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Constitucionalismo Crítico: Antonio Negri à luz de Franz Neumann

Critical Constitutionalism: Antonio Negri in the light of Franz Neumann

Resumo

Este artigo discute a visão de poder constituinte de Antonio Negri à luz da teoria do direito de Franz Neumann. O texto apresenta as características essenciais do constitucionalismo e a sua crítica por Negri (2015) no livro O Poder Constituinte. Para Negri (2015), o constitucionalismo tem como função central impedir a transformação social radical por meio da contenção do poder constituinte. A seguir, o texto discute essa crítica à luz de Franz Neumann (2009; 2013) procurando mostrar que nem toda transformação radical é necessariamente progressista, especialmente se deixar de lado algumas garantias presentes na tradição do constitucionalismo.

Palavras-chave:
Direito; Poder; Constituinte; Constitucionalismo; Transformação

Abstract

This article discusses Antonio Negri’s view of the constitutive power in the light of Franz Neumann’s theory of law. The text presents the essential characteristics of constitutionalism and its critique by Negri (2015) in the book “The Constituent Power”. For Negri (2015), constitutionalism has as its central function to prevent radical social transformation by restraining the constituent power. Next, the text discusses this criticism in the light of Franz Neumann (2009; 2013), seeking to show that not all radical transformation is necessarily progressive, especially if we leave aside certain assurances present in the tradition of constitutionalism.

Keywords:
Law; Power; Constituent; Constitutionalism; Trasformation

1 Introdução

A centralidade das Constituições para a política ocidental pode ser interpretada como sinal da decadência do direito natural como realidade institucional, ou seja, trata-se de um elemento central da reprodução das instituições formais. A despeito do debate sobre o direito natural permanecer importante na teoria e em momentos revolucionários, a reprodução institucional normal passou a ser dominada pelas leis, especialmente pelas normas constitucionais que declaram direitos fundamentais e desenham as instituições do Estado.

Tais normas, especialmente depois do século XIX, passam a declarar explicitamente a existência de determinados Direitos Humanos, dos quais são titulares todos os homens e mulheres, direitos estes criados pela soberania popular, seu único fundamento. Os direitos humanos deixam de ter um fundamento transcendente para serem vistos como produto da vontade do povo. Por serem resultantes da soberania popular, eles devem servir de limite para a gestão das coisas do Estado, o exercício do governo e, principalmente, para o exercício da soberania popular ela mesma.

Esse é um dos pontos mais interessantes e mais problemáticos da tradição do constitucionalismo que será criticado, por exemplo, por Antonio Negri (2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.) no seu livro essencial O Poder Constituinte. A gramática institucional do constitucionalismo atribui aos textos constitucionais o poder de disciplinar a estrutura, o governo do Estado, além de impor limites à soberania popular contra o poder das maiorias, em proteção das minorias. Nesse sentido, a Constituição resulta da vontade do povo, mas serve também para disciplinar e limitar a atividade política protagonizada pelo povo.

Essa autolimitação, tradicionalmente, exige um momento de manifestação solene. Não estamos diante de qualquer manifestação da soberania popular, mas de um momento especial em que o poder constituinte cria uma Constituição que não poderá ser alterada a qualquer momento e sob qualquer pretexto. Espera-se desse momento constituinte originário que ele seja marcado por um alto grau formalidade e legitimidade, seja para criar, seja para alterar significativamente uma Constituição já existente.

A Constituição, na tradição ocidental, costuma disciplinar o funcionamento do Estado e do governo, estabelecendo qual deva ser o desenho dos poderes e as regras para a ocupação de seus postos. Criar mecanismos de escolha dos representantes da sociedade para criar as leis no Parlamento, criar instrumentos para gerir o Estado de acordo as leis pelo Executivo e construir um aparato para solucionar os conflitos sociais com fundamento nas leis pelo Judiciário são momentos essenciais para traçar os limites e o contexto em que podem ser dar os conflitos políticos.

Em momentos de acirramento do conflito político, todos esses limites tendem a ser postos em xeque e, com eles, determinada maneira de definir e separar os poderes. Por exemplo, em determinado momento histórico, os conflitos podem não seguir os canais considerados “normais”, produzindo o fenômeno que alguns estudiosos chamam de “judicialização da política”. Os conflitos podem também promover verdadeiras transformações institucionais, cujo resultado pode ser um novo desenho da separação de poderes e do sentido dos direitos fundamentais. Ainda, os conflitos políticos podem ameaçar romper as instituições, pondo em risco sua sobrevivência em favor da deflagração de um processo revolucionário.

Redesenhar as instituições fora da solenidade do momento constituinte, por exemplo, sem que o Congresso se manifeste por via de emendas constitucionais, será sempre objeto de questionamentos quanto à sua legitimidade. No entanto, tal forma de mudança constitucional parece estar se tornando a regra geral; o mecanismo mais comum para a redefinição do desenho jurídico dos conflitos políticos, ao menos em algumas democracias. Por exemplo, Bruce Ackermann (2006ACKERMANN, Bruce. Nós, o Povo Soberano: fundamentos do Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.) tem mostrado, em seus alentados volumes sobre a história constitucional dos Estados Unidos, intitulados Nós, o Povo, que este país tem seguido um padrão informal de transformação institucional.

