1 Introdução
Toda disciplina possui um cânone como tradição ideada, apologética e geralmente mitológica. Sua construção dá-se pela operação de selecionar autores representativos dos valores que a disciplina escolheu para si, além de eventos históricos a serem reconhecidos como momentos decisivos no desenvolvimento da disciplina. O processo, que pode parecer aleatório é, com efeito, útil e inevitável, na medida em que fornece coesão e identificação entre os juristas, cultores da disciplina, independentemente de seus locais e histórias. O direito internacional moderno, como não poderia deixar de ser, também possui seu cânone, fruto notadamente de um processo contínuo de reiteração de uma narrativa-padrão, em um sentindo quase mitológico, organizado por seus juristas visando à formação da autoimagem da disciplina baseado em uma particular consideração do passado. Por contingente, no entanto, essa narrativa convencional do passado tende a promover determinados valores, comprometidos com uma perspectiva parcial da história, no mais das vezes, eurocêntrica.
Francisco de Vitória, nesse cânone, tem papel destacado. Em verdade, costuma ser celebrado como um dos fundadores do direito internacional moderno; tradição que fora inaugurada em princípios do século XX por juristas como James Brown Scott, Antoine Pillet e Enrst Nys, e mantém-se inquebrantável na doutrina de muitos juristas contemporâneos. A imagem que é reiterada do teólogo salmantino, todavia, é de um precursor de um universalismo baseado na humanidade, e até mesmo, de primeiro defensor dos índios americanos recém-descobertos.
O presente trabalho, seguindo o movimento que Galindo nomeou de giro historiográfico1 no direito internacional, pretende desafiar algumas narrativas convencionais do cânone da disciplina, como essa recém-exposta. Assim, a advertência de John Haskell (2017, p. 246) de que “[...] dedicar-se com a história é refletir não apenas sobre o passado, mas sobre a consciência da disciplina em si e como a mesma cria e organiza suas condições de reprodução [...]”2 é que justifica a presente empreitada. Portanto, a narrativa que segue, distanciando-se da reiterada e apologética história tradicional da disciplina, pretende expor as estratégias de subjugação simbólica, e posteriormente real, traduzida em colonialismo, pela doutrina do nascente direito internacional, sobretudo no pensamento de Francisco de Vitória.
Para tanto, utilizou-se do instrumental teórico da “história dos conceitos” que, focando no valor semântico das palavras utilizadas, permite desvelar como os índios eram representados e concebidos pelo teólogo dominicano. De fato, a utilização do vocabulário jamais representa uma atitude imparcial ou objetiva. Conceitos são polissêmicos e utilizados de forma política. Logo, considerando a polissemia inerente aos conceitos, a “história dos conceitos”, como método de crítica de fontes que atenta para o uso político de determinadas expressões fundamentais (KOSELLECK, 2006, p. 103), fornece uma chave de compreensão e interpretação dos textos jurídicos; de forma a identificar a manipulação desses conceitos ao interno do discurso jurídico internacionalista. Importa, então, historicizar os conceitos (PROST, 2014, p. 129) de forma a acessar suas camadas de significado acumuladas historicamente, e que compõem simultaneamente um conceito (KOSELLECK, 2006, p. 109). Interessou aqui, principalmente, definir as possibilidades semânticas dos conceitos, no caso, de “bárbaro” e “selvagem” para avaliar como estes eram relacionados com o tratamento dos povos não europeus; sobretudo para compreender, logo em seguida, a carga semântica dos significantes manipulados por Francisco de Vitória em referência aos índios americanos.
2 Encontro com o Novo Mundo e Representação dos Povos Indígenas
Com a descoberta da América, diante do europeu põe-se uma nova realidade, totalmente diversa à experiência até então acumulada; não é fortuito, portanto, que o continente encontrado tenha recebido a antonomásia de “Novo Mundo” - com obviedade que o era somente para os europeus. Sua existência implicava em certas dificuldades, pois suscitava questões que ameaçavam toda “[...] concepção tradicional de mundo, em que a geografia, a religião e a teologia estavam unidas com estreitos vínculos e nenhuma delas poderia ser modificada sem colocar em risco a coerência do conjunto”3 (CASTILLA URBANO, 1992, p. 192). Desafios puseram-se diante do “Velho Mundo”, e um dos que se apresentou mais complexo foi a questão sobre como interpretar, descrever e classificar aqueles que habitavam o continente descoberto. Não haviam esquemas interpretativos disponíveis, muito menos vocabulário adequado, capazes de apreender aquela nova realidade, diferente de tudo que já havia sido visto; o que obrigava os observadores a utilizar sua experiência, seja real ou imaginária, para compará-la e, assim, descrever aquelas criaturas (PAGDEN, 1988, p. 29-33). Isso explica os diversos relatos distorcidos que descreviam os índios e, inclusive, a fauna e a flora de forma fantástica; sem que houvesse qualquer correspondência com a realidade do continente americano, mas que faziam parte do imaginário coletivo europeu da época4 (CASTILLO URBANO, 1992, p. 193; BARTRA, 2011, p. 15).
