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Abertura Constitucional e Pluralismo Democrático: a tensão na Divisão dos Poderes sob a ótica das Instituições Participativas

Constitutional Opening and Democratic Pluralism: the tension in Separation of Powers under the optics of Participative Institutions

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo aplicar os pressupostos da teoria crítica da democracia e as suas implicações à hermenêutica constitucional para atualizar o debate sobre a divisão dos poderes entre circuito governo-parlamento e jurisdição constitucional, com a inserção das Instituições Participativas (IPs) como elemento de controle no caso brasileiro. Como fundamento teórico, será utilizada a proposta de abertura da hermenêutica constitucional, sumarizada no conceito de sociedade aberta de intérpretes de Peter Häberle, e a concepção de controle da Esfera Política pela Esfera Pública, em Habermas, reinterpretada sob a ótica das Instituições Participativas.

Palavras-chave:
Controle de Constitucionalidade; Hermenêutica; Pluralismo Democrático

Abstract

This paper aims to apply the developments of democracy critical theory and its implications to constitutional hermeneutics in order to reframe the debate surrounding balance between the constitutional jurisdiction and the circuit government-parliament, inserting as a control element the Participative Institutions in the Brazilian case. For this purpose, both the proposition of opening in constitutional hermeneutics, summarized in the concept of an open society of interpreters from Peter Häberle, and the conception of controlling the Political Sphere from the Public Sphere, in Habermas, will be used as theoretical framework reinterpreted under the optics of Participative Institutions.

Keywords:
Judicial Review; Hermeneutic; Pluralistic Democracy

1 Introdução

Desde a sua introdução no panorama institucional da maioria dos países democráticos a partir de meados do século XX, suscitaram-se críticas e expectativas acerca da atuação das Cortes Constitucionais na mediação da relação entre Estado e Sociedade. Enquanto as expectativas projetadas sobre essa instância estão intimamente vinculadas à possibilidade de uma solução alternativa para a dupla crise institucional - do jurídico e do político - derivada, sobretudo, da incapacidade das Democracias Liberais em assimilar e endereçar as contradições das sociedades contemporâneas, a ascensão dessa instância judiciária ao posto de “Guardiã da Constituição” é comumente vista com desconfiança ou como prelúdio de um “esvaziamento democrático”, dado ao fato de que sua competência sobressai sobre os demais poderes sem que seus membros estejam vinculados pelo mecanismo democrático de legitimação do poder. O peculiar da direção hegemônica que toma este debate é que se enfatiza, então, uma presumida antinomia entre a jurisdição constitucional e os poderes políticos, preocupando-se os locutores em defender normativamente a supremacia de um dos lados sobre o outro.

Entende-se que o desenvolvimento da Teoria Crítica da Democracia, que recoloca ao centro do debate o caráter argumentativo e deliberativo do processo democrático revalorizando nesta esteira o Pluralismo Político e o papel da Esfera Pública, bem como a peculiaridade do Novo Constitucionalismo, impulsionado pelas cartas constitucionais dirigentes no Estado Social, podem em conjunto contribuir para lançar nova luz a esta falsa antinomia, inserindo os atores da sociedade civil e a participação social como elemento novo na construção dos discursos jurídico e político. Essas instâncias intermediárias, nesta perspectiva, seriam capazes de agir como referente e mediador da tensão entre jurisdição constitucional e os poderes representativos, o que parece ainda mais fértil no panorama brasileiro, uma vez que a Constituição Federal de 1988 (CF/88) inaugurou um sistema democrático particularmente sensível à deliberação popular.

O aspecto fundamental que este artigo buscará pontuar é que a regulamentação da participação social prevista na CF/88, nas diversas áreas conexas às políticas de efetivação de direitos fundamentais, forjou no panorama brasileiro “instituições híbridas” de partilha do poder de decisão entre representantes do Governo e da Sociedade Civil (AVRITZER; PEREIRA, 2005AVRITZER, Leonardo; PEREIRA, Maria de Lourdes D. Democracia, Participação e Instituições Híbridas. Teoria e Sociedade, Belo Horizonte, Número Especial, p. 16-41, 2005.). São as chamadas Instituições Participativas, como os Conselhos de Direitos e as Conferências Setoriais, que experimentaram expansão, sobretudo, na década passada e adquiriram crescente importância no processo de legitimação democrática das decisões políticas emanadas das instâncias tradicionais - é dizer, o circuito governo-parlamento. Parte-se do suposto de que é um imperativo compreender como pode ser integrada esta nova dimensão da realidade jurídica e política, incentivada pelo normativo constitucional, no debate teórico acerca da substância democrática para além das instâncias políticas tradicionais, ponderando o papel que podem e devem exercer ante a valorização política das cortes constitucionais, sobretudo quando julguem em controle de constitucionalidade situações associadas ao sentido objetivo dos direitos fundamentais. Assim, no que segue, este artigo buscará reinterpretar a tensão entre Jurisdição Constitucional e Poderes Representativos desde a perspectiva pluralista aplicada ao caso brasileiro, usando para isto a ideia de vinculação discursiva de ambas as instituições à atualização constitucional pelo processo deliberativo na Esfera Pública e do protagonismo das Instituições Participativas, sendo esses espaços deliberativos institucionalizados de produção desta atualização no que se refere ao “sentido objetivo dos direitos fundamentais”.

A tarefa divide-se em três etapas. Primeiramente, serão resgatadas as origens do debate com a definição dos pressupostos da Teoria Liberal da Democracia e a posterior crise de seu paradigma, bem como, paralelamente, a consolidação do constitucionalismo moderno sob a tríplice influência da inserção dos Tribunais Constitucionais como “Guardiões da Constituição”, a transição das constituições liberais para aquelas do Estado Social, e a desconstrução da hermenêutica da “neutralidade” para a visão do juiz como integrador da realidade constitucional. Em um segundo momento, será analisada a tendência atual da teoria democrática em revalorizar o aspecto argumentativo da democracia usando para isso como eixo de ação os conceitos de Esfera Pública e Sociedade Civil em Habermas (1997HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.), bem como do seu lugar na produção política das sociedades. Por fim, ambos os momentos serão integrados pela defesa da ideia de uma “sociedade aberta de intérpretes da constituição”, aplicada para legitimar o aprofundamento da inserção procedimental e hermenêutica da Sociedade Civil no processo constitucional por meio da atuação das Instituições Participativas, conformando à sua vez a sociedade política em sentido estrito e a jurisdição constitucional como critério suplementar de legitimação e de controle sobre a tensão entre estas duas esferas relevantes do poder político, em favor da democracia.

