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RUBEM ALVES: DO GIRO MÍSTICO DO PROTESTANTISMO AO GIRO PROTESTANTE DA MÍSTICA

Rubem Alves: From de Mystic Turn of Protestantism to the Protestant Turn of Mystic

RESUMO

O protestantismo é, para Rubem Alves, uma espécie de arché, um princípio mobilizador e inventivo, uma potência de insubordinação criadora. Tal arché atravessa todos os seus escritos, sendo o fio condutor do seu pensamento. O forte teor critico do seu pensamento deriva de uma certa compreensão mística que Rubem Alves tem do espírito protestante; mística aqui entendida como movimento de trans-ascendência dos corpos rumo a excedência dos contornos histórico-mundanos que oprimem a vida. Este ‘giro místico do protestantismo’, foi operacionalizado por Rubem Alves para desconstruir as bases do que chamou de Protestantismo da Reta Doutrina (PRD). Ao mesmo tempo, ao afirmar o corpotência como possiblidade de uma plenitude em meio à penúria, como afirmação da vida em meio à naturalização da morte, como plenitude de uma satisfação insatisfeita, Alves promove um ‘giro protestante da mística’, desconstruindo uma certa noção de mística como experiência da plenitude e saciedade.

PALAVRAS-CHAVE
Rubem Alves; Espírito protestante; Mística

ABSTRACT

Protestantism is, for Rubem Alves, a kind of arché, a mobilizing and inventive principle, a power of creative insubordination. This arché runs through all of his writings, and is the guiding thread of his thought. The strong critical content of his thinking derives from a certain mystical understanding that Rubem Alves has of the protestant spirit; mystique understood here as a movement of trans-ancestry of bodies towards exceeding the world-historical contours that oppress life. This ‘mystical turn of Protestantism’ was operationalized by Rubem Alves to deconstruct the foundations of what he called “Protestantism of the Right Doctrine” (PRD). At the same time, by affirming “corpotency” as the possibility of plenitude in the midst of penury, as the affirmation of life in the midst of the naturalization of death, as the plenitude of an unsatisfied satisfaction, Alves promotes a ‘protestant turn of mystique’, deconstructing a certain notion of mystique as an experience of plenitude and satiety.

KEYWORDS
Rubem Alves; Protestant Spirit; Mystic

Introdução

Que Rubem Alves tenha sido protestante, isso sua biografia nos deixa claro. Porém, que ele seja um pensador protestante, isto sim não é tão simples de ser dito. Basta olhar a diversidade de seus textos e os mais variados temas por ele abordados, para se perceber que essa afirmação parece equívoca. E, num certo sentido, o é. Rubem Alves jamais defendeu doutrinas protestantes (melhor: jamais defendeu quaisquer doutrinas, religiosas ou não), jamais se encaixou nos enquadramentos institucionais cristãos evangélicos. Aliás, seus textos nunca formaram um sistema de pensamento, o que inviabiliza por completo algo assim como uma teologia sistemática alvesiana de caráter protestante. Sem contar os credos protestantes, que, pelo que sabemos, não encontraram em Alves qualquer ressonância. Antes, Rubem foi um grande crítico do que chamou de protestantismo da reta doutrina – PRD. (ALVES, 2005ALVES, R. Religião e Repressão. São Paulo: Loyola, 2005a.) Ainda assim, trata-se de um pensador protestante, pois o devir protestante marca indelevelmente o seu caminho de pensamento. Com isso, queremos dizer que o protestantismo de Rubem Alves é uma espécie de arché, ou seja, é princípio mobilizador e não uma identidade assegurada pelos códigos de uma instituição religiosa evangélica. Por ser arché, seu protestantismo é movimento inventivo e não um rótulo a engessar existências com as amarras das certezas doutrinárias e dos poderes institucionais.

Dito de outra forma, antes de ser marca distintiva de uma instituição religiosa, o protestantismo alvesiano é potência de insubordinação criadora. Trata-se, por conseguinte, de uma verdadeira reabilitação do verbo protestar, agora não mais ligado às demandas político-religiosas do século XVI. Para que isso fosse possível, Rubem Alves operacionalizou a noção de protestantismo de modo ambíguo. Por um lado, o protestantismo se identifica com as instituições históricas evangélicas e com seus códigos morais e teológicos. Por outro, o protestantismo é um espírito ou um princípio nos moldes pensados por Paul Tillich, filósofo-teólogo protestante que cunhou o conceito de princípio protestante para dar conta da seiva trans-histórica das mobilizações históricas da fé cristã em busca da afirmação da liberdade e do compromisso com o incondicional (preocupação última, ultimate concern), realizado caricaturalmente por parte do movimento protestante do século XVI. (CABRAL, 2017CABRAL, A. Teologia da transgressão: ensaio sobre o princípio protestante a partir de Lutero, Nietzsche e Lévinas. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017.) O voltar-se contra muitas manifestações históricas protestantes só foi possível porque Alves assumiu o espírito ou o princípio protestante a seu modo. Isso equivale a dizer que há um protestantismo antiprotestante ou um protestantismo anti-evangélico em Rubem Alves. Eis o paradoxo que aqui deverá ser levado à sério.

O protestantismo antiprotestante de Alves não pode ser compreendido no nível meramente especulativo-racional. Isso porque ele nada tem a ver com um simples embate de ideias ou de doutrinas, embate este em meio ao qual estaria defendendo sua verdade como mais verdadeira que as verdades por ele rejeitadas das tradições protestantes. Ainda que ele se preocupe em caracterizar e descrever os contornos centrais do protestantismo da reta doutrina, o sentido de suas investigações acerca do protestantismo não é meramente explicativo, mas crítico. Nesse caso, o fio condutor de sua crítica não é a razão, tampouco a ratio fidei, isto é, a teologia entendida como discurso fundado na relação entre revelação, fé e racionalidade com vistas ao estabelecimento das verdades e das formulações teológicas ortodoxas a serem cridas para que o/a crente se assegure de sua salvação. Sua crítica se estabelece por meio de um complexo conceitual e experiencial que articula os elementos da corporeidade, a saber, desejo, mundo, linguagem, imaginação e criação.

Não à toa que, ao justificar o problema da linguagem compreendida como fio condutor de sua investigação do PRD, Alves diz:

A linguagem, entretanto, não é uma cópia das coisas e dos fatos. Linguagem é sempre interpretação. Na interpretação, fundem-se os objetos com as emoções, o mundo e o homem se abraçam. (...) O mundo sobre que falo e a que me refiro por meio da minha linguagem é o mundo que gira em torno dos meus valores, um mundo que deve sustentar os meus valores.

(ALVES, 2005aALVES, R. Religião e Repressão. São Paulo: Loyola, 2005a., p. 68-69)

Para o pensamento alvesiano, linguagem é corpo-linguagem, corpo-significação. Por isso, a pergunta pelo modo, pelo como o mundo-linguagem se concretiza nos protestantismos da reta doutrina e o sentido qualitativo dos corpos correlatos a essa mundanização serão questões fundamentais para Rubem Alves. Em um primeiro momento, o PRD se revela historicamente como cristalização, engessamento, reificação. Posteriormente, o espírito protestante se revela como liberdade criadora. Se Alves advoga o último contra o primeiro, isso se deve ao fato de ele se preocupar com a potência afirmativa do espírito protestante. Ainda que ele não deixe claro, é possível dizer que sua crítica deriva de certa pré-compreensão mística do espírito protestante, se por mística entendermos o movimento de trans-ascendência qualitativa em meio ao qual a potência corporal (corpotência) excede os contornos histórico-mundanos de obstaculização/opressão da existência. Disso decorre uma inversão importante: ao realizar certa apropriação mística do protestantismo e operacionalizá-lo com o propósito de desconstruir o sentido reativo do PRD, Alves acaba promovendo o que gostaríamos de chamar de giro protestante da mística, ou seja, ele estaria a mostrar que a plenitude afirmada na mística se revela no e como protesto. Eis o objetivo central deste artigo: mostrar como Alves realiza um movimento pendular entre o que chamaremos de giro místico do protestantismo e o giro protestante da mística. Para tanto, percorreremos três etapas: 1) Protestantismo e opressão: da cosmovisão dos protestantismos hegemônicos às inquisições protestantes; 2) O espírito protestante: Rubem Alves leitor de Lutero e Paul Tillich; 3) Do giro místico do protestantismo ao giro protestante da mística. O caminho escolhido retrata, obviamente, um recorte nos textos, temas e subtemas atravessados por Rubem Alves em seus livros que explicitamente abordam o que poder-se-ia chamar de questão protestante. Deixaremos de lado, por exemplo, a materialidade de algumas interpretações alvesianas do protestantismo da reta doutrina em contexto latino-americano, o que deve ser realizado em outra ocasião.

