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Má oclusão Classe III de Angle com discrepância anteroposterior acentuada

Resumos

O caso clínico apresentado refere-se ao tratamento de uma paciente com 36 anos, que apresentava uma má oclusão Classe III esquelética e dentária, com ausência dos caninos superiores. Foi realizado um tratamento ortodôntico-cirúrgico combinado, com avanço de maxila (Le Fort 1) e ajustes oclusais nos primeiros pré-molares superiores, que substituíram os caninos. Esse caso foi apresentado à Diretoria do Board Brasileiro de Ortodontia e Ortopedia Facial (BBO), representando a categoria 4, ou seja, uma má oclusão com discrepância anterossuperior acentuada, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Diplomado pelo BBO.

Má oclusão de Angle Classe III; Cirurgia maxilofacial; Ortodontia corretiva


This case report describes the treatment of a 36-year-old patient who presented a skeletal and dental Class III malocclusion and missing upper canines. The patient was treated with orthosurgical maxillary advancement (Le Fort 1) and occlusal adjustment of the first premolars, which replaced the canines. This case was presented to the Brazilian Board of Orthodontics and Facial Orthopedics (BBO), as representative of Category 4, i.e., malocclusion with severe anteroposterior discrepancy, as part of the requirements for obtaining the BBO Diploma.

Angle Class III malocclusion; Maxillofacial surgery; Corrective Orthodontics


CASO CLÍNICO BBO

Má oclusão Classe III de Angle com discrepância anteroposterior acentuada

Carlos Alexandre Câmara

Especialista em Ortodontia (FO-UERJ). Diplomado pelo Board Brasileiro de Ortodontia e Ortopedia Facial

Endereço para correspondênciaEndereço para correspondência: Carlos Alexandre Câmara Rua Joaquim Fagundes 597, Tirol CEP: 59.022-500 - Natal / RN E-mail: cac.ortodontia@digi.com.br

RESUMO

O caso clínico apresentado refere-se ao tratamento de uma paciente com 36 anos, que apresentava uma má oclusão Classe III esquelética e dentária, com ausência dos caninos superiores. Foi realizado um tratamento ortodôntico-cirúrgico combinado, com avanço de maxila (Le Fort 1) e ajustes oclusais nos primeiros pré-molares superiores, que substituíram os caninos. Esse caso foi apresentado à Diretoria do Board Brasileiro de Ortodontia e Ortopedia Facial (BBO), representando a categoria 4, ou seja, uma má oclusão com discrepância anterossuperior acentuada, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Diplomado pelo BBO.

Palavras-chave: Má oclusão de Angle Classe III. Cirurgia maxilofacial. Ortodontia corretiva.

HISTÓRIA E ETIOLOGIA

Paciente de cor branca com 36 anos de idade, do gênero feminino, boas condições de saúde e com experiência média de cáries. Não possuía histórico de doenças graves ou crônicas. Revelou, na consulta inicial, que desde a infância apresentava uma face com perfil côncavo e havia extraído os caninos superiores ainda jovem. Sua queixa principal referia-se à desarmonia dos dentes na região anterior e insatisfação com os aspectos funcionais e estéticos.

DIAGNÓSTICO

Ao exame físico, foi observado que a paciente apresentava características de má oclusão Classe III dentária e esquelética. A relação dentária apresentava-se atípica, uma vez que os pré-molares superiores estavam no lugar dos caninos, pois esses encontravam-se ausentes. O primeiro molar inferior esquerdo também estava ausente. Sendo assim, a relação molar do lado direito era de chave de oclusão. Na região dos caninos, havia uma relação de Classe III atípica, com os pré-molares superiores substituindo os caninos. Havia uma mordida cruzada anterior de -4mm e um pequeno desvio da linha média dentária inferior (1mm para a esquerda). Os dentes posteriores apresentavam coroas aumentadas com sinais de recessão gengival (Fig. 1, 2).



