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Prevalência de má oclusão em crianças entre 6 e 10 anos: um panorama brasileiro

Resumos

OBJETIVO: estabelecer um panorama da ocorrência de más oclusões em crianças brasileiras de 6 a 10 anos de idade, além de duas situações clínicas frequentemente associadas a elas, a cárie e a perda prematura de dentes decíduos. MÉTODOS: a amostra selecionada foi aleatória e intencional, tendo-se avaliado 4.776 crianças. A coleta dos dados foi realizada por meio de exame clínico e anamnese, como parte da campanha "Prevenir é melhor que tratar", conduzida em 18 estados brasileiros e no Distrito Federal, com a participação de ortodontistas filiados à Associação Brasileira de Ortodontia e Ortopedia Facial (ABOR). RESULTADOS E CONCLUSÕES: verificou-se que apenas 14,83% das crianças eram portadoras de oclusão normal, enquanto 85,17% possuíam algum tipo de alteração oclusal - sendo 57,24% portadoras de má oclusão de Classe I; 21,73%, de Classe II e 6,2%, de Classe III. Observou-se, também, a ocorrência de mordida cruzada em 19,58% das crianças, sendo 10,41%, na região anterior e 9,17% na posterior; de sobremordida profunda em 18,09%; e de mordida aberta em 15,85%. Cárie e/ou perdas dentárias estavam presentes em 52,97% das crianças. Além disso, verificou-se a possibilidade de intervenção ortodôntica preventiva em 72,34% das crianças examinadas, e interceptora em 60,86%. Sendo assim, destaca-se que a presença, nos postos públicos de saúde, de um especialista em Ortodontia, com qualificação que atenda aos padrões estabelecidos pela ABOR e pela World Federation of Orthodontists (WFO), pode beneficiar sobremaneira as crianças carentes brasileiras

Prevalência; Epidemiologia; Má oclusão


OBJECTIVES: To provide an overview of the malocclusions present in Brazilian children aged 6 to 10 years, and present two clinical situations often associated with these malocclusions, i.e., caries and premature loss of deciduous teeth. METHODS: A sample comprised of 4776 randomly and intentionally selected children was evaluated. Data collection was performed by clinical examination and history taking (anamnesis) as part of the campaign "Preventing is better than treating" conducted in 18 Brazilian states and the Federal District involving orthodontists affiliated with the Brazilian Association of Orthodontics and Facial Orthopedics (ABOR). RESULTS AND CONCLUSIONS: It was noted that only 14.83% of the children had normal occlusion while 85.17% had some sort of altered occlusion, with 57.24% presenting with Class I malocclusion, 21.73%, Class II, and 6.2%, Class III. Crossbite was also found in 19.58% of the children, with 10.41% in the anterior and 9.17% in the posterior region. Deep overbite was found in 18.09% and open bite, in 15.85% of the sample. Caries and/or tooth loss were present in 52.97% of the children. Moreover, the need for preventive orthodontics was observed in 72.34% of the children, and for interceptive orthodontics, in 60.86%. It should therefore be emphasized that the presence of specialists in orthodontics-duly qualified to meet the standards established by ABOR and the World Federation of Orthodontists (WFO)-in attendance at public health clinics, can greatly benefit underprivileged Brazilian children.

Prevalence; Epidemiology; Malocclusion


ARTIGO INÉDITO

Prevalência de má oclusão em crianças entre 6 e 10 anos - um panorama brasileiro

Marcos Alan Vieira BittencourtI; André Wilson MachadoII

IDoutor e Mestre em Ortodontia pela UFRJ. Professor Adjunto de Ortodontia na UFBA. Diplomado pelo Board Brasileiro de Ortodontia e Ortopedia Facial

IIMestre em Ortodontia pela PUC-Minas. Doutorando em Ortodontia pela UNESP-Araraquara. Professor do Curso de Especialização em Ortodontia da UFBA

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Marcos Alan Vieira Bittencourt Av. Araújo Pinho, 62, 7º Andar, Canela CEP: 40.110-150 - Salvador / BA E-mail: alan_orto@yahoo.com.br

RESUMO

OBJETIVO: estabelecer um panorama da ocorrência de más oclusões em crianças brasileiras de 6 a 10 anos de idade, além de duas situações clínicas frequentemente associadas a elas, a cárie e a perda prematura de dentes decíduos.

