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O Supremo Soberano no Estado de Exceção: a (des)aplicação do direito pelo STF no âmbito do Inquérito das “Fake News” (Inquérito n. 4.781)

The Supreme Sovereign in the State of Exemption: the (un)application of the law by the Brazilian Supreme Court in the “Fake News” Inquiry (Inquiry n. 4.781)

Resumo

Em 2019, o Presidente do STF instaurou uma investigação sigilosa para apurar supostas práticas de divulgação de notícias fraudulentas e infrações cometidas contra a Corte, seus membros e familiares. No curso desse Inquérito (n. 4.781), foram proferidas decisões marcadamente inconstitucionais que censuraram veículos da imprensa, tolheram liberdades e garantias processuais de cidadãos brasileiros e materializaram toda a sorte de arbitrariedades judiciais, sempre sob a justificativa de resguardo da ordem constitucional. Diante desse quadro, o artigo pretende verificar se é possível estabelecer uma relação entre essas condutas da Suprema Corte brasileira e a teoria do estado de exceção de Giorgio Agamben. Para tanto, o trabalho realiza uma revisão bibliográfica inicial e, em seguida, questiona a constitucionalidade das decisões judiciais proferidas pela Corte. Ao final, conclui-se que há a caracterização de alguns elementos constitutivos do estado de exceção na realidade brasileira.

Palavras-chave:
Giorgio Agamben; Estado de Exceção; Supremo Tribunal Federal; Inquérito n 4;781; Fake News

Abstract

In 2019, the Chief Justice of the STF initiated a procedure to investigate alleged practices of disclosing fraudulent news and infractions committed against the Court, its members and their relatives. In the course of this secret Inquiry (no. 4,781), many unconstitutional decisions were enacted, censoring media outlets, restricting freedoms and procedural guarantees of Brazilian citizens, and materializing all sorts of judicial arbitrariness, always under the justification of safeguarding the constitutional order. In view of this situation, this paper intends to verify whether it is possible to establish a relationship between these institutional behaviors of the Brazilian Supreme Court and Giorgio Agamben’s theory of the state of exception. For this purpose, the work carries out an initial bibliographic review and, afterwards, questions the constitutionality of the judicial decisions rendered by the Court. In the end, it is concluded that there is a characterization of some elements constituting the state of exception in the Brazilian reality.

Keywords:
Giorgio Agamben; State of Exemption; Supremo Tribunal Federal; Inquiry n 4;781; Fake News

1 Introdução

O artigo examina se o Inquérito n. 4.781 (intitulado “Inquérito das Fake News”), instaurado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, em 14 de março de 20191 1 Portaria GP n. 69, de 14 de março de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/comunicado-supremo-tribunal-federal1.pdf. Acesso em: 5 ago. 2019. , para investigação sigilosa de supostas práticas de denunciações caluniosas e ameaças contra a Corte, seus membros e familiares, está inserido em um contexto de “estado de exceção”, no sentido específico do termo desenvolvido pelo filósofo italiano Giorgio Agamben.

A proposta do trabalho é complexa por dois motivos: porque a fluidez ou ductibilidade (ZAGREBELSKY, 1997ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho dúctil. 2. ed. Madrid: Editorial Trotta, 1997.) do direito constitucional dificulta a afirmação de juízos definitivos em matéria hermenêutica, de modo a valorar a incorreção da fundamentação das decisões do STF no curso da investigação, e; porque a própria filosofia de Agamben é, ela mesma, erigida sobre uma intrincada combinação de conceitos elusivos, que apresentam complexidades, indeterminações e paradoxos muitas vezes intangíveis à experiência concreta da práxis jurídica. Nesse sentido, o artigo trilha um caminho duplamente indeterminado.

A metodologia do trabalho consiste em uma revisão bibliográfica inicial, para exposição sucinta da teoria do estado de exceção formulada por Giorgio Agamben, e, posteriormente, em pesquisa empírica para verificar a fundamentação e a inconstitucionalidade das decisões judiciais proferidas no curso Inquérito n. 4.781, bem como o conteúdo de manifestações adjacentes (pareceres da Procuradoria-Geral da República, notas públicas de esclarecimento, petições de partes, matérias jornalísticas etc.). Em seguida, realiza-se um cotejo entre as categorias conceituais desenvolvidas por Agamben e os atos concretos praticados pelo Supremo Tribunal Federal, para verificar a possível identificação destes como atos representativos de um estado de exceção.

Uma última observação introdutória parece ser relevante: o fato de o Inquérito 4.781 ser sigiloso traz alguns obstáculos epistêmicos à elaboração do trabalho, afinal a maior parte dos documentos e informações dos autos se mostram indisponíveis para a análise. Todavia, a própria circunstância de o Inquérito ser sigiloso deve ser entendida como um dado empírico relevante per se. É dizer, o sigilo do inquérito é, em si, uma informação que diz muito sobre a qualificação jurídica (e política) do procedimento instalado pela presidência do Supremo Tribunal Federal.

2 A Teoria do Estado de Exceção de Giorgio Agamben

O pensamento de Giorgio Agamben pode ser descrito de forma panorâmica como uma filosofia da crise. Afinal, a sua denúncia central de que os governos hoje fazem da exceção, um paradigma - “o estado de exceção como paradigma de governo” (AGAMBEN, 2005, p. 9AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.) - parece exprimir algo daquela tão anunciada “crise da democracia”, que muito convenientemente nos permite chamar de exceção tudo aquilo de que discordamos. Mas tal leitura se colocaria apenas no plano da superfície da obra agambeniana.

A ideia de crise é insuficiente dentro do esquema de pensamento de Agamben porque a sua advertência é muito mais profunda. O filósofo alerta que é o próprio nomos do direito - a sua substância - que foi substituído pela anomia - a ausência de nomos. Agora, é exatamente pela suspensão do ordenamento jurídico (estado de anomia) que se tem a sua aplicação, e é isso que virou paradigma dos governos. É exceção tornada regra, anomia tornada nomos! Daí, portanto, que a terminologia de crise, apenas um “um embaraço na marcha regular” das coisas (DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2019DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Crise. Lisboa: Priberam Informática, 1998. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/. Acesso em: 2 out. 2019.), não apreenderia adequadamente o conjunto de fenômenos jurídicos2 2 “À incerteza do conceito corresponde exatamente a incerteza terminológica. O presente estudo se servirá do sintagma “estado de exceção” como um termo técnico para o conjunto coerente dos fenômenos jurídicos que se propõe a definir” (AGAMBEN, 2005, p. 15). tratados pelo autor.