2 Garantia da Constituição, Novo Constitucionalismo e a Tensão entre Cortes Constitucionais e o Circuito Governo-Parlamento

A figura da Jurisdição Constitucional exercida por um órgão independente dos poderes políticos é uma inovação relativamente recente, progressivamente introduzida no modelo institucional dos Estados Democráticos de tradição romano-germânica no decorrer do século XX, de que servem como protagonistas o Tribunal Constitucional da Áustria, instituído pela Constituição de 1920, e, com mais expressão, o Tribunal Constitucional Federal Alemão, estabelecido pela Lei Fundamental da República de Bonn, em 1949. A concepção principal subjacente à existência de uma Jurisdição Constitucional é a da garantia da constituição frente a possível incompatibilidade dos atos e das normas de caráter infraconstitucional, elaborados ou aplicados pelo circuito governo-parlamento 1 1 Na compreensão de Kelsen (2003, p. 126), a garantia da Constituição refere-se ao controle de regularidade da legislação infraconstitucional aos seus ditames, a fim de preservar a característica lógica do sistema, onde os atos inferiores assumem em relação aos superiores a condição de aplicação do direito: “Cada grau da ordem jurídica constitui, pois, ao mesmo tempo, uma produção de direito com respeito ao grau inferior e uma reprodução do direito com repeito ao grau superior. A idéia de regularidade se aplica a cada grau, na medida em que é aplicação ou reprodução do direito. [...] Garantias da Constituição significam, portanto, garantias da regularidade das regras imediatamente subordinadas à Constituição, isto é, essencialmente, garantias da constitucionalidade das leis”. . O precedente mais remoto dessa concepção remonta o judicial review norte-americano, que rompeu com o modelo inglês de absoluta supremacia parlamentar para instituir a ideia da Carta Constitucional como norma jurídica superior à qual os demais atos normativos do sistema devem observância (ENTERRÍA, 1994, p. 123 apudSILVA, 2014, p. 627SILVA, Lorena Mesquita. Poder Judiciário: de guardião a poder constituinte? Revista Jurídica da Presidência, [S.l], v. 16, n. 110, p. 619-646, out. 2014-jan. 2015.).

Essa perspectiva seria consolidada com a incorporação na Teoria do Direito do sistema Kelseniano de escalonamento entre as normas, que desenvolve a dogmática jurídica a partir da ideia de um sistema hierarquizado de normas, de tipo piramidal, onde as normas inferiores são deduzidas das normas superiores mediante a determinação das condições segundo as quais poderá ser autorizada a sua criação. A estrutura piramidal das normas, por sua vez, concebida no contexto do Estado de Direito em que a justificação dos atos de autoridade pretende embasar-se no princípio da legalidade, implica na visão da comunidade política como aquela de criadores e, ao mesmo tempo, aplicadores do direito, sendo que, a cada nível descendente na hierarquia, torna-se mais forte o aspecto da aplicação (que denota a subordinação jurídica) enquanto mitiga-se o aspecto criador (que denota a autoridade livre) (KELSEN, 2000KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 161-165; 2003, p. 126; BOBBIO, 1995BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento Jurídico. 6. ed. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasilia, 1995., p. 48-53). No contexto da limitação hierarquizada dos atos da autoridade em relação à sua norma autorizadora, a Constituição assume papel fundamental, qual seja, o da norma jurídica suprema e anterior a todas as outras, subordinada somente à norma hipotética fundamental que preceitua o próprio imperativo de obediência à Constituição, do que infere-se a necessidade lógica de sua proteção (KELSEN, 2003, p. 130-136KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direto. São Paulo: Martins Fontes , 2006.).

É o próprio Kelsen, aliás, que conceberá o modelo europeu de controle de constitucionalidade, tendo sido ele o articulador do projeto constitucional austríaco. O que há de inovador no seu sistema é a previsão de um controle de constitucionalidade por via concentrada, no qual se admite o questionamento de constitucionalidade in abstracto, com poderes ao tribunal para anular o dispositivo inconstitucional, extirpando-o do ordenamento jurídico. Essa forma de controle contrasta com o controle difuso, cujo escopo é a aplicabilidade ou não do dispositivo perante um caso concreto, típico do judicial review americano (BONAVIDES, 2011BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011., p. 307-317).

A inserção e a valorização das Cortes Constitucionais, no contexto dos países centrais, estiveram fortemente vinculadas à desconfiança gerada sobre os filtros democráticos tradicionais ante a experiência do Nazifascismo na Europa Ocidental, e a consequente crise do positivismo jurídico radical da confusão entre as dimensões de “validade” e “legitimidade” jurídicas, ou de “justiça” e “positividade” (BARROSO, 2001BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro. Revista de Direito Administrativo, FGV, Rio de Janeiro, v. 225, jul.-set. 2001., p. 21-23). A experiência Nazifascista explicitou pela via da radicalidade as falhas do discurso político liberal, com foco nas instituições representativas clássicas, em prover um ambiente político-institucional hermético em relação a experiências autoritárias e violentas quanto à violação de direitos, o que criou um ambiente receptivo à limitação do poder político pela via jurisdicional. Além disso, evidenciou a tradução da identificação do direito com o sistema positivo, sob o paradigma da validade, na legitimação de abusos e crimes atrozes, ficou clara a necessidade de reinserir na discussão dogmática a questão da justiça e equidade nas decisões, tal que “[...] o juiz não pode considerar-se satisfeito se pôde motivar sua decisão de modo aceitável; deve também apreciar o valor desta decisão, e julgar se lhe parece justa ou, ao menos, sensata.” (PERELMAN, 1998PERELMAN, Chäim. Lógica Jurídica: nova retórica. Tradução de Virginia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes , 1998., p. 96).

Esse precedente permitirá o alastramento do controle de constitucionalidade enquanto técnica institucional e também redefinirá as bases da hermenêutica constitucional para admitir um progressivo potencial criativo do magistrado enquanto intérprete, figurando no papel integrativo da constituição, principalmente sob a luz das teorias que passam a privilegiar o sentido material da constituição e a participação do intérprete em integrar a aplicação das normas a este espírito constitucional (BARROSO, 2007BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. In: BARROSO, L. R. (Org.). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 203-249., p. 51; BARROSO, 2013, p. 35BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2013. ). Tanto a função do Tribunal Constitucional quanto o alcance dessa nova hermenêutica, por outro lado, serão influenciados pela mudança de paradigma nas próprias cartas constitucionais típicas de meados do século XX, que decorrem da assimilação no Estado Democrático Liberal das pautas obreiras e de outros coletivos sociais (como o movimento feminista) que tiveram forte presença política no período antecedente, sobretudo com o sucesso da Revolução Bolchevique na Rússia e a expansão do argumento socialista no continente europeu. Esses segmentos viram incorporada parte da sua agenda dentre os objetivos do Estado no curto período de consenso político e prosperidade econômica que se seguiu ao final da segunda guerra mundial, com a implantação do Estado de Bem Estar na Europa Ocidental (HIRSCH, 2010HIRSCH, J. Teoria Materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010., p. 87-90).