Para classificar os índios, portanto, o europeu foi compelido a recorrer às representações que estavam ao seu alcance, e vívidas na mentalidade europeia. Duas foram as principais figuras que foram projetadas no índio, para que pudesse ser classificado. Uma, obviamente, era o “bárbaro” e a outra foi a figura do “selvagem”. Embora fossem utilizadas como intercambiáveis, de forma indistinta e até simultânea, “bárbaro” e “selvagem” apresentavam significados diferentes (KEAL, 2003, p. 67). Convém, em breves termos, apontar alguns aspectos sobre as representações do “bárbaro” e do “selvagem” e, notadamente, de suas estruturas conceituais.
É na Grécia dos séculos VII e VIII a.C. que a palavra “bárbaro” é cunhada, a partir de uma onomatopeia, para designar aqueles que não falavam grego, mas balbuciavam. Utilizava-se de um critério linguístico para definir os estrangeiros. Com as Guerras Greco-Persas, do século V a.C. a palavra adquire um sentido pejorativo, na medida em que o povo helênico adquire uma consciência de unidade em contraposição à diversidade da região mediterrânea, por meio da habitual polarização advinda de conflitos. A rivalidade era convertida em um instrumento de afirmação de identidade, a partir de papéis idealmente antagônicos; de forma a exceder a inimizade meramente bélica, em um conflito cultural e político. Assim, Heródoto apresenta essa guerra como o confronto entre a liberdade e a democracia grega contra o despotismo dos povos asiáticos, no caso, os persas (FONTANA, 2000, p. 11); uma dicotomia que será projetada para a oposição Europa versus Ásia - ou ainda, Ocidente versus Oriente - eventualmente recuperada - e revigorada - pela modernidade europeia (HARTOG, 2002, p. 102-104).
O fato de propor uma designação genérica para todos os outros povos, embora diversos, em contraposição unicamente ao povo helênico que, por sua vez, recebe um nome próprio, já adianta o caráter assimétrico da palavra. Estabelecia-se uma divisão universal e mutualmente exclusiva, dividindo toda humanidade entre quem designava, os helenos, e todos os outros, que eram designados bárbaros. Além disso, sua origem etimológica, baseada no critério linguístico de diferenciação, também prenunciava essa assimetria. Afinal, se os estrangeiros eram aqueles que balbuciavam ao falar, isso pressupunha uma falta de habilidade em utilizar a linguagem; o que para o pensamento grego, que associava a linguagem à inteligência e à razão, significava uma clara inferioridade intelectual (PAGDEN, 1982, p. 16). Não é fortuito que logos significasse em grego tanto verbo quanto razão (DROIT, 2009, p. 40).
Está claro que tanto a representação do “bárbaro” quanto a imagem que o próprio grego fazia de si eram idealizadas. Todos os epítetos negativos atribuídos ao bárbaro - grosseiro, rude, obtuso, inábil, déspota, etc. - constituíam-se, com efeito, em uma figura antagônica inventada expressamente para que lhes servisse de contraste (FONTANA, 2000, p. 10). Dessa forma, o “bárbaro”, embora corresponda à uma alteridade cuja existência é real - os persas, por exemplo -, não passava de uma construção inventada pela cultura grega para afirmar sua identidade coletiva. Aparta-se tudo aquilo rechaçado pela sociedade grega, e a esse conjunto de rejeitos dava-se o nome de “bárbaros”. Explica-se, portanto, porque o conceito de “bárbaro” será sempre carregado com o sentido de inferioridade; afinal, se ele representa tudo que é negado por determinada sociedade, não poderia ser diferente. Nesse sentido, a opção pelo emprego do vocábulo expõe necessariamente uma atitude etnocêntrica daquele que o profere.
A função do conceito, então, é fabricar esse exterior, a partir do ponto de vista interno. Para a construção e a articulação do termo, há sempre um “centro” que determinará correlativamente o conteúdo do “periférico” (DROIT, 2009, p. 122). E o conteúdo desse periférico, considerado “fora”, acompanha a determinação do que é tido como “dentro”; de forma que, cada vez que este é alterado, aquele também será, constituindo-se o antônimo desse novo “dentro”. Por isso que “bárbaro” apresentará conteúdos diferentes ao longo do tempo, sucessivamente oposto ao ponto de vista hegemônico de cada contexto que promove a articulação do conceito. Esse aspecto apresenta-se como constante nas representações que o conceito suporta posteriormente, em conjunturas diversas e desvinculados de sua origem. Quer dizer, é um conceito historicamente transmissível (KOSELLECK, 2006, p. 195), adaptável ao contexto concreto em que é utilizado, que, no entanto, mantém sua estrutura etnocêntrica e assimétrica, independentemente do conteúdo que o preencher.