1 Protestantismo e opressão: da cosmovisão dos protestantismos hegemônicos às inquisições protestantes

Protestantismo e Repressão não é somente o título de um livro de Rubem Alves publicado no final da década de 1970 e, em 2005 reeditado com o título Religião e Repressão. Antes, Protestantismo e repressão revelam uma das temáticas centrais do corpus alvesiano. Como uma experiência religiosa que surge no século XVI levantando a bandeira da liberdade cristã e se opondo claramente a diversos mecanismos institucionais de perseguição e opressão dos/as crentes acaba por se transformar em um conjunto de instituições que reprime, oprime e até mata seres humanos por causa de divergências teológicas? Como uma experiência religiosa cristã que afirmou em seu nascimento o conhecido livre exame da consciência pode ter produzido e ainda produzir caça às bruxas? Como uma experiência religiosa estigmatizada pelo status quo católico no século XVI como fonte contínua de heresias pode ser ela mesma perseguidora de hereges? Como pode a defesa evangélica intransigente da verdade engendrar tanta violência? Essas e outras questões marcam a perplexidade à luz da qual Alves questiona as tradições protestantes em certa configuração histórica hegemônica. Vale a pena reproduzir um trecho do texto escrito por ocasião da edição de 2005 de Religião e Repressão intitulado “Trinta anos depois”:

Vivi, durante muitos anos, numa gaiola de palavras. Eu gostava delas. Não me sentia engaiolado. Sentia-me protegido. Minha gaiola era minha armadura. Quando as gaiolas são feitas de ferro é mais fácil perceber a prisão. Os prisioneiros sonham o tempo todo com fugas. Mas há gaiolas que não são feitas com ferro. São feitas com palavras. As gaiolas de ferro prendem por fora. As gaiolas de palavras nos prendem por dentro. Porque as palavras, como dizem as Sagradas Escrituras, se fazem carne. Eu era aminha gaiola. Quem tenta quebrar uma grade da minha gaiola é como se estivesse arrancando um órgão do meu corpo. Ah, pedaço arrancado de mim... Odeio aqueles que tentam dilacerar-me.

Este livro foi escrito com o propósito de desatar as malhas de palavras que faziam a minha gaiola. Era um tipo de protestantismo a que dei o nome de Protestantismo da Reta Doutrina. O Protestantismo da Reta Doutrina é aquele que cuida com zelo especial das palavras certas. Da palavra certa depende a salvação da alma. Quem fala as palavras erradas está condenado ao inferno eterno.

(ALVES, 2005aALVES, R. Religião e Repressão. São Paulo: Loyola, 2005a., p. 10)

A passagem acima, escrita em tom confessional e autobiográfico, deixa claro que Alves se interessa por um tipo específico de protestantismo, aquele que se concentra no controle das palavras, a partir de um sistema determinado de pensamento, a saber, a reta doutrina. Ao mesmo tempo, o protestantismo da reta doutrina não é somente descritivo e explicativo, mas sobretudo performativo. Isso porque a afirmação de suas palavras se faz carne, ou seja, incide diretamente em quem somos. O próprio Rubem Alves se tornou um certo alguém por meio da atuação (performance) das palavras doutrinárias em sua carnalidade. “Eu era a minha gaiola”, disse ele. Trata-se de um efeito ontológico das palavras doutrinárias. Uma doutrina conforma quem somos mediante seus intentos de dizer o real tal qual este, em si mesmo, é. Esse dizer de acordo com o real nada mais é do que o dizer verdadeiro. Ao pensar o protestantismo da reta doutrina como linguagem performativa, Alves acaba por articular doutrina, linguagem, verdade, mundo e corpo. Não só isso. Sua abordagem encontrará na instituição eclesiástica o topos privilegiado em meio ao qual a verdade é definida, disseminada e manipulada através daqueles e daquelas que assumem lugares de distribuição, controle e condução dos corpos moldáveis pela doutrina onde a verdade se encontra formulada. Isso equivale a dizer que há uma relação entre poder (política), corpo, verdade, doutrina e protestantismo. Para se compreender o modo como Alves articula esse complexo de conceitos e de experiências, iremos seguir um dos caminhos que ele mesmo atravessa em alguns de seus textos, a saber, aquele que parte da analítica da cosmovisão protestante até chegar ao caráter inquisitorial dos protestantismos hegemônicos.

Perguntamos: como se caracteriza a cosmovisão hegemônica do protestantismo da reta doutrina? Uma das maneiras de se responder essa questão, segundo Alves, está na consideração de uma famosa pintura protestante usualmente chamada de “Os dois caminhos” ou “O caminho largo e o caminho estreito”.1 1 A figura pode ser visualizada na última pagina do artigo “O quadro ‘dois caminhos’ – uma análise semiológica das mutações no consumo de imagens iconográficas entre os protestantes brasileiros”, de Leonildo Silveira Campos. Disponível em: https://www.equiponaya.com.ar/religion/XJornadas/pdf/7/7-campos.pdf. Acesso em: 09 fev. 2023. O quadro importado pelos missionários estadunidenses para o Brasil em meados do século XIX articula uma determinada pré-compreensão teológica com dois destinos possíveis do ser humano. À esquerda da tela, está o caminho largo, o caminho da perdição: aquele que é introduzido pela imagem de Baco, o senhor das bacanais, a divindade libertina. Nesse caminho, a “alegria” e a “felicidade”, ainda que ilusórias, parecem ser constantes. Por isso, é o inferno o seu derradeiro destino. Já a porta estreita é a senda da salvação. Poucas pessoas a atravessam. Seu caminho não possui grandes contentamentos, diversões, festas, “carnalidades”, mas austeridade, disciplina, sobriedade. Seu fim é a salvação, condição das almas eleitas. No ápice do quadro, está o triângulo divino, a Santíssima Trindade, com o seu poderoso olho que tudo enxerga, pois se trata de uma divindade onisciente: o Deus Big Brother, que a tudo e a todos/as vê. Ao longo dos dois caminhos, há uma profusão de referências bíblicas para alertar os cristãos e cristãs sobre os dois paradeiros de suas escolhas. Conclusão:

Para o protestante, entretanto, a multiplicidade superficial [dos caminhos de vida] se resolve numa dualidade básica. Todo o tempo e o espaço estão subordinados a essa divisão. Não há espaços e tempos neutros, seculares, profanos, que não estejam determinados por esses dois campos de força.

(ALVES, 2005aALVES, R. Religião e Repressão. São Paulo: Loyola, 2005a., p. 163)

Assim, céu e inferno não são somente categorias escatológicas que acusam os destinos da vida post mortem. Antes, os destinos da vida após a morte decidem os modos de vida neste mundo em que existimos antes mesmo de morrer. Enquanto estamos na Terra, somos peregrinos e peregrinas. “Ser peregrino é estar num processo de saída do provisório e entrada no definitivo” (ALVES, 2005aALVES, R. Religião e Repressão. São Paulo: Loyola, 2005a., p. 165), o que desarticula ontologicamente a relação entre a existência humana e o mundo. Viver na Terra, viver de modo finito é, em verdade, ser um forasteiro/a na própria pátria, razão pela qual o cristão e a cristã não se sentem de fato em casa no mundo espaço-temporal em meio ao qual peregrinam.

A peregrinação do/da crente possui uma bússola, que Alves chama de mapa. É isso que se revela no quadro acima. As doutrinas cristãs, as interpretações consagradas da Bíblia pela tradição evangélica a qual se pertence, os códigos morais e comportamentais que direcionam a existência “crente” mapeiam e iluminam seu destino. Por isso, existir é aderir e se adaptar ao curso indicado pelo mapa de sua tradição. “O que importa é que o seu comportamento seja uma expressão da sua condição de cidadão do céu. A questão não é criar, transformar, mas imitar”. (ALVES, 2004ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004., p. 42) Se o mundo é o palco da peregrinação; se o reino ao qual a vida crente pertence, de fato, não é deste mundo; se a fé se resume à adesão a um conjunto de exigências comportamentais cuja finalidade é levar ao céu post mortem, então, a noção de salvação nada tem a ver com as condições político-sociais onde a existência no mundo se realiza em forma de coexistência, mas a salvação se identifica somente com o indivíduo e sua subjetividade. Os acontecimentos mundanos são desafios ou lições que devem estimular o espírito e elevá-lo da Terra para o céu. Nas palavras de Rubem Alves: “Cada acontecimento externo [é] uma lição para a alma. O sentido do político-social é o individual, o sentido do objetivo é o subjetivo: eis a hermenêutica protestante”. (ALVES, 2004ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004., p. 42)

Nessa cosmovisão, a morte assume um lugar de destaque. Morrer não é somente falecer. Morrer significa, nesse caso, revelar. Revela-se quem está condenado e quem está salvo; revela-se quem viveu e viverá na verdade e quem viveu e viverá na perdição-ilusão. Trata-se de uma compreensão claramente platônica: “A morte revela a verdade do invisível, obscurecida pela cortina mentirosa das aparências”. (ALVES, 2005ALVES, R. Um céu numa flor silvestre: a beleza de todas as coisas. Campinas: Verus Editora, 2005b., p. 166) Para o/a crente, morrer é glorificar-se. Porém, tornar-se crente é ter acesso à verdade que o/a não-crente não pode ter: a miséria como sentido último de quem não crê. Assim, a existência crente possui como correlato a existência ímpia. Crente-ímpio/a – eis os modos de ser qualificados pelo PRD. A condição para se preservar como crente é alijar e combater continuamente a ameaça e a tentação da vida ímpia. Isso porque, como dito acima, somos peregrinos e peregrinas; somos condicionados/as pela temporalidade e pela espacialidade, ou seja, ainda estamos no reino da contingência. Daí ser possível recair, voltar à condição ímpia. Aderir à vida crente é, necessariamente, se comprometer com o combate constante aos modos de ser ímpios. Eis um dos pontos de articulação entre protestantismo da reta doutrina e experiência inquisitorial.