Como resultado desse panorama, as Constituições típicas do meio do século XX caracterizaram-se por certa generosidade em relação à garantia de direitos, e, diferente das constituições formais antecessoras, formaram-se, ao mesmo tempo, rígidas e abertas ao processo social (BUCCI, 2006BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva , 2002., p. 2-6). Rígidas, uma vez que incorporam procedimentos especiais para a sua alteração, dando ao status constitucional maior independência e estabilidade ante o legislador comum. Abertas ao processo social, no que admitem certa abstração de seu conteúdo axiológico, geralmente pautado num sistema de princípios equilibrados por pesos e contrapesos (checks and balances) responsável por prover dinâmica de operação, frente às mudanças de significado que ocorreram no processo social, valorizando, assim, a figura do intérprete como aquele que dá o sentido da ordem jurídica constitucional por meio do ato interpretativo e integrador das disposições normativas ao espírito da constituição (BONAVIDES, 2011BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011., p. 458-464).

O conjunto desses fatores, ou seja, das cartas constitucionais dirigentes estruturadas a partir de um eixo axiológico interpretativo sensível às demandas sociais, da ascensão dos tribunais constitucionais ao topo da autoridade interpretativa dentro do Estado de Direito, com capacidade para garantir a força normativa da constituição, inclusive ante os poderes políticos, e a concepção de uma nova hermenêutica que valoriza o papel do intérprete como integrador das regras de direito ante o espírito constitucional, criaram o paradigma atual de organização jurídica e institucional da maioria dos Estados modernos, a que Barroso (2013BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.) identifica como um “Novo Constitucionalismo”, e na qual se pode localizar o dilema sobre a separação das competências entre os poderes estatais.

A Constituição de 1988, promulgada no período de redemocratização brasileira, pelo próprio contexto político interno plural e de “consenso democrático” que marcou a sua elaboração, investiu-se eminentemente de características daquelas Cartas do Estado Social, no que pese o contexto internacional desfavorável dos anos 1980 e 1990 à ordem política generosa em Direitos. Nesse contexto, o avanço da jurisdição constitucional acompanhou o impulso democrático na própria estrutura do Judiciário, com a reconquista das garantias funcionais da magistratura, a posse de uma nova geração de juízes a cargo do Supremo Tribunal Federal, e a expansão institucional do Ministério Público, habilitando aquele poder como “[...] verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes” (BARROSO 2009BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista Atualidades Jurídicas, Belo Horizonte, n. 4, jan.-fev., 2009., p. 3). Além disso, recebeu influência do reavivamento da cidadania pelo contexto de mobilização democrática, responsável por elevar o nível de informação e de consciência de direitos a amplos segmentos da população, na medida em que estes segmentos e grupos passaram a buscar a proteção de seus interesses perante juízes e tribunais. Por fim, a constitucionalização abrangente ampliou exponencialmente este panorama ao incorporar no ordenamento jurídico inúmeras matérias que antes restavam esquecidas pelo processo político majoritário e pela legislação ordinária (BARROSO 2009, p. 3).

No âmbito brasileiro, assim, o fortalecimento do controle de constitucionalidade nasce vinculado a um projeto constitucional ambicioso, sobretudo quanto à proposta de revitalização da cidadania, resinificando os cânones democráticos e inserindo a atuação judicial no centro das disputas sociais por direitos. Como pondera Gaspardo (2011GASPARDO, Murilo. O Papel dos Tribunais na efetivação dos direitos sociais diante do esvaziamento do circuito governo-parlamento. Revista da Ajuris, [S.l], v. 38, n 121, março, 2011.), analisando o pensamento de autores como Campilongo e Werneck Vianna, a conjugação das constituições do Estado Social com a frustração da capacidade de se fazer representar pelas vias políticas tradicionais acabou por criar a possibilidade do exercício de uma cidadania à margem ou paralela ao circuito Governo/Parlamento, constituindo o Judiciário como locutor político alternativo para a busca da efetivação de direitos. Em um sentido otimista e mais forte, pode-se dizer que esta perspectiva de concorrência entre círculos de efetivação política dá ímpeto a um sentido indireto e democratizante da jurisdição, que é aquele de revitalizar a representatividade das instituições democráticas tradicionais desacreditadas no processo histórico nacional, reinserindo mediante o controle de constitucionalidade das leis e atos administrativos a dimensão do conflito social no cotidiano institucional (BUCCI, 2006BUCCI, Maria Paula Dallari. O Conceito de Política Pública em Direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva , 2006., p. 6).

Na linha de oposição, a discussão sobre a desejabilidade ou não desta “Judicialização da Política” envereda pela contraposição do novo panorama de supremacia jurisdicional com a visão clássica da Teoria Liberal do Estado, cujo sentido hermenêutico, de um lado, permanece vinculado pela ideia da atividade jurisdicional como aquela de mera aplicação silogística das Leis - no apontamento célebre de Montesquieu, do Juiz bouche de la loi - e o sentido político, de outro lado, denota a questão do controle democrático através da legitimidade representativa como decorrente do procedimento eleitoral competitivo para a escolha de líderes políticos. Ocorre que não sendo, a priori, a corte constitucional um órgão representativo, e gozando de um conjunto de garantias clássicas ao corpo de magistrados, como é o caso da vitaliciedade, a independência funcional e a interpretativa, ademais de não haver um controle revogatório sobre a sua atuação, a ela obviamente não se aplicam os mecanismos de controle político, estabelecidos pela doutrina política liberal, como a reapresentação periódica dos representantes, em bloco, para a aprovação do eleitorado, no contexto de eleições competitivas.

A indagação fundamental, portanto, acaba por desaguar na questão de quem garante a constituição frente as decisões da jurisdição constitucional. Esta crítica poderá ser sumarizada no temor sobre a possibilidade de um positivismo jurisprudencial (SILVA, 2014SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32. ed. São Paulo: Malheiros , 2009.) ou, nas palavras de Bonavides (2011BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011., p. 313), um “governo de juízes”, cujo precedente pode ser estabelecido em algumas atuações da Suprema Corte Americana no início do século XX, a qual logrou transmudar a via de exceção “[...] num instrumento de resistência às leis que refletiam o progresso social ou amparavam os interesses das classes obreiras contra a violência econômica e as exorbitâncias patronais.” (BONAVIDES, 2011BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011., p. 313).