Nesse exato sentido, Guilherme de Andrade Campos Abdalla (2010, p. 120ABDALLA, Guilherme de Andrade Campos. O estado de exceção em Giorgio Agamben - Contribuições ao estuado da relação Direito e Poder. 2010. 224 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.) afirma que “[...] o estado de exceção agambeniano transcende o estado de emergência, o estado de calamidade pública, o estado de guerra e o estado de sítio em sua indeterminação”. É que essas situações de guerra, crise e necessidade, embora possam conter alguns elementos constitutivos excepcionais, estado de exceção não o são, ao menos não no sentido do termo em Agamben. O estado de exceção é outra coisa que não (apenas) essa.

O estado de exceção é, antes, a exceção tornada técnica: “[...] não só sempre se apresenta muito mais como uma técnica de governo do que como uma medida excepcional, mas também deixa aparecer sua natureza de paradigma constitutivo da ordem jurídica” (AGAMBEN, 2005, p. 18AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.).

E é por causa dessa complexidade conceitual, dessa natureza de paradigma constitutivo da ordem jurídica, que Agamben sustentará que o problema central que se apresenta à adequada teorização do “estado de exceção” é uma disputa acerca do locus que lhe cabe no âmbito do direito público (AGAMBEN, 2005, p. 39AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.). Trata-se de fenômeno que existe dentro ou fora da ordem jurídica?

Autores como Hauriou, Santi Romano e Mortati, entendem que o estado de exceção se encontra no âmbito do ordenamento jurídico (para eles, a necessidade é fonte autônoma de direito (AGAMBEN, 2005, p. 38AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.)), enquanto outros, como Hoerni, Ranelletti e Rossiter, entendem que a exceção, por definição, está fora do direito, sendo extrajurídica a necessidade que o funda (AGAMBEN, 2005, p. 38AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.).

Embora essa topografia conceitual seja insuficiente para a adequada teorização do fenômeno que pretende descrever3 3 “A simples oposição topográfica (dentro/fora implícita nessas teorias parece insuficiente para dar conta do fenômeno que deveria explicar. Se o que é próprio do estado de exceção é a suspensão (total ou parcial) do ordenamento jurídico, como poderá essa suspensão ser ainda compreendida na ordem legal? Como pode uma anomia ser inscrita na ordem jurídica? E se, ao contrário, o estado de exceção é apenas uma situação de fato e, enquanto tal, estranha ou contrária à lei; como é possível o ordenamento jurídico ter uma lacuna justamente quanto a uma situação crucial? E qual é o sentido dessa lacuna?” (AGAMBEN, 2005, p. 39). , ela também ajuda a descortinar as suas profundas implicações sobre a realidade de nossas sociedades ditas democráticas, sobretudo em um contexto de estado de exceção que se torna “paradigma de governo”. Essas considerações, afinal, nos impõem a inquietante pergunta: os atos estatais que regem quase todos os aspectos de nossa existência são dotados de juridicidade ou representam uma simples violência praticada sobre nossas vidas?

Antes de tentar responder à pergunta prática, Agamben desenvolverá ainda a fase conceitual, para oferecer sua contribuição fundamental, que terá sido a percepção de que:

[...] o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou a uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam. A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica. (AGAMBEN, 2005, p. 39AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.)

Mas se o estado de exceção existe nessa anomia - no direito suspenso para ser aplicado -, como então compreender qual é/onde está o limiar da indiferença entre as duas searas, jurídica e política, norma e fato? Agamben vai buscar parte da resposta na Teologia Política de Carl Schmitt (2006SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.), em sua tese consagrada segundo a qual soberano “[...] é aquele que decide sobre o estado de exceção [...]” (SCHMITT, 2006, p. 15SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.) - a decisão do soberano é, pois, o que traça esse limiar!

Ocorre que Agamben relerá essa consideração à luz do seu teorizado estado de indeterminação, nestes termos:

[A soberania] não é, então, nem um conceito exclusivamente político, nem uma categoria exclusivamente jurídica, nem uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema do ordenamento jurídico (Kelsen): ela é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão. (AGAMBEN, 2002, p. 35AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 28)

Ou como explica Claudia Honório (2007, p. 98HONÓRIO, Cláudia. Estado de Exceção: estudo de caso. Revista Eletrônica do CEJUR, [S.l.], n. 2, v. 1, n. 2, 2007.):

A soberania está dentro e fora do ordenamento, por isso não pode ser rotulada apenas como jurídica, ou apenas não jurídica. A decisão soberana marca um lugar de indistinção entre o exterior e o interior; o estado de exceção traça um limite - indefinido - entre o caos e a normalidade, a anomia e a ordem. O lugar da soberania é uma zona de indeterminação.

Agamben afirmará, assim, que o soberano vive um oxímoro êxtase-pertencimento, que se opera exatamente nas cesuras abertas no corpo do direito, as quais, “[...] pela sua articulação e oposição [...]”, permitem que “[...] a máquina do direito funcione” (AGAMBEN, 2005, p. 57AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.). Em outras palavras, no vazio deixado entre as cesuras da norma e da decisão, das normas de direito e das normas de aplicação do direito4 4 “O conceito de aplicação é certamente uma das categorias mais problemáticas da teoria jurídica, e não apenas dela. A questão foi mal colocada devido à referência à doutrina kantiana do juízo enquanto faculdade de pensar o particular como contido no geral. A aplicação de uma norma seria, assim, um caso de juízo determinante, em que o geral (a regra) é dado e tratado de lhe subsumir o caso particular (no juízo reflexivo, em contrapartida, o particular é dado e trata-se de encontrar a regra geral)”. (AGAMBEN, 2005, p. 61) , o soberano decide instaurar a anomia, ele decide aplicar a lei que foi suspensa (lei sem força de lei); ele age, pois, com força de lei (o nomos que deu lugar à anomia, e, por isso, se inscreve lei).

Bruno Meneses Lorenzetto e Heloisa Fernandes Câmara (2009, p. 127LORENZETTO, Bruno Meneses; CÂMARA, Heloisa Fernandes. Poder Soberano: aportes sobre a exceção e a secularização. Revista Eletrônica Direito e Política, [S.l.], v. 4, n. 3, 2009.) dirão que a decisão soberana insere um espaço político no mundo jurídico, constituindo não apenas um critério de legalidade, mas de justificação:

A decisão soberana representa um espaço de abertura do direito através do reconhecimento e inclusão do espaço político na esfera jurídica, especialmente porque ao estabelecer que a decisão é fundante do sistema jurídico, pretende constituir a legitimidade como critério de justificação e não apenas a legalidade.

Tem-se, pois, a mais importante ideia para compreensão da teoria do estado de exceção em Agamben (2005, p. 63AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.):

O estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força de lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa. Desse modo, a união impossível entre norma e realidade, e a consequente constituição do âmbito da norma, é operada sob a forma da exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação. Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção. Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real.