Segundo Ackermann (2006ACKERMANN, Bruce. Nós, o Povo Soberano: fundamentos do Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.), nos Estados Unidos, um Executivo superpoderoso costuma praticar, de tempos em tempos, atos claramente inconstitucionais, os quais tendem a ser legalizados logo adiante, por exemplo, pela Suprema Corte. No ciclo constitucional seguinte, tais transformações são trivializadas e o que era inconstitucional se torna constitucional até que o conflito social se acirre novamente e um novo ciclo de inconstitucionalidades surja e seja normalizado, ou melhor, seja “legalizado”.

Em sentido semelhante, no que diz respeito ao Brasil, meu trabalho pessoal em Como Decidem as Cortes tem evidenciado que a assim denominada “judicialização da política” pode ser vista, de um outro ponto de vista, como uma transformação em nosso desenho institucional, que passa a atribuir grande poder legislativo ao poder judiciário (RODRIGUEZ, 2013aRODRIGUEZ, José Rodrigo. Como Decidem as Cortes: para uma Crítica do Direito (Brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013a.).

Essa transformação, resultante do transbordamento dos conflitos sociais de seus canais usuais, considerados “normais” pelo senso comum, teve como resultado fazer com que o Poder Judiciário passasse a falar diretamente com a sociedade, desenvolvendo mecanismos institucionais para tal finalidade. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal hoje realiza, regularmente, audiências públicas e as aceita com liberalidade “amicus curiae” elaborados por diversos interessados e interessadas em opinar nos processos em julgamento.

Antonio Negri (2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.), em seu mencionado livro, parece advogar por uma condenação profunda e radical da tradição constitucionalista. Sua análise mostra que essa tradição, responsável por elaborar uma teoria jurídica do poder constituinte, foi edificada com a finalidade expressa de evitar a revolução, ou seja, domesticar qualquer transformação mais radical das instituições e da vida social. Por isso mesmo, essa tradição sempre olhou o poder do povo, no que ele tem de transformador, com a mais extrema desconfiança.

Não é por outra razão que a expressão desse poder na gramática constitucional liberal está cercada de uma série de limites e requisitos. O povo pode se manifestar, mas sempre sujeito a muitos limites e mecanismos de controle que pretendem conter a força constituinte do povo, a qual seria capaz de transformar completamente qualquer realidade político-institucional. Nesse sentido, toda essa tradição, para Negri (2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.), deveria ser vista como essencialmente conservadora e antirrevolucionária.

Este texto tem como objetivo pensar todos esses problemas tendo em vista uma reflexão sobre um eventual caráter crítico da tradição constitucionalista. Para realizar tal tarefa, o artigo apresentará, em sua primeira parte, as características gerais do constitucionalismo, articulando os conceitos polares de Constituição e soberania popular com os conceitos de direitos humanos, Estado e governo. Nesse momento da exposição, a função e os limites da Constituição serão apresentados como expressão e limite à soberania popular, em especial as aporias que essa configuração acarreta para a transformação política.

A seguir, em sua segunda parte, o texto apresentará a denúncia do constitucionalismo por Antonio Negri em toda a sua radicalidade; um autor que parece sugerir que a única maneira de refletir sobre qualquer forma de transformação social mais radical é deixando essa tradição de lado. Finalmente, em sua parte final, a título de conclusão, o texto trará uma solução diferente para o dilema da transformação institucional com base na obra de Franz Neumann (2009NEUMANN, Franz. Behemoth: the Structure and Practice of National Socialism, 1933-1944. Chicago: Ivan R. Dee, 2009.; 2013), evidenciando seu caráter crítico-normativo e interno à tradição constitucional vigente.

Essa parte do texto mostrará que a crítica de Negri (2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.) ao constitucionalismo ignora seu cerne normativo, o qual permite conferir um sentido crítico para essa tradição. Afinal, para os juristas críticos, não se trata apenas de descrever a transformação social e seus obstáculos em todas as suas modalidades, mas sim de pensar formas de transformação social que afastem o arbítrio e a violência e favoreçam a autonomia humana.

Após o advento do nacional-socialismo, para Neumann, o projeto constitucional ganha cada vez mais importância e centralidade para a teoria crítica e para a política do ocidente. Como será visto, em O Império do Direito (NEUMANN, 2013NEUMANN, Franz. O Império do Direito: Teoria Política e Sistema Jurídico na Sociedade Moderna. São Paulo: Quartier Latin, 2013.) e em Behemoth (NEUMANN, 2009), que trazem uma análise detalhada do nacional-socialismo, Franz Neumann mostra como a transformação social radical, sem mais, não é positiva em si mesma. Ela pode assumir uma face monstruosa e totalitária que resulta na negação dos direitos humanos e do estado de direito como um todo, abrindo espaço para o assassinato em massa de um grande contingente de pessoas.

Por isso mesmo, a valorização da transformação social em si mesma, sem que se dê a ela um sentido claramente emancipatório, especialmente depois do nacional-socialismo, tem um alto potencial regressivo. Afinal, como será visto, para evitar um desfecho monstruoso para qualquer processo de mudança social, Franz Neumann mostra ser necessário defender normativamente a sua conformação à gramática profunda do constitucionalismo, buscando realizar, contra o totalitarismo, o projeto de contenção de uma certa transformação social que se ponha em confronto com a forma estado de direito.