Dessa forma, se no universo grego, a característica mais destacada do “bárbaro” era a ausência de razão e a inabilidade em articular-se, como consagrado no sentido dado por Aristóteles, no âmbito romano, que herda a cultura helênica e inclusive a palavra, prepondera a imagem do “bárbaro” cujos atributos são a crueldade, a ferocidade e a bestialidade - furor barbaricus. Quanto mais aumentava o espírito expansionista romano, mais era alimentada uma imagem do “bárbaro” como violento, cruel, impiedoso, feroz em combate e, principalmente, uma ameaça à integridade da sociedade romana5. O conceito de “bárbaro” funcionava como uma eficaz ferramenta política, manobrada pelo Império de forma a manter o expansionismo e todo sistema romano dependente dele; o que empreendia por meio de um perverso estratagema: a desumanização do “outro” legitimava o seu extermínio (RODRÍGUEZ GERVÁZ, 2008, p. 149-152). Portanto, a imagem era aplicada a todos os inimigos indistintamente, mas contingencialmente, dependendo qual era o oponente da temporada, fossem eles celtas, francos, godos ou sarracenos. Assim como na representação grega, tratava-se de uma imagem estereotipada, que correspondia menos à realidade dos povos categorizados como tais do que o inverso do ideal romano (FONTANA, 2000, p. 20-21); de qualquer forma, “[...] não importa que a realidade fosse radicalmente distinta, o certo é que através destas abordagens estabelece-se um programa ideológico sobre o outro”6 (RODRÍGUEZ GERVÁZ, 2008, p. 154).
Com a queda do Império Romano, em 476 d.C., toda estrutura política, jurídica, militar e social que a sustentava desmorona, e a paisagem europeia acaba sendo transformada pela cultura e organização dos “bárbaros”. Nesse contexto, perde sentido a oposição romanitas e “bárbaros”, porque já não há mais o centro manipulador do conceito. Não havendo mais uma unidade política, como havia no Império, uma multiplicidade de pequenos Estados forma-se. No entanto, a instituição religiosa mantém-se, e fortalece-se, vindo a exercer hegemonia em todos os âmbitos da vida medieval7. Quer dizer, a cristandade, principalmente por meio da coesão política proporcionada pela institucionalidade da Igreja, que se constituirá o elemento agregador desse novo contexto da Idade Média. Consequentemente, no tocante à semântica do “bárbaro”, a Christianitas assumirá o papel de centro, tornando-se a referência para a determinação da figura do “bárbaro”.
No entanto, diferente da sociedade grega, caracterizada por ser fechada, no sentido que não havia como um “bárbaro” tornar-se grego, a cristandade além de aberta8 a todos que quisessem integrá-la, patrocinava essa conversão, que se dava com o batismo9 (PAGDEN, 1988, p. 40-41); ou mesmo, pela força das armas, forçando a entrada na Cristandade, como comenta Le Goff (2005, p. 141): “[...] compelle intrare torna-se a palavra de ordem em relação a pagãos. A tais, aliás, era aplicado de muito bom grado o epíteto de bárbaros”.
Enfim, o “bárbaro” teve a função de encarnar a exterioridade negada, seja por meio de uma fronteira ditada por um critério cultural/biológico, como era no mundo helênico, seja por um critério jurídico-político, do status civitatis romano, ou pelo critério religioso, do contexto cristão medieval10. Essa estratégia funciona para consagrar os valores daquela determinada cultura; isto é, se na sociedade helênica, a intelectualidade e a retórica eram exaltadas como superiores qualidades, por conseguinte, o “bárbaro” encarnará a figura que foi exposta, daquele sem razão e incapaz de expressar-se corretamente11.
De certo modo, nomear qualquer pessoa, ou grupo, pela denominação de “bárbaro”, significava conferi-la com sua exterioridade negada, atribuir ao outro o que era rejeitado em si, antes mesmo do outro apresentar-se. Assim, o outro era anulado, pois recebia uma representação previamente estabelecida, um pré-conceito, de forma que as peculiaridades e as diferenças do outro eram completamente ignoradas (KEAL, 2003, p. 60-61).
Em linhas gerais, a figura do “bárbaro” era formada por aquilo que era rechaçado pelo interlocutor, de forma que o seu uso automaticamente implicava na atitude de desprezo. Não foi diferente quando da necessidade de descrever os habitantes do Novo Mundo. Assim, desde os primeiros relatos do descobrimento, nas expedições de Cristóvão Colombo e Hernán Cortéz - em meio à quantidade de ambiguidades, decorrentes do modo de descrever os índios - inauguravam-se o emprego dos epítetos12, quase de forma automática, para referir aos índios (TODOROV, 2011, p. 184). Em outras palavras, tratava-se de um recurso simples e pressuposto para a linguagem: a carga semântica das palavras permitia imaginar como eram os índios pelos leitores na Europa, por meio da associação às noções vívidas no imaginário coletivo europeu que a significante despertava.
Mais relevante que o emprego dos conceitos pelos exploradores era o seu uso pelos teólogos durante todo século XVI. A participação de intelectuais universitários, notadamente juristas, teólogos e filósofos, nos debates políticos, decorria de uma larga tradição, cujo objetivo era conferir coerência à cosmovisão cristã medieval. O século XVI continua com a prática, de modo que os teólogos eram frequentemente requeridos pela Coroa para resolver assuntos políticos e morais; sua função, no entanto, não era julgar as questões, mas legitimá-las. Isto é, conferir uma justificativa plausível, em harmonia com a religião. “Os juízos que emitiam esses homens frequentemente poderiam estar dirigidos a legitimar fins políticos a curto prazo, a proporcionar à Coroa uma justificação ética para a ação que, na maioria dos casos, já estava decidida.”13 (PAGDEN, 1988, p. 52). Assim ocorreu em 1504, quando a Coroa espanhola convocou a primeira junta para tratar sobre a legitimidade da ocupação espanhola na América; momento em que foram confirmadas as bulas papais que haviam sido emitidas por ocasião da conquista das Antilhas em 1493, as quais concediam aos reis católicos a soberania de todas as terras descobertas no Atlântico, que não estivessem ocupadas previamente por outro rei cristão (PAGDEN, 1988, p. 53-54). Esse era o título jurídico-político, tipicamente medieval, que sustentava a empresa colonial: o poder temporal do Papa extensível a todo orbe lhe proporcionava jurisdição e domínio, e decorrente deste, o direito de conceder tais territórios aos reis cristãos; argumento que convergia com o discurso de missão civilizatória, empreendida por meio da conversão dos povos pagãos.