Do que foi dito, reteremos a seguinte proposição: o PRD depende de uma cosmovisão e esta cosmovisão se manifesta concretamente nos modos de vida do/a crente. Falamos em cosmovisão não somente para assinalar uma visão específica de mundo, mas para deixar claro que se trata de um tipo determinado de mundo, uma forma de o mundo se mundanizar e de a existência humana ganhar modos de ser correlatos. Uma cosmovisão, portanto, não é uma simples percepção por parte de um sujeito de um mundo igual para todo mundo. Uma cosmovisão nasce de um processo de constituição tanto do mundo quanto das existências em questão no mundo. Ora, se o PRD depende de uma cosmovisão, isso significa que ele participa de um modo determinado de o mundo se mundanizar. Nesse caso, o mundo se revela como uma totalidade histórica de significação global. Por isso, Rubem Alves deixa claro que o PRD é um mundo e os mundos são “círculos, a um tempo lares e túmulos, onde vivemos e morremos”. (ALVES, 2004ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004., p. 30) Daí ser a cosmovisão do protestantismo hegemônico uma ideologia, que assegura o caráter de totalidade, globalidade do mundo protestante. Vale aqui lembrar que a noção alvesiana de mundo é marcada pela linguagem. Todo mundo é linguagem e toda linguagem participa da constituição histórica de um mundo. Melhor: “Os mundos humanos não existem como pedras e estrelas – entidades naturais, dadas, independentes da vontade e da ação. Os mundos humanos são construídos pela linguagem, preservados por ela, ensinados e transmitidos pelo ‘tênue fio da conversação’”. (ALVES, 2004ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004., p. 30) Se somos mundanos/as, não há como não sermos condicionados/as pela linguagem-mundo. Porém, se os mundos e a linguagem são históricos, então, é possível nos convertermos a outras linguagens-mundos. Eis o sentido cosmo-linguístico da conversão: migrar para outros mundos, outra linguagem e, por conseguinte, ganhar novo ser. “Os homens podem se converter. Eles migram de um universo linguístico para outro”. (ALVES, 2004ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004., p. 31) Ao se converter, o ser humano experimenta uma nova “reestruturação da realidade”. (ALVES, 2005ALVES, R. Religião e Repressão. São Paulo: Loyola, 2005a., p. 72) Essa reestruturação, como mostramos em citação anterior, é, em verdade, uma interpretação da realidade – “A linguagem, entretanto, não é uma cópia das coisas e dos fatos. Linguagem é sempre interpretação. Na interpretação, fundem-se os objetos com as emoções, o mundo e o homem se abraçam.” (ALVES, 2005aALVES, R. Religião e Repressão. São Paulo: Loyola, 2005a., p. 68) – mediante a qual as experiências humanas encontram seu alicerce histórico.

A linguagem-mundo do PRD interpreta e constitui o mundo e a existência à luz da instância metafísica ocupada pela eternidade divina, que se revela mais plenamente na vida trans-histórica pós-morte. Se os nossos destinos pós-morte se revelam no Deus manifestado nas Escrituras Sagradas e disseminado pela instituição clerical cristã, então, a nossa peregrinação temporal só pode ser compreendida a partir da eternidade. Como dito, o perigo da tentação atravessa a existência crente, o que se revela naquilo que comumente se chama de existência mundana, a saber, o conjunto dos modos de ser que retiram da finitude e não do eterno o sentido de seus comportamentos. Se a tentação do/a crente é contínua e se as existências mundanas podem estar em toda parte, então, o mundo-protestante está em contato com outros mundos, mundos ímpios. Essa intermundaneidade é a fonte do perigo. Daí a exigência de se lutar, de se voltar contra esses mundos-outros. Ainda que o mundo protestante seja também uma produção histórica, por se fiar no eterno, ele não se compreende como produto, mas como dado, constatado. Ele é voz da coisa-em-si, da realidade como ela é, independentemente da linguagem e do caráter histórico do mundo. E como a linguagem é pronunciada, falada por vidas humanas específicas, o PRD depende de certos lugares de fala para perpetuar sua força histórica. Que lugares são esses? Quem fala nesses lugares?

Para Alves, as verdades de um discurso teológico sempre escondem sujeitos que as dizem. Isso não significa dizer que toda teologia se resume a indivíduos. Antes, os “indivíduos” que manipulam as redes discursivas de uma ou mais teologias pertencem a um núcleo social institucionalmente condicionado. No caso das teologias cristãs, estas são afirmadas sob a base de uma instituição eclesiástica. Daí a conclusão alvesiana: “em todos os momentos de nossa atividade teológica, a eclesiologia está em jogo”. (ALVES, 2004ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004., p. 46) A instituição eclesiástica é o lugar de fala dos sujeitos que promulgam as verdades de uma teologia. As verdades teológicas se identificam com as verdades que interessam à estabilidade institucional de uma igreja. Ora, quem ocupa os lugares institucionais que veiculam as verdades teológicas participa da decisão do que é verdadeiro e falso para uma teologia e para a própria instituição eclesiástica. Isso significa que a verdade de uma teologia não é assegurada pela logicidade de suas afirmações, nem mesmo pela plena adequação entre o que ela diz e as bases escriturísticas de sua fala. Antes disso, quem diz e o lugar institucional em que é dito determinam a cada vez a verdade e a falsidade de uma teologia. Em outras palavras, a ortodoxia e a heterodoxia são problemas políticos e não somente doutrinários. Nas palavras de Rubem Alves:

(...) como se decide se um discurso [teológico] é ortodoxo ou não? Evidentemente, não existe nenhum procedimento que permitiria chegar-se a uma conclusão por meio de procedimentos puramente lógicos. Isso nunca ocorreu na história. A aceitação de um discurso como verdadeiro e ortodoxo e a rejeição de outro como falso e heterodoxo se dá no nível do poder político dos sujeitos que enunciam e sustentam os tais discursos. O que importa é quem tem a última palavra. E isso se decide em níveis pré-linguísticos.

(...) A confissão ortodoxa é, assim, uma forma circular de se fazer uma confissão política acerca da Igreja.

(2004, p. 45-46)

As considerações acima deixam claro como Alves inscreve o tema da verdade teológica no espaço da construção político-social do conhecimento. O lógos teológico nasce e se desdobra não de cima para baixo, das alturas da transcendência do Deus metafísico para a imanência da história humana. O locus do lógos cristão é o feixe político-social-mundano que sustenta a condição humana e suas experiências. Isso equivale a dizer que em toda teologia está em questão algum tipo de organização político-social da vida humana. Por esse motivo, é preciso reconhecer nas teologias o tipo de política da qual nascem e para a qual trabalham e o tipo de sociedade que lhes atravessa de ponta a ponta. No caso do PRD, sua base político-social é a instituição eclesiástica como se encontra dada em suas cristalizações históricas. Por isso, o sentido institucional do PRD é que define o significado de sua linguagem-mundo. Entretanto, se Alves fala em cristalização institucional, isso já assinala uma certa compreensão da noção de instituição. É que, para ele, toda instituição “é um mecanismo social que programa o comportamento humano de forma especializada”. (ALVES, 2005aALVES, R. Religião e Repressão. São Paulo: Loyola, 2005a., p. 47) As instituições nascem pelo simples fato de o ser humano não ser pré-programado corporalmente, como Alves acredita acontecer com os demais animais. Problemas prático-existenciais surgem, certas gerações encontram saídas e legam às gerações futuras suas respostas. Dessa forma, as instituições formam a “memória inconsciente” (ALVES, 2004ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004., p. 48) de certa sociedade, posto que atuamos segundo suas diretrizes, mas geralmente de modo automático, sem saber suas origens. Esse automatismo reforça o mundo em meio ao qual certos comportamentos são possíveis. Assim, o passado legado pelos nossos/as ancestrais é perpetuado pelas gerações que nascem e se apropriam das instituições como elas se encontram no mundo.

O problema se revela quando as instituições deixam de ser respostas, deixam de ser agentes de facilitação da vida humana e passam a ser fontes normativas e absolutas de condução da existência. Nesse caso, as instituições passam a “retirar” do ser humano aquilo que possibilitou o próprio surgimento das instituições, a saber, a incompletude, a indeterminação humana, ou seja, o fato de a vida não ser a priori pré-programável, visto que nenhuma natureza a define, assim como nenhuma instituição dela retira sua inconclusividade. Em outros termos, a vida não pode ser equacionada porque ela não é um problema matemático à espera de resposta. Quando uma instituição sequestra a indeterminação da existência, ela transforma o ser humano em uma equação a ser resolvida ou um enigma a ser decifrado, o que é, para Alves, impossível. Eis a inversão do sentido vital da instituição: “As instituições, que num momento originário foram criadas como expressão e instrumento de pessoas, passam a ser vividas como obstáculo e repressão”. (ALVES, 2004ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004., p. 51). É claro que muitas vezes nos adaptamos às instituições, mesmo que elas reprimam em nós possibilidades vitais criadoras. Isso se deve a algum tipo de ganho secundário, que nos leva a negociar com a violência institucional, sem que lutemos para transformá-la radicalmente. Independentemente dos ganhos secundários com a repressão institucional, fato é que, quando a instituição eclesiástica deixa de favorecer a vida, isto é, à potência corporal que somos, ela busca legitimar teologicamente sua funcionalidade. Disso surgem os mecanismos inquisitoriais das Igrejas.