2 O Sentido do Constitucionalismo

Como mostrou o historiador Hans Dippel, a Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776, um dos textos centrais de revolução norte-americana, consolidou pela primeira vez o vocabulário do constitucionalismo político contemporâneo em um documento organizado. Nenhuma das ideias presentes na declaração, diz Dippel (2007, p. 10), foi inventada na ocasião, mas sua articulação em um documento coerente foi um fato inédito.

Não por acaso, a Declaração da Virgínia influenciou todos os documentos constitucionais que se seguiram a ela nos 200 anos seguintes. Com variações, é claro, dando maior ou menor importância a um ou outro deles, ou transformando alguns deles em mera declaração de princípios, o vocabulário estabelecido na ocasião passou a marcar a política contemporânea desde então.

O documento teve como objetivo central declarar uma série de direitos de titularidade de todas as pessoas, os quais deveriam servir de fundamento para o governo. Uma “declaração de direitos” feita pelos “representantes do povo”, que, por sua vez, estavam reunidos em uma “convenção plena e livre” e não em qualquer assembleia inespecífica. Os direitos declarados pertenciam ao povo e à sua descendência e não apenas aos participantes da convenção, direitos estes que serviriam “de base e fundamento do governo”, uma afirmação até então desconhecida da tradição política (DIPPEL, 2007DIPPEL, Horst. História do Constitucionalismo Moderno: novas perspectivas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007., p. 6-7).

O direito natural, como afirmado no documento, não se limitou a conferir certos direitos e deveres, inerentes à natureza humana, de cujo exercício nenhum pacto poderia vir a privar ou desapossar no futuro. Esses direitos foram declarados como nascidos da vontade do povo, como estabelecidos por essa vontade, pois, afinal, “todo o poder emana do povo”. Ao fazer tal afirmação, a Declaração de Direitos da Virgínia proclamou ao mundo a soberania popular, os princípios universais e os direitos inerentes à condição humana, declarados em uma constituição escrita como “a base e o fundamento do governo” (DIPPEL, 2007DIPPEL, Horst. História do Constitucionalismo Moderno: novas perspectivas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007., p. 7).

Pode-se afirmar, portanto, com Dippel (2007DIPPEL, Horst. História do Constitucionalismo Moderno: novas perspectivas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007., p. 10), que essa declaração estabeleceu as dez características centrais da tradição do constitucionalismo, quais sejam: (1) soberania popular; (2) direitos humanos; (3) governo representativo; (4) supremacia da constituição; (5) separação de poderes; (6) governo limitado; (7) responsabilidade e possibilidade de controlar o governo; (8) imparcialidade e independência dos tribunais; (9) direito de reformar o governo; (10) direito de reformar a Constituição.

A Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada em 1789, foi influenciada por esse vocabulário, adotando a racionalidade do constitucionalismo presente na Declaração da Virgínia e em outros textos da revolução norte-americana. O texto da Declaração Francesa começa fazendo referência aos representantes do povo, aos direitos humanos, aos princípios universais e à soberania popular, presente em seu famoso artigo 16: “Uma sociedade onde a garantia dos direitos não for assegurada e a separação dos poderes estabelecida não tem constituição” (DIPPEL, 2007DIPPEL, Horst. História do Constitucionalismo Moderno: novas perspectivas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007., p. 15).

A experiência constitucional francesa é importante também por apresentar, pela primeira vez, a criação de “máscaras constitucionais”, como afirma Dippel (2007DIPPEL, Horst. História do Constitucionalismo Moderno: novas perspectivas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007., p. 18) que tinham como propósito ocultar a concentração de poder. Nesse sentido, a Constituição do ano VIII (1799) concentrou todo o poder nas mãos do Primeiro Cônsul, deixando de lado toda a construção político-institucional do constitucionalismo nascente. A necessidade de adotar uma “fachada constitucional” serviu de modelo para os regimes autoritários desde então, inclusive aqueles estabelecidos no século XX, evidenciando a força dessa linguagem para a organização de política.

O surgimento dessas declarações de direitos e, logo a seguir, de Constituições escritas, que incluíam capítulos destinados a declarar direitos, definir a estrutura e o modo de funcionamento do Estado e estabelecer limites para o governo, é resultado do processo de positivação dos direitos, surgido a par da consolidação dos Estados nacionais como protagonistas da política moderna e contemporânea. Com efeito, um dos elementos do processo de formação dos Estados foi a concentração do poder de dizer o direito em suas mãos, poder este que, na Idade Média, se encontrava disperso em um pluralismo de fontes de direito e de jurisdições.

Como mostra António Manuel Hespanha (2012HESPANHA, António Manuel. Cultura Política Européia: Síntese de um Milénio. Coimbra: Almedina, 2012., p. 171-175) em Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um Milénio, o direito da Idade Média era marcado pela presença de cortes e costumes locais, regras e tribunais eclesiásticos, normas e juízes dos Reinos e Impérios, todas convivendo, nem sempre em harmonia, sendo comuns a sobreposição de competências e o conflito entre normas de origens diferentes. Esse pluralismo de fontes e de jurisdições transformava o raciocínio jurídico, de fato, em uma técnica destinada a lidar com problemas jurídicos sem quaisquer pretensões sistemáticas.

O processo de organização e sistematização do direito, que culminou com a criação dos Códigos e Constituições e com a concentração do poder de dizer o direito nas mãos do Estado, é um dos resultados da ascensão da burguesia e dos pensadores iluministas. A afirmação da lei como principal fonte de direito, com a eliminação do poder dos costumes e do direito da Igreja em seu papel de regular a vida das sociedades, transforma a reflexão e a aplicação do direito em um raciocínio centrado no texto das leis. Trata-se agora de procurar nas leis aquela mais adequada para solucionar determinada controvérsia e simplesmente aplicá-la ao caso concreto.

