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VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR PRESENCIADA E VIVENCIADA POR ADOLESCENTES ESCOLARES

RESUMO

Objetivo

identificar as formas, expressões e as(os) praticantes da violência intrafamiliar presenciada e/ou vivenciada por adolescentes escolares.

Método

estudo de corte transversal, de cunho descritivo, realizado em uma escola pública de Salvador, Bahia - Brasil, com 230 adolescentes escolares em novembro de 2018. O banco de dados foi arquivado com utilização do programa Microsoft Excel, e as frequências foram mensuradas por meio do teste de qui-quadrado.

Resultados

o estudo mostra que 121 (52,6%) adolescentes experienciam a violência intrafamiliar nas formas psicológica, física e sexual. Dentre os tipos de violência vivenciados pelos adolescentes, a psicológica (49,5%) e física (55,7%) foram mais perpetradas por pai/mãe e a sexual (75,9%) foi comumente referida por outros parentes.

Conclusão

os achados deste estudo contribuem para dar visibilidade às formas de expressão da violência intrafamiliar vivenciada e presenciada pela população infantojuvenil.

DESCRITORES:
Violência; Família; Adolescente; Saúde do adolescente; Estudantes

ABSTRACT

Objective

to identify the forms, expressions, and the practitioners of intrafamily violence witnessed and/or experienced by adolescent students.

Method

cross-sectional, descriptive study conducted in a public school in Salvador, Bahia - Brazil, with 230 adolescent students in November 2018. The database was archived using the Microsoft Excel program, and frequencies were measured using the chi-square test.

Results

the study shows that 121 (52.6%) adolescents experience intra-family violence in psychological, physical, and sexual forms. Among the types of violence experienced by the adolescents, psychological (49.5%) and physical (55.7%) violence were most perpetrated by father/mother and sexual (75.9%) violence was commonly reported by other relatives.

Conclusion

the findings of this study contribute to give visibility to the forms of expression of intrafamily violence experienced and witnessed by the child and youth population.

DESCRIPTORS:
Violence; Family; Adolescent; Adolescent Health; Students.

RESUMEN

Objetivo

identificar las formas, las expresiones y los practicantes de la violencia intrafamiliar presenciada y/o experimentada por los escolares adolescentes.

Método

estudio transversal, de carácter descriptivo, realizado en una escuela pública de Salvador, Bahía - Brasil, con 230 adolescentes escolares en noviembre de 2018. La base de datos se archivó con el programa Microsoft Excel, y las frecuencias se midieron mediante la prueba de chi-cuadrado.

Resultados

el estudio muestra que 121 (52,6%) adolescentes experimentan violencia intrafamiliar de forma psicológica, física y sexual. Entre los tipos de violencia experimentados por los adolescentes, la psicológica (49,5%) y la física (55,7%) fueron las más comúnmente perpetradas por el padre/madre y la sexual (75,9%) fue comúnmente referida por otros familiares.

Conclusión

los hallazgos de este estudio contribuyen a dar visibilidad a las formas de expresión de la violencia intrafamiliar vivida y presenciada por la población infantil y juvenil.

DESCRIPTORES
Violencia; Familia; Adolescente; Salud del adolescente; Estudiantes.

INTRODUÇÃO

Em todo o mundo, crianças e adolescentes são vítimas de violência intrafamiliar, entendida enquanto toda ação ou omissão a membros da mesma família ou com pessoas que possuem um vínculo relacional que resultem em danos à integridade ou ao bem-estar, podendo se apresentar nas formas física, psicológica, sexual, abandono, negligência ou exploração. Tal agravo, presenciado e/ou vivenciado, compromete o potencial de desenvolvimento humano, o que requer intervenções que garantam a esse público um ambiente familiar livre de violência.

Na Austrália, pesquisa realizada em 2016 mostrou que uma em cada 20 crianças reportaram ter presenciado a violência praticada contra a mãe e contra o pai respectivamente11 Australian Boreau Statistics. Personal Safety. Australia. Statistics for family, domestic, sexual violence, physical assault, partner emotional abuse, child abuse, sexual harassment, stalking and safety. Australia. ABS.[Internet]. 2017. [acesso em 27 maio 2021] Disponível em: <https://www.abs.gov.au/statistics/people/crime-and-justice/personal-safety-australia/latest-release>.
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. Segundo os dados globais da violência, desde o ano de 2015, 1,3 bilhões de crianças vêm sofrendo punições corporal no âmbito familiar, e mais da metade de todas as crianças e adolescentes de dois a 17 anos sofreram violência emocional, sexual e física22 UNITED NATIONS CHILDREN’S FUND (UNICEF). Ending violence in childhood: Global Report. [Internet]. 2017. [acesso em 27 maio 2021]. Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/wp-content/uploads/2018/07/global_report_2017_ending_violence_in_childhood.pdf.
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. Alerta-se, pois, para a realidade do público infantojuvenil que presencia e/ou sofre a violência no âmbito doméstico.