Essas ideias decorrem, a toda prova, dos desenvolvimentos da filosofia da linguagem, que demonstram que também ela é capaz de substituir a si mesma através da deposição, como o faz o direito que prevê a potencialidade, mas também a não-potencialidade, sua suspensão:

Como uma palavra adquire o poder de denotar, em uma instância de discurso em ato, um segmento da realidade, somente porque ela tem sentido até mesmo no próprio não-denotar (isto é, como langue distinta de parole: é o termo na sua mera consistência lexical, independente de seu emprego concreto no discurso), assim a norma pode referir-se ao caso particular somente porque, na exceção soberana, ela vigora como pura potência, na suspensão de toda referência atual. (AGAMBEN, 2002, p. 28AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 28)

Isto é, assim como uma palavra solta no dicionário ainda não ingressou na sua seara performática, dando sentido a uma representação real e efetiva de mundo, também o é uma lei que não tenha sido aplicada pela decisão. Ela existe numa realidade que ainda não é, e tem duas possibilidades: pode vir a ser (potencialidade), ou pode jamais vir a ser (não potencialidade). Nessa aporia, portanto, configuram-se as cesuras do direito que oferecem todo um campo de indeterminação ao soberano5 5 “No contexto atual, o soberano é representado, em verdade, por aquele que pode decidir sobre o valor ou desvalor da vida dos indivíduos. Há uma verdadeira pulverização do centro de decisão soberana, que agora não reside mais unicamente sob apenas um gabinete ou sob as mãos do chefe de Estado. A decisão sobre a vida jurídica e politicamente relevante (portanto, vida que merece ser vivida) muitas vezes está nas mãos de cientistas e médicos, que estabelecem os limites além dos quais haverá somente vida sacra”. (HACHEM; PIVETTA, 2011, p. 353) .

Isso quer significar que a exceção é uma realidade inalienável ao direito, que não pode jamais ser relegada à inexistência. A potencialidade e a não-potencialidade do direito são elementos constitutivos do nomos jurídico, assim como o campo de indeterminação que poderá sempre ser sequestrado por meio da decisão soberana, ou pela política, como seria desejável na proposta de Agamben.

A crítica de Agamben não é, portanto, preocupada com a simples existência do estado de exceção, mas com o fato de que ele se tornou técnica dos governos (um verdadeiro paradigma), instrumentalizando um meio de predação da política, que outrora exercia a função de preencher esse vazio e cortar o nexo entre violência e direito.

Mostrar o direito em sua não-relação com a vida e a vida em sua não-relação com o direito significa abrir entre eles um espaço para a ação humana que, há algum tempo, reivindicava para si o nome de “política”. A política sofreu um eclipse duradouro porque foi contaminada pelo direito, concebendo-se a si mesma, no melhor dos casos, como poder constituinte (isto é, violência que põe o direito), quando não se reduz simplesmente a poder de negociar com o direito. Ao contrário, verdadeiramente política é apenas aquela ação que corta o nexo entre violência e direito. E somente a partir do espaço que assim se abre, é que será possível colocar a questão a respeito de um eventual uso do direito após a desativação do dispositivo que, no estado de exceção, o ligava à vida. Teremos então, diante de nós, um “direito puro”, no sentido em que Benjamin fala de uma língua “pura” e de uma “pura” violência”. (AGAMBEN, 2005, p. 133AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.)

E essa preocupação é legítima porque ao submeter a teoria do estado de exceção aos seus desdobramentos lógicos mais extremos, surgem reflexões profundas e inquietantes que passam a exigir a atenção dos juristas - “quare siletis juristae in munere vestro?6 6 A provocação consta na epígrafe do livro Estado de Exceção (AGAMBEN, 2005). ” -, por exemplo, o fato de que ““Auschwitz” [...] é a prova, por assim dizer, sempre viva de que o nomos (lei, norma) do espaço político contemporâneo - portanto, não só do espaço político específico do regime nazista - não é mais a bela (e idealizada) construção da cidade comum (polis), mas sim o campo de concentração (GAGNEBIN, 2008, p. 9GAGNEBIN, Jeanne Marie. Apresentação. In: AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo , 2008. p. 9-17.)” 7 7 Ver no mesmo sentido: Agamben (2008) e em Azevedo (2013, p. 77-88). .

Assim, ressalvadas as pertinentes críticas de que Agamben não oferece uma saída para a lógica que denuncia8 8 “Nowhere in Homo Sacer, however, is a way out of the logic actually disclosed”. (CONNOLY apud ABDALLA, 2010). , ou de que não se dá ao trabalho de especificar as consequências da eventual superação dos problemas da soberania9 9 “We are told nothing about what a movement out of the paradox of sovereignty and ‘towards a politics freed from any ban’ would imply”. (LACLAU apud ABDALLA, 2010). , basta afirmar aqui que o seu trabalho representa uma poderosa revigoração do status questionae acerca da legitimidade dos governos e, sobretudo, a legitimidade da violência entreposta sobre o direito.

Embora o estado de exceção seja um conceito particularmente difícil de descrever, até porque envolve um sem-número de subconceitos formadores indeterminados e complexos, parece ser possível agora avançar no presente trabalho para cotejar essas impressões filosóficas com o estudo do Inquérito n. 4.781/STF, de modo a identificar as possíveis relações entre teoria e práxis.

3 As Aporias de um Tribunal Situado entre a Facticidade da Política e a Normatividade do Direito: o Inquérito n. 4.781 como repositório ilimitado de competência investigativa do Supremo Tribunal Federal

Tudo isto era na verdade lamentável, e muito, mas não estava completamente sem justificação. K. não devia deixar de tomar em consideração que o inquérito não era público; ainda que a justiça alguma vez julgasse necessário fazê-lo público, a lei não prescrevia tal publicidade. De modo que os expedientes da justiça e especialmente, o escrito de acusação, eram inacessíveis para o acusado e seu defensor, o que fazia com que não se soubesse em geral ou ao menos com precisão a quem se devia dirigir a primeira demanda; por isso, para dizer a verdade, apenas por um feliz acaso esse primeiro escrito podia conter algo que realmente conviesse à causa. (KAFKA, 2008, p. 66KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2008.)

Antes de ingressar na análise do Inquérito n. 4.781, há que se descrever muito brevemente o momento institucional do STF no século XXI, porque depois de ter experimentado um significativo incremento de suas atribuições (especialmente a partir da Lei n. 9.868/99, da Lei n. 9.882/99 e da Emenda Constitucional n. 45/2005 (VIEIRA, 2008VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 441-464, 2008. ), o Tribunal deixou de ser um “outro desconhecido” (BALEEIRO, 1968BALEEIRO, Aliomar. Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968.) na vida pública nacional para se tornar o epicentro das mais importantes polêmicas jurídico-políticas. Oscar Vilhena Vieira (2008VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 441-464, 2008. ) chega a afirmar que o Brasil vive uma “Supremocracia”, dado o protagonismo que a Corte desempenha no desenho institucional de nossa democracia.