Ora, esse processo de concentração de poder nas mãos do Estado faz com que sua vontade possa dar lugar a abusos. Afinal, não existem mais limites naturais, transcendentais para o conteúdo das leis, que podem tornar lícito ou ilícito todo e qualquer comportamento. Nesse sentido, a positivação do direito promove, de fato, a separação relativa entre direito e moral. Afinal, uma conduta que é considerada hoje ilícita ou inconstitucional pode deixar de sê-lo amanhã, bastando para tanto que as leis sejam modificadas.

A inexistência de limites de fato para a vontade do Estado pode resultar na subordinação das pessoas à vontade de um ditador ou de uma minoria que não encontrará, portanto, entraves para a sua dominação. O surgimento da tradição constitucionalista é, justamente, uma reação a esse problema. As declarações de direitos humanos em textos escritos, que também desenham as instituições do Estado e afirmam a centralidade da soberania popular, visam a criar entraves reais, obrigatórios, coercitivos, para a atuação do Estado.

Alguns críticos do constitucionalismo afirmam que essa tradição tende a bloquear a política ao tentar submetê-la completamente ao direito, tornando impossível fazer escolhas que não estejam detalhadamente previstas nas leis. E como a velocidade do processo de modificar as leis não costuma ser capaz de responder adequadamente à dinâmica das transformações sociais, esse modo de organizar a política tenderia a bloquear ações e mudanças constitucionais necessárias; também a adaptação do Estado a condições especiais, emergenciais ou simplesmente novas.

Em um ensaio extremamente interessante, A Constituição federal: uma barreira para a política?, Dieter Grimm (2006GRIMM, Dieter. A Constituição federal: Uma Barreira para a Política? In: GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Belo Horizonte: Del Rey , 2006. p. 125-135., p. 125-135), jurista e juiz alemão, afirma que a função da Constituição alemã é sim bloquear a política, mas não qualquer política, apenas a política que não esteja de acordo com o projeto constitucional. Seu texto realiza uma análise sumária, mas radical, do projeto da constituição alemã, expondo as características centrais do federalismo alemão e de seu sistema partidário com a finalidade de evidenciar em que sentido o texto procura conformar o processo político.

Mas é preciso considerar que o sentido do projeto constitucional pode estar em disputa entre as forças sociais. Nem sempre é fácil, exceto quando nos situamos em um nível muito abstrato de análise, definir o sentido das normas constitucionais. Podemos todos e todas concordar que a Constituição protege a liberdade de expressão, mas para além dessa afirmação, qual seria o sentido da liberdade de expressão nos diversos casos concretos?

Ademais, pode haver demandas sociais que excedam os limites do projeto constitucional e coloquem em questão o texto constitucional, impondo mudanças profundas no direito positivado. Constituições costumam prever mecanismos de transformação constitucional, por exemplo, as emendas; ou admitir mudanças no sentido de seu texto por meio do controle de constitucionalidade realizado por Cortes Supremas. No entanto, críticos como Negri (2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.) consideram que toda a construção constitucional é conservadora ao buscar impedir a plena compreensão e manifestação da soberania popular sob a forma de poder constituinte.

A história do constitucionalismo, como afirma Dippel (2007DIPPEL, Horst. História do Constitucionalismo Moderno: novas perspectivas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.), de fato, dá notícia de vários momentos em que a garantia de algum dos elementos do constitucionalismo ficou comprometida: soberania popular, direitos humanos, controle do governo, entre outros. Mas será que essas limitações episódicas comprometem essa tradição como um todo, tornando-a incompatível com qualquer transformação institucional mais radical? Nesse sentido, uma transformação radical só poderia ocorrer deixando de lado a gramática política do constitucionalismo, tanto como instrumento de análise, quanto como forma de organizar a política real?

3 O Constitucionalismo como Dominação

É o que parece sugerir o livro de Antonio Negri (2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.), O Poder Constituinte. Segundo Negri (2015), o poder constituinte é uma força ilimitada, “anômala”, que está necessariamente ligada à ideia de revolução. Os poderes constituídos do constitucionalismo procuram normalizar esse poder com o objetivo de conter seu potencial de promover mudanças sociais. Para realizar esse objetivo, tais poderes utilizam as normas jurídicas, cuja fonte é, justamente, o poder que tais normas pretendem conter (NEGRI, 2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015., p. 1).

Partindo desse pressuposto circular, cabe notar que a ideia mesma de soberania popular já seria uma forma de conter a força do poder constituinte, que se caracterizaria, justamente, por transbordar qualquer limite ou barreira jurídica. Ao afirmar a soberania popular como princípio, o constitucionalismo já revelaria, assim, seu caráter essencialmente conservador.

Negri (2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.) se põe, em seguida, a analisar em detalhes a tradição do pensamento jurídico sobre o poder constituinte, em especial as obras de Georg Jellinek e de Hans Kelsen. Para Jellinek (apudNEGRI, 2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.), o poder constituinte nasce da autolimitação do poder, que se dobra sobre si mesmo para criar uma disciplina para a política. No mesmo sentido, Kelsen (apud NEGRI, 2015) situa o poder constituinte fora do direito, atribuindo ao direito um fundamento diverso, a saber, a norma fundamental. Como se vê, diz Negri (2015, p. 5-6), os dois autores situam o poder constituinte fora do direito e condicionam a existência do estado de direito à sua supressão ou sua absorção à normalidade institucional.

