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PARA “FOMENTAR SEMPRE MAIS A VIDA CRISTÔ (SC, N. 1)

To “promote ever more the christian life”(SC, n. 1)

Sobre a cerimônia de quinta-feira, Cullmann pergunta:

“Este é o seu movimento litúrgico?”

Infelizmente! Ele não passou pela Porta de Bronze!* * CONGAR, Y. Diario del Concilio: 1960-1963, 2 voll.. Cinisello Balsamo: Edizioni San Paolo, 2005, t. I, p. 150.

Em 4 de dezembro de 1963, no 400º aniversário de encerramento do Concílio de Trento, com 2147 votos favoráveis e apenas quatro contrários, foi definitivamente aprovada a Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia, e promulgada pelo Papa Paulo VI. Abria-se oficialmente o caminho para a tão esperada renovação eclesial. A Sagrada Liturgia, que foi o primeiro tema a ser examinado pelos Padres conciliares, e o primeiro, em certo sentido, em sua importância para a vida da Igreja, havia chegado a uma feliz conclusão com a solene promulgação do documento.

Na busca pela renovação da liturgia, a Constituição se inscreve no marco da pastoralidade do Concílio, como delineou São João XXIII no discurso de abertura do Vaticano II, em 11 de outubro de 1962. Seguindo esse princípio, a reforma dos ritos e dos textos implica uma reforma orientada pelo princípio da preservação da sã tradição e abertura ao progresso. Trata-se de confrontar e dialogar com a contemporaneidade, mostrando-se consciente de integrar a liturgia com as diferentes culturas.

O Papa bom caracterizou seu Concílio como um Concílio tradicional, isto é, como uma assembleia de bispos; ao mesmo tempo, foi um Concílio de transição epocal. Em sua leitura do Concílio, Alberigo (2001, p. 609)ALBERIGO, G. Transizione epocale?. In: MELLONI, A. (Org.). Storia del Concilio Vaticano II. Bologna: Il Mulino, 2001. 5 v., p. 647 – 654. afirma que a Igreja passou da era tridentina a era pós-tridentina, pois promoveu “uma recuperação dos elementos fortes e permanentes da Tradição, julgados adequados para alimentar e garantir a fidelidade evangélica de uma transição tão árdua”. Para essa transição muito contribuiu a Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium (SC).

Para Congar (2005, p. 150)CONGAR, Y. Diario del Concilio: 1960-1963. Cinisello Balsamo: San Paolo, 2005. 2 v., v. 1., o discurso de abertura do Concílio Vaticano II apresenta dois aspectos centrais, entre outros, uma conservadora e outra aberta ao diálogo com a contemporaneidade. Isso significa que a Igreja não fez rupturas abruptas, mas conseguiu juntar duas reivindicações, que são a renovação da Igreja e a manutenção da continuidade, ou seja, uniu tradio et progressio. A nova era litúrgica, nas palavras de Vagaggini (1964, p. 68)VAGAGGINI, C. Lo spirito dela Costituzione sulla liturgia. In: VAGAGGINI C.; MARSILI, S. Costituzione sulla Sacra Liturgia: texto latino e italiano. Torino: Elle Di Ci, 1964., redescobre “aquelas formas mentais e espirituais cristãs simples e diretas, porque primitivas, porque crísticas, bíblicas, patrísticas, sagradas e eclesiais”. O Concílio estabelece uma nova relação com a Tradição, fonte de crescimento e novidade: este é o fio condutor das contribuições que se seguem, que retraçam os grandes princípios presentes nessa Constituição conciliar sobre a Liturgia, mostrando a sua força e potencial inovadores.

O desejo, que animava o Movimento Litúrgico desde seu surgimento, de diminuir a distância entre a liturgia e os fiéis alcançou finalmente resposta: a liturgia, a primeira fonte da vida divina, a primeira escola da vida espiritual, foi devolvida ao povo cristão.