É possível afirmar, portanto, que a permanente tensão entre o circuito governo-parlamento e a jurisdição constitucional enquanto intérpretes concorrentes da carta política delineia uma característica inescapável da arquitetura política, jurídica e institucional da contemporaneidade; ao mesmo tempo, ela impõe desafios à reorganização dos fundamentos de legitimidade do poder, dada a ausência de vinculação democrática do Tribunal Constitucional. Antes de reconhecer a supremacia normativa de uma destas instâncias, a posição desenvolvida é de que esta tensão entre intérpretes autorizados da Constituição é permanente e vital à harmonia dos Poderes, e que o problema da qualidade da legitimação democrática neste meio pode ser reconcebida por meio da mediação deliberativa desta tensão pela Esfera Pública, destacando-se o papel das Instituições Participativas.

3 Sociedade Civil, Esfera Pública e Deliberação como alternativa à “Sociedade Fechada”

A linha de raciocínio seguida até aqui permite estabelecer a visão geral acerca da distribuição da prerrogativa de interpretação constitucional dentre os círculos internos estatais, que se caracteriza mediante o flagrante da tensão entre Corte Constitucional e Circuito Governo-Parlamento. O foco e os critérios dados à interpretação desta tensão, no entanto, recaem sobre uma visão da produção do significado típico de uma “[...] sociedade fechada de intérpretes da constituição [...]”, isto é, daqueles “[...] intérpretes jurídicos vinculados a corporações (zünftmássige Interpreten)” (HÄBERLE, 2002HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2002., p. 12-13). O que permanece pouco explorado neste debate é que a tensão entre o Poder Político e a Jurisdição Constitucional é entremeada pelo princípio democrático que funciona como limitador de ambas as instâncias. O princípio democrático, neste sentido, impõe a vinculação da produção interpretativa dos titulares do poder político, para que seu exercício permaneça legítimo, ao sentido objetivo do bem comum.

A mitigação do princípio democrático neste contexto pode ser entendida a partir de que a visão hegemônica do seu sentido e extensão é conservadora, e tende a privilegiar o aspecto decisório e procedimental da democracia. Como resultado, observa-se uma “[...] rejeição das formas públicas de discussão e argumentação e a identificação das práticas decisórias com o processo de escolha dos governantes” (AVRITZER, 2000AVRITZER, Leonardo.Teoria democrática e deliberação pública. Lua Nova, São Paulo, n. 50, p. 25-46, 2000., p. 30). Sob esses preceitos, a obrigação das instâncias políticas parece ser considerada na medida em que se insere no diálogo o jogo de mandatos e competências supridas virtual e diretamente de legitimidade a partir dos procedimentos eleitorais de escolha de representantes, ou virtual e indiretamente a partir da concessão legal do mandato no contexto da hierarquia das normas ancoradas na constituição formal (AVRITZER, 2000AVRITZER, Leonardo. Sociedade Civil, Instituições Participativas e Representação da Autorização à Legitimidade de Ação. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 50, n. 3, p. 443-464, 2007.; AVRITZER; SANTOS, 2002AVRITZER, Leonardo; SANTOS, Boaventura de Sousa. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, B. S. (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 39-82.; HELD, 1987HELD, David. Modelos de Democracia. Belo Horizonte: Editora Paidéia Ltda, 1987.; FARIA, 1984FARIA, José Eduardo. Retórica política e ideologia democrática: a legitimação do discurso jurídico liberal. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.).

Em contraponto, será registrada a partir do século XX uma tendência nas teorias de transição democrática em resgatar o caráter argumentativo do processo de deliberação política, valorizando a dimensão dialógica da deliberação política e enfatizando, antes do seu caráter procedimental para chegar a decisões coletivas, o confronto comunicativo entre diferentes perspectivas do processo social (AVRITZER, 2000AVRITZER, Leonardo.Teoria democrática e deliberação pública. Lua Nova, São Paulo, n. 50, p. 25-46, 2000.; 2004). O eixo deste giro teórico será a reconstrução do conceito de Esfera Pública, sobretudo no pensamento de Habermas, em um rompimento com a tese linear anterior de que os cidadãos “[...] teriam se transformado, de politicamente ativos em privatistas, de atores da cultura em consumidores de entretenimento” (AVRITZER, 2004, p. 708).

Para Habermas (1991HABERMAS, Jürgen. The Structural Transformation of the Public Sphere: An Inquiry into a Category of Burgeois Society. Tradução por Thomas Burguer com assistência de Frederick Lawrence. Massachusetts: MIT Press, 1991.), a Esfera Pública constitui uma esfera de ação intermediária à Esfera Privada, que assimila ao espaço da produção de mercadorias e do trabalho social, e a Esfera do Político, na qual se concentram os círculos decisórios do Estado. A sua instituição remonta à implantação dos Estados Liberais, quando a tentativa burguesa ascendente de conciliar o projeto de extinguir a figura da dominação política, identificada com o absolutismo monárquico, e, ao mesmo tempo, justificar a dominação perpetuada pela nova ordem burguesa, levou à incorporação na nova ordem de uma série de garantias institucionais para constituir um “livre mercado” de ideias, perspectivas e interesses (HABERMAS, 1991HABERMAS, Jürgen. The Structural Transformation of the Public Sphere: An Inquiry into a Category of Burgeois Society. Tradução por Thomas Burguer com assistência de Frederick Lawrence. Massachusetts: MIT Press, 1991., p. 79-88). A síntese deste artifício seria promover a racionalização dos conflitos e a produção do “bem comum” orientador da ação pública através do confronto argumentativo de posições nesta nova esfera. A esse processo, que se desenvolve no plano institucional, acumulou-se uma esfera de expressão e compartilhamento de informações decorrente dos avanços tecnológicos, a esfera literária, que assumiria um papel de intermediador entre os agentes privados e os círculos políticos, pondo a debate público o ocorrido na esfera política e transmitindo a “opinião pública” sobre a atividade governamental. A partir dessa confluência, estrutura-se o domínio da “opinião pública”, ao mesmo tempo em que se garantia a sua influência sobre a deliberação pública (HABERMAS, 1991, p. 79-88).

Nas sociedades contemporâneas, por sua vez, já entremeadas pela expansão da participação política com a inclusão do sufrágio universal, a expansão das funções Estatais em relação ao corpo social, e a irradiação das informações mediatizadas pela comunicação de massa, o espaço da esfera pública diferenciou-se estruturalmente. Enquanto permanece como locus de produção de legitimação política democrática, herança da teoria liberal do consentimento, a formação informal da opinião pública em seu meio deixa de ser prerrogativa exclusiva da burguesia e passa a ser negociada entre os diversos atores constituintes da Sociedade Civil. É nesse sentido que as associações, os partidos e os grupos de pressão direcionam sua ação às negociações situadas na esfera pública com a intenção de ver suas categorias e interesses particulares reconhecidos como categorias do interesse geral (HABERMAS, 1991HABERMAS, Jürgen. The Structural Transformation of the Public Sphere: An Inquiry into a Category of Burgeois Society. Tradução por Thomas Burguer com assistência de Frederick Lawrence. Massachusetts: MIT Press, 1991., p. 181-211; HABERMAS, 1997, p. 106-115). Nas democracias modernas, então, aquela troca informal entre diversas associações alocadas numa extensa rede comunicativa formaria um sistema periférico em relação aos círculos de decisão do Estado (Parlamento, Burocracia e Judiciário) capaz de identificar desde a dimensão do mundo da vida os problemas de integração social, sintetizá-los em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos, e fazê-los infiltrar discursivamente àqueles circuitos decisórios por meio dos mecanismos democráticos (HABERMAS, 1997, p. 91-121).