Esse estado de coisas se apresenta, entre outras razões, porque as alterações legislativas supramencionadas, aliadas a uma série de fatores de natureza jusfilosófica (superação do pensamento jurídico formalista e desenvolvimento das teorias da argumentação), sociológica (descrença generalizada nos poderes Legislativo e Executivo) e mesmo normativa (a opção por um sistema de controle de constitucionalidade forte e de amplo acesso jurisdicional), fizeram com que a Suprema Corte - e o Poder Judiciário como um todo - não mais se limitasse à tarefa de aplicar pelas técnicas de subsunção o direito produzido pelas instâncias políticas majoritárias (Executivo e Legislativo), mas, para muito além disso, fosse chamado a verdadeiramente criar o direito pela via interpretativa-argumentativa, apresentando decisões constitucionais para os mais profundos dissensos políticos de nossa democracia. E, ao responder a essa nova e grave vocação, o Tribunal obviamente se viu muito fortalecido politicamente, porquanto não apenas ingressou decisivamente na arena do debate público, mas o fez com relativo poder de veto10 10 Diz-se que o poder de veto do STF sobre as instâncias políticas majoritárias é relativo porque não se trata verdadeiramente de uma interdição deliberativa ou decisória definitiva (veto absoluto), mas apenas de um veto temporalmente posicionado. É dizer, não sendo o Poder Judiciário detentor da “última palavra” em matéria hermenêutica constitucional, os parlamentos e governos poderão oferecer, no futuro, outra significação da Constituição, que não aquela apresentada pela Suprema Corte. sobre as demais instâncias democráticas (parlamentos e governos) no papel de significação da Constituição.

O fato é que essa renovada envergadura do STF teve duas consequências práticas muito relevantes e facilmente observáveis no atual momento do Brasil: em primeiro lugar, a Corte deixou de existir no relativo ostracismo que historicamente sempre habitou para se tornar objeto do mais intenso interesse social e midiático (FALCÃO; OLIVEIRA, 2013FALCÃO, Joaquim; OLIVEIRA, Fabiana Luci de. O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista? Revista Lua Nova, São Paulo, v. 88, p. 429-469, 2013. ). Exatamente porque o STF passou a decidir aspectos muito importantes da vida pública, a instituição e seus ministros tornaram-se onipresentes na televisão, nas rádios, nos jornais impressos e também nas redes sociais e mídias digitais em geral. O “grande público” agora deseja compreender e fiscalizar a atuação desse órgão tão politicamente poderoso, motivo pelo qual a demanda por esse tipo de informação só faz crescer na última década.

A segunda consequência prática é que esse agigantado Supremo Tribunal Federal, que sistematicamente decide os mais prementes temas da agenda pública nacional, passou a colecionar desafetos, verdadeiros inimigos políticos, no decorrer dos anos11 11 O fenômeno do surgimento de desafetos da Corte parece se relacionar com a noção de backlash. As decisões sobre temas controvertidos necessariamente fazem surgir reações na sociedade, e elas podem e devem ser compreendidas como uma virtude do sistema democrático liberal. Não se argumenta aqui, como já dito, que o Poder Judiciário seja detentor do monopólio da interpretação constitucional, mas que seu poder de veto se opera de maneira precária e necessariamente temporalizada (pode ser rediscutido pelas instâncias majoritárias no futuro). É esse o entendimento de Vera Karam de Chueiri e José Arthur Castillo de Macedo (2018): “As reações provocadas por uma dada decisão podem estimular disputas acerca dos sentidos da Constituição ampliando a participação, para além da esfera jurisdicional. Quer dizer, os juízes não têm e não devem ter o monopólio sobre a interpretação da Constituição, podendo esta ser compartilhada; 6) Ainda, as reações às decisões não só deslocam do Poder judiciário a palavra final, mas desencadeiam eventos políticos, sociais e culturais”. (CHUEIRI; MACEDO, 2018, p. 123-150). . Essa constatação se apresenta quase como um desdobramento lógico do quadro fático narrado até aqui, porquanto que decidir coercitivamente profundos dissensos sociais, morais, jurídicos, econômicos etc., necessariamente leva ao surgimento de “inimigos políticos” (estes entendidos como os derrotados por suas decisões), conforme Carl Schmitt deixara claro há quase um século em seu “O Conceito do Político” publicado em 193612 12 À luz da filosofia de Carl Schmitt, que em larga medida oferece a moldura teórica do pensamento de Giorgio Agamben, quando o soberano decide uma questão de interesse social, ele naturalmente estará prestigiando os interesses de um grupo político (seu amigo) em detrimento dos interesses de outro grupo politicamente relevante (seu inimigo). Obviamente que as decisões do Supremo Tribunal Federal não se guiam pela lógica exata do pensamento schmittiano, afinal a Corte fundamenta suas decisões nos parâmetros oferecidos pelo direito. Todavia, o paralelo que se traça aqui parece válido para resgatar a ideia de que os “efeitos” políticos das decisões da Corte resultam no surgimento de grupos sociais “amigos” e “inimigos” da Instituição (leia-se: vencedores e derrotados por suas decisões). Ver: Schmitt (1992) e Lorenzetto (2014. p. 183). .

Assim é que passando a atuar ostensivamente na arena política, no âmbito dessa dicotomia entre vencedores e vencidos, que cria respectivamente “amigos e inimigos” da Corte, o STF acabou se tornando alvo, com maior ênfase nos últimos anos, de ataques advindos de diferentes meios e origens ideológicas, especialmente a partir do fenômeno da expansão das redes sociais. Do ponto de vista do jogo de poderes, parece compreensível que esses atores sociais, derrotados pelas decisões do STF, vejam na instituição um inimigo a ser combatido, e se organizem para fazê-lo. A questão, aqui, é que inimigos podem ser exterminados, ao passo que uma mirada que não seja cega e estritamente passional, pode assumir uma perspectiva profundamente crítica a respeito das decisões do STF, mas sem colocar em questionamento a relevância de sua função constitucional para a democracia brasileira, ou mesmo sem propor, de maneira franca, o seu fechamento, independentemente do número de militares que se queira empregar para tanto.

Essa breve introdução de capítulo pretende demonstrar que ao se tornar um ator político central, o Supremo Tribunal Federal deixou de usufruir daquele relativo distanciamento das tensões sociais, próprio das Cortes ditas mais “técnicas”, para passar a sentir de perto “a temperatura” das disputas políticas. Traçando um paralelo com a filosofia de Giorgio Agamben, a Suprema Corte parece hoje experimentar uma indeterminação existencial: ao mesmo tempo em que fundamenta suas decisões com base no direito, procura justificá-las politicamente; e ao fazê-lo, o Tribunal se depara com as aporias de uma instituição contraditoriamente estimulada pela facticidade da política e a normatividade do direito - e o Inquérito n. 4.781 é o exemplo definitivo dessa relação conflituosa.

