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A TEIA COLABORATIVA DO MUNDO INVISÍVEL

The Collaborative Web of the Invisible World

RESUMO

Nestes tempos difíceis do Antropoceno, quando ameaças duras e pesadas comprometem o destino da humanidade e de outras espécies, somos convocados a pensar novos caminhos de empenho em favor do cuidado com a Terra. Há que ampliar o campo do cuidado, envolvendo humanos e não humanos numa teia de colaboração permanente, visando a salvaguarda da criação. A atenção e o olhar devem voltar-se também para o mundo invisível sob os nossos pés, o mundo dos fungos e cogumelos, que nos fornecem, a cada dia, pistas de ressurgência revitalizadora.

PALAVRAS CHAVE
Diálogo; Colaboração; Cuidado; Mundo. Invisível; Antropoceno

ABSTRACT

In these difficult times of the Anthropocene, when hard and heavy threats compromise the destiny of humanity and other species, we are summoned to think new paths of commitment to the care of the Earth. We need to expand the field of care, involving humans and non-humans in a web of permanent collaboration to safeguard creation. Our attention and gaze must also turn to the invisible world under our feet, the world of fungi and mushrooms, which provide us, every day, with clues of revitalizing resurgence.

KEYWORDS
Dialogue; Collaboration; Care; Invisible World; Anthropocene

Introdução

Venho trabalhando há décadas a questão do diálogo inter-religioso. É um dos temas candentes neste primórdio do século XXI. Inúmeros e ricos estudos e trabalhos foram desenvolvidos em torno do tema. Com o tempo, fui me dando conta de que a questão do diálogo era ainda mais ampla que a do diálogo entre as religiões. Ampliei minha reflexão para abrigar os temas do diálogo entre espiritualidades, mas percebi que ainda apresentava restrições. Avancei para o tema do diálogo inter-convicções, de modo a poder incluir no debate aqueles que não se entendem como religiosos, mas estão igualmente em cena quando se trata de dialogar. E agora, nos anos mais recentes, fui percebendo, com a ajuda de cientistas de várias áreas das ciências humanas e biológicas, um passo que se mostra ainda mais radical e inclusivo, que é o tema do diálogo interespécies. Para tanto, foi essencial a pista aberta pela antropóloga americana Anna L. Tsing, nascida em 1952. Foi uma luz que se abriu na minha mente, desvendando caminhos novidadeiros para a minha pesquisa de “teólogo adaptado”, que busca entender a reflexão teológica como ampliação das malhas de entendimento, tendo em vista os novos sinais dos tempos. O livro que abriu novas veredas foi Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno, publicado no Brasil em 2019 (TSING, 2019TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.). Um dos focos centrais apontados pela autora indica o essencial horizonte de habitabilidades interespécies, como uma forma precisa de ampliar o repertório de “pessoas” no diálogo, de forma a incluir também outros seres vivos (TSING, 2019TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019., p. 228). Assim, o diálogo ganha a sua beleza maior, pois recupera a dignidade da diferença em sua devida amplitude, quando o “nós” em questão incorpora os seres que habitam o ambiente em que vivemos (VIVEIROS DE CASTRO, 2007VIVEIROS DE CASTRO, E. Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2007., p. 256-257).

O diálogo, em todas as suas malhas, torna-se um imperativo nevrálgico para um horizonte distinto. O historiador britânico Eric HobsbawmHOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. concluiu o seu livro Era dos Extremos com a palavra “escuridão”, a fim de mostrar o quão violento foi o “breve século XX”, um dos mais catastróficos de que se tem registro (1995, p. 22 e 562). O século XXI não mostrou sinais de mudança e, em obra posterior, o historiador sinalizou que o novo século começou na mesma linha de deterioração, “com crepúsculo e obscuridade”, exigindo uma atuação rigorosa e profética daqueles que almejam uma mudança substantiva no rumo das coisas, pois “o mundo não vai melhorar sozinho” (2002, p. 448 e 455).

A situação mundial agrava-se ainda mais com a afirmação agressiva da perturbação humana sobre a Terra, envolvendo um novo ciclo geológico, que se segue ao Holoceno. Esse ciclo, que vem sendo nomeado como Antropoceno, marca um fim de epocalidade e indica a presença desastrosa do humano sobre a Terra. Os sinais problemáticos são percebidos e sentidos com o agravamento da mudança climática, da erosão da biodiversidade, da poluição atmosférica, da devastação das florestas e da deterioração do solo, das crises sanitárias, da explosão das desigualdades e dos movimentos migratórios impactantes (GEMENE; RANCOVIC, 2019GEMENE, F.; RANKOVICM A. (Ed.). Atlas de L´Anthropocène. Paris: Presses de Sciences, 2019.).

As transformações impostas pelo ser humano no Antropoceno são impressionantes, de intensidade jamais vista, e produzem profunda inquietação em todos (GEMENE; RANCOVIC, 2019GEMENE, F.; RANKOVICM A. (Ed.). Atlas de L´Anthropocène. Paris: Presses de Sciences, 2019., p. 18). O futuro se ameaça hostil caso não se processe uma rápida transformação nas condições que provocaram e acirram o novo regime climático instalado. O desafio maior relaciona-se ao imperativo de mudanças substanciais para reverter as condições de habitabilidade na Terra. Habitar é simplesmente favorecer a inserção saudável do ser humano e dos outros seres no “interior da continuidade do mundo da vida” (INGOLD, 2015INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015., p. 26). Habitar de forma distinta o planeta é convocar a uma nova reverência (KRENAK, 2019KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 31; LS, n. 207) respeito e cuidado com o ambiente onde estamos inseridos. Estamos todos envolvidos, emaranhados na textura do mundo, em profunda inter-relação nem sempre percebida e destacada.

O diálogo envolve o deixar-se hospedar pelo outro, o que requer um ritmo de atenção singular, além de um profundo mergulho no sensível, no que está aí, bem diante dos nossos olhos, e que nos escapa continuamente. Trata-se de acionar uma atenção inovadora, tão bem definida por Simone Weil como “a forma mais rara e mais pura da generosidade” (WEIL; BOUSQUET, 1994WEIL, S.; BOUSQUET, J. Corrispondenza. Milano: SE SRL, 1994., p. 13). O caminho não é sinuoso, mas indica simplesmente uma atenção particular: manter os olhos e ouvidos despertos para captar o canto das coisas, “observar os seus movimentos e escutar os seus sons, flagrar o mundo em ação” (INGOLD, 2019INGOLD, T. Antropologia: para que serve? Petrópolis: Vozes, 2019., p. 17). Isso significa reconhecer que

o mundo é uma grande rede, é um todo único, e não existe nada que esteja isolado. Cada fragmento do mundo, até o menor deles, está interligado com os outros através de um complexo cosmos de correspondência, onde uma mente simplória dificilmente penetra

(TORAKARCZUK, 2020TOKARCZUK, O. Sobre os ossos dos mortos. São Paulo: Todavia, 2020., p. 59).