Outros, segue Negri (2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.), consideram o poder constituinte como interno ao sistema constitucional, como os autores que pensam a política como procedimento, por exemplo, John Rawls. Ferdinand Lassale e Hermann Heller (apudNEGRI, 2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.), por sua vez, conceberam o poder constituinte de forma imanente. O primeiro afirmou que a Constituição deve se adequar à realidade material em uma dinâmica de mudança que é instaurada pelo poder constituinte, prévio e formador da ordem constitucional. Já Hermann Heller (apud NEGRI, 2015, p. 6-7) afirma que o poder constituinte é imanente à estrutura do Estado, funcionando como motor endógeno da mudança constitucional.

Finalmente, um terceiro grupo de autores pensa o poder constituinte como simultâneo, coexistente e sincrônico à ordem constitucional. Por exemplo Max Weber, para Negri (2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.), pensa o poder constituinte como situado entre o poder carismático e o poder racional-legal. O poder constituinte é inovador como o poder carismático, instituindo o direito positivo, o qual normaliza o funcionamento da sociedade. Nesse sentido, ele estaria situado na passagem da irracionalidade para a racionalidade, na correlação entre a força inovadora do movimento social e a sua formalização no direito. Na esteira de Weber, Carl Schmitt (apudNEGRI, 2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015., 8) pensa o elemento formal do direito como característico da constituição e o poder constituinte como princípio vital que promove a inovação, cujo desenvolvimento resulta na ordem jurídica.

Negri (2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.) considera que todas essas formulações do poder constituinte falham em captar o seu sentido, ao concebê-lo a partir da linguagem do direito público, mais especificamente, da gramática do constitucionalismo. O primeiro grupo o vê como força exterior que o direito capta, o segundo grupo o vê como imanente à dinâmica normativa e, finalmente, o terceiro, como simultâneo à evolução do direito, mas determinado por ela. Nas três versões, o destino do poder constituinte é ser transformado em poder constituído; é ser conformado pela ordem constitucional, perdendo a sua força disruptiva, seu poder de transformação (NEGRI, 2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015., p. 10).

A conversão do poder constituinte em elemento integrante do sistema constitucional, para Negri (2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.), dentro dos limites do estado de direito, nega a sua natureza mais essencial. O poder constituinte aponta para o porvir e, por isso, não pode ser reduzido ao direito. Na verdade, Negri (2015) procura mostrar como pensar esse poder a partir das categorias do constitucionalismo faz com que seja impossível compreendê-lo adequadamente, sendo necessário mudar o eixo de análise para abordá-lo como fenômeno político propriamente dito.

4 Para um Constitucionalismo Crítico

A possibilidade de transformar as instituições por meio de uma revolução que acabe com a exploração do trabalho é marca da tradição marxista. A denúncia de Marx do caráter conservador do Estado liberal na visão de Hegel; um Estado que pretende promover a conciliação entre as classes sociais, mantendo oculta a exploração econômica, permitida pela propriedade privada dos meios de produção, faz com que o pensamento marxista tenda a olhar Estado e o direito como instrumentos de dominação à serviço das classes dominantes. Esse modo de ver o direito não deixa alternativa: acabar com a dominação do trabalho sobre o capital significa destruir o estado de direito, forma institucional comprometida com a dominação burguesa.

Autor da primeira metade do século passado e analista de primeira hora do fenômeno nacional-socialista, Franz Neumann (2013NEUMANN, Franz. O Império do Direito: Teoria Política e Sistema Jurídico na Sociedade Moderna. São Paulo: Quartier Latin, 2013.) traz elementos para relativizar esta visão. Sua obra procura mostrar o potencial emancipatório do estado de direito, permitindo que pensemos a tradição constitucionalista de maneira crítica. Nesse sentido, seu livro O Império do Direito , promove a reconstrução teórica de toda a tradição jurídica ocidental com a finalidade de evidenciar seu cerne progressista, qual seja, a sua capacidade de fazer com que o poder seja obrigado a se justificar perante os cidadãos e cidadãs (NEUMANN, 2013NEUMANN, Franz. O Império do Direito: Teoria Política e Sistema Jurídico na Sociedade Moderna. São Paulo: Quartier Latin, 2013.).

Essa característica do estado de direito nasce, justamente, com as revoluções burguesas e suas declarações de direitos humanos. A afirmação da igualdade de todos perante o poder e a exigência de eliminação de qualquer forma de privilégio, faz com que o Estado seja obrigado a se justificar perante todos os cidadãos e cidadãs. Nenhuma forma de dominação de uma maioria por uma minoria pode ser legítima, natural, inquestionável quando se consideram os homens e as mulheres como iguais.

O domínio da aristocracia sobre o restante da sociedade, o domínio dos clérigos sobre a cristandade advinha de características especiais atribuídas a esses dois grupos. A justificativa para obedecer a seu poder estava fundada na vontade de Deus ou na tradição.