Essa compreensão é central para o presente trabalho porque o Inquérito n. 4.781 surge exatamente em um contexto de “disputa política” entre o STF e seus inimigos, no caso o “lavajatismo”, que designa um grupo social muito heterogêneo, que abarca setores da mídia, da intelligentsia nacional, massivas parcelas da população etc., para quem a corrupção no setor público é o principal problema nacional, e para quem as instituições precisam ser urgentemente depuradas, “passadas a limpo” mesmo, especialmente o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional, os governos e a classe política como um todo.

Não há dúvida que a instauração do Inquérito das Fake News se mostrou reação do presidente do STF às cada vez mais frequentes manifestações de contrariedade13 13 Sobre o crescente descontentamento da população em relação ao STF, consultar: https://www.conjur.com.br/2017-ago-27/descontentamento-populacao-chega-supremo-segundo-pesquisa. Acesso em: 1º ago. 2019. e desprezo14 14 Um terço da população brasileira aceitaria fechar o STF, conforme revelou pesquisa realizada pelo JOTA, consultar em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/stf/pesquisa-jota-34-dos-brasileiros-aceitam-fechar-o-congresso-e-32-o-stf-08072019. Acesso em: 1º ago. 2019. “lavajatista” (e de outras frentes) à Corte nas redes sociais e veículos de comunicação em geral. Mais especificamente, a instauração do inquérito reagiu frontalmente contra o artigo de opinião publicado dias antes pelo Procurador da República, Diogo Castor de Mattos, no site O Antagonista15 15 Informação disponível em: https://www.oantagonista.com/brasil/procurador-da-lava-jato-denuncia-o-mais-novo-golpe-stf/. Acesso em: 3 ago. 2019. , em que o autor denunciava o que considerava um ataque sorrateiro engendrado por integrantes da Segunda Turma do STF - a “turma do abafa” - contra a Operação Lava Jato16 16 Em resumo, o autor do texto sustenta que a “turma do abafa” pretende sedimentar uma nova e casuística orientação jurisprudencial na Segunda Turma do STF, para remeter todos os casos de corrupção envolvendo agentes políticos para a Justiça Eleitoral. A intenção maliciosa seria embaraçar a efetividade da persecução penal contra esses criminosos poderosos. . Em uma paradoxal proposta de inversão da hierarquia jurisdicional, como se o STF devesse se curvar a instâncias jurisdicionais inferiores.

A gênese dessa reação institucional do STF acontece no dia 14 de março de 2019, quando seu presidente, ministro Dias Toffoli, informou em sessão plenária que havia instaurado um inquérito sigiloso (Inquérito 4.781) “contra tudo e quase todos”, nas palavras de um de seus assessores (RECONDO; WEBER, 2019, p. 23RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.), com a finalidade de apurar a divulgação de notícias fraudulentas (“fake news”) e a prática de denunciações caluniosas, ameaças e infrações “revestidas de animus caluniani, diffamandi e injuriandi”, as quais colocavam em risco a “honorabilidade e a segurança” do Tribunal, de seus membros e familiares. Na mesma ocasião, informou que havia designado a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, a quem competiria apurar as infrações, “em toda a sua dimensão”.

Logo de início, porém, a instauração do inquérito provocou grande celeuma nos meios jurídicos, pelo simples fato de que os atos constitutivos da investigação contrariavam as mais elementares noções constitucionais, legais e regimentais atinentes à matéria. Fernando Henrique de Moraes Araújo e Aluísio Antônio Maciel Neto (2019ARAÚJO, Fernando Henrique de Moraes; MACIEL NETO, Aluísio Antônio. Supremo Tribunal Federal ou de Exceção? O Estado de São Paulo, São Paulo, 18 de abril de 2019. ), por exemplo, publicaram um detalhado estudo do caso no qual apontaram a ocorrência de várias violações à ordem jurídica, cada uma delas capaz de levar, sozinha, à nulificação de todo o processo e das provas nele produzidas.

Diversas questões foram suscitadas no sentido de ilustrar o quão grosseiramente inconstitucional se mostrou, ab initio, a investigação instaurada pelo ministro Dias Toffoli. Em resumo, o STF teria aberto um inquérito e atribuído a si mesmo a competência investigativa, alijando a competência institucional do Ministério Público, que não figuraria sequer como participante do inquérito. Ainda, o procedimento seria conduzido “livremente” por um de seus Ministros (e, portanto, por um interessado no processo), em medida que não encontra qualquer precedente na história do Tribunal. Possivelmente, a real motivação por trás dessas medidas heterodoxas pode ser mais bem compreendida quando observada à luz das manifestações destemperadas do ministro Dias Toffoli, que à época afirmou: “Tem que dar porrada. Nós só estamos apanhando”, assim como: “E o delegado que eu arranjei?” em referência ao relator, Ministro Alexandre de Moraes (RECONDO; WEBER, 2019, p. 24RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.)

Deve-se ressaltar, além disso, que o sistema de distribuição do STF, no caso específico do Inquérito em análise, acabou por seguir um procedimento heterodoxo17 17 “Na década de 1990, o sorteio de cada processo no STF era feito com um pequeno globo e bolinhas, como se os ministros participassem de um permanente jogo de bingo. O sistema foi informatizado para adequar a Corte aos novos tempos e ao cada vez maior número de ações - em 2017, o Supremo distribuiu, em média, 224 processos por dia aos gabinetes dos ministros. O software, desenvolvido pela equipe de Tecnologia da Informação do tribunal, utiliza de um algoritmo, ou seja, uma sequência previamente definida de comandos, para estipular a qual gabinete será encaminhado cada processo. Com alguns cliques de mouse e um enter, o processo é inserido no sistema e sorteado”. (RECONDO; WEBER, 2019, p. 111) . O sistema regular de distribuição na Corte funciona por meio de sorteio eletrônico, sendo possível modulá-lo para, em casos específicos, excluir um ou alguns ministros em razão de certo impedimento, na hipótese de suspeição ou mesmo em decorrência de prevenção (nesta situação, com automática exclusão dos demais ministros). No caso do Inquérito n. 4.781, todavia, foram deliberadamente excluídos do sorteio todos os demais ministros, deixando-se apenas e tão somente o ministro Alexandre de Moraes, o qual, obviamente, haveria de ser “sorteado” relator do procedimento investigativo. Em outras palavras, escolheu-se o ministro Relator, em conduta absolutamente ofensiva à Constituição (princípio do juiz natural) e ao Regimento Interno do Tribunal.