As teologias do PRD retratam o sentido repressivo e violento das instituições protestantes hegemônicas. Seu desejo de eternidade, sua assepsia em relação ao mundo e às diversas religiões, sabedorias e práticas pretensamente “mundanas” são sintomas da violência política que o estrutura. Nesse sentido, essas teologias ocultam os interesses políticos e o tipo de configuração social que lhes subjazem. Contra esse tipo de protestantismo e a favor de outras bases político-existenciais da teologia, Alves afirma outra experiência protestante.

2 O espírito protestante: Rubem Alves leitor de Lutero e Paul Tillich

Contra o protestantismo da reta doutrina Alves afirma o espírito protestante. O espírito protestante é um conceito derivado da análise histórico-crítica de diversos modos de o protestantismo ter sido compreendido por autores da modernidade tardia, como Max Weber, Troeltsch e Paul Tillich, por exemplo. (ALVES, 2004ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004., p. 5) Dessa forma, o protestantismo pode ser, por um lado, compreendido em continuidade com o catolicismo e, portanto, como “reavivamento do espírito medieval” (ALVES, 2004ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004., p. 92). Assim, as reformas protestantes iniciadas no século XVI corroboraram para uma estrutura sócio-cultural pré-moderna, baseada nos dogmas doutrinários e na autoridade hierárquica, elementos nada afeitos às ideias de autonomia, emancipação e democracia da modernidade europeia. Isso fica claro na interpretação de Troeltsch levada em conta por Alves. Contudo, o desencantamento moderno do mundo promovido pela burocratização das relações sociais, pelo desenvolvimento do capitalismo ocidental e da racionalização das diversas instâncias da cultura levou Weber a inscrever o protestantismo no interior da modernidade, uma vez que a disciplina comportamental da ética protestante preparou os indivíduos para a disciplina produtivista capitalista.

Em outras palavras: na medida em que o espírito protestante se ajusta à ética de disciplina e ascetismo do sistema de produção capitalista, torna-se impossível continuar a manter os ideais individualistas [leia-se: singulares], libertários, críticos que encontramos nos momentos iniciais da Reforma.

(ALVES, 2004ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004., p. 94-95)

Dito de outro modo, ou bem o espírito protestante seria pré-moderno/medieval ou seria ele um elemento operativo no interior do capitalismo moderno. Em Alves, o espírito protestante será caracterizado inicialmente a partir de Tillich e não de Troeltsch, nem de Weber. Isso porque, para Tillich, o espírito protestante é, em verdade, princípio protestante. É o sentido subversivo e crítico desse princípio que interessa a Rubem Alves. Em uma passagem modelar de Dogmatismo & Tolerância, interpretando Paul Tillich, Alves diz:

O espírito protestante, assim, implicaria uma atitude de permanente vigilância contra os ídolos seculares e sagrados, uma recusa de ajustar-se ao status quo, uma rebelião iconoclasta que nega obediência a qualquer ordem estabelecida. Mas por quê? Por compreender que a situação humana é basicamente distorcida. Essa distorção básica, essencial, irresolvível, que o símbolo do “pecado original” preservou, significa que não existe situação alguma diante da qual a consciência humana possa descansar tranquila, pronunciando o seu sim de aprovação. Consciência é negação. Se a alienação de Deus é o denominador comum a todas as construções humanas – instituições, culturas, nações, civilizações –, a única palavra que o homem pode pronunciar é a palavra de protesto.

(2004, p. 89)

Como aparece nessa citação, a compreensão alvesiana do princípio protestante depende, obviamente, de sua formulação tillichiana. Para Tillich, o princípio protestante não é, como poder-se-ia pensar, a essência da reforma protestante, ainda que se revele em muitas experiências das reformas protestantes do século XVI. O princípio protestante tillichiano é sobretudo “um princípio universalmente significativo” (TILLICH, 1992TILLICH. P. A era protestante. São Paulo: Instituto Ecumênico de Pós-graduação em Ciências da Religião, 1992., p. 13), razão pela qual ele atua na história, mas não se resume à história, podendo ser vislumbrado inclusive em manifestações culturais irredutíveis aos quadros de reconhecimento do que seria um acontecimento cristão. Por um lado, em perspectiva teológica, o princípio protestante se manifesta como “um lado da relação divino-humana” (TILLICH, 1992TILLICH. P. A era protestante. São Paulo: Instituto Ecumênico de Pós-graduação em Ciências da Religião, 1992., p.13), lado este que experimenta a divindade como ultimate concern, ou seja, como preocupação última e distingue as experiências históricas do divino dos desdobramentos culturais decorrentes destas mesmas experiências. Isso equivale a dizer que, para Tillich, a preocupação última deve ser pensada à luz da ideia de incondicionalidade, uma vez que sempre excede os modos como experimentamos a divindade na história, o que significa, em sua linguagem, afirmar que o princípio protestante é da ordem do eterno, o que nada tem a ver com atemporalidade, mas sobretudo com irredutibilidade e inesgotabilidade. Por outro lado, para Tillich, o princípio protestante funciona como termômetro crítico das mais variadas experiências culturais, posto que permite reconhecer os diversos ídolos que atravessam uma cultura. Nesse sentido, um ídolo se manifesta quando transformamos o sentido incondicional da divindade (preocupação última) em alguma instância condicionada. Essa absolutização do relativo é visualizada pelo princípio protestante, que garante práticas crítico-proféticas como meios de desobstaculização da cultura. Como afirmou Tillich:

O princípio protestante não é uma ideia particular, religiosa ou cultural; não se submete às variações da história; não depende do aumento ou da diminuição da experiência religiosa ou do poder espiritual. Trata-se do critério absoluto de julgamento de todas as religiões e de todas as experiências espirituais; situa-se nas suas bases, tenham ou não consciência dele. Este princípio expressa-se, realiza-se, aplica-se e se relaciona com outros lados da relação divino-humana de maneiras diferentes em diferentes lugares e tempos, grupos e indivíduos. O protestantismo enquanto princípio é eterno; é um critério permanente em face de todas as coisas temporais. O protestantismo, na dimensão histórica, é um fenômeno temporal sujeito ao princípio protestante eterno. É julgado pelo seu próprio princípio, e tal julgamento pode ser negativo.

(1992, p. 14)

Essa extensa citação parece resumir o princípio protestante tillichiano à recusa, à negação de certo status quo social e cultural. Daí a ideia de protesto que marca o sentido desse princípio. Todavia, Tillich deriva o princípio protestante de uma matriz ontológico-existencial-teológica. Primeiramente, o “não” do protesto é uma dádiva do Novo Ser produzido pela graça transformadora de Jesus Cristo. Em uma interpretação um tanto ortodoxa, Tillich atribui à fé o modo de ser que permite ao ser humano não somente afirmar sentido em uma existência atravessada pelo não-ser, pelo sem-sentido, pelo absurdo, supremo ato de coragem humana. (1991) A fé permite ao ser humano participar da graça de Jesus de Nazaré e receber, dessa forma, uma possibilidade ontológico-existencial plena de ser. É a partir dessa experiência transformadora que Tillich compreende o horizonte afirmativo do princípio protestante. Dito em linguagem existencial, o novo ser proporcionado pela fé e pela graça acaba por identificar a essência humana com sua existencialidade.2 2 Uma citação de Teologia Sistemática explicita o que dissemos: “O termo ‘Novo Ser’, tal como usado aqui, aponta para a ruptura entre ser essencial e ser existencial – e é o princípio restaurativo do conjunto deste sistema teológico. O Novo Ser é o novo, na medida em que seu ser é a manifestação não-distorcida do ser essencial, dentro e sob as condições da existência. É novo em dois sentidos: é novo em contraste com o caráter meramente potencial do ser essencial; e é novo com relação ao caráter alienado do ser essencial. É atual, conquistando a alienação da existência atual. (...) Enquanto integração de quem propriamente somos com o modo como existimos, a fé em Jesus é plena afirmatividade de ser, é pura potência ontológica. Contudo, o modo de ser em que somos propriamente quem somos não é algo natural. Se assim o fosse, não seria necessário afirmar o drama da fé. Podemos não ser quem somos, o que se revela no símbolo teológico do pecado. Podemos existir sem ser plenamente nós mesmos/as. À exemplo de Jaspers, Tillich chamou de situação-limite essa condição em meio à qual podemos existir sem de fato ser. Eis aí o desespero, conceito kierkeggardiano operado por Tillich segundo seus objetivos: “a situação-limite encontrada no desespero ameaça o ser humano num nível diferente da existência física” (1992, p. 213). Porque podemos não ser plenamente quem somos, nos desesperamos e, porque nos desesperamos, vemo-nos no constante desafio de superar os perigos do não-ser, do sem-sentido. “A situação-limite da vida humana aflora quando experimentamos tudo isso de maneira incondicional e inescapável. O limite de todas as possibilidades humanas aparece quando somos ameaçados pelo não-ser, num sentido final”. (TILLICH, 1992TILLICH. P. A era protestante. São Paulo: Instituto Ecumênico de Pós-graduação em Ciências da Religião, 1992., p. 214) O sentido final é dado pela fé em Jesus Cristo. É a positividade dessa experiência que justifica e orienta o princípio protestante, segundo Tillich. Em síntese, o sentido afirmativo do princípio protestante está no paradoxo: afirmar o ser em meio ao não-ser, afirmar o sentido em meio ao sem-sentido, afirmar o incondicional em meio aos condicionamentos histórico-institucionais, afirmar a vida em meio à morte (pecado).