1 A “pegada” do Antropoceno

O Antropoceno é a expressão patente da pegada humana sobre a Terra, da “bagunça” que esses seres implantaram com sua gana de domínio sobre o Planeta, transformando e maculando as fundamentais condições ecológicas de permanência e sobrevivência dos seres vivos. Com ele, inaugura-se um ciclo de perturbação humana, com a irradiação necrófila do terror e a crise de habitabilidade. O mundo agora vive sob ameaça contínua, no fio da navalha. No novo regime climático, irradiam-se eventos extremos e aterradores, como a explosão das desigualdades, as migrações forçadas, a devastação das florestas, a perda da biodiversidade, a extinção crescente de espécies animais e vegetais. E outras graves ameaças já se anunciam com a degradação e a falta de água doce, a acidificação dos oceanos e as transformações no uso do solo (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir?: ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis/São Paulo: Cultura e Barbárie/ISA, 2014., p. 20-21).

A mudança climática em curso traz graves consequências. É uma preocupação que vem sendo acionada por órgãos de controle mundial. Num estudo de 2017, estimou-se que

mesmo se conseguíssemos, até meados do século, limitar o aumento médio da temperatura a apenas 2ºC em comparação ao nível pré-industrial – uma perspectiva quase impossível nos dias de hoje –, o número de mortes nas cidades ultrapassaria 350 milhões devido unicamente aos efeitos das ondas de calor

(MANCUSO, 2021bMANCUSO, S. A planta do mundo. São Paulo: Ubu, 2021b., p. 62-63).

Não estamos apenas diante de um novo regime climático, mas também de uma crise ecológica sem comparação e, ainda mais, uma crise de civilização. É a diversidade mesma que vem sendo colocada em questão com as políticas de crescimento implantadas. A paisagem do planeta vem sendo alterada, e o risco de extinção de povos inteiros já se anuncia. O diagnóstico apontado por Lévi-StraussLÉVI-STRAUSS, C. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. em Tristes Trópicos torna-se cada vez mais evidente: “O mundo começou sem o homem e se concluirá sem ele” (1996, p. 390).

Diante desse crescimento ilimitado e dessa sede de poder do homem-humano, não há futuro alvissareiro possível. O que se vislumbra é um “nós” cada vez mais privado de mundo e uma “humanidade desmundanizada ou desambientada” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir?: ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis/São Paulo: Cultura e Barbárie/ISA, 2014., p. 34). Não há muito o que oferecer aos que virão, às crianças que crescem sem muitas perspectivas (LS, n. 160). Com efeito, estamos diante de um tempo de precariedade, de perturbação. É preciso, porém, reconhecer que nesse tempo difícil, de ruínas, ocorrem também emergências que facultam a esperança. Mesmo num espaço pontuado por “diversidade contaminada”, vislumbram-se “gestos barreira” (LATOUR, 2020LATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo / Rio de Janeiro: Ubu / Ateliê de Humanidades, 2020., p. 131), centelhas ou brechas alvissareiras, indicando a possibilidade de artimanhas de resiliência e sobrevivência (TSING, 2019TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019., p. 23).

2 O excepcionalismo humano em questão

No importante debate em torno do tema da inter-relação do humano com os outros animais e seres não humanos, coloca-se em questão a tradicional ideia do excepcionalismo humano, que tem provocado muitas interrogações e dúvidas extremamente pertinentes. Em salutar debate acadêmico, autores reconhecidos buscam “redimensionar o lugar do humano em sua relação ao mesmo tempo amorosa e conflituosa com as alteridades que o cercam e o constituem como de fato humano” (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, E. O pensamento vegetal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021., p. 21). Com os estudos multidisciplinares em curso, revelou-se cada vez mais caduca a ideia de concentrar a perfeição e a maturidade exclusivamente no ser humano, como se tudo que o precedesse fosse apenas uma preparação para a sua silhueta, considerada o destino de toda da criação (COCCIA, 2020COCCIA, E. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes, 2020., p. 18).

As reflexões tecidas no campo da antropologia foram decisivas nesse questionamento, com a busca de superação da problemática cisão entre cultura e natureza presente no pensamento ocidental. Lévi-Strauss teve um papel singular e pioneiro na quebra dessa barreira. Para ele,

a separação do homem de sua matriz natural, bem como sua promoção a um lugar definitivo da verdade, fundam historicamente um humanismo pervertido, que, instalando fronteiras entre a humanidade e o resto do vivo (reinos animal e vegetal), inaugurou um ´ciclo maldito`: aquele que, com a ajuda da ´mesma fronteira constantemente recuada, serviria para afastar os homens de outros homens

(apud LOYER, 2018LOYER, E. Lévi-Strauss. São Paulo: Edições Sesc, 2018.).

A cisão instaurada acabou justificando um “humanismo sem restrição e sem limites”, guiado por uma duvidosa perspectiva teleológica, que acabou provocando tantas violências no campo histórico e social. As relações de interdependência foram ganhando relevo com os estudos voltados para uma visada mais holística, como no exemplo da retomada do valor do animismo indígena empreendido por Philippe Descola e outros (DESCOLA, 2014DESCOLA, P. Oltre natura e cultura. Firenze: Seid, 2014., p. 195 e 208; INGOLD, 2015INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015., p. 115-116). A antropologia foi pioneira nesse trabalho da defesa da diversidade cultural, bem como na dinâmica que levou à complexificação da ideia de humanidade (INGOLD, 2015INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015., p. 22). Trata-se de um sadio movimento de avançar para além do humano (KOHN, 2017KOHN, E. Comment pensent les forêts. Paris: Zone Sensible, 2017., p. 48), situando-o, com justeza, como parte do vivente e não seu eixo centralizador. Considerar os seres humanos como protagonistas da história não constitui apenas um preconceito ordinário, mas uma visão que defende “uma agenda cultural atrelada ao sonho do progresso pela modernização”. Na verdade, “existem outros modos de fazer mundos” (TSING, 2022TSING, A. L. O cogumelo no do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. São Paulo: n-1 edições, 2022., p. 229).

A crença no excepcionalismo humano traduz igualmente uma perigosa arrogância, com frutos problemáticos. Impõe-se mais do que nunca muita humildade e consciência da vulnerabilidade. Tem razão Ailton Krenak ao dizer que “os humanos não são os únicos seres interessantes” que podem contribuir para a dinâmica da existência (2019, p. 32). Nada mais obtuso hoje em dia do que defender como dado natural o credo pitagórico que situa o ser humano como “medida de todas as coisas”. Como apontou Stefano Mancuso, estudioso na neurobiologia vegetal, é mais do que ridícula e perigosa a ideia “de que o que vale para o nobre 0,3% da vida (os animais) é o que caracteriza toda a vida e é digno de ser conhecido – o resto é marginal” (2021bMANCUSO, S. A planta do mundo. São Paulo: Ubu, 2021b., p. 82).