Ademais, o inquérito seria inconstitucional porque subverteu toda a sistemática constitucional acusatória - e não inquisitória - estabelecida pela Constituição Federal. Nosso ordenamento constitucional prevê claramente que a investigação dos crimes compete a um órgão estatal (Ministério Público e/ou autoridade policial), e o julgamento das ações penais compete a outro órgão (Poder Judiciário). Dias Toffoli, todavia, estabelecera no Inquérito n. 4.781 que o STF ocuparia, ao mesmo tempo, a posição de vítima, investigador, acusador e juiz dos crimes em tese praticados.

O inquérito seria inconstitucional também por instaurar um peculiar regime de foro por prerrogativa de função da vítima. Isso porque Dias Toffoli havia “chamado” para a (suposta) competência investigativa do STF, todos os crimes praticados contra ministros da Corte, mesmo que os potenciais agressores não detivessem prerrogativa de foro. Nesse sentido, não seria demais lembrar que a única ocasião em que a função de ministro do STF atrai a competência criminal da Corte é quando os próprios ministros cometem crimes (artigo 102, I, b, CF), e nunca quando são vítimas.

De igual maneira, o inquérito também se mostraria inconstitucional por criar um regime de foro por prerrogativa de função para familiares. Isto porque a portaria que constituiu o inquérito claramente mencionou que seriam investigados fatos criminosos que afrontavam a honorabilidade e segurança do Tribunal, seus membros e seus familiares. Imagine-se, por exemplo, que algumas das ameaças tenham sido praticadas contra familiares dos ministros; em tais casos também não haveria qualquer disposição constitucional capaz de atrair a competência investigativa do STF para o caso.

A criação dessas peculiares prerrogativas de foro de processamento de investigação criminal (por função da vítima ou por seu parentesco) igualmente levaria a uma inconstitucionalidade adicional delas logicamente resultante, em razão do estabelecimento de juízo ou tribunal de exceção, circunstância expressamente vedada no artigo 5º, XXXVII da Constituição Federal (e pelo artigo 5º, LIII, CF).

A instauração do inquérito seria ilícita ainda por ter se valido de forçosa interpretação do artigo 43 do Regimento Interno da Corte18 18 Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro. , que trata especificamente da situação de terem sido cometidos crimes “na dependência do Tribunal”, o que certamente não é o caso em questão. Diversas das condutas hoje sabidamente inseridas no âmbito do Inquérito - como as supostas “fake news” da Revista Crusoé (que serão posteriormente tratadas neste trabalho), por exemplo - ocorreram fora das dependências da Corte.

Sobretudo, a mais grave das inconstitucionalidades decorreria da completa falta de delimitação objetiva (quais fatos são investigados) e subjetiva (quem são os investigados) do Inquérito, o que fez procedimento algo como um repositório ilimitado de competência investigativa do Supremo Tribunal Federal. Explica-se: devido à vagueza e amplidão da portaria instauradora, absolutamente qualquer ato, praticado por qualquer pessoa, em qualquer circunstância ou local, que porventura venha a ser considerado pelo ministro Alexandre de Moraes, em seus juízos mais íntimos (e secretos), como ofensivo à “honorabilidade” da Corte, poderá ser investigado no corpo do Inquérito19 19 Em pertinente reprimenda institucional à conduta do ministro Dias Toffoli, a Procuradoria-Geral da República assim se manifestou em petição que requereu o arquivamento do procedimento: “O devido processo legal exige a delimitação da investigação penal em cada inquérito, seja para permitir o controle externo da atividade policial, seja para viabilizar a validade das provas, definir o juízo competente, e assegurar a ampla defesa e o contraditório, notadamente em relação a medidas cautelares determinadas pelo juízo processante. A delimitação da investigação não pode ser genérica, abstrata, nem pode ser exploratória de atos indeterminados, sem definição no tempo e espaço, nem de indivíduos. O devido processo legal reclama o reconhecimento da invalidade de inquérito sem tal delimitação”. Informação disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/INQ4781.pdf. Acesso em: 5 ago. 2019. . Sob essa perspectiva, não é exagero afirmar que, no âmbito do Inquérito 4.781, todo e qualquer cidadão brasileiro constitui um investigado do STF em potencial, embora ainda pudesse não saber sê-lo em razão do sigilo do processo.

Na petição inicial da ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 572) proposta pelo partido político REDE Sustentabilidade, captou-se a gravidade daquilo que aqui se sustenta:

Nota-se, assim, que o inquérito nº 4781, que tramita em sigilo absoluto, ficando indisponível qualquer informação sobre crimes e investigados, pode ser direcionado, inclusive, contra jornalistas, parlamentares, membros do governo, membros do Judiciário e Ministério Público, detentores de foro especial, além da Cidadania em geral.

A prevalecer o objetivo por ele pretendido, a própria Suprema Corte estaria a editar, em pleno regime democrático, mecanismo de auspícios análogos ao do famigerado AI-5, dispondo de ferramental para intimidar livremente, como juiz e parte a um só tempo, todo aquele que ousar questionar a adequação moral dos atos de seus membros20 20 Informação disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/rede-adpf-inquerito-ameacas-ministros.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019. .

O fato é que, tal como instaurado, o Inquérito n. 4.781 encerraria uma série de inegáveis inconstitucionalidades, que maculariam gravemente o procedimento investigatório desde o início. E como que confirmando os receios da comunidade jurídica, decisões verdadeiramente heterodoxas - para dizer o mínimo - viriam a ser proferidas naqueles autos nas semanas e meses seguintes, como se verá adiante.

Antes de se debruçar sobre os desdobramentos do inquérito, porém, parece ser possível identificar desde já um paralelo muito claro entre a atuação do STF no Inquérito das “Fake News” e a teoria do estado de exceção de Giorgio Agamben: a decisão de instaurar um procedimento tão juridicamente frágil significa uma óbvia “[...] inclusão do espaço político na esfera jurídica” (LORENZETTO; CÂMARA, 2009, p. 127LORENZETTO, Bruno Meneses; CÂMARA, Heloisa Fernandes. Poder Soberano: aportes sobre a exceção e a secularização. Revista Eletrônica Direito e Política, [S.l.], v. 4, n. 3, 2009.), afinal a justificação da investigação não repousa, de modo algum, sobre a normatividade do direito, mas legitima-se (ou procura legitimar-se) na facticidade da política.

Ocorre que, ao esvaziar a normatividade do direito em favor do fato político, o STF acabou agindo mediante uma “violência sem logos” (AGAMBEN, 2005, p. 63AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.), praticando atos coercitivos com força de lei: a Corte suspendeu deliberadamente a aplicação de todo o estatuto constitucional das competências, do juiz natural, da limitação objetiva e subjetiva das investigações etc., para realizar um enunciado jurídico “sem nenhuma referência real” (AGAMBEN, 2005, p. 63AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.), a saber, a apuração de práticas criminosas que atingem a sua dita “honorabilidade”. O Tribunal agiu, assim, no espaço de indeterminação anômica que está ao mesmo tempo dentro e fora do direito. O tribunal agiu no campo da exceção agambeniana, portanto.