Na análise facial, em uma vista sagital, o terço médio encontrava-se recuado em relação aos terços superior e inferior da face. A deficiência maxilar ficava bem evidente pela ausência da projeção zigomática e depressão infraorbitária. Além disso, a mandíbula não apresentava a linha queixo-pescoço longa1. Numa vista frontal, não observavam-se grandes discrepâncias. Constatou-se aumento vertical (relativo) do terço inferior, que estava bem evidenciado pela desproporção entre lábio superior, lábio inferior e mento - que se encontravam na proporção de 1:3, quando a ideal seria de 1:22. Essa desproporção provocava uma sensação estética desagradável, principalmente para uma face feminina. O recuo da maxila contribuía para essa impressão que, possivelmente, foi potencializada pela ausência dos caninos superiores. A estética do sorriso também foi prejudicada pela retrusão maxilar, com a linha do sorriso baixa e pouca exposição dos incisivos superiores (Fig. 1).

Na radiografia panorâmica, observou-se perda óssea horizontal em ambas as arcadas (Fig. 3).


A avaliação da radiografia cefalométrica de perfil (Fig. 4) confirmou o padrão esquelético de Classe III com ANB igual a -10° (SNA = 74° e SNB = 84°) e inclinações compensatórias dos incisivos (1-NA = 30°, 1-NB = 19° e IMPA = 84°). Essas e as outras medidas podem ser vistas na tabela 1.


OBJETIVOS DO TRATAMENTO

A deficiência maxilar, que era responsável pela retrusão do terço médio, conduziu os objetivos do tratamento. A mordida cruzada anterior, decorrente do recuo maxilar e ausência dos caninos superiores, necessitava ser corrigida com o avanço cirúrgico da maxila. O estabelecimento da relação de chave de oclusão seria obtido com o avanço maxilar e o ajuste oclusal dos pré-molares superiores que substituíam os caninos. A descompensação ortodôntica pré-cirúrgica seria obtida com o alinhamento e nivelamento das arcadas superior e inferior. Na arcada inferior, ficou decidido que o espaço do elemento 36 ausente seria fechado durante a mecânica ortodôntica de descompensação. O planejamento cirúrgico restringiu-se ao avanço da maxila, por essa encontrar-se retruída em relação ao terço inferior e a mandíbula não apresentar uma grande desproporção, corroborado pelo comprimento normal da linha queixo-pescoço.

PLANO DE TRATAMENTO

O plano de tratamento foi elaborado com base na necessidade de compensação dentária para o preparo cirúrgico. Consistiu de montagem do aparelho fixo superior e inferior, sistema Edgewise, standard, slot 0,022" x 0,028", arcos redondos 0,012"; 0,014"; 0,016"; 0,018" e 0,020", e retangular 0,019" x 0,025". Todos os fios ortodônticos seriam de aço inoxidável, com exceção do primeiro, que seria de NiTi. No final das fases de alinhamento e nivelamento com arcos redondos, iniciar-se-ia o uso de elásticos com orientação de Classe II, com a intenção de descompensar as inclinações linguais das coroas dos dentes anteriores inferiores e preparar para a colocação do arco retangular 0,019" x 0,025". O uso de elásticos com direção de Classe II serviria também para auxiliar no fechamento do espaço entre os dentes 37 e 35, causado pela ausência do 36.

Após a colocação dos fios retangulares, seriam feitas moldagens das arcadas superior e inferior para verificação dos modelos em simulação da oclusão pós-cirúrgica. Quando a oclusão estivesse preparada, seria solicitada nova documentação para avaliação e estudo pré-cirúrgico. A cirurgia seria de avanço de maxila (Le Fort I), com fixação rígida com miniplacas e parafusos. A última fase seria a de finalização e acabamento, com atenção especial para o ajuste de torques dos primeiros pré-molares superiores. Antes da remoção do aparelho fixo, ficou programado um ajuste oclusal para refinamento dos contatos oclusais e guias laterais e anterior.

Como contenção, planejou-se o uso de uma barra inferior colada nos dentes anteriores, de canino a canino, com fio trançado 0,032". No arco superior, seria utilizada uma placa superior removível (wraparound), confeccionada com fio de aço inoxidável 0,032".