Rubem Alves identifica no princípio protestante a legitimidade do protesto. Uma espiritualidade protestante deve possuir a capacidade de visualizar as idolatrias e a coragem de desconstruí-las mediante atos criadores. O sentido desses atos criadores Alves encontra em Lutero, sobretudo no jovem Lutero, aquele que faz da liberdade um de seus temas preferenciais. Como disse Alves: “O Deus sobre que Lutero fala é símbolo da liberdade de todas as imposições legais que a religião e a sociedade impõem. Fé é liberdade da lei. Aquele que se submete é aquele que ainda não compreendeu o Evangelho”. (2004, p. 86) Em outro momento, diz: “Lutero colocou o mundo de cabeça para baixo. Se o Espírito de Deus não é monopólio de instituições, não é gerenciado por organizações, não é distribuído por burocracias, todas elas perdem a sua aura. Não podem mais pretender ser eternas”. (2004, p. 24) Rubem Alves, mesmo tendo sido pastor presbiteriano, não se inspira em Calvino para afirmar o espírito/princípio protestante. Ele se inspira em Lutero e no modo como nele vislumbrou a experiência da liberdade. Nesse sentido, é possível identificar dois vetores dessa experiência de liberdade na compreensão alvesiana de Lutero. No primeiro, está em questão a liberdade existencial derivada da fé e do exercício do amor. Já o segundo diz respeito à liberdade do próprio Deus, insubmisso aos nossos esquemas epistemológicos e institucionais de interpretação de Deus. Isso parece ficar claro em dois textos de Lutero, a saber, Da liberdade do cristão e Debate de Heidelberg. Partamos de uma passagem de Da liberdade do cristão:

A fé não somente faz com que a alma se torne livre, cheia de graça e bem-aventurada, semelhante à Palavra divina, mas também une a alma com Cristo, como uma noiva com o seu noivo. Desse casamento resulta, como diz São Paulo, que Cristo e a alma formem um só corpo, tornando bens comuns a ambos a felicidade e o infortúnio e tudo o mais; que o que Cristo tem pertence à alma crente, e o que a alma tem pertencerá a Cristo. Desse modo, Cristo possui todos os bens e toda a bem-aventurança que pertencerão à alma. Assim, a alma traz consigo todos os vícios e pecados que pertencerão a Cristo. Instaura-se agora uma troca feliz e uma controvérsia. Uma vez que Cristo é Deus e um homem que jamais pecou, e sua justiça é invencível, eterna e onipotente, ao apropriar-se do pecado da alma crente por meio da aliança do casamento, isto é, a fé, ele age como se ele mesmo o tivesse cometido; por conseguinte, os pecados são tragados por ele e nele submergem.

(LUTERO, 1998LUTERO. M. Da liberdade do cristão. São Paulo: Unesp Editora, 1998., § 12)

Não pretendemos dar conta da complexidade dessa citação, uma vez que ela se articula, no conjunto de textos de Lutero, com a questão do servo arbítrio, conceito derivado da obra de maturidade de Santo Agostinho e extremamente importante para os protestantismos derivados do século XVI. Importa, porém, destacar o fato de Lutero compreender a fé como participação existencial na vida de Cristo. Ainda que a alma e Cristo não se confundam, a relação entre ambos é de interpenetração. Entretanto, a ação transformadora proporcionada pela relação em questão não se dá como via de mão dupla. Antes, é Cristo que protagoniza a transformação da existência de quem crê. Ele leva consigo os pecados e, pela sua ação graciosa e gratuita, transfigura qualitativamente quem crê. Os efeitos dessa relação devem ser aqui destacados. A existência que crê torna-se livre e ama desinteressadamente, o que equivale a dizer que a fé proporciona uma existência afuncional, uma vez que não busca realizar nada com o intuito de ganhar o céu ou fugir do inferno, comportamento comum a certa meritocracia cristã. Nas palavras de Lutero: “da fé afluem o amor e o prazer em Deus, e do amor flui uma vida livre, animada e feliz, para servir desinteressadamente ao próximo”. (LUTERO, 1998LUTERO. M. Da liberdade do cristão. São Paulo: Unesp Editora, 1998., § 27) Em outro momento, de forma conclusiva, ele afirma:

De tudo isso conclui-se que um cristão não vive em si mesmo, mas em Cristo e em seu próximo; em Cristo por meio da fé, e no próximo por meio do amor; por meio da fé, ele ascende para Deus; de Deus, ele desce novamente por meio do amor, mas permanece sempre em Deus e no amor divino (...) Ora, é essa a verdadeira liberdade espiritual cristã que liberta o coração de todos os pecados, leis e mandamentos e que supera qualquer outra liberdade, tal como o Céu supera a Terra. Que Deus nos permita compreendê-la a conservá-la. AMÉM.

(LUTERO, 1998LUTERO. M. Da liberdade do cristão. São Paulo: Unesp Editora, 1998., § 30)

Trata-se de uma liberdade que conjuga as preposições “de” e “para”: livre do pecado e livre para o exercício desinteressado do amor. A experiência da graça nos liberta da funcionalidade e meritocracia e nos libera para o amor desinteressado. Aliás, foi exatamente nesse sentido que Alves conjugou graça e liberdade:

A graça – que significa, basicamente, que o problema da salvação não é um problema com o qual os homens devam se ocupar, pois depende exclusivamente de Deus. Livres de preocupações com a temperatura do inferno e o mobiliário do céu, os homens poderiam dedicar-se a cuidar da terra, boa dádiva de Deus...

(2004, p. 44)

Libertar-se do céu e do inferno é liberar-se para o amor e a fé. Não à toa, chama atenção de Rubem Alves a primeira proposição de Lutero em Da liberdade do cristão, que diz: “Um cristão é um senhor livre sobre todas as coisas e não se submete a ninguém. / Um cristão é um súdito e servidos de todas as coisas e se submete a todos”. (LUTERO, 1998LUTERO. M. Da liberdade do cristão. São Paulo: Unesp Editora, 1998., § 1; ALVES, 2004ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004., p. 86) Submissão amorosa não é sujeição existencial e liberdade de tudo e todos/as não é falta de compromisso com tudo, todos/as. Por isso, Alves entende que a ação libertadora da graça potencializa o compromisso com a terra e com o serviço amoroso a todos e todas. Daí ser a fé não a anuência a um código doutrinário. Para Alves, a fé é a “simples confiança em Deus” (2004, p. 44). Tudo isso é repercussão de sua apropriação de Lutero.

Por fim, como dito, Alves se relaciona com Lutero por meio da afirmação da liberdade radical do próprio Deus. Dentre os conceitos luteranos que afirmam a liberdade de Deus, certamente o conceito de teologia da cruz é um dos mais desafiadores, uma vez que estabelece o paradoxo como lógica da teologia. Isso significa que Lutero não se orienta pela lógica aristotélico-tomista (organum da filosofia), tampouco pela metafísica, especialmente pela teologia natural, figura suprema da metafisica escolástica, que tinha como pretensão última fundar uma racionalidade capaz de conhecer a Deus e descrever seus atributos sobretudo por meio de analogias. Sobre a relação entre lógica e teologia, diz Lutero, em Debate sobre a Teologia Escolástica: “47. Nenhuma fórmula silogística subsiste em questões divinas (...). 48. Mesmo assim, não se segue daí que a verdade do artigo sobre a Trindade contraria as fórmulas silogísticas (...). 49. Se uma fórmula silogística subsistisse em questões divinas, o artigo sobre a Trindade seria conhecido, em vez de ser crido.” (LUTERO, 1987aLUTERO. M. Debate sobre teologia escolástica. In: Obras selecionadas. Porto Alegre: Sinodal/Concordia, 1987a. v. 1., proposições 47 a 49) Se os símbolos da fé não se resumem à lógica (silogismos), a racionalidade da fé (ratio fidei) não pode ser fundada pela metafísica, mas pela cruz. Da distinção entre teologia derivada da metafísica e teologia derivada da cruz Lutero cria dois tipos de teologia, a saber, teologia da glória (theologia gloriae) e teologia da cruz (theologia crucis). Uma passagem paradigmática do Debate de Heidelberg deixa claro tal distinção:

19. Não se pode designar condignamente de teólogo quem enxerga as coisas invisíveis de Deus compreendendo-as por intermédio daquelas que são feitas;

20. mas sim quem compreende as coisas visíveis e posteriores de Deus enxergando-as pelos sofrimentos da cruz.

21. O teólogo da glória afirma ser bom o que é mau, e mau o que é bom; o teólogo da cruz diz as coisas como elas são.

22. A sabedoria que enxerga as coisas invisíveis de Deus, compreendendo-as a partir das obras, se envaidece, fica cega e endurecida por completo. (...)