3 A abertura para as “espécies companheiras”

Em tempos recentes vem-se falando muito em “virada animal”, termo que designa um novo momento de abertura às “espécies companheiras”, para utilizar uma expressão de Donna Haraway. No Brasil, o chamado a tal apelo veio também do mundo da literatura, com as precisas reflexões de Evando Nascimento e Maria Esther Maciel, entre outros. Recorrendo a Clarice Lispector, que falou em “chamado” animal, Evando Nascimento abriu uma fresta importante na reflexão literária para acentuar esse desafio essencial, no seu livro Clarice Lispector: uma literatura pensante (2012). Por sua vez, Maria Esther Maciel embrenhou-se em debates substantivos sobre a zooliteratura, trazendo para o cenário perspectivas fundamentais na linha de um repensamento da relação humanos-animais (2016). Exerceu ainda a tarefa de trazer à tona outros autores e estudiosos da literatura que serviram de porta de entrada para essa reflexão no cenário internacional, como J. M. Coetzee (2002)COETZEE, J.M. A vida dos animais. São Paulo: Companhia das Letras, 2002., John Berger (2021)BERGER, J. Por que olhar para os animais. São Paulo: Fósforo, 2021., Dominique Lestel (2004)LESTEL, D. L´animal singulier. Paris: Seuil, 2004., Jacques Derrida (2002)DERRIDA, J. O animal que logo sou. São Paulo: Unesp, 2002. e outros. Tais autores

buscam também desafiar a natureza antropocêntrica que determinou grande parte da ficção ocidental de todos os tempos, avançando e reinventando as contribuições de escritores animalistas do passado que retiraram os animais do mero papel de símbolos, alegorias e metáforas a serviço dos valores humanos

(MACIEL, 2022MACIEL, M.E. Nas fronteiras do humano e do não humano. Vozes animais na ficção: In: SECCHES, F. (Org.). Depois do fim do mundo: conversas sobre literatura e antropoceno. São Paulo: Editora Instante, 2022., p. 99).

No campo geral da antropologia, a virada animal ocorreu com pensadoras importantes como Donna Haraway (2021HARAWAY, D. O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.; 2022)HARAWAY, D. Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu, 2022., Vinciane Despret (2007DESPRET, V. Être bête. Arles: Actes Sud, 2007.; 2021)DESPRET, V. O que diriam os animais? São Paulo: Ubu, 2021. e Nastassja Martin (2021)MARTIN, N. Escute as feras. São Paulo: Editora 34, 2021.. Em colóquio internacional realizado no Brasil, em setembro de 2014, Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra, estiveram presentes Haraway e Despret, com atuações singulares no debate da questão. Foi uma realização do departamento de filosofia da PUC-RJ e do programa de pós-graduação em antropologia social, do Museu Nacional (UFRJ). Na sequência, vieram diversas publicações no Brasil com essas e outras autoras e autores que se dedicam ao tema.

A antropóloga Nastassja Martin, que foi orientanda de Philippe Descola no doutorado em Paris, concluído em 2014, retomou o tema do chamado animal a partir de uma pesquisa acidentada sobre o clã even, envolvendo um urso no coração de uma floresta na Sibéria. No evento, que transformou sua vida, ela passou a viver, sentir, pensar e escutar com mais cuidado a floresta, e as forças nela envolvidas. Assim se expressou: “As árvores, os animais, os rios, cada parte do mundo guarda tudo o que se faz e tudo o que se diz” (2021, p. 80). Em sintonia com seu orientador, Descola, Nastassja reabilita o animismo e abre-se generosamente para um diálogo com os animais. Tem consciência de “viver num mundo em que todos se observam, se escutam, se lembram, dão e retomam” (MARTIN, 2021MARTIN, N. Escute as feras. São Paulo: Editora 34, 2021., p. 77).

O que a literatura, a antropologia e a biologia conseguiram captar com agudeza, escapou, em muitos casos, ao olhar filosófico, tomado por certo esnobismo teórico e um antropocentrismo cerrado. É o caso de Martin Heidegger, que foi incapaz de avançar em sua reflexão, envolvido e inebriado pelo seu encantamento com o humano. Como ele mesmo expressou em sua obra Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude e solidão, os animais e as plantas seriam “pobres de mundo” (weltarm) (HEIDEGGER, 2015HEIDEGGER, M. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. 2.ed. Rio de Janeiro: Gen / Forense Universitária, 2015., p. 248). A seu ver, só o homem poderia ser considerado um formador ou construtor de mundo. O seu foco particular é o humano, enquanto os outros animais seriam apenas um “efeito colateral”. Como mostrou com clareza Anna Tsing, “Heidegger oferece uma afirmação excepcionalmente clara do sonho do humano, que nos captura em seu encantamento, cegando-nos aos outros” (TSING, 2019TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019., p. 261)1 1 Ver ainda: DERRIDA, 2002, p. 62; NASCIMENTO, 2021, p. 49-55; INGOLD, 2015. p. 36. .

A criativa expressão “espécies companheiras” (companion species), cunhada por Donna Haraway, vem justamente resgatar a alteridade significativa que habita o mundo dos animais, entendidos como companheiros na mesma jornada na Terra. Em seu “manifesto das espécies companheiras”, Haraway buscou mostrar isso com firmeza, tendo sobretudo em vista a dignidade dos cães como espécies de presença e sentido. Para ela, o manifesto era sobretudo “uma incursão acadêmica em excessivos territórios semiconhecidos, um ato político de esperança num mundo à beira de uma guerra mundial” (HARAWAY, 2021HARAWAY, D. O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 10). Quando utiliza a categoria “espécies companheiras”, Haraway indica que ela é “turbulenta”, pois provoca uma reviravolta na visão de mundo. Ela é, na verdade, “um indicador para um contínuo devir-com, é uma teia muito mais rica para se habitar do que qualquer dos pós-humanismos em exibição após a sempre adiada desaparição do homem (ou em referência a ela)” (HARAWAY, 2022HARAWAY, D. Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu, 2022., p. 26-27).

Ao buscar uma perspectiva dialogal, que envolva as outras criaturas, temos que criar alianças, compromissos, respeito, delicadeza e cuidado com os demais. Ailton Krenak fala em reverência, e também em “alianças afetivas”, o que “pressupõe afetos entre mundos não iguais”, sem desconhecer o que há de íntegro e digno em cada ser particular. Para Krenak, há que “tirar as sandálias” para adentrar com grandeza no mundo sagrado do outro (2022, p. 82). Isso sim é diálogo e acolhida.

4 Novos caminhos com a virada vegetal

Em tempos de recuperação do pensamento animal em várias áreas do saber, testemunhamos igualmente a emergência de uma reflexão vitalizadora sobre o mundo vegetal. Foi o que ocorreu no Brasil num evento único, no final de 2021: a Festa Literária Internacional de Parati (FLIP)2 2 FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA. Flip 2021: confira a programação da festa literária deste ano. 24/11/2021. Disponível em: https://cultura.uol.com.br/noticias/44358_flip-2021-confira-a-programacao-de-um-dos-principais-eventos-literarios-do-brasil.html. Acesso em: 02 fev. 2023. , dedicada ao pensamento vegetal, com a presença de vários nomes nacionais e internacionais, como Stefano Mancuso e Emanuele Coccia. Dentre os curadores do festival, conta-se a presença marcante de Hermano Vianna. Foi uma das mais bruscas guinadas ocorridas nesse festival desde sua primeira edição, em 2003, servindo de plataforma para lançar no país um debate inovador. A FLIP 2021 foi um marco nessa reflexão e deu eco a um debate que já estava em curso na biologia, na filosofia e nas artes visuais, conferindo ao evento um pioneirismo único.