MÉTODOS: a amostra selecionada foi aleatória e intencional, tendo-se avaliado 4.776 crianças. A coleta dos dados foi realizada por meio de exame clínico e anamnese, como parte da campanha "Prevenir é melhor que tratar", conduzida em 18 estados brasileiros e no Distrito Federal, com a participação de ortodontistas filiados à Associação Brasileira de Ortodontia e Ortopedia Facial (ABOR).

RESULTADOS E CONCLUSÕES: verificou-se que apenas 14,83% das crianças eram portadoras de oclusão normal, enquanto 85,17% possuíam algum tipo de alteração oclusal - sendo 57,24% portadoras de má oclusão de Classe I; 21,73%, de Classe II e 6,2%, de Classe III. Observou-se, também, a ocorrência de mordida cruzada em 19,58% das crianças, sendo 10,41%, na região anterior e 9,17% na posterior; de sobremordida profunda em 18,09%; e de mordida aberta em 15,85%. Cárie e/ou perdas dentárias estavam presentes em 52,97% das crianças. Além disso, verificou-se a possibilidade de intervenção ortodôntica preventiva em 72,34% das crianças examinadas, e interceptora em 60,86%. Sendo assim, destaca-se que a presença, nos postos públicos de saúde, de um especialista em Ortodontia, com qualificação que atenda aos padrões estabelecidos pela ABOR e pela World Federation of Orthodontists (WFO), pode beneficiar sobremaneira as crianças carentes brasileiras.

Palavras-chave: Prevalência. Epidemiologia. Má oclusão.

INTRODUÇÃO

A partir de 1899, com a classificação das más oclusões proposta por Angle4, e com o reconhecimento da Ortodontia, muito foi publicado sobre a incidência e a prevalência de más oclusões na população. Sabe-se, com base em dados da Organização Mundial da Saúde (OMS)17, que a má oclusão é o terceiro item na ordem dos problemas de saúde bucal, sendo precedido somente pela cárie e pela doença periodontal. No Brasil, essa situação se repete, o que faz com que a má oclusão seja merecedora de especial atenção. Contudo, é preocupante a dificuldade que a população menos favorecida financeiramente tem em acessar os serviços públicos de saúde bucal, já que poucos deles têm um setor ou programa voltado para esse problema. Assim, há acúmulo das necessidades de tratamento ortodôntico e não há acesso nem aos recursos preventivos mais simples, nem àqueles de tratamento mais complexo.

Os estudos em saúde pública sobre prevalência de más oclusões fornecem importantes dados epidemiológicos para avaliar o tipo e a distribuição das características oclusais de determinada população, a necessidade e a prioridade de tratamento e os recursos exigidos para a realização desse, em termos de capacidade de trabalho, habilidade, agilidade e materiais a serem empregados9. É fundamental a identificação e a localização dos diferentes desvios de desenvolvimento oclusal que podem surgir e que devem ser interceptados antes do término da fase de crescimento ativo. Além dos problemas de ordem funcional oriundos dessas alterações morfológicas, que podem tornar-se problemas esqueléticos mais complexos no futuro, muitas vezes há o comprometimento estético, com graves consequências psicossociais para o indivíduo em desenvolvimento.

As más oclusões apresentam uma origem multifatorial, dificilmente sendo atribuída uma única causa específica. Podem ser ocasionadas por fatores gerais, como os fatores congênitos, hereditários, deficiências nutricionais ou hábitos anormais de pressão; ou por fatores locais, situados diretamente na arcada, como os dentes supranumerários, a cárie dentária e a perda precoce de dentes decíduos2,11,18. Isso faz com que seja importante uma clara definição dos critérios de diagnóstico, a fim de facilitar o planejamento das ações de prevenção e de assistência19.