Ora, em uma situação de igualdade, não pode haver outro motivo para obedecer ao poder senão a vontade dos homens e das mulheres, ou seja, a soberania popular. Entre o poder do Estado, de um lado, e os cidadãos, de outro, não há relação de superioridade ou alguma marca sagrada e sim um ato de consentimento. Um ato de consentimento que precisa ser universal, ou seja, precisa incluir todos os membros da sociedade para que seja considerado legítimo.

Como já foi exposto na primeira parte deste texto, com o advento do constitucionalismo, o fundamento de legitimidade do poder passa a ser a soberania popular, que passa a produzir textos escritos, declarações de direitos e constituições que pretendem representar os interesses de toda a sociedade, de todos os homens e mulheres, sem admitir nenhuma espécie de privilégio.

A necessidade de justificação do poder perante a sociedade, elemento essencial dessa tradição política, abre espaço para que os agentes sociais promovam modificações importantes nas instituições formais. Se a constituição deve abarcar todos os interesses, se ela deve levar em conta o ponto de vista de todos os cidadãos e cidadãs, se ela se apresenta como fundamento de legitimidade da universalidade dos interesses, é de esperar que novas demandas sociais sejam continuamente incorporadas pelas instituições formais (NEUMANN, 2013NEUMANN, Franz. O Império do Direito: Teoria Política e Sistema Jurídico na Sociedade Moderna. São Paulo: Quartier Latin, 2013., p. 39).

Foi justamente com esse fundamento que a classe operária e todos os movimentos sociais que se seguiram passaram a reivindicar direitos, buscando ampliar a lista de direitos humanos fundamentais. Em determinado momento histórico, a desigualdade econômica passou a ser percebida como opressão, também as desigualdades de gênero e de raça. Afinal, tais desigualdades estabelecem relações de privilégio em que uma parcela da sociedade goza de um patamar diferente de direitos e de poder em relação a outra.

Todas essas opressões foram sendo traduzidas para a linguagem do constitucionalismo e se tornaram reivindicações de direitos, justamente, em nome da igualdade prometida pela ideia de estado de direito, ou seja, pela ideia liberal de constituição. Nesse sentido, mostra Neumann que a tradição do constitucionalismo pode ser vista como um mecanismo capaz de abrir espaço para reivindicações de novos direitos. Sendo assim, ele é um elemento de perturbação do desenrolar normal da política e não apenas uma forma destinada a conter o poder transformador da soberania popular (RODRIGUEZ, 2013bRODRIGUEZ, José Rodrigo. A desestabilização do status quo: direito e lutas sociais. Novos Estudos CEBRAP, [S.l.], n. 96, p. 49-66, julho, 2013b.).

Mesmo assim, a questão posta por Negri (2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.) permanece. A visão jurídica do que ele chama de poder constituinte, essa capacidade de inovação, de transformação, no limite, de destruição institucional em nome de uma nova ordem política e de uma vida diferente; de um mundo novo e mais justo, não restaria, de fato, domesticado pelo constitucionalismo? Se é verdade que é possível promover mudanças por esta via, não seriam elas apenas mudanças parciais, desimportantes, incapazes de modificar radicalmente as instituições e a vida?

Nesse ponto da argumentação, ganha centralidade a obra Behemoth e a análise da ascensão do nacional-socialismo feita por Neumann em O Império do Direito. Logo no prefácio de O Império do Direito, nosso autor caracteriza a tradição jurídica ocidental como uma faca de dois gumes no que diz respeito à proteção dos interesses da burguesia (NEUMANN, 2013NEUMANN, Franz. O Império do Direito: Teoria Política e Sistema Jurídico na Sociedade Moderna. São Paulo: Quartier Latin, 2013., p. 40). A afirmação da universalidade serviu a essa classe até o momento em que seus interesses se confundiam como o universal. Proteção de direitos individuais, proteção da propriedade privada, controle do governo pela sociedade, liberdade de contratar: enquanto era este o conteúdo das constituições, o constitucionalismo liberal funcionou sem contestação.

Mas no momento em que a classe operária conquistou espaço no Parlamento e começou a ditar o conteúdo das leis, o constitucionalismo passou a ser contestado, em especial no que diz respeito aos limites que deveriam ser impostos à soberania popular. O direito ocidental e seu mecanismo de produção de reivindicações de novos direitos começam a se tornar incômodos para os interesses da burguesia (NEUMANN, 2013NEUMANN, Franz. O Império do Direito: Teoria Política e Sistema Jurídico na Sociedade Moderna. São Paulo: Quartier Latin, 2013., p. 40).

Conceitos como “função social da propriedade”, a criação de mecanismos de controle da concorrência e o surgimento de direitos sociais, em especial o direito o trabalho, põem em xeque a liberdade de contratar e o direito de propriedades no sentido burguês, institutos centrais para o funcionamento do mercado livre. Afinal, determinados contratos passam a ser proibidos porque ameaçam a livre concorrência ou porque não cumprem um patamar mínimo de direitos sociais e a livre disposição sobre a propriedade passa a ser limitada pelo interesse público (RODRIGUEZ, 2013bRODRIGUEZ, José Rodrigo. A desestabilização do status quo: direito e lutas sociais. Novos Estudos CEBRAP, [S.l.], n. 96, p. 49-66, julho, 2013b.).