A Esfera Pública indicará, assim, uma “[...] órbita insubstituível de constituição democrática da opinião e da vontade coletivas [...]”, efetivando a “[...] mediação necessária entre a sociedade civil, de um lado, e o Estado e o Sistema político, de outro” (AVRITZER, 2004AVRITZER, Leonardo; COSTA, Sérgio. Teoria Crítica, Democracia e Esfera Pública: Concepções e Usos na América Latina. DADOS - Revista de Ciências Sociais , Rio de Janeiro, v. 47, n. 4, p. 703-728, 2004., p. 721).

A sociedade civil aqui é conceituada como um integrado de “[...] movimentos, organizações ou associações, os quais captam os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas, condensam-nos e os transmitem, a seguir, para a esfera pública política” (HABERMAS, 1997HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997., p. 99). O seu papel será interpretado em um duplo viés: de um lado, são responsáveis pela preservação e ampliação da infraestrutura comunicativa próprias do mundo da vida e pela produção de microesferas públicas associadas à vida cotidiana; e, de outro, canalizam os problemas tematizados na vida cotidiana para a esfera pública, mediante a faceta propositiva e a de controle dos motivos institucionais, de forma a

[...] introduzir um impulso nos ânimos capaz de alterar os parâmetros constitucionais da formação da vontade política e de pressionar os parlamentos, os judiciários e os governos em favor de determinadas políticas. (HABERMAS, 1992, p. 448 apudAVRITZER, 2004AVRITZER, Leonardo; COSTA, Sérgio. Teoria Crítica, Democracia e Esfera Pública: Concepções e Usos na América Latina. DADOS - Revista de Ciências Sociais , Rio de Janeiro, v. 47, n. 4, p. 703-728, 2004., p. 710)

Ao mesmo tempo, para Habermas (1997HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997., p. 99-106), as organizações que compõe a Sociedade Civil incorrem em uma dupla restrição: devem permanecer informais, para preservar a sua independência ante os imperativos organizacionais e do consequente distanciamento da base; e sua atuação será perfeita sempre de forma indireta, pela transmissão das mensagens por meio dos mecanismos institucionalizados até alcançar os núcleos decisórios. É dizer, portanto, que a Sociedade Civil não poderia assumir funções que cabem ao Estado. A ressalva que se faz ao pensamento Habermasiano na sua transmissão à realidade brasileira é sumarizada por Avritzer (2000AVRITZER, Leonardo.Teoria democrática e deliberação pública. Lua Nova, São Paulo, n. 50, p. 25-46, 2000.), que diagnostica, a partir das críticas feitas por Fraser e Cohen, a contradição consistente em que, por um lado, funda-se todo o processo de legitimação dos sistemas políticos contemporâneos no conceito de deliberação argumentativa na Esfera Pública; e, por outro, não se é capaz de gerar arranjos institucionais a partir dela, porque a sua forma exclui a possibilidade de arranjos deliberativos no âmbito público, supondo nada mais que uma influência em relação ao sistema político (AVRITZER, 2000AVRITZER, Leonardo.Teoria democrática e deliberação pública. Lua Nova, São Paulo, n. 50, p. 25-46, 2000., p. 40).

A crítica é particularmente relevante porque parte-se de uma realidade periférica em que a Esfera Pública é controlada pelas elites dirigentes, e por isso constitui-se assimetricamente com a exclusão sistemática de setores desprivilegiados da população. O principal desafio, portanto, cinge-se à possibilidade e à necessidade de horizontalizar os processos decisórios (AVRITZER, 2004AVRITZER, Leonardo; COSTA, Sérgio. Teoria Crítica, Democracia e Esfera Pública: Concepções e Usos na América Latina. DADOS - Revista de Ciências Sociais , Rio de Janeiro, v. 47, n. 4, p. 703-728, 2004.). Torna-se necessário, portanto, agregar à noção de deliberação democrática na Esfera Pública a institucionalização de procedimentos decisórios e espaços de caráter deliberativo, mais permeáveis aos interesses geralmente ocultos no processo majoritário de deliberação pública, pressupondo, na esteira de Cohen, que esta horizontalização do processo de decisão é essencial para a organização da legimitação política nos termos da democracia deliberativa (COHEN, 1997, apud AVRITZER, 2000, p. 41). Nesse sentido, Avritzer (2005AVRITZER, Leonardo. New Public Spheres in Brazil: Local Democracy and Deliberative Politics. Revista Direito GV, [S.l.], Especial 1, n 55, p. 55-74, 2005. ) defenderá o processo de inovação e consolidação de arranjos institucionais participativos no processo de redemocratização brasileira nos termos de construção de novas Esferas Públicas, favorecedoras da democracia na medida em que agregam características deliberativas capazes de fazer surgir no cenário político vozes e perspectivas antes sistematicamente excluídas destes círculos.

Em seu trabalho entitulado “New Public Spheres in Brazil: Local Democracy and Deliberative Politics”, essa perspectiva será empenhada, sobretudo na análise das experiências com os Orçamentos Participativos (OP) em Porto Alegre e Belo Horizonte. Não obstante, o mesmo argumento pode ser emprestado para analizar o potencial democrático de outros arranjos institucionais, como é o caso dos Conselhos de Direitos e das Conferências Setoriais, que são experiências institucionais de popularização posterior. Os Conselhos e as Conferências de Políticas Públicas são instituições “híbridas” de partilha do poder de decisão entre representantes do governo e da sociedade civil (AVRITZER; PEREIRA, 2005AVRITZER, Leonardo; PEREIRA, Maria de Lourdes D. Democracia, Participação e Instituições Híbridas. Teoria e Sociedade, Belo Horizonte, Número Especial, p. 16-41, 2005.) cuja existência decorre, sobretudo,

[...] da ação da sociedade civil brasileira durante o processo constituinte que resultou em um conjunto de artigos prevendo a participação social nas políticas públicas nas áreas da saúde, assistência social, criança e adolescente, políticas urbanas e de meio ambiente. (AVRITZER, 2012AVRITZER, Leonardo. Conferências Nacionais: ampliando e redefinindo os padrões de participação social no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, 2012., p. 10)

A sua expressividade, entretanto, consolidou-se em período mais recente, dada a difusão dessas instituições nas administrações Lula (2003-2011) e Dilma Roussef (2012-2016), quando se tornaram mais amplas, abrangentes e inclusivas (POGREBINSCHI; SANTOS, 2011POGREBINSCHI, T.; SANTOS, F. Participação como representação: o impacto das conferências nacionais de políticas públicas no Congresso Nacional. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 3, p. 259-305, set. 2011., p. 262).