Desde a conquista, outros debates ocorreram examinando, dessa vez, a legitimidade da Coroa em escravizar os habitantes do Novo Mundo; assim como já ocorria com os habitantes das Antilhas, com africanos no comércio empreendido pelos portugueses. De fato, era prática comum14 daquela sociedade (LE GOFF, 2005, p. 144; PAGDEN, 1988, p. 56-57). Não é estranho que Colombo, perante os índios, tenha prontamente pensado em escravizá-los: “Daqui poderíamos enviar, em nome da Santíssima Trindade, tantos escravos quantos se possam vender [...]” (TODOROV, 2010, p. 65). O debate implicava em investigar a natureza do índio: se eram também humanos, se descendiam de Adão, se eram cristianizáveis, etc. A inferioridade do índio perante o europeu cristão era, em termos culturais, praticamente indiscutível nos círculos acadêmicos, restava aferir se essa inferioridade lhes retirava a humanidade ou se eram humanos, ainda que de uma estirpe rebaixada. Não havia quem propusesse um relativismo cultural, e o ordinário uso do termo “bárbaro” para referi-los confirmava isso. Dessa forma, considerando que os índios, notadamente pela abrupta diferença cultural, eram julgados inferiores, faltava um marco teórico capaz de dar conta dessa diferença (CASTILLO URBANO, 1992, p. 208). Não demorou, no entanto, para que o índio fosse associado à teoria da escravidão natural de Aristóteles15; o que foi empreendido, pela primeira vez, pelo teólogo escocês John Mair, professor do Collège de Montaigu em Paris (CASTILLO URBANO, 1992, p. 216; PAGDEN, 1988, p. 67), do qual Francisco de Vitória foi aluno durante sua estadia em Paris (KOSKENNIEMI, 2011, p. 8; DE LA TORRE RANGEL, 2005, p. 54). De fato, a vinculação do “bárbaro” com a escravidão já estava implícita em Aristóteles16, de onde sobressai a naturalização do estado de escravidão do “bárbaro”, isto é, em claro determinismo - inclusive genético - torna o “bárbaro” servil por natureza. É bem conhecida a importância que a teoria aristotélica confere à política, por meio dela que o homem livre se desenvolve com plenitude, afinal, o homem é, por natureza, um animal político (ARISTÓTELES, 2002, p. 4-6; 53). Dessa forma, compreende-se o quão desprezível é, para Aristóteles, ser politicamente servil; e pior, naturalmente servil. O desenrolar desse argumento desembocará na sua conhecida doutrina da escravidão natural17, pela qual cria uma categoria concreta de homens, que nasceram para serem escravos; ora, “[...] todos os seres, desde o primeiro instante do nascimento, são, por assim dizer, marcados pela natureza, uns para comandar, outros para obedecer.” (ARISTÓTELES, 2002, p. 12).
O recurso à natureza, em Aristóteles, ao tratar, tanto da servidão natural do “bárbaro”, quanto do “escravo”, indica uma convergência das duas figuras, ou seja, o “bárbaro” é escravo, por natureza. Não é fortuito, portanto, que Aristóteles retome a afirmação do poeta Hesíodo de que “[...] os gregos tinham, de direito, poder sobre os bárbaros, como se, na natureza, bárbaros e escravos se confundissem.” (ARISTÓTELES, 2002, p. 3).
É o argumento intelectual que prepondera; do mesmo modo que os “bárbaros”, o escravo carece de razão (ARISTÓTELES, 2002, p. 13) e isso é o que motiva ser comandado, por um homem, senhor da razão; só assim ele cumprirá sua função de forma plena. O escravo natural, portanto, será um homem cujo intelecto não alcançou o controle necessário sobre suas paixões (PAGDEN, 1988, p. 70), e é essa dependência do homem em relação aos seus desejos, paixões e instintos que diferencia o “bárbaro” e o escravo do homem grego.