A unidade entre a tradição e os avanços possíveis está evidente nos documentos do Concílio. A respeito da Constituição, São Paulo VI (1966, p. 135) reconheceu que ela reflete, em sua estrutura e conteúdo, uma escala de valores e de deveres. Trata de Deus, em primeiro lugar, e apresenta a oração como primeira obrigação. A liturgia, por sua vez, constitui a “fonte primeira da vida divina que nos é comunicada, primeira escola espiritual, primeiro dom que podemos oferecer ao povo cristão que nos une pela e a oração”. A liturgia é também o primeiro convite dirigido às pessoas para que sua linguagem possa expressar uma oração santa e verdadeira. Através da participação na liturgia, se sente o poder vital que o “canto de louvor de Deus contém e as esperanças dos homens, por Cristo Nosso Senhor e no Espírito Santo”.

Desde as suas “primeiras palavras”, o Concílio (SC, n. 2) reconhece o papel fundamental da liturgia no caminho da renovação eclesial, pois nela os fiéis vivenciam e revelam o mistério de Cristo e da Igreja, que é “simultaneamente humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis, empenhada na ação e dada à contemplação, presente no mundo e, todavia, peregrina”. A Constituição (n. 1) começa destacando os próprios objetivos do Concílio. Trata-se de fomentar a vida cristã entre os fiéis e adaptar às necessidades do tempo presente aquelas instituições passíveis de mudança. O Concílio visa ainda “promover tudo o que pode contribuir à união dos que creem em Cristo”, assim como “revigorar tudo o que contribui para chamar todos ao seio da Igreja”. Diante dessas grandes metas do Vaticano II, os Padres conciliares julgaram ser obrigação da Igreja “ocupar-se de modo particular também da reforma e do incremento da liturgia”.

O Concílio (SC, n. 37) abre-se ao diálogo com a contemporaneidade e está consciente da necessidade de integrar a liturgia com as diferentes culturas, respeitando suas riquezas. Procura “desenvolver as qualidades e dotes de espírito das várias raças e povos”. Atenta aos costumes dos povos, esforça-se por afastar os erros e superstições. Por outro lado, enquanto possível, integra-os e admite-os na própria liturgia “conquanto que esteja de acordo com as normas do verdadeiro e autêntico espírito litúrgico”.

Para alcançar seus objetivos, a SC (n. 14) estabelece princípios e linhas para a renovação litúrgica que se distanciam fortemente de uma visão presa a rubricas e ao caráter intelectual da liturgia, mantendo-se em estreita relação com a Tradição. Não oferece uma definição de liturgia, mas “diz” o que ela é, lembrando que a lei fundamental da liturgia não é “dizer aquilo que se faz”, mas “fazer aquilo que se diz”. Pois a liturgia situa-se no horizonte histórico da salvação e ocupa um lugar preciso na História da Salvação, cuja pedra angular é a pessoa e a obra de Cristo. Ela se prolonga na e pela sua Igreja e devolve-lhe o seu sentido teológico, além, e sobretudo, a sua função indispensável, per ritus et preces, que integra a estruturação do ato de fé. Por isso, a liturgia é a “primeira e necessária fonte, da qual os fiéis podem haurir o espírito genuinamente cristão”.

Essa Constituição representa um ponto alto de uma nova sensibilidade pastoral que acolhe a liturgia como o culmen et fons de toda a ação da Igreja. Eis por que a Igreja deve dedicar uma atenção especial à participação dos fiéis de forma plena, consciente e ativa, quer através de uma adequada formação litúrgica, quer por meio da reforma dos ritos e dos textos. Coerente com a redescoberta de uma liturgia in genere ritus, a Constituição (n. 17) recomenda não só a instrução litúrgica, mas também a compreensão dos “ritos sagrados [...] mediante a celebração dos sagrados mistérios”. R. Guardini (2023, p. 222)GURDINI, R. O ato de culto e a tarefa atual da formação litúrgica. Uma carta. In: GUARDINI, R. Formação Litúrgica. Curitiba: Carpintaria, 2023. p. 213-227. opinou que a recepção da proposta de renovação da liturgia apresentada pelo Concílio requeria uma autêntica educação para a prática da liturgia. Entendia que, se a tarefa educativa não for enfrentada, as reformas do rito e do texto terão pouca eficácia.