Independentemente de presenciar ou vivenciar esse agravo, conviver em um lar violento testemunhando as agressões, e também sendo vítimas delas, muitos infantojuvenis podem apresentar comprometimentos. Corroborando, estudo realizado em Nova Orleans com crianças e adolescentes de cinco a15 anos mostrou que presenciar agressões físicas ou sofrer a violência de maneira indireta esteve relacionado a apresentar comportamentos externalizante, tais como comportamento violento, descontrole emocional e dificuldades de relacionamento33 Fleckman JM, Drury SS, Taylor CA, Theall KP. Role of direct and indirect violence exposure on externalizing behavior in children. J Urban Health. [Internet]. 2016 [acesso em 10 nov 2020]; 93(3). Disponível em: https://doi.org/10.1007/s11524-016-0052-y.
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. Estudo nacional com mulheres e suas(seus) filhas(os) evidenciou repercussões para as crianças e adolescentes no âmbito psíquico, tais como diminuição da autoestima, depressão e também diminuição do rendimento escolar44 Carneiro JB, Gomes NP, Estrela FM, Santana JD de, Mota RS, Erdmann AL. Domestic violence: repercussions for women and children. Esc Anna Nery. [Internet]. 2017 [acesso em 13 ago 2020]; 21(4). Disponível em: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2016-0346.
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. Essas repercussões impactam em todas as esferas da vida das crianças e adolescentes, comprometendo seu pleno desenvolvimento.

Considerando a vivência de violência, bem como suas repercussões para a vida das vítimas, fazem-se necessárias ações direcionadas para intervenções nas relações familiares com fins voltados para a identificação de violências assim como sua prevenção e enfrentamento. Para isso, profissionais que atuam no âmbito escolar e na Atenção Primária à Saúde se encontram em posição de destaque devido à maior aproximação (e vínculo) com este público e seus familiares, podendo promover o cuidado de crianças e adolescentes, grupo consideravelmente vulnerável à questão de presenciar e vivenciar abusos familiares desde tenra idade. Em face do exposto, o presente estudo tem por objetivo identificar as formas, expressões e as (os) praticantes da violência intrafamiliar presenciada e/ou vivenciada por adolescentes escolares.

MÉTODO

Foi realizado um estudo de corte transversal, de cunho descritivo, sendo realizado em uma escola pública de médio porte, localizada no município de Salvador, Bahia, Brasil. A escolha do local se justifica por meio de parceria prévia entre a referida escola e uma universidade pública, a qual já vem desenvolvendo práticas de pesquisa, extensão e ações socioeducativas com os escolares. O estudo foi escrito com base nos critérios da StrengtheningtheReportingof Observacional Studies in Epidemiology (STROBE).

A população do estudo foi constituída por 230 escolares com idade entre 10 e 19 anos, sendo esta faixa etária compreendida como adolescência pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Estabeleceu-se como critério de inclusão a assiduidade escolar, tendo sido excluídos da pesquisa os estudantes que se abstiveram dos encontros, ainda que após três tentativas de contato, em dias alternados pela equipe da pesquisa.

A coleta de dados ocorreu em novembro de 2018 com utilização de formulário semiestruturado. O instrumento adotado continha questões sobre dados sociodemográficos e relativas às formas (psicológica, física e sexual) da violência intrafamiliar presenciada e vivenciada pelos escolares, precedidas das perguntas: “Você já presenciou alguma dessas coisas entre os membros da sua família?” ou “Alguém da sua família já fez alguma dessas coisas com você?”. Para ambas as modalidades (presenciada e vivenciada), foram consideradas as seguintes expressões: Xingamentos/Humilhação (violência psicológica); Beliscão/Tapa, Chute/Murro, Facada, Tiro, Queimadura (física); e mexer no corpo (seios ou genitália), fazer sexo sem vontade (sexual). As opções de respostas foram dicotomizadas (sim/não).

Para questões referentes aos(aos) praticantes da violência, as opções de respostas foram dicotomizadas (sim/não), com respostas abertas para detalhamento: “Quem presenciou a violência?” (pai/mãe, padrasto/madrasta, outros parentes e sem resposta) e “Quem praticou a violência?” (pai/mãe, padrasto/madrasta, outros parentes e sem resposta). Cabe ressaltar que o número de população nas variáveis sofreu oscilações devido às múltiplas possibilidades de respostas.