Essa incômoda proliferação de direitos, os quais passam a ameaçar o sentido tradicional de propriedade privada e a questionar a hierarquia entre trabalho e capital, foi um dos fatores que levou à perda de apoio do estado de direito. O processo de ascensão e consolidação do nazismo foi certamente marcado por fatores variados, de natureza econômica, política, social e psicológica. No entanto, entre os fatores que levaram à sua ascensão, está o combate ao estado de direito e a defesa dos direitos no sentido liberal-burguês, contra o texto da Constituição de Weimar.

Mesmo antes do advento do nazismo, em um texto fundamental, O Ideal Social das Cortes do Reich, Otto Kahn-Freund (1981) mostrou como os juízes deixaram de aplicar o texto da Constituição de Weimar, negando validade ao capítulo dos direitos sociais em nome da proteção dos direitos individuais. Uma parte significativa dos juízes das Cortes do Reich simplesmente negava constitucionalidade a uma parte do texto da Constituição, afirmando que o capítulo dos direitos sociais estava subordinado aos direitos humanos individuais, em um desrespeito explícito ao texto aprovado pela Assembleia Constituinte (KAHN-FREUND, 1981KAHN-FREUND, Otto. The Social Ideal of the Reich Labour Court: A Critical Examination of the Practice of the Reich Labour Court. In: KANH-FREUND, O.; LEWIS, R.; CLARK, J. (ed.). Labour Law and Politics in the Weimar Republic. Oxford: Blackwell, 1981. p. 108-161.).

O nacional-socialismo, na condição de regime político, diz Neumann (2009NEUMANN, Franz. Behemoth: the Structure and Practice of National Socialism, 1933-1944. Chicago: Ivan R. Dee, 2009.), se caracterizou pela destruição da tradição constitucionalista como a conhecemos. Uma das características centrais desse sistema foi, justamente, a eliminação da tensão existente entre Estado e sociedade e a criação de uma suposta comunidade de interesses entre todos os alemães, representados pela ideia de nação. A ideia de nação, mostra Neumann (2009, p. 98), substitui a ideia de constituição como fundamento do poder, deixando de lado uma noção racional e aberta à transformação social para adotar uma noção irracional e avessa a qualquer tipo de contestação.

Todo o direito nacional-socialista foi marcado por essa noção. Por exemplo, o direito penal passou a considerar como crime todo ato que contrariasse os interesses do Reich, abrindo espaço para uma ampla manifestação da subjetividade dos juízes, os quais eram recrutados e disciplinados para seguir as regras fixadas pela elite do poder. Sob o nacional-socialismo, a tensão entre sociedade e Estado, entre constituição e soberania popular, é totalmente desarmada em nome da afirmação dos interesses da nação, considerada a expressão maior da unidade do povo alemão.

Foi justamente a destruição da tradição do constitucionalismo pelo regime nacional socialista, mesmo que esse regime tenha mantido vigente, como letra morta, a “máscara constitucional” da Constituição de Weimar, que levou Franz Neumann a repensar o direito e suas possibilidades críticas em contextos de desigualdade. Primeiro, diante dos riscos levantados pela barbárie nazista ao arrepio da tradição constitucionalista, valeria a pena simplesmente abrir mão dessa tradição em nome da transformação social? E, nesse sentido, a visão jurídica do poder constituinte, como quer Negri (2015NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.), não poderia ser lida como um projeto emancipatório e não como uma incapacidade de captar as características essenciais a esse poder?

Nesse sentido, diante dos riscos da barbárie nazista, que não eram conhecidos por Marx e pela tradição política ocidental até então, não seria o caso de apostar na gramática do constitucionalismo como estratégia de transformação social, radicalizando suas possibilidades emancipatórias? Valeria a pena abrir mão da proteção dos direitos humanos e do controle do governo, por exemplo, em nome da edificação de uma nova ordem política? Afinal, não existe garantia de que a transformação que vá eclodir não seja tão monstruosa quanto o regime nazista.

5 Conclusão

Ao argumento anterior, pode-se acrescentar o seguinte, agora recorrendo às análises de Wiliam Scheuermann (2001SCHEUERMANN, William. Franz Neumann - Legal Theorist of Globalization? Constellations, [S.l.], v. 8, Issue 4, p. 503-520, 2001.) em seu texto Franz Neumann, um Jurista da Globalização?, o constitucionalismo tem perdido poder diante das transformações promovidas pela globalização. Os cidadãos e as cidadãs dos Estados nacionais têm cada vez menos controle sobre suas próprias vidas, pois não tem mais poder de participar de uma série de decisões que os afetam nos mais variados campos.

Por exemplo, a ação das empresas transnacionais é cada vez menos sujeita ao controle dos Estados nacionais, afinal, estas empresas podem mover seu parque produtivo para qualquer lugar em qualquer momento, tirando dos Estados a força de cobrar tributos e impor o cumprimento de direitos trabalhistas. Da mesma maneira, a diminuição do controle sobre a circulação de capitais no mundo tem concentrado poder nas mãos dos grandes investidores, que podem impor suas condições para financiar o déficit crescente dos Estados nacionais, causado, em grande parte, pela dificuldade de cobrar impostos em um ambiente globalizado.

Como se pode ver, uma boa parte do processo de globalização se caracteriza por tentar sabotar o mecanismo de criação de direitos inscrito na tradição do constitucionalismo ocidental, negando o poder da soberania popular. Diante da dificuldade de criar instituições internacionais e transnacionais capazes de impor regras a Estados e agentes globais, estão sendo criados espaços de puro arbítrio que evidenciam, por negação, o incomodo poder subversivo do constitucionalismo.