Este é o horizonte dentro do qual podemos colocar o presente volume, intitulado Para “fomentar sempre mais a vida cristã”, que visa apresentar, à luz do atual debate de “re” litúrgica, os grandes temas presentes na SC. Comemorando os sessenta anos de sua publicação, temos a oportunidade de propor uma abordagem no sentido de uma “recepção do Concílio”, que o Papa Francisco tem promovido. Tratando da reforma proposta pelo Vaticano II na Carta Apostólica Desiderio desideravi (DD n. 31)1 1 A centralidade da liturgia para o pontificado de Francisco é confirmada com a publicação, em 29 de junho, da carta apostólica Desiderio desiderivi, “sobre a formação litúrgica do povo de Deus”. O documento deve ser lido no contexto inaugurado pelo motu proprio de julho de 2021, Traditionis custodes, com o qual Francisco limitou as chamadas “missas latinas”, as celebrações segundo o rito de Pio V antes da reforma litúrgica do Vaticano II. A decisão do papa Bergoglio resultou de uma consulta sobre as condições de “saúde litúrgica” das comunidades eclesiais, especialmente em relação à Igreja global, e para evitar derivas sectárias após a liberalização do rito pré-conciliar (que foi considerado revogado pelo Vaticano II) concedida pelo papa Bento XVI em 2007. , ele esclarece que não é possível aceitar o Concílio e rejeitar a reforma litúrgica nascida dele. Na catequese dedicada à liturgia e seu valor na vida eclesial, proferida no dia 3 de fevereiro de 2021, por ocasião da Audiência Geral (Catequese 23)), Francisco afirmou: “Na história da Igreja verificou-se repetidamente a tentação de praticar um cristianismo intimista, que não reconhece a importância espiritual dos ritos litúrgicos públicos”.2 2 Francisco, https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2021/documents/papa-francesco_20210203_udienza-generale.html. Acesso em 05 set. 2023. Na mesma Catequese, o Papa afirmou que “na Igreja é possível encontrar certas formas de espiritualidade que não souberam integrar adequadamente o momento litúrgico”. O Pontífice se refere a um grave problema existente em muitos lugares e que se constata no Brasil de modo mais difuso, nos últimos vinte anos, sobretudo. Trata-se do fato de fiéis, que mesmo participando “assiduamente nos ritos, especialmente na Missa dominical, sorviam alimento para a sua fé e para a sua vida espiritual sobretudo de outras fontes, de tipo devocional”. Francisco remete-se à SC, n. 16, salientando (DD n. 37) que o estudo da teologia deve estabelecer uma relação com a liturgia que é cume e fonte da vida eclesial. Isso levará a “efeitos positivos na ação pastoral”.

Ampla e fundamental questão posta como chave para se entender os obstáculos que se podem encontrar no percurso da renovação proposta pelo Concílio, para se recuperar a capacidade de participar da ação litúrgica de forma plena, foi formulada por Francisco (DD, n. 27, 44) nestes termos: “O desafio é muito exigente porque o homem moderno – não do mesmo modo em todas as culturas – perdeu a capacidade de se confrontar com o agir simbólico que é uma característica essencial do ato litúrgico”. Seguramente, em todos os recantos do mundo onde a Igreja está presente verificam-se situações em que se trazem a marca desse desafio no processo de recepção da proposta conciliar de reforma da Igreja.