A OMS recomenda às autoridades sanitárias a realização, numa periodicidade entre cinco e dez anos, de levantamentos epidemiológicos das principais doenças bucais nas idades de 5, 12 e 15 anos e nas faixas etárias de 35 a 44 e 65 a 74 anos. No último levantamento em saúde bucal realizado pelo Ministério da Saúde31, em 2003, um dos objetivos foi identificar a prevalência das más oclusões com base nos critérios do Índice de Estética Dental (DAI). Encontrou-se uma ocorrência de 36,46% aos 5 anos; de 58,14% aos 12 anos; e de 53,23% aos 15 anos de idade. Embora esse índice não seja o mais adequado - pois não considera problemas como a mordida cruzada, a mordida aberta posterior, desvios de linha média ou a sobremordida profunda25 -, esse resultado denota que o conhecimento das características de uma população é fundamental para o desenvolvimento de propostas de ação adequadas às necessidades e riscos. O campo de trabalho nessa área é amplo e pouco atendido. A avaliação das más oclusões não tem avançado em direção a uma perspectiva de saúde coletiva, predominando estudos com delimitações temáticas, morfológicas ou biomecânicas.

Desse modo, o diagnóstico das condições de saúde bucal de grupos populacionais é um subsídio fundamental para o planejamento e a avaliação de ações de promoção de saúde16. A avaliação das más oclusões e das necessidades de tratamento para fins de saúde pública se faz necessária na determinação das prioridades de tratamento nos serviços odontológicos subsidiados publicamente, para estimar adequadamente o número de profissionais a serem recrutados e os recursos financeiros necessários para suprir esse tratamento. Embora diversas pesquisas tenham sido desenvolvidas nos últimos anos, do ponto de vista epidemiológico é bastante reduzido o número de trabalhos com abrangência nacional. Em face desse aspecto, o presente levantamento procurou estabelecer um panorama brasileiro da ocorrência de más oclusões em crianças de 6 a 10 anos de idade, além de duas situações clínicas frequentemente associadas a elas: a cárie e a perda prematura de dentes decíduos.

MATERIAL E MÉTODOS

A presente pesquisa se caracterizou como sendo do tipo quantitativo, de caráter exploratório descritivo e transversal. A amostra selecionada foi aleatória e intencional, tendo sido avaliadas 4.776 crianças brasileiras, na faixa etária entre 6 e 10 anos, sem distinção de raça ou sexo, e que não tinham recebido qualquer tipo de tratamento ortodôntico anterior. Previamente à coleta dos dados, os examinadores forneceram os devidos esclarecimentos, aos pais ou responsáveis pelas crianças, sobre a finalidade e importância do estudo, ressaltando os benefícios do trabalho. Além disso, foram orientados sobre as práticas que podem evitar ou minimizar problemas ortodônticos futuros nas crianças.

A coleta dos dados foi realizada por meio de exame clínico e anamnese, como parte da campanha "Prevenir é melhor que tratar", conduzida em 18 estados brasileiros e no Distrito Federal, com a participação de ortodontistas filiados à Associação Brasileira de Ortodontia e Ortopedia Facial (ABOR). A campanha fez parte da programação do projeto Ação Global 2009, uma realização do Serviço Social da Indústria (SESI), em parceria com a Rede Globo de Televisão. A ABOR, por meio de 19 regionais, disponibilizou cerca de 300 profissionais, ortodontistas associados ou alunos de cursos de especialização em Ortodontia reconhecidos pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO), que participaram voluntariamente. A avaliação foi realizada nos estados do Amapá,Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, além do Distrito Federal.

Houve, ainda, a parceria da Colgate®, que doou cinco mil conjuntos de escova, creme dental e folhetos explicativos, que foram distribuídos para todas as crianças examinadas. Com isso, procurou-se orientar as crianças e os pais ou responsáveis por elas, sobre a forma adequada de higienizar os dentes, com instrução sobre escovação e uso de fio dental, entre outras.

A coleta foi feita sob fonte de luz artificial, com a criança sentada em uma cadeira, de frente para o examinador. Foram utilizadas luvas, máscaras e espátulas descartáveis de madeira.

Inicialmente, buscou-se avaliar se o indivíduo era portador de uma oclusão normal. Em casos negativos, foi verificado se a alteração apresentada era significativa ou se havia somente pequenas alterações que não comprometeriam o estabelecimento de uma adequada relação oclusal futura, tanto do ponto de vista funcional quanto estético. As crianças portadoras de oclusão normal e as que apresentavam pequenas alterações foram categorizadas como oclusão favorável. Nas demais, a oclusão foi considerada desfavorável e, assim sendo, identificou-se as características da má oclusão apresentada, nos sentidos anteroposterior, transversal e vertical.