24. Não obstante, aquela sabedoria não é má, nem se deve fugir da lei; sem a teologia da cruz, porém, o ser humano faz péssimo uso daquilo que há de melhor.

(LUTERO, 1987bLUTERO. M. O debate de Heidelberg. In: Obras selecionadas. Porto Alegre: Sinodal/Concordia, 1987b. v. 1., proposições. 19, 20, 21, 22 e 24).

Não é aqui o lugar para se detalhar os elementos filosófico-teológicos que atravessam cada uma dessas proposições. Entretanto, importa assinalar que, segundo as explicações de cada uma dessas teses, Lutero se fundamenta nas passagens bíblicas de Êxodo 33: 17-23 e I Coríntios: 18-23, para caracterizar a noção de teologia da cruz. Por outro lado, a teologia da glória está assentada em Romanos 1: 22. Dito de modo sintético, a teologia da glória orienta-se pela razão metafísica e acaba por se identificar com um saber que se absorve no olhar contemplativo do espírito, que, por sua vez, se engolfa naquilo que ele “vê” da divindade que se revela segundo seus limites e seu poder de intelecção. Já a teologia da cruz se funda na capacidade que a fé tem de compreender aquilo que ela “vê” à luz da autorrevelação divina, ou seja, segundo o modo como o próprio Deus revela a si mesmo, independentemente se esse modo se adéqua ou não às expectativas da razão. Como observou McGrathMcGRATH. A. Lutero e a teologia da Cruz: a ruptura teológica de Marinho Lutero. São Paulo: Cultura Cristã, 2014., Lutero distingue a teologia da glória da teologia da cruz através de duas expressões latinas: intellecta conspicit e conspecta intelligit. (2014, p. 204) O/a teólogo/a da glória observa o que foi compreendido (intellecta conspicit), razão pela qual ele/a vive engolfado/a na amplitude de sua racionalidade. Já o/a teólogo/a da cruz compreende o que fora visto (conspecta intelligit) e, por isso, se relaciona com Deus a partir do modo como Deus mesmo se revela. Mas, como Deus se revela? Nunca cara a cara, como fica claro na menção que fizemos ao texto de Êxodo, onde Deus diz a Moisés: “Não me poderás ver a face, porquanto homem nenhum verá a minha face e viverá”. (Ex 33: 20) Adiante, Deus mostra a Moisés como este pode vê-lo: “tu me verás pelas costas; mas a minha face não se verá” (Ex 33: 23) As costas de Deus (poteriora dei) são o modo como Deus se revela. Para Lutero, essas costas se identificam com o Deus crucificado, ou seja, Jesus de Nazaré. Mas, não qualquer Jesus. Trata-se do Jesus assassinado na cruz. Nesse lugar, na cruz, a onipotência de Deus se revela como fraqueza, a morte se revela como afirmação da vida, a vulnerabilidade é a casa da fortaleza, a humilhação é o lugar da glória divina. Eis o sentido paradoxal da teologia da cruz. Isso fica claro na conhecida explicação de Lutero à proposição 20 do Debate de Heidelberg:

As coisas posteriores e visíveis de Deus são opostas às invisíveis, ou seja, humanidade, debilidade, tolice, ao feitio de 1 Cor 1, 25, que fala da debilidade e tolice de Deus. Porque os seres humanos abusaram do conhecimento de Deus a partir das obras, Deus, por sua vez, quis ser reconhecido a partir dos sofrimentos e quis reprovar aquela sabedoria das coisas invisíveis através da sabedoria das coisas visíveis, para que, desta forma, aqueles que não adoraram ao Deus manifesto em suas obras adorassem ao Deus oculto nos sofrimentos, como diz 1 Cor 1, 21: “Como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela tolice da pregação.” Assim, não basta nem adianta a ninguém conhecer a Deus em glória e majestade se não o conhece também na humildade e na ignomínia da cruz.

(1987b, explicação à proposição 20)

As costas de Deus, ou seja, o Deus crucificado é signo da liberdade divina. Deus se revela como e onde quer. Foge às expectativas metafísicas e ao controle lógico-racional. Dá-se sob o modo contrário do que esperamos (sub contraria specie). A cruz é revelação livre de Deus. Não a razão metafísica, mas a fé é o índice de inteligibilidade dessa liberdade. Exatamente essa experiência da liberdade divina afirmada por Lutero reaparece em Rubem Alves, não tanto vinculada à cruz. Diz ele:

Dizer que Deus é livre significa que ele se ri das nossas tentativas de conhecê-lo pela teologia, aprisioná-lo em instituições, administrá-lo pela burocracia. Ele sempre anda por lugares imprevistos, na companhia de gente estranha, fazendo coisas meio esquisitas, tal e qual Jesus Cristo.

(2004, p. 24)

Inadequação, vento que sopra onde e como quer, mistério inabarcável – eis como a liberdade de Deus se dá para Rubem Alves. Dessa liberdade e daquela outra experimentada pelo ser humano a partir da fé surgem o sentido do princípio/espírito protestante em Alves.

Os dois vetores da liberdade (liberdade humana e liberdade de Deus) são, para Rubem Alves, o sentido afirmativo do princípio/espírito protestante. É porque o princípio protestante nos faz livres dos encargos celestes, livres da meritocracia cristã, livres das instituições eclesiásticas e livres para o amor desinteressado, que não podemos de forma alguma ser subservientes aos ídolos da nossa cultura, inclusive da idolatria institucional cristã. Por outro lado, é porque Deus é livre e não obedece ao modo como nele pensamos, que não podemos ser reféns de ortodoxias. Ora, como visto, o sentido das ortodoxias é político-social. Quando o princípio protestante alvesiano coloca em xeque as instituições eclesiásticas e seu aparelho inquisitorial, ele está questionando quem manda e a racionalidade de quem manda. Contra a violência inquisitorial das ortodoxias, Alves advoga a fraqueza das heresias e das vidas heréticas. O princípio protestante alvesiano, paradoxalmente, assume a fraqueza dos/as hereges como índice de liberdade: da divindade e do ser humano.

3 Do giro místico do protestantismo ao giro protestante da mística

O espírito/princípio protestante alvesiano não se resume a um conceito derivado de algumas apropriações teológicas de determinados autores da tradição cristã evangélica, como Lutero e Paul Tillich, por exemplo. Alves não se preocupa somente em afirmar os dois vetores anteriormente assinalados da liberdade como sentido último do seu protestantismo antiprotestante. Levando adiante a ideia de que o protestantismo é um princípio, uma arché, é possível dizer que o espírito protestante se revela na totalidade de seus textos, nos temas por ele abordados, nos conceitos por ele operacionalizados, nas diversas estórias por ele contadas etc. A promoção da liberdade entendida não como livre-arbítrio (algo nunca defendido por Alves), mas como potencialização da vida na Terra e no mundo e como Terra e como mundo sempre conduziu os passos alvesianos. O que entendemos aqui como potencialização da vida nada mais é que potencialização do corpo, este entendido como corpo-desejo, corpo-mundo, corpo-imaginação, corpo-linguagem (corpo instituidor de significação-sentido) e não como corpo-aparelho-biológico. Isso porque, para Rubem Alves, signos ou símbolos religiosos nascem do corpo e promovem certo corpo. Como o corpo é mundano e o mundo é atravessado por instituições investidas politicamente, o sentido político dos símbolos religiosos depende dos corpos dos quais tal sentido nasce e nos quais incide. Toda divindade, por conseguinte, possui significação corporal. Em sua significação, sempre está em questão o sentido político-mundano dos corpos. Isso equivale a dizer que a vitalidade da vida-corpo e não a correta leitura da bíblia (algo que atravessou todas as reformas cristãs do século XVI) é o espírito protestante de Rubem Alves. Não a verdade da fé-doutrina, mas a vitalidade do corpo é o sentido da fé protestante alvesiana. Por esse motivo, Alves ousou criar imagens para libertar a divindade das codificações doutrinárias cristãs (ou mesmo não-cristãs) e assumiu certa figura do/a herege como índice de subversão dos corpos desvitalizados que sustentam a política das ortodoxias. Ao promover tais imagens e ao advogar o direito dos corpos heréticos, tudo parece indicar que Alves acaba por realizar um duplo giro no protestantismo: o giro místico do protestantismo e o giro protestante da mística. Aventamos a hipótese segundo a qual é o significado místico do corpotência o sentido último do espírito protestante de Rubem Alves. Para dar conta disso, partiremos de duas estórias criadas por Alves.