Os Conselhos são órgãos deliberativos permanentes, associados com uma área de interesse social e vinculados a cada nível de governo, com participação paritária entre representantes da sociedade civil, de um lado, e os representantes da gestão pública e de grupos de interesse (como as corporações profissionais), de outro (AVRITZER, 2006AVRITZER, Leonardo. Reforma Política e Participação no Brasil. In: AVRITZER, L.; ANASTASIA, F. (Org.). Reforma Política no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. x-x. , p. 38-40). As Conferências, por sua vez, são foros de discussão expandidos sobre determinadas áreas de interesse social, convocados a cada período de tempo pelo Executivo e cuja estrutura, no geral, respeita três fases (local ou regional, estadual e nacional), sendo a atividade criativa concentrada na fase local e as subsequentes funcionando como “filtros” entre as demandas suscitadas (POGREBINSCHI; SANTOS, 2011POGREBINSCHI, T.; SANTOS, F. Participação como representação: o impacto das conferências nacionais de políticas públicas no Congresso Nacional. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 3, p. 259-305, set. 2011., p. 261).

A defesa dos Conselhos e das Conferências de Políticas Públicas como foros matriciais para a objetivação desse sentido democrático está embasada na reunião por estes espaços de características centrais que favorecem a argumentação deliberativa. Nesse sentido, é necessário ressaltar que constituem fundamentalmente uma cessão de um espaço decisório pelo Estado em favor de uma forma ampliada e pública de participação, convergindo para um foro de presença permanente tanto a manifestação de interesses minoritários incapazes de fazer-se representar pelo processo jurídico tradicional como a justificação da ação estatal em favor de um determinado interesse (AVRITZER, 2000AVRITZER, Leonardo.Teoria democrática e deliberação pública. Lua Nova, São Paulo, n. 50, p. 25-46, 2000., p. 43-44). Nesse espaço, pressupõe-se uma carência ou incompletude de informações tanto do Estado como do mercado para a tomada de decisões, razão pela qual “[...] é preciso que os atores sociais tragam informações para que a deliberação contemple plenamente os problemas políticos envolvidos” (AVRITZER, 2000, p. 43-44).

Além disso, os arranjos deliberativos são “[...] locais onde a informação relevante para uma deliberação de governo é tornada pública [...] ou é socializada [...]” (AVRITZER, 2000AVRITZER, Leonardo.Teoria democrática e deliberação pública. Lua Nova, São Paulo, n. 50, p. 25-46, 2000., p. 43-44), reforçando o caráter de transparência nas ações estatais e abrindo os procedimentos burocráticos para a apreciação social, em contraponto ao ceticismo quanto à complexidade burocrática explícito nos moldes da democracia elitista. As informações apresentadas no processo participativo serão, então, partilhadas e discutidas, retirando-se daí conclusões mais adequadas sem que sejam concebidas como de propriedade a priori de algum dos atores envolvidos. Esses espaços incorporam implicitamente a desejabilidade da inovação institucional como “capacidade de experimentar e partilhar resultados”, em contraponto à racionalidade do elitismo democrático que usa como referência uma noção de homogeneidade cultural pautada no ranking de preferências entre indivíduos, e nas formas administrativas fixas. Nessa nova lógica, o elemento central passa a ser a possibilidade de variação, e não a da repetição institucional, e o critério de racionalidade ou da eficiência é gerado “[...] de forma descentralizada e a posteriori por múltiplos experimentos” (AVRITZER, 2000, p. 45).

4 As Consequências da Sociedade Aberta para a Hermenêutica e o Processo Constitucional

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu um novo paradigma democrático no qual é reconhecido o pluralismo político como fonte de legitimação política além de valorizada a participação da sociedade civil na direção do Estado, inclusive com a criação de espaços participativos nos quais se define o sentido substantivo de determinados direitos fundamentais garantidos pela autoridade pública. Indaga-se, entretanto, de que forma este novo paradigma pode influenciar o debate a respeito da tensão entre Jurisdição Constitucional e os Poderes Políticos tradicionais. O ponto a ser desenvolvido, na dimensão da reflexão teórica, é que este trânsito pode ser garantido através da interação entre a inovação institucional, representada pelo papel exercido pelos espaços participativos, e a superação do paradigma de uma “sociedade fechada” rumo ao de uma “sociedade aberta de intérpretes da constituição”. Nesse sentido, é fundamental a reflexão de Peter Häberle, que contrapõe o sentido hegemônico dado à interpretação constitucional com o papel fundante que as constituições contemporâneas exercem tanto para a sociedade quanto para o Estado, em que “[...] quem vive a norma acaba por interpretá-la ou ao menos co-interpretá-la.” (HÄBERLE, 2002HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2002., p. 13).

Se desde a visão tradicional a interpretação constitucional refere-se à atividade dos intérpretes jurídicos “vinculados às corporações” e aqueles participantes formais do processo constitucional, pelo caráter aberto e dirigente das constituições pluralistas, cujo sentido material depende do influxo da “realidade constitucional”,

[...] cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública [...] representam forças produtivas de interpretação [...]; eles são intérpretes em sentido lato, atuando nitidamente, pelo menos, como pré-intérpretes. (HÄBERLE, 2002HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2002., p. 14)

A partir desse raciocínio, considerando a responsabilidade da jurisdição constitucional como órgão máximo produtor da interpretação oficial da constituição, o autor propõe que a teoria da interpretação constitucional deve ser garantida sob a influência da teoria democrática, inserindo no processo interpretativo a participação daqueles sujeitos que de fato vivem a norma e constroem a realidade constitucional (HÄBERLE, 2002HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2002., p. 14). Em outras palavras, como bem sumariza Coelho (1998COELHO, Inocêncio Mártires. As ideias de Peter Häberle e a abertura da interpretação constitucional no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 35, n. 137, jan.-mar. 1998., p. 158, grifos nossos), implica ver a necessidade de que

[...] a leitura da Constituição se faça em voz alta e à luz do dia [...] pelos diversos atores da cena institucional - agentes políticos ou não - porque, ao fim e ao cabo, todos os membros da sociedade política fundamentam na Constituição, de forma direta e imediata, os seus direitos e deveres.