Observou-se a relação dos primeiros molares permanentes, preferencialmente, ou dos caninos, nos lados direito e esquerdo, para definir-se o tipo de má oclusão, de acordo com a classificação de Angle4. Foram estabelecidos os seguintes grupos: Classe I, Classe II divisão 1, Classe II divisão 2 e Classe III.

Em seguida, foi observada a presença de mordida cruzada nas regiões anterior (quando acometia um ou mais dentes anteriores) ou posterior (quando presente nessa região). Nesse caso, foi subdividida em bilateral (quando presente nos lados direito e esquerdo) ou unilateral (quando envolvendo apenas um dos lados).

Em relação às alterações verticais, foi avaliado o trespasse vertical anterior apresentado pela criança. Considerando-se que a maioria estaria na fase de dentição mista, estabeleceu-se como parâmetro de normalidade o trespasse vertical de até 50%, ou seja, um recobrimento de até metade da coroa clínica dos incisivos inferiores pelos incisivos superiores. O recobrimento maior que 50% foi categorizado como sobremordida profunda e a ausência de trespasse vertical, mordida aberta. Caso a criança se encontrasse em fase de dentição decídua, o parâmetro de normalidade foi uma sobremordida de 10% e, caso estivesse em fase de dentição permanente, de 20% a 30%.

Foi também avaliada a presença de lesões cariosas visíveis clinicamente e de perdas de dentes permanentes ou perdas precoces de dentes decíduos. Entendeu-se por perda precoce a perda decorrente de exodontias, motivadas por patologias ou traumatismos, realizadas fora do período considerado ideal para a esfoliação dos dentes.

Na sequência, procurou-se definir se a criança era merecedora de atenção ortodôntica, tanto ao nível de prevenção quanto de interceptação. Considerou-se como atenção ortodôntica preventiva, a orientação sobre a necessidade de higienização adequada e sobre o desenvolvimento da oclusão, a supervisão de espaço e as orientações relacionadas aos hábitos anormais de pressão e sobre a forma adequada de respiração. Considerou-se atenção interceptativa, a necessidade de mantenedores ou recuperadores de espaço, de extrações seriadas e de mecânica ortodôntica para a correção de mordidas cruzadas e mordidas abertas, além de intervenções ortopédicas para a correção das más oclusões de Classe II ou III.

RESULTADOS

Em relação ao sexo, das 4.776 crianças examinadas, 2.270 (47,53%) pertenciam ao sexo masculino e 2.506 (52,47%), ao feminino.

Conforme descrito, inicialmente, procurou-se analisar se as crianças examinadas eram portadoras de oclusão normal. Verificou-se que apenas 14,83% das crianças se encaixavam nessa categoria, enquanto 85,17% possuíam algum tipo de alteração oclusal, como pode ser visualizado no Gráfico 1.


Em seguida, ao se analisar as características oclusais apresentadas, na tentativa de verificar se a oclusão era favorável ou não, verificou-se que, além das crianças que apresentavam oclusão normal, em 16,77%, existiam pequenas alterações que não comprometeriam o estabelecimento de uma relação oclusal adequada. Sendo assim, o total de crianças com oclusão favorável foi de 31,6% (Gráf. 2).


Nas crianças que não apresentavam características oclusais favoráveis ao estabelecimento de uma relação futura adequada, a má oclusão foi examinada nos sentidos anteroposterior, transversal e vertical. Os resultados obtidos podem ser verificados nos Gráficos 3 a 5.




Como pode ser visualizado no Gráfico 6, a presença de cárie e/ou perda dentária foi verificada na maior parte das crianças examinadas (52,97%).


Conforme citado anteriormente, procurou-se definir se a criança era merecedora de atenção ortodôntica, tanto ao nível de prevenção quanto de interceptação, sendo observada a necessidade, respectivamente, em 72,34% e em 60,86% das crianças examinadas (Gráf. 7, 8).