O despertar do interesse pelo mundo vegetal é hoje um fenômeno amplo, envolvendo várias áreas de conhecimento, como as ciências biológicas, a política, a literatura, as artes e a filosofia. Em grande parte, isso é “motivado pelo lugar central que as plantas ocupam no debate acerca da crise ambiental, climática e ecológica em curso, com seus desafios para os coletivos a um só tempo humanos e não humanos” (OLIVEIRA et al., 2020OLIVEIRA, J.C. et al. (Orgs). Vozes vegetais. Diversidade, resistências e histórias da floresta. São Paulo: Ubu/IRD, 2020., p. 13).

A eclosão do interesse pelos animais reverberou na atenção ao mundo das plantas. Desconsiderar esse universo vegetal é excluir parte essencial da biomassa, ou seja, da massa total de tudo o que é vivo. Vivemos num planeta coberto de verde, num planeta de presença vital das plantas (MANCUSO; VIOLA, 2015MANCUSO, S.; VIOLA, A. Verde brillante: sensibilità e intelligenza del mondo vegetale. Firenze: Giunti, 2015., p. 107). Elas são também protagonistas na paisagem do planeta. As plantas “constituem a nervura, o fundamento, o mapa (ou planta) com base nos quais se constrói o mundo que vivemos” (MANCUSO, 2021bMANCUSO, S. A planta do mundo. São Paulo: Ubu, 2021b., p. 11).

Assim como as plantas constroem o seu cotidiano voltadas para a luz, esse fototropismo ilumina também nossa visão peculiar da vida, que perde o seu sentido se excluímos de seu mapa a dinâmica que envolve o mundo vegetal. Vemos hoje com alegria o interesse de segmentos da filosofia por esse tema, pois em geral as plantas foram uma “ferida sempre aberta no esnobismo metafísico” (COCCIA, 2018COCCIA, E. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018., p. 11). Diante das evidências apresentadas pelas ciências sobre esse mundo vegetal, o filósofo não pode mais passar indiferente. Junto com o conhecimento do passado, eclode também agora o desafio de entender a vida e história das espécies animais e vegetais que modelam o seu cotidiano (COCCIA, 2018COCCIA, E. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018., p. 23). Reconhecemos hoje que “as plantas são os verdadeiros mediadores: são os primeiros olhos que se colocaram e abriram para o mundo, são o olhar que consegue percebê-lo em todas as suas formas” (COCCIA, 2018COCCIA, E. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018., p. 26). Todos estamos mergulhados num mundo do sensível, com sua música, seu aroma e suas cores. Não haveria vida se prescindíssemos das plantas, pois são elas que possibilitam a atmosfera para a nossa respiração. Seria uma ilusão nos imaginarmos destacados dessa paisagem, pois “todo ser vivo se constrói a partir dessa mesma matéria que desenha as montanhas e as nuvens” (COCCIA, 2018COCCIA, E. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018., p. 42).

A sensibilidade para o mundo natural não é algo que ocorre sem dificuldade, mas demanda um processo de aproximação e sensibilização. São passos progressivos, que nos levam a perceber essa maravilha fundamental de nosso entorno verde. O senso da maravilha é essencialmente fonte de conhecimento. A maravilha, diz Abraham Heschel, é o canal que nos conduz ao polo do significado. Sem ela, perdemos nossa bússola. É com ela que nasce o senso da admiração, fonte de qualquer filosofia: “O seu vibrar é música, o seu ornamento é ciência, mas o que nela se esconde é imperscrutável. O seu silêncio permanece intacto: nenhuma palavra dá conta de cancelá-lo” (HESCHEL, 2001HESCHEL, A.J. L´uomo non è solo. Milano: Mondadori, 2001., p. 29).

O ensaísta e pensador Octavio Paz, em sua obra O arco e a lira, sublinha que nossa atitude diante do mundo natural segue um processo gradual, marcado por restrições iniciais precisas. Dada a beleza de sua reflexão, vou reproduzi-la na sua inteireza:

Diante do mar ou de uma montanha, perdidos entre as árvores de um bosque ou na entrada de um vale que se estende aos nossos pés, nossa primeira sensação é a de estranheza ou separação. Nós nos sentimos diversos. O mundo natural se apresenta como algo alheio, possuidor de uma existência própria. Esse distanciamento se transforma logo em hostilidade. Cada galho de árvore fala uma linguagem que não entendemos; em cada matagal dois olhos nos espiam; criaturas desconhecidas nos ameaçam ou escarnecem de nós. Também pode ocorrer o contrário; a natureza se recolhe em si mesma e o mar se enrola e desenrola à nossa frente, com indiferença; as rochas se tornam ainda mais compactas e impenetráveis; o deserto mais vazio e insondável. Não somos nada diante de tanta existência fechada em si mesma. E desse sentir-nos nada passamos, se a contemplação se prolonga e o pânico não nos embarga, ao estado oposto: o ritmo do mar se adapta ao compasso do nosso sangue; o silêncio das pedras é o nosso próprio silêncio; andar nas areias é caminhar pela extensão da nossa consciência, ilimitadas como elas; os sons do bosque nos aludem. Todos nós fazemos parte de tudo. O ser emerge do nada. Um mesmo ritmo nos move, um mesmo silêncio nos rodeia

(PAZ, 2012PAZ, O. O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012., p. 160-161).

Essa bonita experiência de comunhão com a natureza, que, segundo Paz, ocorre se nos deixamos tocar pela contemplação, é algo naturalmente presente nos povos originários. Deles podemos aprender essa bonita reverência para com a natureza. Numa de suas entrevistas, o líder indígena Ailton Krenak expressou com clareza esse seu vínculo indissolúvel com a natureza. Mesmo estando fisicamente distante das matas, quando em viagem, ele indica que a natureza o acompanha por onde ele vai. Ela está enraizada em cada uma de suas células do corpo: nas plantas do quintal, na chuva que escorre, no brilho dos raios de sol, mesmo no espesso concreto, que esconde as brechas bonitas do céu (KRENAK, 2015KRENAK, A. Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2015., p. 83).

Tanto a virada animal como a vegetal, quem sabe também a mineral, que já se anuncia, são expressões patentes de que o mundo é um lugar de inter-relações, como “o espaço metafísico da forma mais radical da mistura”, que revela a “coexistência do incompossível”. Todo e qualquer ser vivo, humano ou não, está emaranhado na teia da vida, imerso no sensível. Todo ser vivo, como indica Emanuele Coccia, “vive já, desde sempre, na vida dos outros” (COCCIA, 2018COCCIA, E. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018., p. 51).

Nesse mergulho no seio vital, os vegetais encontram o seu caminho de brilho e sobrevivência. Com artimanhas incríveis e criativas, encontram soluções para os problemas, em vista de sua sobrevivência. E tudo de uma forma bonita e sensível. Nada mais equivocado do que excluir as plantas do domínio da sensibilidade (COCCIA, 2019COCCIA, E. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018., p. 99).