A primeira estória se encontra no livro Perguntaram-me se acredito em Deus. No capítulo VI do livro, Mestre Benjamin é interpelado pelo pedido de uma senhora: “Mestre, fale-nos sobre Deus...”. (ALVES, 2007ALVES, R. Perguntaram-me se acredito em Deus. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007., p. 53) Sem lançar mão de qualquer doutrina, sem almejar classificar Deus de algum modo, o Mestre questionou: “Quantas pessoas aqui na minha tenda estão pensando no ar?” (2007, p. 53) Sem nenhuma resposta afirmativa, o mestre concluiu que ninguém está a pensar no ar porque espontaneamente o respira. Se lhes faltasse ar, aí sim começariam a pensar no ar. Se alguém estiver se afogando, rapidamente pensa no ar. Assim é com Deus: só pensa em Deus quem está de algum modo se afogando. O pensamento é, nesse caso, um sintoma, um desvio, o signo de que algo não está bem. Quem se relaciona bem com o ar, vive respirando e não pensando no ar. Quem se relaciona bem com Deus, não pensa em Deus: vive a vida e, assim, vivencia Deus. “Quem pensa demais e fala demais sobre Deus é porque não o está respirando. A fala indica uma ausência”. (ALVES, 2007ALVES, R. Perguntaram-me se acredito em Deus. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007., p. 54) Daí a comparação entre a relação dos pais e mães com seus filhos e filhas e a nossa relação com Deus. Pais e mães não desejam que seus filhos e filhas lhes elogiem e lhes agradeçam o tempo todo pelo fato de terem nascido. Antes, o que desejam é que eles e elas sejam felizes e vivam bem suas vidas. “Que desejamos para os nossos filhos? Que eles sejam felizes. Sorrimos ao vê-los por aí a correr, a pular, a cantar, a brincar, pensando nas coisas de criança. Mas, enquanto brincam e riem, eles não pensam em nós”. (ALVES, 2007ALVES, R. Perguntaram-me se acredito em Deus. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007., p. 54) Por analogia, Alves entende que, com Deus, se dá a mesma coisa: Deus não deve ser pensado, mas “respirado”, vivido através do modo como vivemos nossas vidas. Ele/Ela assim o quer, como um pai e uma mãe querem ver seus filhos e filhas felizes.

O desafio de se viver Deus sem pensar em Deus é se esquecer dos nomes divinos que aprendemos com as tradições religiosas que de alguma forma “educaram” a nossa relação com a divindade. É claro que o que Alves entende aqui por pensamento se identifica com as representações religiosas doutrinárias da divindade. A desconstrução dessas representações é condição sine qua non para se experimentar Deus na vida e como vida. Numa passagem central de Perguntaram-me se acredito em Deus, Alves diz: “É preciso esquecer os nomes de Deus que as religiões inventaram para encontrá-lo sem nome no assombro pela vida. Reverência pela vida: é a forma mais alta de oração. Sem nome... O nome de Deus não pode ser pronunciado...” (2007, p. 55) Essa obsessão alvesiana pela recusa dos nomes divinos se justifica pelo fato de ele querer a qualquer custo salvaguardar a liberdade de Deus, como fizera de outro modo Lutero, conforme vimos anteriormente.

Essa lição de Rubem Alves pela boca da personagem Mestre Benjamin reaparece em diversos outros textos de maturidade. Numa crônica de Um céu numa flor silvestre, por exemplo, Rubem diz: “Deus é um mistério sem fim, mistério tão grande que não há nome que se lhe possa aplicar. Nomes são gaiolas. Quando a gente dá um nome a alguma coisa ou a alguma pessoa, ela fica engaiolada.” (2005b, p. 31) Quando Mestre Benjamin responde à senhora que lhe perguntou sobre Deus que é preciso se esquecer de pensar em Deus, isso implica em esquecer a divindade engaiolada pelas malhas das palavras das tradições religiosas e se recordar da vida como lugar primordial para se fazer a experiência de Deus. É por isso que Benjamin mostrou ser a relação plena com Deus semelhante àquela das crianças com seus pais e mães. Em Um céu numa flor silvestre, Alves chega a dizer que, para sabermos algo de Deus, é preciso, consoante o que disse Jesus, tornar-se criança. “Isso quer dizer eu, para se falar de Deus, a primeira coisa a se fazer é desaprender o Deus que nos foi ensinado. É preciso esquecer para poder ver direito. É preciso voltar ao lugar antes do ensino. É preciso virar criança de novo.” (2005b, p. 33)

Outra estória que nos chama atenção também está presente em diversos livros alvesianos de maturidade. Trata-se da releitura da estória-parábola do filho pródigo, recontada com a finalidade de mostrar que a personagem do Pai não tem boa memória e, por isso, não consegue servir às meritocracias religiosa e moral. Rubem Alves repete a narrativa evangélica conhecida (Lc 15: 11-32): o filho mais novo de um pai detentor de alguns bens resolveu pedir sua parte da herança para gastar com o que lhe aprouvesse. E assim o fez. O irmão mais velho, trabalhador zeloso, homem íntegro e observador de seus deveres ficou com o pai. Quando o irmão mais novo percebeu que seu dinheiro havia acabado e sua vida entrara em estado de penúria, resolveu retornar para a casa do pai, mas sem desejar ser tratado como filho. Quis ser tratado como um trabalhador qualquer, uma vez que os funcionários do pai ao menos tinham acesso a comida e lugar de descanso. Para se aproximar do pai, o filho mais novo entendeu ser preciso se humilhar e se mostrar digno de ser recebido como trabalhador. Retornou. Ao perceber que o filho mais novo estava a caminho de casa, o pai sentiu profunda compaixão no coração e correu atrás do seu filho. Pediu para seus funcionários prepararem uma festa para ele. O filho mais velho, contudo, viu o que aconteceu e não aceitou o que o pai fez com seu irmão. Ele acreditava que os/as descumpridores/as do dever deveriam ser punidos e não celebrados. Sua memória era de juiz e sua percepção exigia cobrança: seu irmão lesou os bens do pai e, indiretamente, interferiu na sua herança (do irmão mais velho), pois os negócios do pai foram repartidos e não capitalizados. Eis como Alves entende o término da estória-parábola:

– Pai, peguei o dinheiro adiantado e gastei tudo. Eu sou devedor, tu és credor.

Respondeu-lhe o pai:

– Meu filho, eu não somo débitos.

Disse o filho mais velho:

– Pai, trabalhei duro, não recebi salários, não recebi minhas férias e jamais me deste um cabrito para me alegrar com os meus amigos. Eu sou credor, tu és devedor.

Respondeu-lhe o pai:

– Meu filho, eu não somo créditos.

(2010, p. 25-26ALVES, R. O Deus que conheço. Campinas: Verus, 2010.)

Aqui, se revela o conteúdo do que fora exposto no final do último tópico: para Rubem Alves, o sentido do espírito/princípio protestante se revela na gratuidade das relações, isto é, na superação político-existencial-institucional das relações meritocráticas. Levar a sério um Deus que não tem qualquer memória para a meritocracia é libertar o ser humano para relações de puro amor gratuito. Livres de Deus e para a vida; Deus livre da meritocracia em favor da amorosidade gratuita – eis os vetores da liberdade alvesiana ganhando forma em narrativas teológicas de caráter místico. Sim, são estórias místicas, uma vez que elas implicam o ser humano como um todo e sinalizam a possibilidade de transformação qualitativa de sua existência. O problema é que as estórias deixam de lado o status quo do mundo, índice de realização de todas as transformações qualitativas possíveis. Como falar em giro místico do protestantismo e em giro protestante da mística, sem levar em conta o mundo? As narrativas acima não deixam isso claro.

Se as estórias alvesianas sobre Deus e a gratuidade do amor não respondem de fato à relação entre protestantismo e mística, isso não quer dizer que esta relação prescinda totalmente dos significados dessas estórias para revelar seu sentido. O fato de o status quo do mundo não se mostrar como lugar onde a meritocracia foi superada e a liberdade do amor desinteressado pode ser vislumbrado com clareza não invalida essas narrativas. Primeiramente, pelo fato de Alves caracterizar, com essas estórias, o sentido afirmativo do espírito/princípio protestante. Os vetores da liberdade formam o horizonte afirmativo do espírito protestante. Daí a possibilidade da conjugação de duas proposições alvesianas: “Deus nos deu asas. Mas as religiões inventaram gaiolas” (2007, p. 55) E: “Deus é beleza. E se ele ama o que é feio é só para torná-lo belo... Por isso ele ama os desertos: porque neles se escondem fontes...” (2007, p. 56) Para Alves, a beleza assinala plenitude vital. Consoante o Nietzsche de O nascimento da tragédia (992, § 25)NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., em Rubem Alves, há belezas que não nascem da contemplação do que é, mas da transfiguração do mundo. Afirmar que Deus é beleza significa duas coisas: Deus é plenitude de vida e a plenitude de vida também nasce da recusa transfiguradora da feiura. Esse segundo aspecto atravessa a relação entre mística e protestantismo.

Considerações finais

A ambiguidade da tipologia alvesiana do guerreiro – repleto da plenitude advinda da beleza e capaz de rejeitar artisticamente a feiura – é uma voz privilegiada para se compreender o sentido último do espírito protestante no pensamento de Rubem Alves. Diante dos ídolos que produzem feiura e injustiça, a marreta do “não” protestante deve ser utilizada com vigor. Mas, a ira iconoclasta da insurreição e do “não” de todo protesto pode nascer da experiência afirmativa da beleza. Plenitude em meio à penúria – eis como o protesto se torna arte. Afirmação da vida viva em meio à naturalização das formas mortas de vida – eis como a mística se faz experiência protestante. Rubem Alves não transformou essa experiência protestante em argumento para produzir a sobrevivência histórica das Igrejas protestantes. Ele mostrou que o espírito protestante se faz vivo toda vez que Deus deixa de ser tema e a vida conjuga luta e arte; toda vez que a fé deixa de ser crença em doutrinas religiosas e se faz potência inventiva de vida poética no mundo em que a vida não brilha; toda vez que dizemos “nãos” encharcados de “sins”; toda vez que levantamos o machado de João Batista para cortar as injustiças pela raiz, com o coração em festa porque já somos atravessados/as pela plenitude que desejamos que se irradie na história. Eis como a mística deixa de falar somente do silêncio do mistério oculto de Deus, da profundidade da alma, da união do ser humano com o mistério e se transforma na celebração da plenitude na luta contra as feiuras do mundo em favor de mundos que façam a vida digna de ser vivida por inteiro: sem os entraves da injustiça e sem a culpa de ser feliz.