O banco de dados foi arquivado através do programa Microsoft Excel e as frequências mensuradas com a utilização do programa DataAnalysisandStatistical Software (STATA SE12). Os dados foram analisados de maneira descritiva, referidos como frequências absolutas e relativas, sendo as análises mensuradas de acordo com as seguintes modalidades: presenciou (testemunhou alguém sofrer), vivenciou (sofreu), presenciou e vivenciou (testemunhou e/ou sofreu, não necessariamente concomitantemente) alguma das formas de violência intrafamiliar.

O estudo atendeu aos princípios éticos, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o parecer n.º 384.208.

RESULTADOS

O estudo contou com a participação de 230 adolescentes escolares, que se caracterizaram por serem, na sua maioria, mulheres 133 (57,8%), com idade de 10 a 14 anos 117 (50,9%), com algum tipo de religião 123 (53,5%), autodeclarada(o) negra(o) 181 (78,7%), cursando o 6.º/7.º ano 123 (53,5%) e convivendo com familiares 146 (63,5%). Quanto à violência intrafamiliar, 50 (21,7%) não experienciaram o agravo, 35 (15,2%) apenas presenciaram, 24 (10,5%) apenas vivenciaram e 121 (52,6%) presenciaram e vivenciaram a violência intrafamiliar.

Em relação às formas da violência experienciadas pelas(os) adolescentes no âmbito familiar (Tabela 1), 95 (41,3%) relataram ter vivenciado e 134 (58,3%) presenciado a violência psicológica, expressa por meio de xingamento e humilhação, sendo que 76 (33%) relataram que, além de presenciar, também vivenciaram essa forma de agressão. No que concerne à violência física: 122 (53%) relataram tê-la vivenciado; 95 (41,3%), presenciado; e 69 (30%) experienciaram ambas as modalidades, sendo às expressões mais citadas o beliscão e o tapa 114 (77%), seguida de chute e murro. Os achados mostraram que a violência sexual com predomínio da expressão relacionada a “mexer no corpo (seios ou genitália)” foi vivenciada por 12 (5,2%) das(os) adolescentes, presenciada por cinco (2,2%), sendo que em um (0,43%), a sua interseção.

Tabela 1
Caracterização das formas de violências psicológica, física e sexual presenciada e/ou vivenciada pelas(os) adolescentes. (n=230). Salvador, Bahia, Brasil, 2020

Com relação aos indivíduos apontados pelos(as) adolescentes como praticantes das formas de violência intrafamiliar presenciada ou vivenciada (Tabela 2), o estudo revela que nas três formas (psicológica, física e sexual) os pais, as mães e outros parentes foram mais comumente referidos. A violência sexual foi a forma com maior discrepância entre os percentuais de praticantes pai/mãe e outros parentes, diferentemente das formas psicológica e física cujos percentuais são equiparados. A incidência de padrasto/madrasta como agressor(a) foi menos expressiva em todas as formas, independentemente de presenciar ou vivenciar o agravo.

Tabela 2
Indicativo das(os) praticantes da violência intrafamiliar presenciada e vivenciada pelas(os) adolescentes escolares. Salvador, Bahia, Brasil, 2020

DISCUSSÃO

O estudo elucida que a maioria de as(os) adolescentes investigadas(os) vem experienciando violência intrafamiliar 180 (78,3%), sinalizando a expressiva susceptibilidade para violência intrafamiliar nos infantojuvenis. Nesse sentido, uma investigação, em território nacional, com 426 escolares, de idade entre 12 e 18 anos, visando analisar dados de violência intra e extrafamiliar desvelou taxas ainda maiores com adolescentes presenciando (97%) e sofrendo (65,0%) agravos55 Patias ND, Dell’aglio DD. Prevalência de exposição à violência direta e indireta: um estudo com adolescentes de colégios públicos. Act. Colom. Psicol. [Internet]. 2017 [acesso em 17 fev 2020]; 20(1). Disponível em: https://doi.org/10.14718/ACP.2017.20.1.6.
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. Embora não faça distinção entre as modalidades presencial e vivenciada, situação que reforça o déficit de estudos com essa proposta, a elevada prevalência de violência intrafamiliar também é encontrada no cenário internacional, tal como pesquisa que apontou para exposição de 82,8% de crianças e adolescentes ao agravo66 Almodóvar MBM, Triana A e L, Montesinos AD, Plá MMT. Violencia intrafamiliar y trastornos psicológicos enniños y adolescentes del área de salud de Versalles, Matanzas. Rev Méd Electrón. [Internet]. 2015 [acesso em 20 nov 2020]; 37(3). Disponível em: http://www.revmedicaelectronica.sld.cu/index.php/rme/article/view/1345.
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.