5 A teia de vida sob os pés

Com base em todas as reflexões anteriores, somos testemunhas da abundância de vida que nos rodeia. Estamos numa paisagem ou ambiente repleto de movimento e vibração de vida, que se encaminha maravilhosamente em direção à luz. Estudiosa do mundo invisível dos fungos, a antropóloga Anna Tsing, nos faz um convite:

Da próxima vez que você caminhar por uma floresta, olhe para baixo. Uma cidade está a seus pés. Se você fosse de alguma forma descer sob a terra, você se encontraria cercado ou cercada pela arquitetura de teias e filamentos. Os fungos criam essas teias à medida que interagem com as raízes das árvores, formando estruturas conjuntas de fungos e raízes chamadas ´micorrizas`. As teias micorrízicas conectam não apenas raízes e fungos, mas, através de filamentos fúngicos, árvores com árvores, conectando a floresta em emaranhados. Essa cidade é uma cena animada de ação e interação

(TSING, 2019TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019., p. 43)3 3 E ainda: TSING, 2022, p. 229. .

O que existe sob os pés é uma verdadeira cidade subterrânea movida por vivas e criativas interações e transações cosmopolitas. Os que derrubam as árvores não se dão minimamente conta da violência que praticam ao agredir esse tecido de relações. Esse emaranhamento subterrâneo é o que constitui a “textura da vida”. Na visão de Ingold, há que se dar conta desse “ambiente” vital que nos circunda. Para ele, “ambiente” é o “domínio de emaranhamento. É dentro desse emaranhado de trilhas entrelaçadas, continuamente se emaranhando aqui e se desemaranhando ali, que os seres crescem ou ´emanam` ao longo das linhas de suas relações” (INGOLD, 2015INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015., p. 120). O famoso naturalista e cientista alemão Alexander von Humboldt (1769-1859) já tinha captado bem anteriormente a presença dessa rede de emaranhamentos. Hoje, os estudiosos do assunto seguem essa pista, desenvolvendo com mais atenção pesquisas em torno desse “tecido” emaranhado em forma de rede.

A dinâmica dessa vida invisível, como também perceberam Guattari e Deleuze em seus estudos sobre o rizoma4 4 Alguns, como INGOLD, preferem a imagem do micélio fúngico. , é marcada por grande complexidade. Não dá para compreender esse universo com ideias teleológicas preconcebidas. Nada mais equivocado do que querer buscar um “fundamento” para o que ocorre nesse mundo invisível de relações vitais. Como dizem esses autores, não há começo ou fim em um rizoma. Eles se esparramam em fluxos subterrâneos, movidos por hastes milagrosas, que configuram um mundo de diversidade e multiplicidade. Não se pode fixar um ponto ou conceber uma ordem, mas o que ocorre é que “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro, e deve sê-lo” (DELEUZE; GUATTARI, 2011DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs 1. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p. 22 e 48-49). Não há ali ponto de partida ou de chegada. Para a cognição do fenômeno, há que se perceber a singularidade das operações em curso. Se existem, por um lado, linhas de segmentaridade organizadas e territorializadas, existem, por outro, “linhas de desterritorialização”, que rompem qualquer lógica. Essas linhas impressionantes se conectam umas com as outras sem que consigamos perceber onde está o início ou o fim. O rizoma “não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, direções movediças. Eles não têm começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda” (DELEUZE; GUATTARI, 2011DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs 1. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p. 43).

Esse mundo invisível ainda é bem desconhecido pela ciência. Por mais que avancem as pesquisas a seu respeito, em diversas ciências, o potencial de mistério que envolve esse domínio ainda é muito grande. Trata-se de uma vida prodigiosa, como se fosse um outro mundo, disperso aos nossos olhos, cujos habitantes, em verdade, têm um peso maior do que toda a matéria existente sobre a Terra (WILSON, 2008WILSON, E. A criação: como salvar a vida na terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 136 e 175).

Até meados do século XIX, bactérias e fungos eram classificados como plantas. Hoje em dia, ganharam independência e têm uma classificação à parte, como reinos independentes. Por anos a fio, não se teve um consenso sobre o que são realmente os fungos. Como mostrou o biólogo Merlin Sheldrake, conhecido por suas pesquisas sobre redes fúngicas subterrâneas nas florestas do Panamá, “o sistema taxonômico de Lineu foi projetado para animais e plantas, e não lida facilmente com fungos, líquens e bactérias” (SHELDRAKE, 2021SHELDRAKE, M. A trama da vida: como os fungos constroem o mundo. São Paulo: Ubu, 2021., p. 232-233).

As cadeias micorrízicas5 5 Do grego: mikes (fungo) e rhiza (raiz). , como indicou Sheldake, “conseguem ligar árvores em redes compartilhadas, chamadas de ´internet das árvores`” (2021, p. 12). É desse mundo invisível que brotam por todo lado os cogumelos, que nada são senão os esporomas, ou seja, o local onde os esporos aparecem. Eles podem emergir no solo, mas podem igualmente estar alguns centímetros sob a superfície, revelando sua presença apenas aos bons catadores, que percebem a ligeira elevação do solo (TSING, 2022TSING, A. L. O cogumelo no do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. São Paulo: n-1 edições, 2022., p. 350).

Os fungos nutrem-se através dos micélios. Eles

digerem o mundo em que vivem e o absorvem. Suas hifas são longas e ramificadas, e com uma única célula de espessura – entre dois e vinte micrômetros de diâmetro, mais de cinco vezes mais finas que um fio de cabelo humano médio (...). A diferença entre animais e fungos é simples: os animais colocam comida em seus corpos, enquanto os fungos colocam seus corpos na comida

(SHELDRAKE, 2021SHELDRAKE, M. A trama da vida: como os fungos constroem o mundo. São Paulo: Ubu, 2021., p. 61).

É incrível o poder de resiliência desses fungos e cogumelos. São muito mais resistentes do que os seres humanos às adversidades. O seu poder de ressurgência é impressionante. São poucos os ambientes onde se veem obstruídos. Brotam por toda parte, mesmo nos ambientes mais devastados, perturbados e comprometidos. Eles mostram sua presença viva também nas paisagens devastadas. Dizem os especialistas que um cogumelo famoso, muito apreciado no Japão, o matsutake, foi o primeiro ser vivo que apareceu depois do bombardeio de Hiroshima, em 1945 (TSING, 2022TSING, A. L. O cogumelo no do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. São Paulo: n-1 edições, 2022., p. 41). Em pesquisas realizadas em Chernobyl6 6 Situada na atual Ucrânia. , que passou também por forte irradiação decorrente da explosão de um reator nuclear, em 1986, constatou-se uma grande presença de fungos resistentes a resíduos radioativos (SHELDRAKE, 2021SHELDRAKE, M. A trama da vida: como os fungos constroem o mundo. São Paulo: Ubu, 2021., p. 13; SEIFERT, 2022SEIFERT, K. The Hidden Kingdon of Fungi. Vancouver/Berkeley/London: Greystone Books, 2022., p. 191). Artimanhas são encontradas para resistir às intempéries, como a realidade das cascas grossas dos pinheiros, bem como de suas altas coroas, para enfrentar os mais difíceis incêndios, sem que restem senão cicatrizes (TSING, 2022TSING, A. L. O cogumelo no do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. São Paulo: n-1 edições, 2022., p. 248-249). Determinados cogumelos, como o matsutake, têm um potencial de produção de ácidos que quebram a resistência de qualquer rocha, “liberando nutrientes para o crescimento de pinheiros e fungos (2022, p. 251).