A proposta de abertura radical, como se coloca aqui, é tanto mais epistemológica e hermenêutica do que um apelo literal à participação direta. Como pondera Häberle (2002HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2002., p. 30-31), o que está em jogo é a desconstrução da visão da norma como decisão prévia, simples e acabada, dando lugar à consideração “[...] sobre os participantes em seu desenvolvimento funcional, sobre as forças ativas da law in public action”. Assim, ganha relevo o fato de que “[...] as influências, as expectativas e as obrigações sociais a que estão submetidos os juízes [...]” (HÄBERLE, 2002HÄBERLE, Peter. La Jurisdiccion Constitucional en la Fase Actual de Desarrollo del Estado Constitucional. Direito Público, [S.l], seção Doutrina Estrangeira, n. 11, jan.-fev.-mar. 2006., p. 31) contêm uma parte de legitimação, em contraponto à visão tradicional negativa dessas como ameaça à sua independência. A legitimação na “sociedade aberta” pode ser projetada na dimensão teorético-constitucional, na qual as forças pluralistas da sociedade se representam como um pedaço da publicidade e da realidade constitucionais, que são reafirmadas no paradigma das constituições abertas e do intérprete como integrador da constituição, responsável por dar-lhe o sentido no campo de tensão do possível, do real e do necessário (HÄBERLE, 2002, p. 33).

Conservando a essência desse argumento, mas direcionando-o em outro sentido, a legitimação pode também ser projetada na dimensão da Teoria Democrática, que dá o conteúdo axiológico para o sistema de governo (republicano, social e democrático) e para a qual a democracia se desenvolve

[...] mediante a controvérsia entre alternativas, sobre possibilidades e sobre necessidades da realidade e também o concerto científico sobre questões constitucionais nas quais não pode haver interrupção e nas quais não existe nem deve existir dirigente. (HÄBERLE, 2002HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2002., p. 37)

A Esfera pública, assim, herda a tarefa de exercer força normativa atualizadora da constituição mediante o vagar permanente da sua experiência concreta, contrapondo na realidade pluralista as diversas demandas no plano do possível, do real e do necessário em um contínuo “[...] processo de ‘trial and error’, de descoberta e obtenção do direito” (HÄBERLE, 2002HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2002., p. 42). Sole ao juiz constitucional, posteriormente, “[...] interpretar a Constituição em correspondência com a sua atualização política” (HÄBERLE, 2002, p. 41).

Nesse contexto, há duas consequências para a sistemática de garantia constitucional enunciadas pelo autor e que nos interessa pontuar. A primeira refere-se à necessidade de “[...] ampliação e aperfeiçoamento dos mecanismos de informação dos juízes constitucionais, especialmente no que se refere às formas gradativas de participação e à própria possibilidade de participação” (HÄBERLE, 2002HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2002., p.46-47). O direito processual constitucional na sociedade aberta torna-se parte do direito de participação democrática, de forma que deve refletir esse ideal inclusivo. Trazendo essa consideração para a realidade brasileira, significa a necessidade de produzir procedimentos capazes de projetar a produção deliberativa desde a Esfera Pública no próprio processo constitucional. Ora, se parte-se do pressuposto que as IPs são na realidade constitucional foros relevantes de produção do sentido objetivo dos direitos fundamentais, não somente pelo seu caráter formal e institucionalizado, mas pelas características já citadas que proporcionam um ambiente adequado à oferta da pluralidade de perspectivas para deliberação, não seria imediatamente relevante refletir sobre formas nas quais o processo constitucional possa integrá-las, trazendo-as ao centro do debate deliberativo de causas conexas às suas áreas de atuação?

Esta não é, entretanto, uma preocupação explícita do ordenamento vigente. É o que depreende do fato de a própria Constituição Federal, no seu artigo 103, frequentemente elogiado pela ampliação significativa quanto às Constituições precedentes das hipóteses de legitimação ativa para acionar o Controle Concentrado de Constitucionalidade, não contemplar nestas hipóteses as Instituições Participativas, muito embora conceda tal legitimidade a outras instituições políticas exteriores ao edifício estatal, como é o caso das Entidades de Classe e Confederações Sindicais em Nível Nacional e dos Partidos Políticos com representação no Congresso Nacional. No mesmo sentido, a Lei n. 9.868/99, que regulamenta o procedimento de julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Ação Declaratória de Constitucionalidade, veda em seu artigo 7º a intervenção de terceiros no processamento dessas mesmas ações perante o Supremo Tribunal Federal. Ao comentar essa vedação quando a dita Lei ainda tramitava na forma do Projeto de Lei n. 2.960/97, partindo também dos argumentos de Häberle, Coelho (1998COELHO, Inocêncio Mártires. As ideias de Peter Häberle e a abertura da interpretação constitucional no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 35, n. 137, jan.-mar. 1998., p. 161) afirma que essa restrição se deu em contrário ao sentido republicano e democrático denotado pelo histórico da Constituição de 1988, segundo o qual “o certo seria liberalizar-se a sua propositura”.

Ao mesmo tempo, o instrumento normativo traz elementos importantes que podem ser direcionados para a defesa da abertura do processo constitucional às Instituições Participativas. É o caso da faculdade dada ao relator de “[...] requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria” (art. 9º, § 1o, da Lei n. 9.869/99). Como pondera Coelho (1998COELHO, Inocêncio Mártires. As ideias de Peter Häberle e a abertura da interpretação constitucional no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 35, n. 137, jan.-mar. 1998.), embora bem mais significativa, essa “fenda hermenêutica” está vocacionada para produzir resultados apenas pela via indireta. Igualmente relevante é a possibilidade de manifestação no processo, autorizado pelo relator, da figura do amicus curiae, conforme coloca o artigo 7º, § 2o, da mesma Lei. Vê-se, portanto, que enquanto não haja uma reforma mais radical e liberalizante no processo constitucional para admitir e valorizar a atuação das IPs no processo formal de interpretação da Constituição, subsistem mecanismos auxiliares de intervenção pelos quais pode ser admitida a participação dessas instâncias. Tais mecanismos, no entanto, fazem “[...] do relator o juiz exclusivo da conveniência e da oportunidade dessas manifestações [...]” (COELHO, 1998COELHO, Inocêncio Mártires. As ideias de Peter Häberle e a abertura da interpretação constitucional no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, ano 35, n. 137, jan.-mar. 1998., p. 163), do que se infere que o campo primeiro de reivindicação à voz pelos espaços participativos é aquele da conscientização da classe judicante, que detém a prerrogativa de controle, sobre a necessidade e o valor do reconhecimento das IPs para a legitimação do processo constitucional como lugar último da produção da interpretação constitucional em sentido estrito.