Uma das formas de violência intrafamiliar mais frequentemente referidas pelas(os) adolescentes foi a psicológica, totalizando 99,6% entre as modalidades, situação que pode estar relacionada à naturalização desse comportamento nas relações sociais. O uso de palavras pejorativas ou ainda agressivas no cotidiano familiar pode ser usada sem que estes percebam que tais ações se constituem violência, tampouco conhecem os efeitos desses comportamentos, circunstância que faz com que a violência psicológica se perpetue por longos anos durante toda a vida dos indivíduos, principalmente das crianças e dos adolescentes. Estudo realizado com 1.429.931 casos de violência interpessoal notificados em território brasileiro identificou que a violência psicológica (24,5%) foi o tipo de violência mais registrado pelas(os) adolescentes, com ocorrência na sua residência e histórico de repetição das agressões77 Pereira VO de M, Pinto IV, Mascarenhas MDM, Shimizu HE, Ramalho WM, Fagg CW. Violências contra adolescentes: análise das notificações realizadas no setor saúde, Brasil, 2011-2017. Rev. bras. epidemiol. [Internet]. 2020 [acesso em 17 dez 2020]. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-549720200004.supl.1.
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A violência psicológica foi expressa por mais de um terço das(os) adolescentes por meio de xingamento e humilhações, o que pode estar atrelado à prerrogativa da existência de poucas medidas para punições, mesmo quando se tratar de uma violência. Contudo, tais violações são reconhecidas pelo Estatuto da Criança e do adolescente (ECA) e se encontram previstas em seu artigo 148, parágrafo 6°, que estabelece aplicação de penalidades administrativas para os casos de infrações contra a regra que protege crianças ou adolescentes.

Em que pese a possibilidade de essa forma de expressão ser cometida por qualquer pessoa, no presente estudo a violência psicológica se apresentou com maiores índices para outros parentes, seguida dos pais, que denota se tratar de um núcleo familiar permeado de agressões psicológicas. No Brasil, uma pesquisa realizada com 218 estudantes identificou que houve predomínio de violência psicológica (94,5%), sendo os principais perpetradores a mãe e o pai8. Essa naturalização da violência impede que pai/mãe e outros parentes se deem conta que esta atitude pode gerar, nas crianças e nos adolescentes, sentimentos reprimidos ou, posteriormente, tornar-se um reprodutor das agressões que presenciou e/ou vivenciou.

Justificada socialmente enquanto medida educativa, a naturalização da violência tem permeado também a violência física, vivenciada por um número significativo de adolescentes (53,0%), percentual semelhante ao encontrado em estudo desenvolvido no Malawi, com 561 adolescentes, que apontou prevalência de 58,0% dos adolescentes sendo vítimas desse tipo de agressão99 Ameli V, Meinck F, Munthali A, Ushie B, Langhaug L. Associations between adolescent experiences of violence in Malawi and gender-based attitudes internalizing and externalizing behaviors. Child Abuse Negl. [Internet]. 2017 [acesso em 20 jan 2020]; 67; 305-14. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2017.02.027.
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. Nas cidades de Cabul, Torkham e Jalalabad no Afeganistão, estudo com pais e seus filhos mostrou que, de forma majoritária, a violência física foi justificada como forma de disciplinar os filhos10, corroborando pesquisa em Israel, que também mostrou a utilização de castigo físico como método disciplinar pelos pais ultraortodoxos 1111 Gemara N, Nadan Y. He who spareth the rod hateth his son: perceptions regarding corporal punishment among ultra-orthodox jewish fathers in Israel. J InterpersViolence. [Internet]. 2020 [acesso em 10 set 2020]. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0886260520908026.
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De forma semelhante, as(os) próprias(os) infantojuvenis percebem que as agressões decorrem de medidas educativas, como descreve estudo com desenho de crianças que desponta a associação do bater às situações de desobediência1212 Lima JK de S, Lira MO de SC e, Oliveira JF de, Campos FVA, Paiva LOL de. Uso do desenho-estória para apreensão de entendimentos e sentimentos de crianças institucionalizadas sobre agressão física. Revista Cuidarte. [Internet]. 2021 [acesso em 13 jul 2021]; 12(1). Disponível em: https://doi.org/10.15649/cuidarte.1204.
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. Esses achados demonstram que a prática da agressão física cometida contra crianças e adolescentes está presente no contexto familiar, podendo ser legitimada como método corretivo do mau comportamento.

Ainda no que tange à violência física, as expressões mais prevalentes foram o beliscão e o tapa. No contexto internacional, o estudo realizado na Indonésia, com 1.313 crianças em idade escolar, que vivenciaram a violência física parental, revelou que 72,7% das crianças disseram que seus pais gostam de bater com as mãos e 50,8% informaram que os pais as beliscam quando estão fazendo travessias1313 Livana PH, Kurian M, Nurnainah N. Physical violence of parents in children age school. Indonesian J Global Health Research. [Internet]. 2020 [acesso em 13 fev 2021]; 2(1). Disponível em: https://doi.org/10.37287/ijghr.v2i1.64.
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. A maior constância de tapas e beliscões sugere serem estas as formas de repreensão física mais leves e, assim, percebidas como formas aceitáveis de disciplinar as(os) filhas(os).