Anna Tsing cunhou o sugestivo termo “ressurgência” para expressar o potencial de resistência de assembleias multiespécies em zonas de ruínas. É o que explica, por exemplo, o ressurgimento incrível de mudas e plantas depois de incêndios devastadores. Trata-se do “trabalho de muitos organismos que, negociando através das diferenças, forjam assembleias de habitabilidades multiespécies em meio às perturbações” (TSING, 2019TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019., p. 226).

Tudo vem comprovar a existência de “comportamentos sofisticados” nesse mundo invisível, que corroboram para nós a existência de inteligência e cognição nessa paisagem específica. São movimentos, artimanhas, estratégias diversificadas que nos convocam a “repensar o significado de ´resolução de problemas`, ´comunicação`, ´tomada de decisão`, ´aprendizado` e ´memória`” (SHELDRAKE, 2021SHELDRAKE, M. A trama da vida: como os fungos constroem o mundo. São Paulo: Ubu, 2021., p. 25)7 7 E igualmente: MANCUSO, 2019, p. 16-17; MANCUSO, 2021a, p. 16; VIOLA, 2015, p. 132-133. . Instrumentados por tal cognição, os fungos conseguiram o milagre da sobrevivência, persistindo “depois dos cinco principais eventos de extinção da Terra, que eliminaram entre 75% e 95% das espécies do planeta a cada vez” (SHELDRAKE, 2021SHELDRAKE, M. A trama da vida: como os fungos constroem o mundo. São Paulo: Ubu, 2021., p. 203).

Se os fungos crescem na “bagunça” arranjada pelos humanos no Antropoceno, é porque são dotados de uma cognição bem particular e fantástica. Não é pela ausência de cérebro que estariam privados de inteligência. Ao contrário, os fungos e as plantas são capazes de captar e perceber o ambiente com sensibilidade mais precisa e elevada que a dos animais. Diante de eventos catastróficos, eles se articulam em rede para resistir, mantendo acesa a funcionalidade e a capacidade de adaptação com fulgurante rapidez nas mudanças ambientais. É verdade que eventos problemáticos do Antropoceno, como a irradiação das plantations (TSING, 2019TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019., p. 59, 206; OLIVEIRA et al., 2020OLIVEIRA, J.C. et al. (Orgs). Vozes vegetais. Diversidade, resistências e histórias da floresta. São Paulo: Ubu/IRD, 2020., p. 95-96), são ameaças contundentes ao mundo dessas redes vitais. Elas constituem o maior risco para “um fim sem retorno das florestas” (2020, p. 95). Como pontuou Anna Tsing,

as plantas e fungos não têm as faces éticas de Lévinas, nem bocas para sorrir e falar; é difícil confundir suas práticas comunicativas e representacionais com as nossas. No entanto, suas atividades de criação de mundo e sua liberdade de agir também são claras – se permitirmos que a liberdade e a criação do mundo sejam mais que intenção e planejamento. É desse potencial compartilhado de liberdade e criação de mundo que podemos avançar para vidas sociais mais que humanas (2019, p. 125).

6 Caminhos colaborativos do mundo invisível

Durante toda a presente reflexão, estive preocupado sobretudo com a questão do diálogo, em particular nesses tempos difíceis do Antropoceno. Pode parecer estranha a alguns a imersão de um teólogo num campo distinto do que ele está acostumado a atuar, mas deve-se reconhecer que a verdadeira teologia não pode estar encerrada num âmbito restrito e seu objeto pode perfeitamente e dignamente ser diversificado. Durante todo o meu aprendizado envolvido na teologia da libertação, um dos legados importantes que se manteve sempre aceso em minha trajetória foi algo que bebi na epistemologia teológica, incentivado por Clodovis BoffBOFF, C. Teologia e prática: teologia do político e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1978.. Ele diz, em sua tese doutoral publicada em 1976, que a teologia não pode prescindir das novas epistemes, com o risco “de continuar na pré-história das Ciências do Homem e de veicular assim seu passado de ora em diante ideológico” (1978, p. 53). Seguindo fielmente essa perspectiva, Clodovis precisa sua ideia, fundada em pilastras importantes da teologia, como Tomás de Aquino, de que a fé que anima o teólogo “não é paisagem a se ler, mas óculos para ver. Ela não é o mundo, mas um olhar sobre o mundo. Ela não é um livro a se ler, mas uma gramática para ler – e ler todos os livros” (1978, p. 224). E meu propósito aqui foi justamente abordar um campo que considero essencialmente importante para abrir caminhos dialogais nestes tempos difíceis.

Num dos mais densos trabalhos de Bruno Latour, sobre os modos de existência, o qual amplia suas pesquisas sobre a antropologia dos modernos, o autor reconhece que estamos assistindo hoje a um “retorno progressivo às cosmologias antigas e às suas inquietudes” (2012, p. 452)8 8 A ideia foi retomada por Eduardo Viveiros de Castro no prefácio do livro de KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 35. . Complementando sua reflexão, assinala que tais inquietudes vêm se revelando cada vez mais certeiras e plausíveis. São previsões que foram e vêm sendo apontadas por lideranças dos povos originários e que não se mostram “assim tão infundadas”. O que antes era visto como obsoleto revela-se agora como referência para o exercício de sobrevivência e ressurgência (LATOUR, 2021LATOUR, B. Onde estou?: lições do confinamento para uso dos terrestres. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 118).

Assim como a experiência e a prática dos povos originários servem de inspiração ou guia para nossa lida com os impasses do tempo presente, verificamos que também do mundo invisível recebemos lições importantes para lidar com os mesmos problemas. À semelhança dos povos originários, os outros seres vivos igualmente nos ensinam habilidades que nos são desconhecidas para “conhecer e ´fazer` o mundo”, resistindo às intempéries do presente (TSING, 2019TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019., p. 239).

A expressão “paisagem” vem sendo utilizada aqui diversas vezes, e seria conveniente explicar mais claramente o seu significado, com base na reflexão de Anna Tsing. A paisagem

é o sedimento de atividades humanas e não humanas, bióticas e abióticas, importantes e construídas sem intenção. Paisagens são mundos ativos da vida, sustentados por traços e legados materiais, mas ainda abertos a formas e possibilidades emergentes (2019, p. 149).

Segundo Anna Tsing, não há como sobreviver prescindindo de paisagens multiespécies (2019, p. 73). Os seres humanos não estão deslocados da rede inter-relacional, mas situados “dentro de teias ecológicas” que são fundamentais para a sua habitabilidade. Não há sobrevivência que prescinda da alteridade, pois tudo está profundamente conectado. Como demonstra Paul Stametz, um dos grandes micólogos dos Estados Unidos, “as redes são regras fundamentais da natureza, não as suas exceções” (2021, p. 69).