Olhando o contexto brasileiro, em nossos dias, deparamo-nos com vários problemas, conflitos e dificuldades na liturgia, que refletem questões da deficiência da própria fé na vida de muitas pessoas. O incremento de novas formas de participação litúrgica geradas no período da pandemia (2020-2022) levou muitos fiéis a acomodarem-se a “ver” as celebrações à distância ou à participação utilizando meios virtuais. Outro problema atual, que parte de uma eclesiologia não conciliar que se reflete no campo litúrgico, é a “sacerdotalização” do ministro ordenado, reduzindo o exercício de seu ministério ao culto litúrgico desvinculado dos demais aspectos da missão do presbítero e sua relação com os outros ministérios. Outra questão a ser enfrentada é a não integração da dimensão profética em muitas práticas litúrgicas, na medida em que não se explicita a relação com o agir de Jesus profeta e missionário do Pai. Nessa linha de entendimento, considera-se que a celebração da Eucaristia não condiz com a falta de condignas de vida, inclusive a alimentação das pessoas, de tal modo que, onde se celebra o memorial do Senhor, não deveria haver fome. O devocionismo também marca o contexto celebrativo em vários lugares do país, principalmente nos meios de comunicação e nos ambientes virtuais, sendo uma de suas marcas o intimismo e o individualismo. No entanto, a irrupção do Reino do Pai na história desautoriza qualquer devocionismo alienante e individualista da liturgia. Comungar da Eucaristia é um gesto comunitário de fraternidade que aponta para o Reino de Deus. A última Ceia remete aos relatos de multiplicação dos pães e peixes, comida de verdade para famintos reais. O Papa Bento XVI ressalta que o pedido que repetimos em cada Missa – “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”– , obriga-nos a fazer tudo o que for possível, em colaboração com as instituições internacionais, estatais, privadas, para que cesse ou pelo menos diminua, no mundo, o escândalo da fome e da subnutrição que de que padecem muitos milhões de pessoas, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento (Sacramentum Caritatis n. 91). No século IV, São João CrisóstomoSÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Homilia sobre Mt. PG 58, 508-509. chamava atenção para que a comunidade que embelezava o altar, priorizasse o atendimento aos necessitados e famintos: “Que importa ao Senhor que sua mesa esteja cheia de objetos de ouro se ele se consome de fome? Saciai primeiro sua fome e logo, se sobra, adornai também sua mesa. Ou vais fazer um cálice de ouro e depois negar-lhe um copo de água?” (Homilia sobre Mt. PG 58, 508-509).

Constata-se uma falta de espírito ecleisal comunitário em determinadas comunidades, refletindo-se na forma individualista de se preparar as celebrações. Diante dessa situação, brota o apelo imediato para que se cuide da formação teológica e litúrgica considerando-se a dimensão sacerdotal da comunidade que celebra, de todos os fiéis que formam a comunidade com aquele(a) que preside a celebração eucarística ou a celebração da Palavra. Em estreita relação com o individualismo está a questão da crise estética que impulsiona o fenômeno das aparências, que se prestam e se verificam nas celebrações “shows”, tanto aquelas vistas pela televisão, como também, em muitos casos, com a participação presencial dos fiéis. Com isso, se perde a experiência central da vida cristã e que deve se expressar na celebração litúrgica, que é o ser parte de uma comunidade viva, com relações interpessoais dinâmicas e interações enriquecedoras.

O enfrentamento de todas essas questões, tendo em vista uma superação dos entraves à reforma conciliar, demandam um compromisso amplo e firme da Igreja que se empenha na “nova recepção” do Concílio. A Constituição reafirma de maneira completa e orgânica a importância da liturgia para a vida dos cristãos, que nela encontram a mediação objetiva exigida pelo fato de Jesus Cristo não ser uma ideia nem um sentimento, mas uma Pessoa viva, e o seu Mistério, um acontecimento histórico. A Constituição (SC, n. 5), seguindo claramente o paradigma teológico histórico-salvífico, estabelece linhas teológicas para se efetivar a reforma litúrgica na história da salvação. O que fora prefigurado na Antiga Aliança alcança sua plenitude na encarnação do Verbo, que leva a termo a obra salvífica. O Cristo Senhor realizou-a “principalmente pelo mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa Ascensão, em que ‘morrendo destruiu a nossa morte e ressurgindo restaurou a nossa vida’. Foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu o sacramento admirável de toda a Igreja”.