Enfim, não demorou para que as ideias de Aristóteles fossem projetadas aos habitantes do Novo Mundo; colocando o índio como carente de razão e, simultaneamente, motivando o seu comando pelo benevolente cristão europeu, que proporcionaria, então, um bem social e individual ao índio escravizado. De fato, a apelação à categoria aristotélica resolvia dois problemas de uma vez: explicava a inferioridade do índio em termos familiares, e legitimava o uso da mão de obra indígena nas novas colônias18. A notoriedade de toda a doutrina de Aristóteles no meio intelectual havia sido popularizada pelo tomismo, o qual, por sua vez, exerceu influência na Segunda Escolástica; de modo que inclusive a terminologia utilizada nos textos do século XVI era aristotélica (CASTILLO URBANO, 1992, p. 241). Para Villey (2009, p. 377), Aristóteles imperava na escolástica espanhola. Quanto mais conhecida, mais dava-se a identificação do índio como escravo natural, de modo a tornar-se lugar comum no meio intelectual (TUCK, 2002, p. 42). Nas primeiras três décadas do século XVI, enfileiram-se nomes de teólogos que defendiam esse argumento, como demonstraram Pagden e Castillo Urbano (1988, p. 70-87;1992, p. 220-242), desde o autor do famigerado Requerimiento19, Juan Lopez de Palacios Rubios, ao contendor de Bartolomé de Las Casas, no famoso debate de Valladolid de 1550, Ginés de Sepúlveda.
A teoria sustentou a empresa colonial nas primeiras décadas. No entanto, não há como deixar de notar que sua adoção implicava algumas contradições no seio da doutrina cristã; pois admitia uma heterogeneidade na humanidade, incompatível com a ordem natural criada por Deus e, ainda, colocava em dúvida a possibilidade de conversão, de cristianização: já que eram carentes de razão por natureza, a capacidade de algum dia aprender a verdadeira fé era questionada. Simultaneamente, começaram a aparecer relatos da realidade colonial, trazidos principalmente pelos freis e padres missionários, sobre as atrocidades cometidas pelos colonos aos índios. As críticas ao sistema colonial, no tocante ao trato com os índios, foram introduzidas por Antonio de Montesinos, todavia, nos sermões e escritos de Bartolomé de Las Casas que receberam maior contundência e notoriedade. Inaugura-se, assim, uma tendência humanista no âmbito da Segunda Escolástica espanhola (VILLEY, 2009, p. 373), cujos principais feitos foram a ruptura com a teoria aristotélica da escravidão natural, no tocante à natureza do índio, e com as premissas político-jurídicas próprias da Idade Média, que conferiam poder temporal irrestrito e universal ao chefe da Igreja (KOSKENNIEMI, 2011, p. 8). Embora teólogos fossem, refere-se como destaque no âmbito jurídico, Francisco de Vitória, Domingo de Soto e, mais tardiamente, Francisco Suárez.
3 Representação dos Povos Indígenas em Francisco de Vitória
A importância de Francisco de Vitória é frequentemente exaltada, vez que é indicado como um dos fundadores do direito internacional moderno20, por ter lançado as bases desse direito, principalmente nas suas relecciones ‘De indis’, e ‘Jure Bellis Hispanorum in Barbaros’, proferidas em 1539; justamente as obras que abordam a questão do índio recém-descoberto. De fato, conforme ponderou Castillo Urbano (2006, p. 15), “[...] o influxo do Novo mundo foi, portanto, decisivo na dedicação de Vitória ao Direito das Gentes”. Nesse sentido, tem pertinência o argumento de Anghie (2004, p. 15), de que o que move o direito internacional, desde sua gênese pré-moderna, é, na verdade, o ímpeto colonizador europeu21.
De indis é separado em três partes. Na primeira trata sobre a natureza dos índios e sobre possibilidade de terem domínio sobre as terras do Novo Mundo. Sua atitude perante os índios, não obstante, é diversa de seus antecessores. Vitória (2006, p. 56), assim como Las Casas, retira o índio do estado de escravidão natural aristotélico, arguindo “[...] na realidade, não são dementes, mas a seu modo têm uso da razão”, devolvendo a humanidade do índio. Essa transformação na natureza do índio será essencial para construir sua concepção de ius gentium, de modo a incluir os índios sob o mesmo sistema jurídico dos europeus. Garantindo a razão aos habitantes do Novo Mundo, Vitória (2006, p. 53) assegura o domínio das terras aos índios: “Nem o pecado de infidelidade nem outros pecados mortais impedem que os índios sejam verdadeiros donos tanto publica como privadamente e que, por esse título, os cristãos não podem ocupar seus bens e suas terras”.
Seguindo, o título de sua segunda proposição já denuncia, Vitória segue a tradição de referenciar aos índios como ‘bárbaros’, e é assim que inicia sua exposição:
Toda esta controvérsia e a consequente interpretação surgiram e se difundiram por causa dos bárbaros do Novo Mundo, chamados popularmente de índios que, desconhecidos antes em nosso mundo, caíram há quarenta anos em poder dos espanhóis. (VITORIA, 2006, p. 37, grifos do autor)
De tal modo segue ao longo da obra utilizando o termo de forma intercambiável, o que indica uma continuidade na atitude etnocêntrica de pressupor uma superioridade do cristão europeu perante o índio.
