independente da territorialidade, sofre diretamente desde 1500, chama-se Maafa (ANI, 1994). Maafa é, desta maneira, o processo de sequestro e cárcere físico e mental da população negra africana, além do surgimento forçado da afrodiáspora [...] É o genocídio histórico e contemporâneo global contra a saúde física e mental dos povos africanos, afetando-os em todas as áreas de suas vidas: espiritualidade, herança, tradição, cultura, agência, autodeterminação, casamento, identidade, ritos de passagem, economia, política, educação, arte, moral e ética. Desta forma, os africanos sofrem o trauma histórico da sua desumanização e reproduzem as violências, contribuindo -e muitas das vezes facilitando o trabalho -para o genocídio (NJERI, 2019NJERI, A; RIBEIRO, K. Mulherismo africana: práticas na diàspora brasileira. Currículo sem Fronteiras, v. 19, n.2, p. 595-608, 2019., p. 7)”.
  • 9
    Banzo é, segundo a Enciclopédia brasileira da diáspora africana de Nei Lopes, o “estado psicopatológico, espécie de nostalgia com depressão profunda, quase sempre fatal, em que caíam alguns africanos escravizados nas Américas. O termo tem origem ou no quicongo mbanzu, ‘pensamento’, ‘lembrança’, ou no quimbundo mbonzo, ‘saudade’, ‘paixão’, ‘mágoa’” (LOPES, 2011).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2022
  • Aceito
    04 Abr 2023
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