Por outro lado, outras expressões com impactos mais graves, também foram experienciadas pelas(os) adolescentes, tais como chutes e murros, facada, queimadura e tiro, situação que mostra a intensificação das agressões ao longo do tempo, muitas vezes, justificadas como correção e educação do comportamento dos filhos. Corroborando, estudo realizado na Carolina do Norte, com 14.024 adultos que sofreram violência na infância revela enquanto expressão das agressões, os chutes, socos e batidas uns contra os outros e diretamente nelas(es)1414 Mwachofi A, Imai S, Bell RA. Adverse childhood experiences and mental health in adulthood: evidence from north Carolina. J Affect Disord. [Internet]. 2020 [acesso em 20 fev 2021]; 267; 251-7. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.jad.2020.02.021.
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. Pela natureza desse tipo de agressão, cabe ponderar as chances de traumas físicos mais graves conforme revela estudo em Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre/RS, que apontou ferimentos por arma, queimaduras e traumas diversos como os principais motivos de internação de crianças em unidade de terapia intensiva1515 Santomé LM, Leal SMC, Mancia JR, Gomes AMF. Crianças hospitalizadas por maus-tratos em UTI de serviço público de saúde. Rev. Bras. Enferm. [Internet]. 2018 [acesso em 17 dez 2020].Disponível em: https://www.scielo.br/j/reben/a/BwMPDdjNktzWy5MCD7fkcJz/?format=pdf⟨=pt.
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Destaca-se que essas expressões mais graves fogem ao socialmente aceito e perpassam pela reprodução de comportamentos vivenciados na infância das mães/pais ou, ainda do cenário de violência conjugal vivido nos relacionamentos. Sobre isso, pesquisa com homens autores de violência desvela a reprodução de comportamentos violentos experienciados na infância no processo de educação dos filhos, de modo semelhante ao encontrado em estudo de caso com um casal com histórico de violência que apontou a violência na conjugalidade sendo espelhada na forma de se relacionar e educar a prole1616 Magalhães JRF de, Pereira Á, Gomes NP, Silva AF da, Estrela FM, Oliveira MA da S, et al. Meanings of intrafamily violence experienced in childhood/adolescence present in the discourses of men. Rev. Bras. Enferm. [Internet]. 2021 [acesso em 20 nov 2021]. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0238.
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De forma orgânica, na sociedade, o castigo físico é visto como sinônimo de educar, e esta prática transpassou diversas barreiras inclusive o da própria vida, onde pode ser destacado o assassinato de Bernardo Boldrini em abril de 2014 que com apenas 11 anos de idade teve a vida ceifada com uma mistura de sedativos, administrado por seu genitor e madrasta. Este ato de extrema violência foi responsável por nomear o projeto de lei 7672/2010 de Lei Menino Bernardo, que posteriormente foi apelidado pela imprensa de Lei da Palmada, com o intuito de proibir castigos físicos, tratamentos degradantes e cruéis no processo de educação de crianças e adolescentes.

Vale destacar que, embora a lei leve em seu nome o termo “palmada”, o corpo de texto não traz esta denominação, o que torna muitos de seus pontos subjetivos, por não ter uma objetivação do que seria sofrimento físico para substanciar consequências jurídicas. A Lei Menino Bernardo é um passo importante para abominar a utilização de qualquer punição física e quebrar a cultura da violência cometida pelos pais, no âmbito doméstico, com a ressalva de que educar é algo normal e aceitável.

Assim como o caso do menino Bernardo e mesmo ante a promulgação da lei, ainda são vistos casos no Brasil, onde crianças morrem por maus tratos. Exemplo disso é a situação de Henry Borel, morto no dia oito de março de 2021. O laudo do Instituto Médico Legal apontou como causa da morte hemorragia interna e lesão hepática causada por ação contundente, situação que descarta a possibilidade de acidente doméstico e indica violência. Essa realidade se soma à fragilidade das leis, exigindo do poder público buscar mecanismos legais, cada vez mais protetivos a esse público vulnerável, conscientizando sobre a gravidade do problema e informando que casos de agressões, mesmo em unidades autônomas devem ser denunciados por todos.