A segunda consequência para a sistemática de garante constitucional inferida na transição para a “sociedade aberta” diz respeito à incorporação da “medida de participação” como critério hermenêutico definidor da dimensão e da intensidade do controle judicial. Neste sentido, a Corte responsável por aferir a legitimidade de outro órgão democraticamente investido deve, normalmente, proceder com autorrestrição e cautela, a fim de preservar o peso da legitimação democrática tradicional e permanecer nos limites dados pela harmonia na Separação dos Poderes. A intensidade de sua análise, assim, deverá adequar-se ao nível de envolvimento social suscitado pelo ato normativo questionado. Quanto maior o envolvimento e a divisão da opinião pública, mais rigoroso deve ser o controle exercido, levando-se em conta “[...] a peculiar legitimação democrática que as orna, decorrente da participação de inúmeros segmentos do processo democrático de interpretação constitucional” (HÄBERLE, 2002HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2002., p. 45). Nesses casos, a Corte deve assumir uma posição mediadora e controlar a lealdade de participação dos diferentes grupos no processo de interpretação, de forma que sejam considerados “[...] os interesses daqueles que não participam do processo (interesses não representados ou não representáveis)” (HÄBERLE, 2002, p. 46).

É dizer, o rigor da atuação não trata somente da aferição subjetiva dos topoi majoritários, mas da garantia do caráter plural na deliberação ocorrida na Esfera Pública, inferindo-se o máximo de perspectivas possíveis, inclusive as minoritárias e as excluídas por critérios de acesso e seleção ao debate público, com a posterior submissão dessa perspectiva ampliada do diálogo social ao crivo da democracia enquanto garantia de direitos fundamentais. O diálogo, a participação social e a reafirmação dos direitos fundamentais qualificam, assim, o self-restraint da corte constitucional ante a atividade interpretativa dos outros poderes. Projetando essa conclusão sobre o nosso objeto específico, o conteúdo produzido nas Conferências e nos Conselhos de Direito pode ser considerado uma fonte hermenêutica por excelência da participação social na eleição de prioridades e critérios para a atuação pública em suas áreas de pertinência temática. Essa afirmação é suportada, inclusive, pelas evidências empíricas da adesão social brasileira a essa forma institucionalizada de participação, sobretudo com a grande expansão que sofreu na última década, com a realização, por exemplo, de mais de 74 Conferências Nacionais distribuídas em 40 diferentes temas, e a existência de 59 Conselhos de Direitos em nível Nacional vinculados a diferentes órgãos do Executivo Federal (POMPEU; NASCIMENTO; SZWAKO, 2011POMPEU, P.; NASCIMENTO, A. R.; SZWAKO, J. E. L. Arquitetura de Participação no Brasil: avanços e desafios (Governança Democrática no Brasil Contemporâneo n. 2). Brasília: Instituto Pólis, INESC, 2011.).

A inclusão hermenêutica e processual das Instituições Participativas no âmbito do Controle de Constitucionalidade, assim, surge como uma fonte relevante para a inovação institucional e para o reforço da escolha realizada pelo constituinte de 1988 em valorizar a participação da Sociedade Civil no Processo Político por meio de foros não convencionais. Neste sentido, a conexão teórica desta inovação com a ideia de abertura constitucional e de democracia deliberativa pode fornecer um novo canal de legitimação para mediar a tensão entre o papel exercido pela Jurisdição Constitucional no edifício Estatal contemporâneo e as instâncias tradicionais do Poder. Os Juízes Constitucionais, assim, sobretudo no julgamento de hard cases referentes à manifestação objetiva dos direitos fundamentais, podem apoiar-se nas conclusões do debate social canalizado por estas Instituições, tecendo sobre elas o fundamento de legitimidade de suas decisões, sem afastar-se do imperativo da soberania popular imanente ao exercício do Poder Estatal em qualquer de suas manifestações e mantendo a autonomia para julgar o nível de representatividade atingido por esses foros, utilizando como critério para tanto a intensidade e a amplitude da participação.

5 Conclusão

Se, da forma como foi hegemonicamente percebida a democracia no decorrer do século XX, privilegiando o procedimento eleitoral para a escolha de líderes políticos como única forma de legitimação política, consolidou-se um viés corporativista e reduzido da hermenêutica constitucional, dando base à disputa pelo poder de decisão legítimo entre o Circuito Governo-Parlamento e a Jurisdição Constitucional, a sua atualização do ponto de vista da Teoria Crítica da Democracia permite interpretar com outra luz o papel dessas instituições na construção da direção estatal, inserindo como elemento de controle a perseguição de uma democracia substantiva baseada na inclusão comunicativa dos diversos setores sociais no processo de decisão política. Do ponto de vista da Teoria Constitucional, as novas cartas, dentre as a Constituição Federal Brasileira de 1988, são sensíveis a esta mudança de paradigma e abertas ao processo social, incorporando valores e princípios que requerem integração com a sua dimensão viva - a realidade constitucional.

Nesse sentido, a percepção do intérprete oficial também deve adequar-se, reconhecendo os diversos indivíduos e grupos, como coloca Häberle (2012), como intérpretes ou pré-intérpretes constitucionais em seu próprio direito, responsáveis por atualizar a dimensão viva da constituição na tensão entre o possível, o real e o necessário. Assim, mister reinserir o princípio democrático no processo de interpretação constitucional, não na sua forma procedimentalista e estática, que limita a sua hermenêutica aos círculos internos estatais, mas alinhada à proposta deliberativa e participativa incorporada no ideal constitucional, propiciando por meio de recursos discursivos e procedimentais o diálogo entre os intérpretes oficiais e aqueles da Esfera Pública.

Projetando essa perspectiva sobre o panorama brasileiro, é importante ressaltar que a troca entre institucionalidade e Esfera Pública conta com o protagonismo das Instituições Participativas como novos espaços decisórios, constitucionalmente amparados, de caráter participativo e deliberativo para atuar em suas áreas temáticas. Por conseguinte torna-se central a participação e produção relacionada aos Conselhos de Direitos e as Conferências Setoriais, que deveriam ser hermeneuticamente valorizados e introduzidos na Esfera Política como espaços de construção da dimensão viva da constituição, atuando ao lado dos círculos representativos tradicionais assim como da jurisdição constitucional, com o intuito de fazer estes constituírem-se em ambientes deliberativos adequados à “sociedade aberta”.

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  • 1
    Na compreensão de Kelsen (2003, p. 126KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2006.), a garantia da Constituição refere-se ao controle de regularidade da legislação infraconstitucional aos seus ditames, a fim de preservar a característica lógica do sistema, onde os atos inferiores assumem em relação aos superiores a condição de aplicação do direito: “Cada grau da ordem jurídica constitui, pois, ao mesmo tempo, uma produção de direito com respeito ao grau inferior e uma reprodução do direito com repeito ao grau superior. A idéia de regularidade se aplica a cada grau, na medida em que é aplicação ou reprodução do direito. [...] Garantias da Constituição significam, portanto, garantias da regularidade das regras imediatamente subordinadas à Constituição, isto é, essencialmente, garantias da constitucionalidade das leis”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2017
  • Revisado
    08 Dez 2017
  • Aceito
    06 Fev 2018
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