Do mundo invisível e do reino vegetal emergem experiências colaborativas que são fundamentais. Para além de modelos ecológicos sustentados pela ideia de competição, temos hoje, com grande riqueza, experiências cooperativas de vida advindas desses reinos ainda tão desconhecidos, que estão em nosso entorno e sob os nossos pés (MANCUSO, 2021bMANCUSO, S. A planta do mundo. São Paulo: Ubu, 2021b., p. 83). O biólogo Humberto MaturanaMATURANA, H. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997. assinalou, com pertinência, que trabalhar com a ideia de competição para entender o humano é extremamente pobre, pois o Homo sapiens conseguiu sobreviver com base em dinâmicas de cooperação (1997, p. 185).

Numa paisagem interconectada, a acolhida da alteridade é um dado incontestável. Todo o campo vivencial vem tocado pela dinâmica do “contágio”. Como mostra Anna Tsing,

somos contaminados por nossos encontros; eles transformam o que somos na medida em que abrimos espaços para os outros. Ao mesmo tempo que a contaminação transforma projetos de criação de mundos, outros mundos compartilhados – e novas direções podem surgir. Todos nós carregamos uma história de contaminação; a pureza não é uma opção (2022, p. 73).

7 O cuidado com a Casa Comum

Para os católicos que buscam caminhos de abertura e diálogo, o lançamento da carta encíclica Laudato si, de Francisco, foi um dos eventos mais bonitos e inspiradores para reflexões abertas e ousadas envolvendo o cuidado com a Casa Comum, que é a Terra. A encíclica veio saudada por homens de ciência, como Bruno Latour (2020, p. 445-446)LATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo / Rio de Janeiro: Ubu / Ateliê de Humanidades, 2020. e outros. Os impactos do trabalho de Francisco continuam irradiando luzes por todo canto. Foi um esforço bonito de Francisco, ao tratar o tema com tamanha coragem e profecia, ainda que não tenha conseguido ultrapassar os apegos ao antropocentrismo cristão (LS, n. 119).

Os novos estudos em curso, que foram apontados aqui, têm o valor de avançar ainda mais no debate, ampliando a ideia do cuidado para além da esfera humana. Há toda uma discussão voltada para a ressignificação do cuidar, envolvendo agora relações que ultrapassam a perspectiva ética humana (OLIVEIRA et. al., 2020OLIVEIRA, J.C. et al. (Orgs). Vozes vegetais. Diversidade, resistências e histórias da floresta. São Paulo: Ubu/IRD, 2020., p. 224 e 226). O cuidado envolve, portanto, a atenção para com todos os seres da Terra, sejam humanos ou não. Essa é a visão que vai se impondo com muita riqueza no debate atual.

O cuidar torna-se hoje “um experimento para pensar um mundo onde as pessoas tomam decisões na presença daqueles/as que vão encarar suas consequências”. É algo que tem haver com a “cosmopolítica”, como indica Isabelle Stengers. Donna Haraway tem falado muito em “gerar parentes”, no sentido de enriquecer o domínio do cuidado e reduzir um pouco “as demandas humanas na Terra” e resgatar os “mundos dispersos emergentes” (OLIVEIRA et. al., 2020OLIVEIRA, J.C. et al. (Orgs). Vozes vegetais. Diversidade, resistências e histórias da floresta. São Paulo: Ubu/IRD, 2020., p. 216).

8 Provocações para a teologia

Pensar teologicamente a partir de todas as considerações tecidas anteriormente é um desafio altamente complexo. Faz parte, porém, do labor teológico levantar questões disputadas, sem querer com isso engessar a reflexão numa perspectiva unitária. São passos que abrem um debate sujeito a profunda interlocução crítica e criadora. Essa foi a intenção do trabalho aqui desenvolvido, com uma contribuição que se pretende penúltima.

A encíclica Laudato si, de Francisco, dá o arranque inicial para a reflexão que se segue. Logo no início de seu posicionamento, Francisco sublinha que todos os seres humanos são terra, e que o corpo de todos está plasmado pelos elementos do planeta (LS, N. 2, p. 3). Isso significa que estamos profundamente embrenhados no húmus da Terra, e não só isso, que nós também somos húmus. As considerações de Francisco têm implicações bem precisas e rebuscadas, e talvez nem ele mesmo tenha se dado conta da radicalidade impressa em suas palavras. São muito belas também as reflexões de Francisco na demonstração de um grande respeito e carinho pela natureza. Para ele, a natureza é “um livro esplêndido onde Deus fala e transmite algo da sua beleza e bondade” (LS, n. 12). Na natureza revela-se um “Mistério” que convoca à contemplação, como numa folha, numa vereda ou orvalho (LS, n. 233).

Para os que estudam a genética e a evolução, é dado comum entender que o ser humano é uma viva expressão do código genético recebido dos pais e antepassados. Há no código de cada pessoa “o somatório dos genes próprios das espécies que o antecederam”. O zigoto humano guarda impressos os vestígios de toda a filogênese humana:

Não é por acaso que na sua ontogênese um embrião humano passa pelas fases embrionárias de seus antepassados: há um período em que apresenta brânquias, tal como nos peixes. Também não é por acaso que suas primeiras formações genitais sejam hermafroditas, tal como a sexualidade surgida nos primeiros seres sexuados de nosso planeta9 9 Notas tomadas de uma entrevista realizada com José Geraldo Teixeira (janeiro de 2023), professor aposentado de microbiologia na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). .

Estudos de microbiologia mostram também que cada ser humano vem habitado por milhares de bactérias, vírus, fungos, protozoários e leveduras. Nosso corpo está repleto de micróbios que convivem com nosso organismo, sobretudo na pele, vagina, boca, pulmões e intestinos. Somos, na verdade, como indicou Ignacio López-GoñiLÓPEZ-GOÑI, I. Microbiota: los microbios de tu organismo. Guatalmazán, 2018., metade humanos e metade bactérias. As bactérias constituem o grupo mais comum presente em nosso organismo, constituindo um microbioma. A estimativa aproximada desse autor indica a existência de mais de dez mil espécies de bactérias diferentes em nosso organismo (2018).

Retomando a pista aberta por FranciscoFRANCISCO, Papa. Carta encíclica Laudato si: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015. ao nos lembrar que somos terra, podemos acrescentar aqui uma expressão sugestiva de Donna Haraway, em seu livro que aborda o encontro das espécies: “Eu sou uma criatura da lama, não do céu”. Essa impressionante frase da bióloga americana nos provoca importantes interrogações. Haraway, em sua colocação, acrescenta que sempre admirou “as incríveis habilidades do lodo em manter as coisas em contato e lubrificar passagens para os seres vivos e suas partes” (2022, p. 10). O ser humano, como terra, está envolvido numa dança cósmica, numa “dança de encontros” com as várias espécies companheiras. Desse lindo emaranhado vão-se tecendo as malhas da vida, com todas as suas surpresas, mistérios e incógnitas.

Donna HarawayHARAWAY, D. Seguir con el problema: generar parentesco en el Chthuluceno. Bilbao: Consonni, 2019. prefere definir-se como uma compostista, em vez de pós-humanista (2019, p. 157), pois sabe muito bem que nós humanos estamos emaranhados como compostos que vão se transformando e plasmando novas e inéditas formas de vida. Tudo nesse campo vital é um “devir-com”, para utilizar uma bonita expressão de Vinciane Despret. O bonito desafio que se impõe para todos, nessa teia vital, é aprender continuamente a “florescer conjuntamente na diferença” (HARAWAY, 2022HARAWAY, D. Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu, 2022., p. 395).