Em concordância aos casos, nossos achados evidenciaram que a violência física teve, em sua maioria, como agressores pai/mãe (55,7%), principais responsáveis para cuidar das crianças e dos adolescentes, reforçando que a experiência está ocorrendo durante o processo de criação das(os) filhas(os). Essa realidade, também foi evidenciada em estudo realizado no Iêmen, com 598 crianças e que apontou os genitores enquanto principais perpetradores da violência física1717 Alizzy A, Calvete E, Bushman BJ. Associations between experiencing and witnessing physical and psychological abuse and internalizing and externalizing problems in wemeni children. J Fam Viol. [Internet]. 2017 [acesso em 13 out 2020]. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s10896-017-9916-5.
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Nesse contexto, o lar e as(os) responsáveis que deveriam proteger as crianças e adolescentes passam a ser espaço ou instrumento de violação de direitos, contrariando o ECA (1990), que versa sobre o respeito à inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral; a responsabilidade da família, comunidade e sociedade de garantir a dignidade do indivíduo e proíbe que pais, integrantes da família ampliada, responsáveis, agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar dos infantojuvenis utilize do castigo físico, do tratamento cruel ou degradante ou de qualquer forma de pretexto.

Espera-se, assim, provocar reflexões acerca das práticas impositivas, repressivas e punitivas como forma de “educar”, o que só demonstram a relação desigual de poder e força entre adultos, mais fortes e os filhos, considerados os mais vulneráveis. Nessa perspectiva, busca-se estimular a criação de estratégias mais dialógicas para lidar com crianças/adolescentes como sujeitos de direitos, conduta que é essencial para que estes aprendam formas pacíficas e respeitosas de se relacionar e enfrentar os conflitos ao longo da vida.

Diferentemente da violência física e psicológica, as quais, muitas vezes, são naturalizadas socialmente como método educativo, o abuso sexual tem consenso mundial enquanto crime de atentado aos direitos humanos das crianças e dos adolescentes. Nesse estudo, a vivência foi sinalizada por 5,2% dos(as) adolescentes, inquietando-nos sobre o sofrimento desse público submetido à satisfação do desejo sexual de outrem. Nesse contexto, a criança e/ou adolescente se torna objeto de desejo dentro de um reino fantasioso e doentio, no qual os perpetradores buscam envolvê-los(as) através de estimulação sexual ou utilizá-los(as) como um instrumento para obter satisfação sexual1818 Antony S, Almeida EM de. Vítimas de violência sexual intrafamiliar: uma abordagem gestáltica. Revista NUFEN. [Internet]. 2018 [acesso em 12 ago 2020]. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-25912018000200012.
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. Essa realidade encontra consonância a outro estudo transversal no qual, utilizando dados oriundos de prontuários de uma clínica psiquiátrica que atendia crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, com idade entre 10 e 18 anos, os pesquisadores revelaram que 94% das vítimas foram abusadas sexualmente, com penetração e 24% dos casos registrados teve relação com o incesto1919 Satar SNAW, Norhayati MN, Sulaiman Z, Othman A, Yaacob LH, Hazlina NHN. Predisposing factors and impact of child victimization: a qualitative study. Int J Environ Res Public Health. [Internet]. 2021 [acesso em 02 jun 2022]; 18(17). Disponível em: https://doi.org/10.3390/ijerph18179373.
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Importante salientar a subenumeração destes registros, atrelada ao silêncio que permeia as relações abusivas, principalmente com crianças e adolescentes devido ao medo conforme assinala estudo realizado em Fortaleza-CE, o qual, analisando dados secundários a respeito dos casos de violência sexual contra mulheres adolescentes, alertou acerca da utilização de ameaças contra as vítimas pelos agressores2020 Nunes MCA, Lima RFF, Morais NA de. Violência sexual contra mulheres: um estudo comparativo entre vítimas adolescentes e adultas. Psicol. Ciênc. Prof. [Internet]. 2017 [acesso em 20 fev 2020]; 37(4). Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-3703003652016.
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. O medo que as vítimas têm de expor ou denunciar o agressor contribui para que os adolescentes guardem para si a violência sofrida, sobretudo, quando este faz parte do seu ciclo familiar, o que facilita a manutenção das chantagens e ameaças.