Em um quadro como este, a crítica radical a esta tradição pode terminar por, paradoxalmente, fortalecer os interesses de empresas transnacionais e do capital financeiro para começar, contribuindo para aprofundar um processo de globalização sem controle que faz expandir as zonas de autarquia em detrimento da soberania popular e do respeito aos direitos humanos. Não se trata, é claro, de negar os aspectos positivos da globalização, mas sim de apontar seu caráter autoritário no que ele contribui para suprimir o poder dos homens e mulheres de controlarem a sua própria vida.

Mas Negri poderia insistir e, nesse ponto da exposição, afirmar que, mesmo assim, compactuar com a visão constitucionalista da política é um entrave à nossa imaginação. Não deveríamos ser capazes de conceber uma forma política completamente nova, que não estivesse marcada pelas contradições que apontamos aqui? Não seria necessário estabelecer um zero absoluto, um ponto de partida novo, que nos colocasse fora desse modo de pensar, viver e fazer política? Que nos livrasse da repetição contínua desses mesmos padrões?

Cabe aqui retomar a reflexão de Neumann sobre o nacional-socialismo e reafirmar a importância de seu modelo crítico. É possível dar um salto sobre a própria sombra? Alçar a si mesmo acima da imaginação de nossa época para criar uma política inteiramente nova? Nesse sentido, o novo não irá surgir, como sugere Seyla Benhabib (2006BENHABIB, Seyla. Another Cosmopolitanism. Oxford: Oxford University Press, 2006., p. 48), em uma formulação muito produtiva, das “iterações democráticas” em que a sociedade parece repetir a mesma gramática institucional, mas, na verdade, acrescenta elementos novos que podem promover mudanças ao longo prazo?

Por isso mesmo, ao invés de aguardar uma redenção completa, alimentada por uma imagem muito próxima da salvação cristã, talvez seja mais produtivo examinar as contradições e inovações imanentes à atual gramática da política para encontrar o novo justamente ali, na empiria de um processo que apenas aparentemente repete o que já havia sido dito e repete o que já havia sido feito. Com a vantagem de não abandonar a proteção dos direitos humanos e do controle do governo contra qualquer ato de arbítrio.

No momento atual, por exemplo, ocupações de prédios públicos e escolas ao redor do Brasil parecem ser um bom exemplo dessas iterações democráticas. Se, por um lado, tais ocupações procuram fazer valer direitos sociais já consagrados na Constituição, como o direito à educação e o direito à educação, elas também apontam para um desejo de autogestão, de controle social da vida e do poder, que não se confunde com a tradicional demanda por direitos. Trata-se de reivindicar formas de vida não hierárquicas e autogeridas, socialmente reguladas, como mostra o livro Escolas em Luta (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Marcio M. Escolas de Luta. São Paulo: Veneta, 2016.), retrato em primeira mão dos acontecimentos ocorridos em São Paulo no ano de 2015.

Pode ser que, em um futuro próximo, a reiteração desse tipo de ação coletiva termine por transformar as instituições formais, por exemplo, para alterar o sentido do que significa gerir o Estado, sem romper completamente com a tradição do constitucionalismo, como aliás, ocorreu com a edificação dos Estados de bem-estar social, hoje sob severo ataque por parte de forças interessadas em implementar uma modelo neoliberal de economia. Estados estes que têm sua origem em caixas de auxílio mútuo mantidas pelos sindicatos que foram estatizados e transformados em modelos universais de proteção social.

Referências

  • ACKERMANN, Bruce. Nós, o Povo Soberano: fundamentos do Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
  • BENHABIB, Seyla. Another Cosmopolitanism. Oxford: Oxford University Press, 2006.
  • CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Marcio M. Escolas de Luta. São Paulo: Veneta, 2016.
  • DIPPEL, Horst. História do Constitucionalismo Moderno: novas perspectivas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
  • GRIMM, Dieter. A Constituição federal: Uma Barreira para a Política? In: GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Belo Horizonte: Del Rey , 2006. p. 125-135.
  • HESPANHA, António Manuel. Cultura Política Européia: Síntese de um Milénio. Coimbra: Almedina, 2012.
  • KAHN-FREUND, Otto. The Social Ideal of the Reich Labour Court: A Critical Examination of the Practice of the Reich Labour Court. In: KANH-FREUND, O.; LEWIS, R.; CLARK, J. (ed.). Labour Law and Politics in the Weimar Republic. Oxford: Blackwell, 1981. p. 108-161.
  • NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.
  • NEUMANN, Franz. Behemoth: the Structure and Practice of National Socialism, 1933-1944. Chicago: Ivan R. Dee, 2009.
  • NEUMANN, Franz. O Império do Direito: Teoria Política e Sistema Jurídico na Sociedade Moderna. São Paulo: Quartier Latin, 2013.
  • RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como Decidem as Cortes: para uma Crítica do Direito (Brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013a.
  • RODRIGUEZ, José Rodrigo. A desestabilização do status quo: direito e lutas sociais. Novos Estudos CEBRAP, [S.l], n. 96, p. 49-66, julho, 2013b.
  • SCHEUERMANN, William. Franz Neumann - Legal Theorist of Globalization? Constellations, [S.l], v. 8, Issue 4, p. 503-520, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2019
  • Revisado
    24 Mar 2020
  • Aceito
    02 Abr 2020
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