PROGRESSO DO TRATAMENTO

O aparelho ortodôntico foi montado com acessórios do sistema Edgewise, standard. Com exceção dos primeiros arcos ortodônticos de NiTi 0,012", todos os outros eram de aço inoxidável. O uso desses arcos possibilitou a individualização de diagramas com tamanhos de arcadas que proporcionavam a descompensação dessas. Isto é, as compensações geradas pela má oclusão inicial eram corrigidas com base na forma individualizada e ideal das arcadas da paciente. Explicando melhor, as distância entre os caninos e molares inferiores serviu de referência para a confecção dos diagramas inferior e superior. O uso de arcos contornados individualizados respeitando essas medidas possibilitou uma descompensação lenta e gradual. Entretanto, a descompensação da largura transversa da maxila com diminuição da distância intermolares criou um impasse. Na verdade, a diminuição da distância intermolares deu-se devido à correção de torques. Por se tratar de uma má oclusão de Classe III, esses dentes quando não estão cruzados apresentam compensações de torque lingual de raiz3. Sendo assim, após a correção dos torques dos dentes posteriores, houve uma discrepância entre a largura da maxila e a da mandíbula. Quando se manipulava os modelos de gesso, simulando o posicionamento pós-cirúrgico, aparecia uma mordida cruzada lingual. Na verdade, a atresia maxilar também se expressava na dimensão transversa. Sendo assim, havia uma discrepância entre as bases ósseas da maxila e mandíbula, que se expressou após as descompensações dentárias. A solução ideal para esse problema seria a expansão maxilar cirúrgica, que poderia ser feita previamente ou durante a cirurgia de avanço, segmentando a maxila. Entretanto, constatou-se, na simulação de modelos, que o cruzamento da mordida era discreto. Esse fato, somado às desvantagens da expansão cirúrgica da maxila pré-cirurgia de avanço (duas fases) - como o desconforto e o aspecto antiestético pós-cirúrgico, assim como a possibilidade de recidiva5 na expansão por cirurgia de segmentação e avanço (uma fase) - levou à conduta ortodôntica de compensar a discrepância transversal entre a maxila e a mandíbula através do aumento de torque vestibular de raiz dos molares inferiores, diminuindo a distância intermolares (Tab. 2). Então, a intercuspidação correta entre os molares superiores e inferiores, no sentido transversal, foi obtida pela compensação dentária, que permitiu que as cúspides palatinas dos molares superiores ocluíssem em fossa e cristas marginais dos molares inferiores. Após essas compensações, foram requisitados novos exames para o planejamento cirúrgico e a paciente foi encaminhada para a cirurgia ortognática (Fig. 5 - 9).


Como previsto, o avanço de 8mm da maxila proporcionou a correção da mordida cruzada anterior, com a obtenção de uma relação de chave de oclusão atípica, com os primeiros pré-molares superiores ocupando as posições dos caninos. Na fase de finalização, após os ajustes ortodônticos, foram realizados ajustes oclusais por desgastes na região dos primeiros pré-molares superiores, para que os contatos oclusais fossem simultâneos bilateralmente, com forças axiais equipotentes, sem resultantes laterais. As guias laterais foram obtidas com a desoclusão em grupo, para não gerar sobrecarga nos pré-molares, que já apresentavam recessões gengivais antes do tratamento. Os ajustes oclusais foram refinados seis meses após a remoção do aparelho. O espaço do dente 36 foi fechado com elásticos em cadeia e com o auxílio dos elásticos intermaxilares usados antes da cirurgia (Fig. 10).


As contenções utilizadas foram as planejadas. Na arcada superior, um aparelho removível wraparound e, na inferior, um fio trançado (0,032") colado de canino a canino.