Em livro extremamente provocador para a reflexão teológica, o filósofo italiano Emanuele Coccia desenvolve uma outra argumentação para lidar com a questão da vida e da morte, com base em suas teses sobre a metamorfose (2020). No trabalho apresentado, Coccia reforça a ideia da “continuidade material do universo”. Algo semelhante ao que foi indicado por JungJUNG, C. J. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. em suas memórias e reflexões. Ele partilha essa visão da “perenidade da vida sob a eterna mudança” (1990, p. 20). Não há dúvida sobre essa “continuidade material do universo”, que envolve também o nosso corpo. É o que expressa Coccia em sua reflexão. Para ele,

a nossa carne vem de outro lugar, que habita esse planeta há muito mais tempo do que nosso nascimento. Todos os nossos átomos deram um corpo a milhares de vidas antes da nossa – humanas, vegetais, bacterianas, virais, animais – e darão realidade a outras numa dança que nunca poderá ser interrompida (2020, p. 126-127).

O nascimento, segundo Coccia, pressupõe um “esquecimento” do processo anterior. Na visão desse autor, para cada ser vivo

nascer é não ser capaz de separar sua própria história daquela do mundo, não ser capaz de distinguir entre o local e o global. Nascemos em um corpo específico e insubstituível, nascido e procriado por outro corpo específico e insubstituível, mas cada um dos seres vivos expressa a vida do planeta inteiro, passado, presente e futuro (2020, p. 31).

De forma semelhante, a morte também não define um ponto final na vida. Ela funciona como uma “reciclagem, um fluxo que continua em uma comunidade ecológica e ancestral de origens” (2020, p. 119)10 10 Ele cita a pensadora Val Plumwood, do século XX. . É uma ilusão achar que no cadáver a vida se interrompeu. O ciclo da vida continua também ali, quando se inicia um novo processo, que envolve o ato de ser “comido” pelos outros. A morte não significa a saída do ciclo do tempo, mas um novo revestimento, com a vida continuando e pulsando. O corpo passa a ser alimentado por outros seres, e a vida migra assim, de uma forma para outra (2020, p. 116-117 e 124). O temor da morte, como bem expressou Evando Nascimento, vem de nossa incapacidade, que é congênita ao humano “de reconhecer que, ao se integrar ao inorgânico, a vida nunca desaparece de todo, apenas ganha novas configurações metamórficas” (2021, p. 60).

A vida que se transforma na morte permanece como composto, mexido e remexido por outros seres e abrindo novas configurações de existência. São questões colocadas pela ciência que lançam desafios novos para a teologia na sua compreensão de vida e morte, de corpo e alma e também de ressurreição. Quanto a essa última referência, a ressurreição, somos cada vez mais provocados a entendê-la como a continuidade de vida existente na memória dos que permanecem, servindo de fonte inspiradora para um seguimento singular.

Conclusão

O tema desenvolvido neste artigo envolve, como vimos, uma decisiva preocupação com o cuidado, entendido em seu sentido mais amplo, capaz de envolver os humanos e não humanos, e igualmente uma atenção peculiar aos temas do diálogo e da cooperação entre todos os seres vivos, visando assembleias cooperativas multiespécies. Outra preocupação foi não me deixar vencer pelo pessimismo ou catastrofismo, frente ao quadro problemático que estamos acompanhando neste tempo do Antropoceno. Sinais de esperança e ressurgência, apesar de complexos e difíceis, podem igualmente se anunciar no horizonte e já estão sendo tecidos por experiências bonitas de povos que já experimentaram muitos finais de mundo, ou de pequenos seres, microscópios, que conseguem elaborar incríveis artimanhas de colaboração e estratégias de resiliência.

Dialogar é um desafio permanente, mas sempre ampliando suas frentes e descobrindo novos caminhos para exercer essa tarefa tão essencial no nosso século XXI. O diálogo requer o sagrado respeito pela diferença. Requer ainda muita atenção, delicadeza e humildade. A diferença, como tão bem lembrou Tim Ingold, “é a cola que nos une a todos” (2019, p. 29). O desafio está em situar o diálogo no coração da vida, pois ela “é um movimento não de encerramento, mas de abertura, que ultrapassa continuamente qualquer fim que possa ser colocado diante dela” (2019, p. 29).

É essa esperança que encontramos, por exemplo, em pensadoras como Donna Haraway, que nos convoca a “seguir com o problema” (2019, p. 24), a continuar buscando pistas de sobrevivência em tempos de ruína, mesmo que para tanto seja preciso buscar estratégias de habitar na “barriga do monstro”, ou seja, envolvidos e atuantes contra os processos necrófilos levados adiante pelos homens-humanos. Para “seguir com o problema”, temos que conseguir “gerar parentescos raros”, gestar caminhos inovadores, inesperados e exemplares, com artimanhas inéditas no âmbito das “colaborações e combinações” para manter acesa a vitalidade no tempo. Teremos muitas vezes que buscar as energias mais singelas no fundo da Terra, dos tentáculos do Chthuluceno (2019, p. 61 e 89s), de forma a salvaguardar a alegria que todos merecemos e devemos também irradiar para os outros.

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    Ver ainda: DERRIDA, 2002DERRIDA, J. O animal que logo sou. São Paulo: Unesp, 2002., p. 62; NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, E. O pensamento vegetal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021., p. 49-55; INGOLD, 2015INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.. p. 36.
  • 2
    FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA. Flip 2021FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA. Flip 2021: confira a programação da festa literária deste ano. 24/11/2021. Disponível em: https://cultura.uol.com.br/noticias/44358_flip-2021-confira-a-programacao-de-um-dos-principais-eventos-literarios-do-brasil.html. Acesso em: 02 fev. 2023.
    https://cultura.uol.com.br/noticias/4435...
    : confira a programação da festa literária deste ano. 24/11/2021. Disponível em: https://cultura.uol.com.br/noticias/44358_flip-2021-confira-a-programacao-de-um-dos-principais-eventos-literarios-do-brasil.html. Acesso em: 02 fev. 2023.
  • 3
    E ainda: TSING, 2022TSING, A. L. O cogumelo no do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. São Paulo: n-1 edições, 2022., p. 229.
  • 4
    Alguns, como INGOLD, preferem a imagem do micélio fúngico.
  • 5
    Do grego: mikes (fungo) e rhiza (raiz).
  • 6
    Situada na atual Ucrânia.
  • 7
    E igualmente: MANCUSO, 2019MANCUSO, S. Revolução das plantas. São Paulo: Ubu, 2019., p. 16-17; MANCUSO, 2021aMANCUSO, S. A incrível viagem das plantas. São Paulo: Ubu, 2021a., p. 16; VIOLA, 2015, p. 132-133.
  • 8
    A ideia foi retomada por Eduardo Viveiros de Castro no prefácio do livro de KOPENAWA; ALBERT, 2015KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 35.
  • 9
    Notas tomadas de uma entrevista realizada com José Geraldo Teixeira (janeiro de 2023), professor aposentado de microbiologia na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).
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    Ele cita a pensadora Val Plumwood, do século XX.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2023
  • Aceito
    16 Ago 2023
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