DISCUSSÃO

Embora menos prevalente que a cárie ou a doença periodontal, a má oclusão é endêmica e largamente presente em todo o mundo. Em um estudo realizado na população de Nova Iorque (EUA), constatou-se que apenas 4,8% apresentavam oclusão normal, demonstrando a magnitude do desafio que a Odontologia, em geral, e a Ortodontia, em particular, tiveram que enfrentar5. Apesar de, na literatura, ainda existir discussão sobre o conceito de oclusão ideal15,27 e, talvez por isso, sua incidência variar bastante quando avaliados diferentes grupos populacionais, sabe-se que sua ocorrência é relativamente rara. Por isso, o desafio ainda persiste. Na presente pesquisa, como pode ser visualizado no Gráfico 1, verificou-se que 85,17% das crianças apresentavam algum tipo de alteração, sendo 57,24% portadoras de má oclusão de Classe I de Angle; 21,73%, de má oclusão de Classe II; e 6,2%, de Classe III. Assim, foram consideradas portadoras de oclusão normal apenas 14,83% das crianças examinadas. A alta prevalência observada coincide com a relatada por Brito et al.7, que encontraram prevalência de 80,84% de má oclusão em crianças de 9 a 12 anos. Por outro lado, Albuquerque et al.1 observaram prevalência bastante inferior (40,7%), o que pode ser explicado pelo fato de sua amostra ter sido composta por crianças de 1 a 3 anos de idade, sugerindo ser menor a presença de desvios oclusais na dentição decídua, em detrimento da mista ou permanente.

Como já mencionado, o conceito de oclusão normal é discutível. Nesse sentido, foi considerado pelos avaliadores que 31,6% das crianças possuíam condições favoráveis ao desenvolvimento normal da oclusão. Isso porque, em algumas, as alterações oclusais responsáveis pela categorização em má oclusão de Classe I de Angle eram mínimas e em nada comprometeriam o estabelecimento de uma adequada relação oclusal futura, tanto do ponto de vista funcional quanto estético. Assim, houve redução para 68,4% no índice de crianças que apresentavam alterações que provavelmente comprometeriam o processo normal de evolução da oclusão (Gráf. 2).

Nas demais, a oclusão foi considerada desfavorável e, assim sendo, identificou-se as características da má oclusão apresentada, nos sentidos anteroposterior, transversal e vertical. No sentido anteroposterior, verificou-se que a má oclusão mais prevalente continuou sendo a de Classe I de Angle, agora com 40,6% das crianças. Pode-se observar, também, que a Classe II aparece em seguida, com 21,6%, porém com prevalência muito maior da Classe II Divisão 1 (18,4%) que da Divisão 2 (3,2%). Concordando com a literatura7,21, a Classe III foi a má oclusão menos prevalente.

Ainda no sentido anteroposterior, observou-se que a mordida cruzada anterior estava presente em 10,41% das crianças (Gráf. 4). Esse resultado é semelhante ao de pesquisas conduzidas em crianças nos estados do Rio de Janeiro7 e da Paraíba8 e no Canadá12, porém é bastante superior aos 3,2% observados por Tausche et al.28

Em relação aos problemas transversais, é possível observar, também no Gráfico 4, que a mordida cruzada posterior ocorreu em 9,17% das crianças, sendo unilateral em 6,45% e bilateral em 2,72%. Esse resultado é bastante inferior ao relatado por Brito et al.7 e Cavalcanti et al.8, que detectaram essa alteração em 19,2% e 20,18% das crianças avaliadas, respectivamente; e superior ao encontrado por Karaiskos et al.12, que verificaram uma prevalência de 5,31%.

Do total de crianças examinadas, observou-se que 33,94% apresentavam problemas no trespasse vertical dos incisivos superiores em relação aos inferiores, estando a sobremordida profunda presente em 18,09%, e a mordida aberta em 15,85% (Gráf. 5). Cavalcanti et al.8 encontraram valor semelhante em relação à sobremordida profunda (20,5%), porém com prevalência bem maior de mordida aberta (22,3%). Por outro lado, o valor encontrado na presente pesquisa para a presença da mordida aberta foi próximo aos 18,5% relatados por Silva Filho et al.26, na cidade de Bauru (SP). Foi, ainda, superior aos 9,3% encontrados por Alves et al.3, na cidade de Feira de Santana (BA); aos 7,8% encontrados por Brito et al.7, na cidade de Nova Friburgo (RJ); e aos 8,3% verificados por Karaiskos et al.12, no Canadá.