Na catequese já referida, o Papa Francisco observa, de forma contundente, que não existe espiritualidade cristã que não esteja enraizada na celebração dos mistérios sagrados, devendo entender que a liturgia “é um ato que fundamenta toda a experiência cristã”. Enquanto acontecimento, ela é encontro com Cristo, de tal forma que garante ao cristianismo a presença sacramental e real de Cristo. Em seu discurso catequético (Catequese 23): “Um cristianismo sem liturgia, ousaria dizer que talvez seja um cristianismo sem Cristo”. Por ser um encontro pessoal com Cristo Jesus, a liturgia é sempre um ato de todo o corpo de fiéis celebrante. Especialmente, essa verdade se aplica à Missa. Diz Francisco: “A Missa é sempre celebrada, e não apenas pelo sacerdote que a preside, mas por todos os cristãos que a vivem. E o centro é Cristo! Todos nós, na diversidade dos dons e ministérios, nos unimos na sua ação, porque Ele, Cristo, é o protagonista da liturgia”.

O chamamento apostólico de Francisco (DD, n. 1) para que todos os fiéis vivam uma espiritualidade que “integre o momento litúrgico” lança luzes e energia que alcançam as pessoas que são disponíveis para o compromisso de discípulo missionário no seguimento do Mestre no serviço ao Reino de Deus em e como Igreja. A vida é chamada a tornar-se culto a Deus, mas isto não pode acontecer sem a oração, especialmente a oração litúrgica. A descrição que Francisco faz da prática litúrgica recupera o valor do rito como dimensão significativa, tanto na antropologia, quanto na teologia, com implicações para a Igreja também no espaço público.

O triênio 2022-2025, intervalo em que se insere o sexagésimo aniversário da celebração do Concílio Vaticano II (1962-1965)CONCÍLIO VATICANO II. Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium. São Paulo: Paulus, 2021., já apresenta duas ressonâncias importantes em relação ao último grande momento de encontro e reforma da Igreja Católica. O primeiro é o sínodo de outubro de 2023, para o qual, em 2021, o Papa Francisco convocou toda a Igreja, prevendo diferentes fases – local, nacional, continental e universal; a segunda é a confirmação da retomada, durante este pontificado, da liturgia como elemento decisivo para a recepção e realização do Concílio.

Mas a condução do sínodo em todas as suas fases e a teologia da sinodalidade (como estruturar as consequências de uma Igreja que considera os sínodos essenciais para sua identidade, a fim de se livrar do modelo monárquico-clerical ainda vigente), que emerge das indicações e declarações do Vaticano e do pontífice, permanecem em grande parte por esclarecer. O juízo sobre a visão litúrgica de Francisco é diferente, uma visão madura em particular no plano das convicções e dos objetivos, que pode contar com as aquisições do movimento litúrgico e com a contribuição do Vaticano II. Isso evita que seja considerado um assunto “interno”, de pouco interesse para os não especialistas. Pelo contrário, a recuperação por Francisco da teologia da liturgia do Vaticano II tem implicações para a Igreja mesmo no espaço público.

Retomando a catequese do Papa, poderíamos dizer que Francisco faz um convite a não se ter medo da missa. Na liturgia eucarística, todos devem sentir-se cada vez mais em casa. Daí a proposta: é preciso recuperar a dimensão familiar da liturgia, que nos deixa à vontade. Dar a conhecer o que se celebra, à maneira e nas condições de cada um, mas sempre em torno de Jesus Cristo como fator decisivo.

Para concluir este editorial, destacamos que, depois de recordar a importância da Constituição Sacrosanctum Concilium do Vaticano II, que levou à redescoberta da compreensão teológica da liturgia, o Papa acrescenta: “Gostaria que a beleza da celebração cristã e as suas necessárias consequências na vida da Igreja não fossem deturpadas por uma compreensão superficial e redutiva do seu valor ou, pior ainda, por uma instrumentalização a serviço de alguma visão ideológica, seja qual for” (DD, n. 16).