No que se refere às expressões de agressão, na modalidade vivenciada da violência sexual, a que mais se destacou foi o ato de mexer no corpo (75,0%), considerado bolinagem que, em algumas situações não são percebidas pelas crianças devido à sua inocência e ingenuidade. Essa situação também foi encontrada em pesquisa realizada na Índia, com meninos que sofreram abusos sexuais, revelando que os infantes não percebiam que estavam sendo violentados, como relatou um dos participantes que havia sido molestado pelo tio, quando tinha apenas três anos de idade2121 Tomori C, McFall AM, Srikrishnan AK, Mehta SH, Nimmagadda N, Anand S, et al. The prevalence and impact of childhood sexual abuse on HIV-risk behaviors among men who have sex with men (MSM) in India. BMC Public Health. [Internet]. 2016 [acesso em 19 nov 2020]; 16(1). Disponível em: https://doi.org/10.1186/s12889-016-3446-6.
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A alta prevalência da bolinagem pode ser explicada pela facilidade de acesso dos(as) agressores(as) às crianças/adolescentes, justamente devido à relação de confiança estabelecida entre estes(as) e a vítima ou seus responsáveis. Corroborando esses resultados, estudo realizado na Etiópia, com 462 estudantes universitárias com idade entre 18 e 26 anos revelou que as adolescentes sofreram abuso sexual quando novas, sendo os perpetradores membros do seio familiar da vítima, como familiares/parentes (25,2%)2222 Adinew YM, Hagos MA. Sexual violence against female university students in Ethiopia. BMC Int Health Hum Rights. [Internet]. 2017 [acesso em 12 nov 2020];17(1). Disponível em: http://dx.doi.org/10.1186/s12914-017-0127-1.
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. No Brasil, uma pesquisa realizada em Florianópolis/SC, com base em 489 notificações pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação - SINAN, apontou que em todos os casos suspeitos ou confirmados de abuso sexual infantil predominaram vítimas do sexo feminino, ocorrendo em residências e, em mais da metade dos casos, o autor era homem conhecido da vítima2323 Platt VB, Back I de C, Hauschild DB, Guedert JM. Violência sexual contra crianças: autores, vítimas e consequências. Ciênc. saúde colet. [Internet]. 2018 [acesso em 17 dez 2020]; 23(4). Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018234.11362016.
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Em face dos achados discutidos, pontua-se que os adolescentes estão imersos em um convívio familiar permeado pela violência psicológica e física, advindas de um comportamento que naturaliza as medidas punitivas como meio de educação, e pela violência sexual, permeada pelo silêncio, medo de denunciar e sentimento de culpa. Na Índia, estudo realizado com estudantes jovens, também encontrou as mesmas formas de violência (psicológica, física e sexual) e revelou que o medo, vergonha e falta de entendimento acerca do fato de que se tratava de violência estava dentre os principais motivos para não denunciar as agressões2424 Bhilwar M, Upadhyay RP, Rajavel S, Singh SK, Vasudevan K, Chinnakali P. Childhood experiences of physical, emotional and sexual abuse among college students in south India. J Trop Pediatr [Internet]. 2015 [acesso em 12 ago 2020]; 61(5). Disponível em: https://doi.org/10.1093/tropej/fmv037.
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. Assim sendo, faz-se necessário que todos os indivíduos sejam encorajados/ensinados na infância e na adolescência a buscarem pessoas de sua confiança para relatar as situações de violência presenciadas e vivenciadas.

O encorajamento dessas pessoas pode ocorrer por meio de grupos operativos, permitindo a abordagem de informações sobre as formas de violência, complicações decorrentes destas e principais maneiras de prevenção, a troca e aprendizado dos conteúdos, além de percepção dos fatos experienciados. Um estudo realizado em unidades que desenvolvem atividades de prevenção à violência contra crianças identificou que, através de campanhas com distribuição de panfletos, palestras com pais e famílias abordando tipos de violência, direitos garantidos pelo estatuto da criança e do adolescente e principais órgãos de apoio à proteção, é possível empoderar as famílias e sociedade, além de contribuir para o fortalecimento dos vínculos a fim de estabelecer melhor cuidado e proteção para crianças e adolescentes2525 Morais RLGL, Sales ZN, Rodrigues VP, Oliveira J da S. Actions of protection for children and teenagers in situations of violence. R. pesq. cuid. fundam. Online. [Internet]. 2016 [acesso em 26 dez 2020]; 8(2). Disponível em: https://doi.org/10.9789/2175-5361.2016.v8i2.4472-4486.
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Deste modo, pai, mãe e/ou familiares devem ser agentes que promovam o cuidado e salvaguardem os infantojuvenis de toda forma de desrespeito bem como participem da interrupção do ciclo de violência presenciadas e/ou vivenciadas, considerando que este é um direito garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

De acordo com esse Estatuto, o dever de proteção aos menores abrange toda sociedade, perpassando pelas famílias e escolas, que são instituições que possuem maior aproximação com esse público. Para os profissionais da educação que, geralmente, constitui o primeiro grupo social fora do ambiente familiar a desenvolver contato mais frequente com crianças e adolescentes, as intervenções devem ser dirigidas para a sensibilização de uma escuta e olhar ampliado para as situações que indicam vivência de violência dentro dos lares, como: comportamentos agressivos, dificuldade no aprendizado, faltas recorrentes nas aulas, entre outros.