Com efeito, o catedrático salmantino transpunha a inferioridade do índio, de um plano vinculado à natureza, para um plano cultural; o que torna os índios inferiores ao cristão europeu, não é uma diferença natural de humanidade, que agora lhe é concedida, mas suas práticas e tradições, que indicam um modo de vida inculto. Apesar de humanos, ainda são bárbaros. Assim, os índios, mesmo que
[...] não sejam totalmente desprovidos de juízo, se diferenciam muito pouco dos dementes, de maneira que parece que não são aptos a constituir e administrar uma república legítima, nem mesmo dentro de limites humanos e civis. (VITORIA, 2006, p. 107)
Logo depois de garantir razão aos índios - ainda que de forma alegórica - e com isso, possibilitando inclusão deles sob a mesma jurisdição do direito das gentes, Vitória já poderia, então, ressaltar a inferioridade dos habitantes do Novo Mundo. Trata-se, nas palavras de Costa (2002, p. 103), uma estratégia de inclusão hierarquizada22. Vitória passa então a conjeturar uma explicação para esse agir “bárbaro”: “O fato de que pareçam tão atrasados e carentes de uso da razão deve-se, creio eu, à sua má e bárbara educação” (VITÓRIA, 2006, p. 57). Ou seja, Vitória estabelecia a inferioridade dos indígenas a fatores essencialmente culturais e, portanto, mutáveis; e não, como seus antecessores, a fatores naturais, fazendo com que o índio nascesse já rebaixado.
O foco na ausência ou na má educação como motivo da inferioridade é a chave para justificar a correta educação dos mesmos; isto é, bastava educar o índio para que ele deixasse de viver de forma “bárbara” e no pecado. Por isso, Vitória (2006, p. 55-56, 108) recorre mais de uma vez à comparação dos índios “como se se tratasse de crianças”. Certo que não se trata de uma mera educação, mas uma aculturação: abandonar os costumes ditos “bárbaros” não significa outra coisa que substituir os costumes e as tradições indígenas pelos costumes europeus e, principalmente, ensinar-lhes a religião verdadeira (CASTILLA URBANO, 1992, p. 271-272).
Seguindo essa argumentação, Vitória (2006, p. 109) chega a sugerir como título legítimo, baseado “no preceito da caridade”, que “[...] para o próprio bem deles os reis da Espanha poderiam assumir a administração e nomear prefeitos e governadores para suas cidades [...]” (VITÓRIA, 2006, p. 108), permanecendo tutelados até que atingissem a maioridade da razão23.
Abraçando a tradição tomista, Vitória, embora rechace os argumentos da escravidão natural, não se desvincula de Aristóteles. O que faz, na verdade, é converter a escravidão natural em outra categoria de escravidão abordada na Política de Aristóteles, a escravidão civil (CASTILLO URBANO, 1992, p. 247, 272-274); isto é, negava que o índio tivesse uma natureza diversa, porém, deixava aberta a possibilidade do índio ser escravo, decorrente, por exemplo, da vitória de uma guerra justa, o que argumenta na terceira seção24.
Com essa nova argumentação, Vitória solucionava as contradições implicadas pela teoria aristotélica do escravo natural: ao defender a humanidade do índio, reconciliava-se com a doutrina cristã e, ao mesmo tempo, legitimava sua escravização na modalidade civil, prática da qual a Igreja era convivente há muitos séculos. É claro que, no plano essencialmente teórico, Vitória devolvia a humanidade ao índio - motivo pelo qual foi vangloriado como defensor dos índios - mas não sua liberdade.
Nas duas seções seguintes da obra, o teólogo elenca “[...] os títulos ilegítimos por meio dos quais os índios do Novo Mundo puderam ser sujeitados aos espanhóis [...]” (VITÓRIA, 2006, p. 59) e, em seguida, os “[...] títulos legítimos pelos quais os índios acabaram ficando em poder dos espanhóis” (VITÓRIA, 2006, p. 93). Dessa forma, Vitória não faz nada mais que substituir os argumentos que ele considera não idôneos, por outros, agora legítimos, e em harmonia com a doutrina cristã. A subjugação dos índios e a exploração dos domínios do Novo Mundo em praticamente nada são alterados, mas sua legitimação é posta sob novas bases, agora, coerentes e atualizadas às transformações impulsionadas pela transição no quadro político do fim da Idade Média. De fato, a estrutura política bicéfala, na expressão de Le Goff (2005, p. 267), cujo poder era dividido entre o Sacerdócio e o Império, já não dava conta da nova realidade, evidenciada na ascensão dos estados, como unidades políticas autônomas (LE GOFF, 2005, p. 96-98).
Nesse sentido, Vitória (2006, p. 67-74; 75) desconstrói: o domínio mundial do imperador (2006, p. 59-66), o poder temporal e universal do sumo pontífice25 e o direito decorrente do mero descobrimento - jus inventionis. De longe, o segundo título é o mais relevante; o primeiro, sobre um cesarismo imperial, era tese propriamente medieval não resgatado desde Bartolo da Sassoferrato (1314-1357), na primeira metade do século XIV e, conforme argui Castillo Urbano (1992, p. 296), não parece ter sido aplicado por nenhum autor específico na questão do Novo Mundo; o último, o próprio Vitória não se dedica a refutar, pois não era título usualmente reivindicado26, e sua validade, decorria necessariamente de um dos dois primeiros títulos.
No entanto, era sob a legitimidade e a validade do título decorrente da autoridade temporal do sumo pontífice que se estribava o domínio dos espanhóis no Novo Mundo, pois do Papa decorria o poder do imperador (TUCK, 2002, p. 60). A posse das terras do ultramar pela monarquia espanhola dependia diretamente das concessões - donatio - feitas por meio das bulas papais, seguindo uma tradição de direito feudal; foi o caso da bula Inter cætera divinæ27, do papa Alexandre VI, adotada poucos meses após o descobrimento (SCHMITT, 2014, p. 90-92; DE LA TORRE RANGEL, 2005, p. 60)28. Quebrando com essa tradição própria do contexto medieval, Vitória se vê obrigado a legitimar o domínio espanhol no Novo Mundo sob outra argumentação, e é então que inova na abordagem do tema, introduzindo elementos que posteriormente serão considerados próprios da Modernidade, por meio da articulação de um direito das gentes racional e natural, pautado no acordo entre os homens.