Todos os que formamos o corpo eclesial em verdadeiro espírito de comunhão temos a sublime tarefa de contribuir, desde o lugar que cada um ocupa na comunidade eclesial, para que a vida cristã desenvolva-se na dinâmica do encontro com o Cristo vivo. Neste caminhar juntos, realizamos a ação litúrgica como fonte e cume da vida da Igreja, convictos de que ela (SC, n. 33) alimenta a fé do povo de Deus e o forma. Sua didática é, ao mesmo tempo conteúdo: “Efetivamente, na Liturgia Deus fala ao Seu povo, e Cristo continua a anunciar o Evangelho. Por seu lado, o povo responde a Deus com o canto e a oração”.

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    CONGAR, Y. Diario del Concilio: 1960-1963, 2 voll.. Cinisello Balsamo: Edizioni San Paolo, 2005, t. I, p. 150.CONGAR, Y. Diario del Concilio: 1960-1963. Cinisello Balsamo: San Paolo, 2005. 2 v., v. 1.
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    A centralidade da liturgia para o pontificado de Francisco é confirmada com a publicação, em 29 de junho, da carta apostólica Desiderio desiderivi, “sobre a formação litúrgica do povo de Deus”. O documento deve ser lido no contexto inaugurado pelo motu proprio de julho de 2021, Traditionis custodes, com o qual Francisco limitou as chamadas “missas latinas”, as celebrações segundo o rito de Pio V antes da reforma litúrgica do Vaticano II. A decisão do papa Bergoglio resultou de uma consulta sobre as condições de “saúde litúrgica” das comunidades eclesiais, especialmente em relação à Igreja global, e para evitar derivas sectárias após a liberalização do rito pré-conciliar (que foi considerado revogado pelo Vaticano II) concedida pelo papa Bento XVI em 2007BENTO XVI, Papa. Exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum caritatis do sumo pontífice Bento XVI ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e aos fiéis leigos e leigas sobre a eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2007..
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Referências

  • ALBERIGO, G. Transizione epocale?. In: MELLONI, A. (Org.). Storia del Concilio Vaticano II Bologna: Il Mulino, 2001. 5 v., p. 647 – 654.
  • BENTO XVI, Papa. Exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum caritatis do sumo pontífice Bento XVI ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e aos fiéis leigos e leigas sobre a eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2007.
  • CONCILE OECUMENIQUE VATICAN II. Jean XXIII, Paul VI: discurs au Concile, Discours de Terre Sainte, de Bombay et a L’O.N.U. Messages au monde. Paris: Centurion, 1966.
  • CONCÍLIO VATICANO II. Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium São Paulo: Paulus, 2021.
  • CONGAR, Y. Diario del Concilio: 1960-1963. Cinisello Balsamo: San Paolo, 2005. 2 v., v. 1.
  • FRANCISCO, Papa. Carta apostólica Desidério desideravi sobre a formação litúrgica do Povo de Deus São Paulo: Paulinas, 2022.
  • FRANCISCO, Papa. Audiência Geral. Catequese 23: rezar a Liturgia. Quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2021/documents/papa-francesco_20210203_udienza-generale.html Acesso em: 05 set. 2023.
    » https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2021/documents/papa-francesco_20210203_udienza-generale.html
  • GURDINI, R. O ato de culto e a tarefa atual da formação litúrgica. Uma carta. In: GUARDINI, R. Formação Litúrgica Curitiba: Carpintaria, 2023. p. 213-227.
  • SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Homilia sobre Mt PG 58, 508-509.
  • VAGAGGINI, C. Lo spirito dela Costituzione sulla liturgia. In: VAGAGGINI C.; MARSILI, S. Costituzione sulla Sacra Liturgia: texto latino e italiano. Torino: Elle Di Ci, 1964.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023
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