Nesse contexto, estudo transversal realizado em Filipinas, com 237 professores de escolas públicas analisou a implementação de um curso de formação para os educadores abordando casos de violência e percebeu melhora na capacidade de identificação de sinais e sintomas da violência e nas ações de intervenção2626 Madrid BJ, Lopez GD, Dans LF, Fry DA, Duka-Pante FGH, Muyot AT. Safe schools for teens: preventing sexual abuse of urban poor teens, proof-of-concept study - Improving teachers’ and students’ knowledge, skills and atitudes. Heliyon. [Internet]. 2020 [acesso em 20 nov 2021]; 6 (6). Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.heliyon.2020.e04080.
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Se não fosse o distanciamento social provado pela pandemia da COVID-19, quiçá a escola pudesse ter intervindo na história de Henri, visto que, devido à relação de vínculo, as professoras poderiam ter suspeitado e buscado ações de proteção à criança. Infere-se, portanto, que a não ação por parte de pessoas próximas, assim como a inexistência de mecanismos que protejam as crianças, permite a perpetuação de casos de violência, sendo importante considerar que omissão também constitui prática de violência.

Outros atores que podem contribuir para a prevenção e enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes são os profissionais de saúde durante as consultas de puericultura ou quando os menores adentram os serviços de saúde. Nesse sentido, estudo conduzido na Europa, ressaltou a importância do julgamento clínico de enfermeiras na identificação da violência assim como a utilização de instrumentos em sua prática2727 Put CE, Bouwmeester-Landweer MBR, Landsmeer-Beker EA, Wit JM, Dekker FW, Kousemaker NPJ, et al. Screening for potential child maltreatment in parents of a newborn baby: the predictive validity of an Instrument for early Identification of Parents at Risk for Child Abuse and Neglect (IPARAN). Child Abuse Neglect. [Internet]. 2017 [acesso em 19 nov 2020]. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2017.05.016.
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. Ratificando, estudo realizado em Chipre, Grécia e Espanha, com 50 profissionais de saúde apontou que os profissionais dessa área são essenciais para identificar as situações de violência contra crianças e adolescentes, e que o uso de uma ferramenta pode ajudar esse processo2828 Martins-Júnior PA, Ribeiro DC, Oliveira GS, Paiva S, Marques LS, Jorge-Ramos ML. Abuso físico de crianças e adolescentes: os profissionais de saúde percebem e denunciam?. Cien Saude Colet [Internet]. 2017 [acesso em 04 jun 2022]. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018247.19482017.
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Contudo, se os profissionais de saúde negligenciam os sinais e sintomas da violência, isso pode reverberar em diversas comorbidades para os infantojuvenis e, até mesmo, o óbito, semelhante ao ocorrido no caso do menino Henry. Essa criança, antes do desfecho fatal, já havia sido atendida no hospital por conta de lesões causadas por maus tratos, no entanto, a questão física foi resolvida, mas não houve suspeita de violência, tampouco denúncia do agravo, o que resultou no retorno do menor para um cenário hostil: o óbito. Dessa forma, reitera-se o papel e a importância que os profissionais de saúde possuem para identificação dos casos, interrupção do ciclo de violência e salvar vidas.

Ante a susceptibilidade de crianças e adolescentes à vivência de abusos, é essencial que a sociedade atue enquanto vigilante no sentido de assegurar uma vida livre de violência. Nesse sentido, no intuito de coibir os casos de violência, na Bahia, foi promulgada a Lei 14.278 que obriga os condomínios residenciais a comunicar ocorrência de casos de violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças, adolescentes ou idosos. Essa lei foi vigorada em meio à pandemia da Covid-19, isolamento social em face do aumento do número de casos de violência doméstica e da dificuldade de acesso aos serviços de proteção. Destaca-se que esse mecanismo, de amplitude local, pode ser ampliado, a fim de sensibilizar a população a estar alerta para situações de violência e se tornar agente de proteção aos vulneráveis.

Acredita-se que o estudo tenha como limitação a pouca adesão dos adolescentes e responsáveis para permitir a condução da pesquisa, o que poderia ser assegurado com uma amostra maior.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo mostra que as(os) adolescentes experienciam a violência intrafamiliar, presenciando-a e/ou vivenciando-a nas formas psicológica, física e sexual com maior expressão por meio do xingamento, humilhações, tapas, beliscões e mexer no corpo. Chama a atenção para a naturalização da violência psicológica e física arraigada na crença social de medida educativa e majoritariamente praticada por mães e pais, responsáveis pela perpetuação dos abusos aos menores mascarados como método educativo. Por outro lado, a violência sexual, mais cometida por outros parentes, atrela-se ao medo e/ou à dificuldade de falar sobre o ocorrido.

Tais achados contribuem para dar visibilidade às formas de expressão da violência intrafamiliar vivenciada e presenciada por crianças e adolescentes, oferecendo subsídios para que os adolescentes se reconheçam em situação de violência bem como para que familiares, profissionais da educação, da saúde e a sociedade, em geral, identifiquem crianças e adolescentes vitimizadas.

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Editora associada: Luciana Kalinke

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2021
  • Aceito
    17 Jun 2022
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