Esse estudo teve, também, o propósito de avaliar as condições bucais de presença de lesões de cárie extensas e perdas prematuras de dentes decíduos. As crianças brasileiras têm um dos mais altos índices de extrações dentárias prematuras, sem manutenção do espaço remanescente, e a principal causa dessa perda prematura é a cárie dentária10,12. Há bastante tempo, sabe-se que esse é um fator frequentemente associado às más oclusões13,24, pois os dentes decíduos devem ser mantidos saudáveis para o suporte e a integridade da arcada dentária, permitindo, dessa forma, a erupção dos dentes permanentes sucessores6. Com a perda prematura - dependendo da região, do relacionamento oclusal, das características esqueléticas individuais e das condições periodontais -, além da migração dos dentes vizinhos, pode ocorrer sobre-erupção do dente antagonista22. Nessa pesquisa, como pode ser observado no Gráfico 6, verificou-se que a cárie e/ou a perda dentária estavam presentes em 52,97% das crianças. Esse resultado é bem superior ao relatado por Ribas et al.22, que encontraram uma prevalência de 16,58% de cárie e/ou perda prematura em escolares entre 6 e 8 anos de idade, na cidade de Curitiba (PR).

A perda prematura de dentes decíduos, ou a perda de dentes permanentes sem a imediata reposição, são causas de má oclusão2,11. Sendo assim, evitando-se a perda pode-se prevenir problemas ortodônticos, mantendo o desenvolvimento normal da dentição e da oclusão. Nesse sentido, como pode ser observado no Gráfico 7, verificou-se que a orientação bem dirigida - não somente sobre a necessidade de higienização adequada ou de restauração dos dentes comprometidos, mas também sobre o desenvolvimento da dentição -, feita por um profissional qualificado, mostrou-se importante em 55,63% das crianças examinadas. Além disso, 8,52% das crianças apresentavam uma sequência alterada de troca dos dentes decíduos pelos permanentes, necessitando de um acompanhamento profissional (supervisão de espaço), com o objetivo de se obter, fisiologicamente, uma sequência de erupção dos dentes permanentes mais favorável ao estabelecimento de uma oclusão adequada. Os hábitos anormais de pressão foram constatados em 5,51% das crianças e, embora difícil de ser avaliado clinicamente, foi verificado um processo anormal de respiração (respiração bucal) em 2,68% do total examinado. Como a literatura é vasta em estabelecer uma relação entre a má oclusão e a função inadequada da musculatura bucal2,23,29,30, considerou-se essencial, como conduta preventiva, a orientação à criança e/ou seus responsáveis, evitando-se, assim, a possibilidade de alterações oclusais futuras, relacionadas a esses problemas, em 8,19% das crianças.

Como pode ser visto no Gráfico 8, em 13,48% das crianças examinadas havia ocorrido perda dentária, com necessidade de intervenção ortodôntica interceptora, objetivando manter o espaço remanescente até a erupção do sucessor permanente. Além disso, 23,79% das crianças já apresentavam problemas relacionados a uma discreta falta de espaço, quer seja pela migração de dentes adjacentes a uma região de perda precoce, quer seja por uma diferença negativa transitória entre o volume dos dentes permanentes e os decíduos. Em ambos os casos, estão indicados aparelhos ortodônticos para minimizar ou corrigir as alterações observadas, podendo-se utilizar aparelhos recuperadores de espaço, na primeira situação, e aparelhos que possibilitem a utilização do Espaço Livre de Nance, especialmente na época de esfoliação dos segundos molares decíduos.

É importante ressaltar que, embora relativamente simples, a atenção dada nessa fase, por ser extremamente importante para permitir o desenvolvimento normal da dentição e o estabelecimento de uma adequada relação oclusal, deve ser realizada por um profissional qualificado. Nesse sentido, saber diferenciar os pacientes que se beneficiarão de uma terapia interceptora daqueles nos quais o tratamento corretivo será essencial é muito importante. Assim, considerou-se que, das 935 crianças que apresentavam mordida cruzada, 441 (47,17%) poderiam ser beneficiadas com um tratamento interceptor. Isso representa 9,23% do total das crianças examinadas nessa pesquisa. Da mesma forma, das 757 crianças que apresentavam mordida aberta, 277 (36,59%) deveriam ser tratadas nessa fase, o que representa 5,8% do total. Além disso, das 1.328 crianças que possuíam más oclusões de Classes II ou III de Angle, 409 (30,80%) apresentavam desarmonias esqueléticas que poderiam ser corrigidas adequadamente nessa fase, significando um benefício funcional e estético para 8,56% das crianças examinadas.