A concepção de direito natural de Tomás de Aquino é tomada como a base para a construção de sua proposição. Porém, conforme argui Villey (2009, p. 379), não se tratava de uma fidelidade irrestrita ao tomismo. Notadamente, porque Vitória, embora assente sua proposição de direito das gentes sob o direito natural, extrai dele regras fixas e inalteráveis, das quais o autêntico direito natural de tradição tomista aristotélica jamais foi capaz de fornecer, pois adaptável às condições históricas, às quais o direito deve se adaptar (VILLEY, 2009, p. 385-386). Por isso, “Vitória distanciou-se da teoria tomista, para fazer do direito das gentes, um tipo de direito positivo, baseado no acordo humano”29 (BRETT, 2012, p. 1.087).
Por esses preceitos de direito, precisos e inamovíveis, serem acessíveis apenas com a razão, que Vitória é obrigado a considerar os índios como humanos e, ainda que a seu modo, racionais; não fosse isso, seria impossível estender o direito das gentes até o Novo Mundo. Colocando os índios sob essa nova ordem jurídica universal, tornava-se admissível julgar seus comportamentos, condená-los e sancioná-los de acordo com os preceitos de direito que Vitória passará a elencar na terceira seção, em que trata dos títulos legítimos. A subjugação dos índios deixa de ter um caráter arbitrário, ou uma justificativa decorrente do direito medieval, e em evidente decadência; passa a ser jurídica, justificada e justa.
Elencam-se, por conseguinte, regras que, para Vitória, são deduzíveis somente pela razão, e sustentadas em exemplos retirados de fontes da tradição ocidental (WILLIAMS JR., 1990, p. 101), principalmente, romana e cristã: direito de livre trânsito - ius peregrinandi30 (VITÓRIA, 2006, p. 93-95); direito de fazer comércio - liberum comercium31 (VITÓRIA, 2006, p. 96); direito de apropriar-se de res nullius32 (VITÓRIA, 2006, p. 97); direito de propagar a religião cristã33 (VITÓRIA, 2006, p. 101-103); direito de defender os homens dos sacrifícios humanos34 (VITÓRIA, 2006, p. 105-106).
Esses direitos não são exclusivos dos espanhóis, mas de todos aqueles que têm autonomia e razão, e estão sob a jurisdição do direito das gentes; são direitos universais. No entanto, conforme pondera Baccelli (2008, p. 81), são direito abstratamente universais, ou nas palavras de Fisch (2000, p. 8), direitos formalmente recíprocos, como materialmente unilaterais; isto é, além não exequíveis pelos indígenas, eram direitos totalmente alheios aos interesses dos aborígenes americanos, que efetivamente não importavam. Por outro lado, os interesses dos conquistadores espanhóis eram, por excelência, contemplados nos direitos elencados por Vitória. Logo, a possibilidade e necessidade de subjugar o índio ao domínio espanhol surgia justamente no descumprimento ou em qualquer manifestação de resistência ao livre exercício de quaisquer das regras dessa ordem jurídica, à qual o índio era agora submetido. Nas palavras de Vitória (2006, p. 98), “Os índios, ao proibir aos espanhóis o exercício do Direito das gentes, fazem-lhes injúria; logo estes podem licitamente vingá-la”. Estabelece uma lógica muito simples, na qual a violação ao direito das gentes, propriamente uma injúria, levava à sanção - executada, na prática, exclusivamente pelos espanhóis - por meio de uma guerra justa.
Dessa forma, considerando que os índios possuem o domínio legítimo das terras, como um esboço do princípio de soberania, não há como submetê-los a um julgamento, por meio de processo legal, sob a jurisdição espanhola; é assim que a guerra assume a vez de procedimento jurídico e de pena, simultaneamente (KINGSBURY; BLANE, 2010, p. 597-598)35. Conforme percebe Anghie, a estratégia era inescapável: não havia como os índios evitarem a violação dos direitos elencados astuciosamente por Vitória (2004, p. 21), pois tratavam justamente de aspectos de sua cultura, dos quais não poderiam renunciar mesmo que soubessem da existência de um direito das gentes; e assim, gerava, por consequência, o direito de guerra justa, e a possiblidade subjugá-los, então juridicamente, notadamente, por meio do instituto jurídico legítimo da escravidão civil, além da ocupação das terras.
Enfim, o que o teólogo salmantino fez foi substituir um título já desgastado, pertencente à situação política em decadência, que o poder papal universal, pelo direito das gentes cujo consenso de todo o mundo estaria de acordo com visão ocidental de razão e da verdade (WILLIAMS JR., 1990, p. 107). Porém, ao promover essa mudança, Vitória está rompendo com a tradição medieval e inaugurando uma nova concepção que desembocará no direito internacional moderno. Com efeito, Francisco de Vitória é um teórico da transição: tem bases medievais, mas projeta-se para a modernidade. Sua originalidade está, em um primeiro momento, na secularização do direito, pois o coloca sob as bases de um direito que, apesar de fundamentado na lei divina, provém e acessível a qualquer um por meio da razão.