Voltando à análise dos fatos políticos relativos ao Inquérito n. 4.781, importa dizer que, no dia 11 de abril de 2019, na edição número 50 da Revista Eletrônica Crusoé, os jornalistas Rodrigo Rangel e Mateus Coutinho publicaram uma reportagem intitulada “O amigo do amigo de meu pai”, cujo subtítulo era autoexplicativo: “Em documento a que Crusoé teve acesso, o empreiteiro Marcelo Odebrecht revela à Lava Jato o codinome usado para se referir a Dias Toffoli na empreiteira21 21 Informação disponível em: https://crusoe.com.br/edicoes/50/o-amigo-do-amigo-de-meu-pai/. Acesso em: 1º ago. 2019. ”.

Basicamente, os jornalistas haviam obtido acesso ao “termo de esclarecimentos do colaborador da Justiça Marcelo Odebrecht22 22 Informação disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2019/04/Amigo-do-amigo-do-meu-pai.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019. ”, protocolizado na Justiça Federal do Paraná, e, após anexarem à reportagem uma cópia reprográfica do documento, reportaram objetivamente aos seus leitores as informações nele contidas: o ministro Dias Toffoli havia sido indicado por Marcelo Odebrecht como a pessoa real por trás do codinome “o amigo do amigo de meu pai”.

Surpreendentemente, porém, apenas dois dias depois da publicação da matéria, o ministro Alexandre de Moraes, no corpo do Inquérito Sigiloso n. 4.781, expediu uma ordem cautelar que impôs inquestionável censura sobre a revista, determinando que a reportagem fosse imediatamente retirada de circulação, sob pena de multa de R$ 100.000,00 por dia. De igual maneira, o juiz ainda determinou que os editores da publicação fossem inquiridos pela autoridade policial no prazo máximo de 72 horas23 23 Curiosamente, o próprio Supremo Tribunal Federal, na ADPF 395, havia reconhecido “[...] a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”. .

Utilizando como pretexto decisório um desencontro de informações marginal, que em nada ilidia a veracidade do documento apresentado na reportagem24 24 A reportagem mencionara textualmente que uma cópia do documento havia sido “remetida” pelos investigadores da Operação Lava Jato de Curitiba à Procuradoria-Geral da República, em Brasília. Entretanto, no dia seguinte à publicação da reportagem, a Procuradoria-Geral da República, que ainda não tinha conhecimento do referido documento, emitiu Nota de Esclarecimentos nos seguintes termos: “Ao contrário do que afirma o site O Antagonista, a Procuradoria-Geral da República (PGR) não recebeu nem da Força-Tarefa Lava Jato no Paraná e nem do delegado que preside o inquérito 1365/2015 qualquer informação que teria sido entregue pelo colaborador Marcelo Odebrecht em que ele afirma que a descrição “amigo do amigo de meu pai” refere-se ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli”. Ou seja, a nota mostrava-se imprópria porque, em nenhum momento, os jornalistas haviam afirmado que a PGR havia “recebido” o documento em questão, mas que ele havia sido a ela remetido. Comprovando esse fato, aliás, dias depois o documento teve sua existência confirmada por diversos meios e o ministro Alexandre de Moraes se viu obrigado a revogar a ordem cautelar, em decisão proferida em 18/04/2019. , o ministro Alexandre de Moraes afirmou que a proteção constitucional da liberdade de expressão “não significa a impossibilidade posterior de análise e responsabilização por eventuais informações injuriosas, difamantes, mentirosas [...]25 25 Informação disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2019/4/art20190415-15.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019. ”, motivo pelo qual estaria autorizada a concessão da ordem cautelar.

Não parece ser necessário dispender muita energia para demonstrar a grave inconstitucionalidade da censura levada a efeito pela decisão do ministro Alexandre de Moraes, bastando afirmar que a medida ofendeu os direitos fundamentais de liberdade de expressão (artigo 5º, IX, CF), liberdade de imprensa (artigo 220, CF) e vedação da censura (artigo 220, § 2º, CF), além das inconstitucionalidades intrínsecas ao próprio Inquérito 4.781, já mencionadas neste trabalho.

Ocorre que passados três dias da prolação dessa ordem cautelar, o ministro Alexandre de Moraes proferiria mais uma decisão polêmica, desta feita determinando o imediato bloqueio das contas de sete cidadãos brasileiros no Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp, em razão de estes terem supostamente promovido a “subversão da ordem” por meio de comentários online tidos por agressivos, ameaçadores ou falsos contra o STF. Também foi determinada a busca e apreensão dos telefones celulares, tablets e notebooks encontrados nos endereços indicados na decisão-mandado e também em “outros endereços que viessem a ser descobertos no curso da diligência26 26 Informação disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2019/4/art20190416-10.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019. ”.

Além da já mencionada inconstitucionalidade decorrente de essas pessoas desconhecerem o conteúdo do Inquérito sigiloso - e, portanto, não poderem exercer seu direito à ampla defesa -, note-se que o ministro relator expediu um mandado de busca e apreensão genérico, a ser cumprido também em endereços descobertos no momento das diligências, em frontal afronta ao artigo 243, inciso I, do Código de Processo Penal27 27 Art. 243 O mandado de busca deverá: I - indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem. , conforme entendimento do próprio STF28 28 Habeas Corpus n. 144.150/STF e Habeas Corpus 163.461/STF. .

Exemplificando perfeitamente a situação kafkiana a que estão submetidos esses investigados, basta dizer que o médico Sérgio Barbosa de Barros, um dos cidadãos que tiveram suas contas em redes sociais bloqueadas e aparelhos eletrônicos apreendidos, ingressou com um pedido de Habeas Corpus (HC 170825) no Supremo Tribunal Federal no dia 16 de abril de 2019, solicitando o elementar direito de acesso ao Inquérito Sigiloso, com fulcro no entendimento firmado na Súmula Vinculante n. 1429 29 Súmula Vinculante n. 14: é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa. .

No dia 30 de abril de 2019, o relator do habeas corpus, ministro Edson Fachin, determinou a expedição de ofício ao ministro Alexandre de Moraes para que este apresentasse as informações que entendesse pertinentes sobre o pedido do paciente. Entretanto, passados quase dois meses da remessa do ofício ao gabinete do ministro Alexandre de Moraes, o relator do Inquérito 4.781 ainda não havia apresentado qualquer reposta, revelando, no mínimo, um profundo descaso para com o pleito do Investigado em questão. Sobre o episódio, assim se manifestou a Procuradoria-Geral da República:

Trata-se de situação que, a toda evidência, malfere não apenas o princípio da ampla defesa, mas que também atenta contra o tratamento digno que deve ser conferido aos investigados em geral. Assim, diante da simplicidade de que se reveste o pedido de vista feito pelo reclamante, a ausência de manifestação por parte do ministro Alexandre de Moraes passados quase dois meses pode ser considerada uma mora não razoável e, com isso, uma restrição indevida ao direito de acesso da defesa aos autos30 30 Informação disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-opina-pelo-acesso-de-medico-investigado-pelo-stf-a-inquerito-que-apura-propagacao-de-fake-news-sobre-ministros. Acesso em: 1º ago. 2019. .