Tudo isso porque, em Rubem Alves, o significado de uma divindade se relaciona com o modo como corpo e mundo se relacionam. Em outros termos, a intersignificatividade marca radicalmente a relação ser humano-divindade. Para a experiência religiosa da realidade, os atributos de uma divindade só revelam efetivamente sua significação por meio dos significados das experiências humanas de mundo e vice-versa. Por esse motivo, o sentido afirmativo da beleza divina depende das condições mundanas para se revelar. Caso não haja, é preciso transfigurar a feiura, o que equivale a dizer: é preciso transfigurar o mundo. Vimos que os corpos que excedem o status quo injusto e, portanto, “feio” do mundo são corpotentes e, como tais, são corpos místicos. A transfiguração da feiura em beleza é própria de um corpotente, que é, em verdade, um corpo místico. Se o princípio protestante é um espírito de recusa de idolatria, em Alves, a noção de feiura entendida como sentido estético da injustiça é a idolatria contra a qual ele atua. Eis o giro místico do protestantismo: afirmar o protesto protestante como recusa da feiura/injustiça por meio de um corpotente, que almeja transcender, exceder em direção a um mundo outro, a uma vida outra: uma vida banhada na beleza. Não na doutrina, mas no sentido estético-político do corpotente está o caráter afirmativo e criador do protestantismo alvesiano.

Por outro lado, Rubem Alves não somente afirma o protestantismo pela mística (giro místico do protestantismo). Ele promove o giro protestante da mística. Isso desconstrói a maneira como se pensa comumente a transformação qualitativa dos corpos místicos. Dito de maneira propositalmente caricatural, pensamos a experiência mística como experiência de plenitude. Essa plenitude é, em verdade, concebida como completude. A vida mística, nesse sentido, é uma vida satisfeita. Nada lhe falta, quando sua experiência acontece. Trata-se de um instante de antecipação do céu na terra. Por esse motivo, fica claro uma vez mais que a noção de mística facilmente se adéqua às exigências da razão metafísica. Nesse caso, ela é compreendida no interior do binarismo plenitude-escassez, ou ainda, completude-falta. Porém, se levarmos adiante a identificação de mística e corpotência, então, é possível pensar a mística como experiência de satisfação insatisfeita, ou seja, o movimento de transcendência do corpotência, por um lado, afirma a recusa do status quo, o que é claramente signo de insatisfação: nega-se a feiura da injustiça por ser ela mesma faltosa. Por outro lado, o corpotência só rejeita a feiura porque se direciona para a criação da beleza. E, como o corpotência excede o status quo, ele se mostra satisfeito em ser como é e em afirmar-se como lugar de criação. Assim, o protesto do corpotente, como já dito, não é simplesmente rejeição e negação. Para além da negatividade-ressentimento, o protesto do corpotente se revela como satisfação insatisfeita. Eis o sentido do giro protestante da mística: aquele que afirma a plenitude no e como protesto, no e como recusa criadora, isto é, como satisfação insatisfeita.

Para exemplificar o sentido do giro protestante da mística, mencionaremos a tipologia do guerreiro em Rubem Alves. É preciso, porém, deixar claro, antes de tudo, que há outras tipologias alvesianas que apontam para a satisfação insatisfeita da qual estamos a falar. Contudo, escolhemos a tipologia do guerreiro, pois ela parece ser a mais apropriada para este artigo. O guerreiro surge no livro O poeta, o guerreiro, o profeta como um tipo vital capaz de integrar poética e política, ao afirmar o sentido da luta, da resistência, da práxis transformadora, que como sabemos se baseia em algum grau de insatisfação, ao mesmo tempo que afirma a beleza como princípio e sentido da própria luta.

Pois é: minha proposta é insólita. Sugiro que existe uma política que se inicia com a beleza. Podem rir-se. Não estou sozinho. Dizia Neruda: ‘E nós, os poetas, inopinadamente, encabeçamos a rebelião da alegria’. Sabe o poeta o que ninguém mais sabe: que se é verdade que só se consegue convencer os outros ressuscitando neles os sonhos fundamentais (Bachelard), é preciso compreender que nossos sonhos fundamentais são sonhos de beleza.

(ALVES, 1992ALVES, R. O poeta, o guerreiro, o profeta. Petrópolis: Vozes, 1992., p. 117)

Portanto, a política poética alvesiana se coloca além de dois extremos nefastos: a política entendida como administração da ordem, algo próprio da direita, e a política compreendida como vingança em nome da justiça social, algo que não é incomum em algumas práticas da esquerda. (1992, p. 115-116) O guerreiro de Rubem Alves concebe a política como arte, pois “o político que mora no poeta parece-me mais com o artista”. (1992, p. 118) Seus exemplos? Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr. Poderíamos acrescentar muitos outros nomes: Marielle Franco, Angela Davis, bell hooks, Mujica... O que importa, porém, é que o guerreiro ou a guerreira é sempre um corpo engravidado pela beleza; beleza capaz de se opor às feiuras da história, com vistas a promover mundos belos. “O guerreiro é o corpo que ouviu a voz do poeta, foi possuído pela beleza, e voa como uma flecha na direção do futuro por obra do arco do poder”. (1992, p. 119)

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    A figura pode ser visualizada na última pagina do artigo “O quadro ‘dois caminhos’ – uma análise semiológica das mutações no consumo de imagens iconográficas entre os protestantes brasileiros”, de Leonildo Silveira CamposSILVEIRA CAMPOS, L. O quadro ‘dois caminhos’: uma análise semiológica das mutações no consumo de imagens iconográficas entre os protestantes brasileiros. Disponível em: https://www.equiponaya.com.ar/religion/XJornadas/pdf/7/7-campos.pdf. Acesso em: 09 fev. 2023.
    https://www.equiponaya.com.ar/religion/X...
    . Disponível em: https://www.equiponaya.com.ar/religion/XJornadas/pdf/7/7-campos.pdf. Acesso em: 09 fev. 2023.
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    Uma citação de Teologia Sistemática explicita o que dissemos: “O termo ‘Novo Ser’, tal como usado aqui, aponta para a ruptura entre ser essencial e ser existencial – e é o princípio restaurativo do conjunto deste sistema teológico. O Novo Ser é o novo, na medida em que seu ser é a manifestação não-distorcida do ser essencial, dentro e sob as condições da existência. É novo em dois sentidos: é novo em contraste com o caráter meramente potencial do ser essencial; e é novo com relação ao caráter alienado do ser essencial. É atual, conquistando a alienação da existência atual. (...)

Referências

  • ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância São Paulo: Loyola, 2004.
  • ALVES, R. O Deus que conheço Campinas: Verus, 2010.
  • ALVES, R. O poeta, o guerreiro, o profeta Petrópolis: Vozes, 1992.
  • ALVES, R. Perguntaram-me se acredito em Deus São Paulo: Planeta do Brasil, 2007.
  • ALVES, R. Religião e Repressão São Paulo: Loyola, 2005a.
  • ALVES, R. Um céu numa flor silvestre: a beleza de todas as coisas. Campinas: Verus Editora, 2005b.
  • SILVEIRA CAMPOS, L. O quadro ‘dois caminhos’: uma análise semiológica das mutações no consumo de imagens iconográficas entre os protestantes brasileiros. Disponível em: https://www.equiponaya.com.ar/religion/XJornadas/pdf/7/7-campos.pdf Acesso em: 09 fev. 2023.
    » https://www.equiponaya.com.ar/religion/XJornadas/pdf/7/7-campos.pdf
  • CABRAL, A. Teologia da transgressão: ensaio sobre o princípio protestante a partir de Lutero, Nietzsche e Lévinas. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017.
  • LUTERO. M. Debate sobre teologia escolástica In: Obras selecionadas. Porto Alegre: Sinodal/Concordia, 1987a. v. 1.
  • LUTERO. M. O debate de Heidelberg In: Obras selecionadas. Porto Alegre: Sinodal/Concordia, 1987b. v. 1.
  • LUTERO. M. Da liberdade do cristão São Paulo: Unesp Editora, 1998.
  • McGRATH. A. Lutero e a teologia da Cruz: a ruptura teológica de Marinho Lutero. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.
  • NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • TILLICH. P. A coragem de ser Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
  • TILLICH. P. A era protestante São Paulo: Instituto Ecumênico de Pós-graduação em Ciências da Religião, 1992.
  • TILLICH. P. Teologia Sistemática São Paulo: Paulinas/Sinodal, 1984.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2023
  • Aceito
    17 Abr 2023
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