RESULTADOS DO TRATAMENTO

O avanço cirúrgico da maxila (Le Fort 1) de 8mm corrigiu a discrepância sagital da má oclusão Classe III, com redução do ANB de -10° para 0° (Tab. 1). A descompensação dos incisivos permitiu que a mordida cruzada anterior fosse corrigida e que um correto trespasse vertical e horizontal fosse obtido. O espaço do primeiro molar inferior esquerdo ausente foi ocupado pelo segundo molar, que ficou em relação de Classe II em ambos os lados, devido à ausência dos caninos superiores. O avanço maxilar também trouxe melhoras estéticas, uma vez que tanto o perfil quanto o sorriso apresentaram ganhos significativos. O perfil passou a ser mais harmonioso, com melhor proporção entre os terços faciais. O adequado posicionamento e a maior exposição dos incisivos superiores contribuíram para a harmonização do sorriso4. Na vista frontal da face em repouso, constata-se que houve melhora entre as proporções dos terços faciais e da relação entre os lábios superior e inferior e o mento, que passou a ser de 1:2 (Fig. 10 - 14).


AVALIAÇÃO DE TRATAMENTO

Por se tratar de uma paciente adulta portadora de uma má oclusão esquelética Classe III, a opção cirúrgica sempre esteve presente. A escolha pelo avanço da maxila deveu-se ao fato do terço médio da face se encontrar retruído em relação aos terços inferior e superior. Esse recuo demonstrava que havia uma atresia da maxila que, acompanhada da ausência dos caninos superiores, potencializava o efeito retrusivo com a presença de mordida cruzada anterior de quatro milímetros. Por outro lado, embora houvesse uma discrepância de posicionamento entre a maxila e a mandíbula, a mandíbula não apresentava tamanho excessivo, fato esse observado pelo comprimento normal da linha queixo-pescoço. Além disso, dois fatores foram determinantes para a cirurgia apenas da maxila. O primeiro foi devido ao risco do recuo mandibular interferir na diminuição do espaço da orofaringe, podendo levar ao surgimento de algum distúrbio respiratório, em particular, a apneia obstrutiva. O segundo foi que a possibilidade da recidiva fica diminuída quando se opta pela movimentação de um único osso5. Assim, após quatro anos, a estabilidade dos resultados confirmou essa expectativa (Fig. 15 - 19).


A correção dos problemas esqueléticos e dentários permitiu que os objetivos oclusais, funcionais e estéticos fossem alcançados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo de todo tratamento ortodôntico consiste em alcançar uma oclusão que permita a função satisfatória e saudável na rotina fisiológica do sistema estomatognático, excelente estética facial, bucal e dentária, e estabilidade em longo prazo dos resultados alcançados. Pacientes adultos, com necessidades estéticas e funcionais, elevam o grau de dificuldade da obtenção desses objetivos, uma vez que, não tendo mais a capacidade de mudança proporcionada pelo crescimento ósseo, necessitam de procedimentos complementares e integrados para o alcance das metas almejadas. A má oclusão esquelética de Classe III é um bom exemplo dessa situação, onde as possibilidades ortodônticas são limitadas e necessitam de apoio de outras especialidades, em particular, da cirurgia. Entretanto, o que proporcionará a obtenção do êxito no tratamento será o entendimento e a integração entre as especialidades, que buscarão, em conjunto, as melhores alternativas e procedimentos. No caso apresentado, o tratamento foi realizado com a intervenção ortodôntica e a cirurgia ortognática. O conhecimento das necessidades estéticas e funcionais, assim como das expectativas e anseios da paciente, determinou a correção da discrepância óssea e oclusal, por meio do avanço da maxila e da adaptação dos primeiros pré-molares superiores, para exercerem as funções dos caninos ausentes. Sendo assim, embora atípico, esse caso preencheu as exigências do Board Brasileiro de Ortodontia e Ortopedia Facial, que entende e avalia os resultados dos tratamentos sob o prisma dos preceitos ideais e reais de um bom tratamento ortodôntico.

AGRADECIMENTOS

Ao Dr. Arthur Farias, pela ajuda na ilustração do trabalho; Dr. Sergio Varela, responsável pela cirurgia da paciente apresentada; Dra. Telma Araujo, pela valiosa revisão.

Enviado em: dezembro de 2009

Revisado e aceito: fevereiro de 2010

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  • Endereço para correspondência:
    Carlos Alexandre Câmara
    Rua Joaquim Fagundes 597, Tirol
    CEP: 59.022-500 - Natal / RN
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Recebido
      Dez 2009
    • Aceito
      Fev 2010
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