Por outro lado, o léxico utilizado por Vitória para se referir aos sujeitos desses direitos permite concluir que o teólogo se referia mais a povos, como grupos de pessoas, ou mesmo indivíduos que propriamente a uma unidade política autônoma, como o Estado, que como se sabe estabelece-se definitivamente no século posterior. De qualquer forma, seja como povos ou indivíduos, há também, em Vitória, certa referência a direitos subjetivos, o que também se constitui elemento inovador, embora não tenha inventado a noção, que remonta ao nominalismo de Guilherme de Ockham e Duns Scoto (VILLEY, 2009, p. 391).
No plano teórico, o direito das gentes de Vitória apresenta-se como um direito universal e racional; com efeito, trata-se de uma razão proveniente da visão de mundo ocidental sendo projetada para todo o mundo. De tal modo, o racionalismo em Vitória, ao pretender-se universal, torna-se a-histórico, pois é desvinculado da experiência particular de onde foi gerado. Essa atitude universalista, cujos valores projetados são essencialmente da razão europeia, só é possível pela incapacidade de enxergar o outro, de perceber a cultura do outro como diferente, e não como inferior. Não é fortuito que a relectio de Vitória seja referida como um dos primeiros e mais consistentemente influente documentos na questão sobre a legitimidade do imperialismo europeu (BOWDEN, 2005, p. 9).
O uso de um vocabulário marcadamente assimétrico, em que o outro é referido como inferior e julgado de forma negativa, como evidenciado pelo uso dos conceitos “bárbaro” e “selvagem” não decorre meramente do uso ordinário da língua; na verdade, antecipa o caráter do direito concebido por Vitória: um direito das gentes eurocêntrico e universalista, que não deixa dúvidas acerca da pretensão de superioridade do europeu frente às demais culturas. Logo, se as relecciones de Francisco de Vitória efetivamente lançam as bases do direito internacional moderno, esse direito nasce com caráter eurocêntrico, pretensão universalista e espírito colonizador de subjugação do outro. Um direito que se funda na experiência estritamente europeia, sob fontes cristãs e romanas, valorizando direitos exclusivamente convenientes ao propósito colonizador europeu, e encontra a seu instrumento sancionador na própria guerra feita contra os índios.
4 Conclusão
Desde o primeiro encontro, em 1492, os povos indígenas foram considerados inferiores em relação aos europeus. Discutia-se nos círculos acadêmico-religiosos sobre sua natureza, diversa do homem europeu, colocando o indígena americano como uma espécie diferente; ou caso tivessem a mesma natureza, apresentavam-se em um estágio de evolução inferior. Fosse natural, fosse cultural, a inferioridade em si não era assunto colocado em dúvida.
De plano, a diferenciação no desenvolvimento técnico foi tomada como desnível intelectual, e mesmo de humanidade. A espontânea utilização de conceitos como “bárbaro” e “selvagem”, já na literatura de viagem, e a permanência desses conceitos em praticamente todas as referências posteriores, inclusive no meio culto, denunciava essa atitude etnocêntrica do europeu. A breve retrospectiva na estrutura histórica dos conceitos que foram utilizados em referência aos habitantes do continente americano permite perceber o caráter depreciativo que tais palavras implicavam.
Os primeiros escritos reverenciados por estabelecerem as bases para o direito internacional moderno, notadamente, as relecciones de Francisco de Vitória, de 1537 a 1539, longe de romper com essa atitude, a reitera e a reforça, oferendo bases jurídicas para a subjugação desse ser inferior. Não é fortuito, portanto, que trate os indígenas como “bárbaros” prontamente no título de uma de suas relecciones. A construção teórica de Vitória, embora estribada em fontes estritamente romanas e cristãs, apresenta-se como universal, imparcial, aplicável a todos os povos indistintamente e independentemente de suas experiências históricas. Dessa forma, por baixo do superficial manto universalista proposto pelo teólogo salmantino esconde-se a subjugação do povo indígena, operada por uma estratégia de ordem jurídica hierarquizada, na qual os direitos subjetivos são apenas formalmente recíprocos, pois materialmente unilaterais. De fato, a pretensamente abstrata construção teórica de Vitória, faz questão de incluir os índios na mesma ordem jurídica dos europeus, para logo em seguida, restituir sua inferioridade e possibilitar então subjugá-los dentro do marco jurídico e teológico.
A atitude de Vitória em rechaçar a teoria aristotélica de escravidão natural, levianamente aplaudida como ato em defesa dos índios, apresenta-se, com efeito, como uma tentativa de reconciliar a dominação espanhola, e consequente exploração dos indígenas, com a doutrina católica, tradicionalmente conivente com a escravidão civil. Enfim, Francisco de Vitória fornece um modelo teórico de direito, destinado ao sucesso nos séculos seguintes: coerente, pretensamente preocupado com questões humanas, legítimo porquanto dentro dos marcos jurídicos hegemônicos e, por fim, conveniente ao ímpeto colonialista europeu.