Essa pesquisa, pela dificuldade de execução de forma mais específica e com maior detalhamento de padronização, teve a pretensão de apenas representar um panorama da situação oclusal de crianças brasileiras. Contudo, com sua participação no projeto, a ABOR promoveu uma atividade inovadora e de extrema importância para a saúde bucal pública, pois teve como público-alvo crianças com idades entre 6 e 10 anos, carentes, que não têm acesso à orientação e ao atendimento ortodônticos. Percebeu-se que a falta de orientação e de políticas públicas voltadas para esse segmento da população são os fatores que mais contribuíram para muitos dos problemas oclusais encontrados, especialmente os relacionados à cárie e/ou à perda dentária.

Sabe-se que o planejamento das políticas públicas de saúde deve estar pautado no conhecimento das necessidades da população, correlacionando causas, efeitos e soluções dos problemas. Com todos os dados aqui apresentados, espera-se contribuir para esse planejamento, permitindo dimensionar os recursos necessários, tanto materiais quanto humanos. Em relação a esse último, e levando em consideração o trabalho publicado por Miguel et al.14, que verificaram que apenas 10,1% dos alunos de graduação de dez Faculdades de Odontologia do Estado do Rio de Janeiro souberam identificar as características oclusais normais do desenvolvimento, a ABOR entende que, para atuar nesse nível, é necessário que o profissional seja comprovadamente capaz de realizar diagnóstico e plano de tratamento precisos, tendo tido uma formação pautada em bases sólidas, em um curso que atenda os requisitos preconizados pela associação, em nível nacional, e pela World Federation of Orthodontists (WFO), em nível internacional.

CONCLUSÃO

Diante dos resultados obtidos na presente pesquisa, pode-se afirmar que:

1. Houve 85,17% de prevalência de más oclusões nas crianças examinadas, embora tenha sido verificado que, em 16,77% dessas, as alterações oclusais eram pouco significativas, fazendo com que o índice de oclusões não favoráveis ao desenvolvimento normal ficasse reduzido a 68,4%.

2. Das crianças que possuíam oclusões não favoráveis, 40,6% apresentaram má oclusão de Classe I; 21,6%, de Classe II e 6,2%, de Classe III. A mordida cruzada esteve presente em 19,58%, sendo 10,41% na região anterior e 9,17% na região posterior. Em relação ao trespasse vertical, 34,46% apresentavam sobremordida normal; 18,09%, sobremordida profunda e 15,85%, mordida aberta.

3. Considerando-se a totalidade da amostra, verificou-se a presença de cárie e/ou perda dentária em 52,97% das crianças.

4. Verificou-se a possibilidade de intervenção ortodôntica preventiva em grande parcela das crianças examinadas, incluindo orientação (55,63%), supervisão de espaço (8,52%) e abordagens relacionadas aos hábitos anormais de pressão (5,51%) e à respiração bucal (2,68%).

5. Da mesma forma, detectou-se a necessidade de intervenção ortodôntica interceptora envolvendo a manutenção de espaço (13,48%), recuperação e/ou controle de espaço (23,79%), correção da mordida cruzada (9,23%) e da mordida aberta (5,8%), além de intervenção ortopédica para correção das más oclusões de Classe II ou III de Angle (8,56%).

6. Fica claro que a presença, nos postos públicos de saúde, de um especialista em Ortodontia com qualificação que atenda aos padrões estabelecidos pela ABOR e pela WFO pode beneficiar aproximadamente 70% das crianças carentes brasileiras.

Enviado em: maio de 2010

Revisado e aceito: julho de 2010

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  • Endereço para correspondência:

    Marcos Alan Vieira Bittencourt
    Av. Araújo Pinho, 62, 7º Andar, Canela
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      Jul 2010
    • Recebido
      Maio 2010
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