Veja-se a gravidade do fato: não apenas o Supremo Tribunal Federal instaurara um Inquérito inconstitucional, para a investigação de fatos e pessoas jamais especificados claramente, como ainda deixara de oferecer acesso aos autos a quem se descobrisse investigado. E na circunstância de alguma dessas pessoas recorrer à própria Corte - a quem mais seria? - para obtenção de tutela jurisdicional visando à garantia desse direito elementar, seriam simplesmente ignoradas.

E as inconstitucionalidades não fizeram cessar. O ministro Alexandre de Moraes ainda determinaria cautelarmente, em 1º de agosto de 2019, “[...] a suspensão imediata todos os procedimentos investigatórios instaurados na Receita Federal ou em outros órgãos, com base na Nota Copes n. 48, de 2 de março de 2018, em relação aos 133 contribuintes31 31 Informação disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/alexandre-moraes-suspende-investigacoes.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019. ”.

Essa decisão, embora ainda sejam desconhecidos maiores detalhes acerca de seu contexto, impediu que a fiscalização tributária investigasse mais de centena de agentes públicos que, segundo informações da inteligência do órgão, da Controladoria-Geral da União e do Tribunal de Contas da União, apresentavam ganhos incompatíveis com seus vencimentos oficiais ou outras situações indiciárias de irregularidades.

Conforme mostram as informações veiculadas pela imprensa32 32 Informação disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/receita-federal-mira-em-esposa-de-toffoli-e-ministra-do-stj/. Acesso em: 1º ago. 2019. , os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes e suas esposas estariam entre os investigados, embora essa afirmação tenha sido negada pela Receita Federal33 33 Informação disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/02/receita-diz-que-nao-ha-fiscalizacao-sobre-gilmar-mendes.shtml. Acesso em: 1º ago. 2019. . Não sendo possível, ainda, emitir juízos de valor acerca da conduta das pessoas envolvidas ou mesmo sobre a constitucionalidade da investigação realizada pela Receita Federal (que também era sigilosa), deve-se limitar aqui a afirmar que o fato apenas reforça a extrema impropriedade, para dizer o mínimo, que representa a condução do Inquérito n. 4.781 pelo próprio Supremo Tribunal Federal, que faz, uma vez mais, as vezes de vítima e investigador!

O Inquérito n. 4.781 também abrigaria a decisão muito controversa do ministro Alexandre de Moraes de determinar a remessa ao STF de uma cópia integral do Inquérito da chamada “Operação Spoofing”, através do qual a Polícia Federal investiga o hackeamento dos telefones celulares de diversas autoridades brasileiras.

Referida operação desarticulou uma organização criminosa que praticava crimes cibernéticos por meio da interceptação ilegal de comunicações de autoridades brasileiras, tais como o Ministro da Justiça Sérgio Moro, e Procuradores da República vinculados à operação Lava Jato em Curitiba, entre muitos outros.

O ministro Alexandre de Moraes fundamentou a decisão de requerer cópia integral do inquérito nas informações prestadas pela imprensa34 34 Informação disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/01/politica/1564666744_332248.html. Acesso em: 1º ago. 2019. : “Diante das notícias veiculadas apontando indícios de investigação ilícita contra Ministros desta Corte [...]”. Curiosamente, porém, quando da prolação da ordem de suspensão das investigações da Receita Federal sobre os ganhos incompatíveis de agentes públicos, o juiz criticou severamente que o órgão de administração tributária tivesse usado informações da imprensa para estabelecer suas investigações administrativas. Veja-se:

Instada novamente a esclarecer quais seriam esses critérios objetivos utilizados para a seleção de contribuintes, o órgão em questão limitou-se a replicar a informação anteriormente fornecida no item 18 da Nota 105/2019, onde, novamente, aponta como um dos critérios de escolha as “notícias na imprensa de participação de agentes públicos em esquemas fraudulentos”.

Não é crível que um órgão como a Receita Federal do Brasil, com acesso a dados dos contribuintes de todo país e dotada de inúmeros mecanismos de fiscalização, utilize-se de “notícias na imprensa” para dirigir o alcance de suas frentes de trabalho, em especial, para investigar supostos atos ilícitos de agentes públicos com prerrogativa de foro.

Aparentemente, portanto, o ministro Alexandre de Moraes considera que à Receita Federal é defeso instaurar investigações tributárias a partir de informações veiculadas imprensa, mesmo que elas sejam corroboradas por outros dados coletados tecnicamente, conforme explicações prestadas pelo órgão na Nota 105/201935 35 Excertos transcritos no corpo da decisão judicial, consultar em: https://www.conjur.com.br/dl/alexandre-moraes-suspende-investigacoes.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019. . Diferentemente, porém, apenas com base em notícias da imprensa, o Supremo Tribunal Federal estaria autorizado a atrair para a competência investigativa “ilimitada “do Inquérito n. 4.781, os fatos sob análise na Operação Spoofing.

Essa observação pontual, para além de revelar um profundo casuísmo do ministro Alexandre de Moraes na condução do Inquérito n. 4.781, demonstra na prática os efeitos deletérios das inconstitucionalidades analisadas neste trabalho, notadamente a quebra da impessoalidade, da imparcialidade e a fraude ao sistema constitucional acusatório. O ministro, sem ter meios oficiais de saber se haviam mesmo sido interceptadas comunicações de juízes da Corte por hackers (o inquérito da Polícia Federal é também sigiloso), autoriza a si mesmo obter “preventivamente” uma cópia de todo o material obtido, ainda que o seu acesso ao conteúdo represente inegavelmente mais uma ofensa ao bem jurídico tutelado na tipificação dos crimes ali investigados36 36 A toda evidência, o acesso de terceiros - delegados, servidores, juízes etc. - ao conteúdo de mensagens interceptadas ilegalmente representa, logicamente, a continuação da ofensa ao bem jurídica “privacidade” dos cidadãos que foram hackeados. .

Talvez, a mais fina ironia que se deva descrever neste trabalho, capaz de ilustrar perfeitamente o quadro sui generis que se abateu sobre o Brasil à época do Inquérito n. 4.781, é que, sob o pretexto de defender a Suprema Corte de investigações ilegais, levadas a efeito por autoridades incompetentes, o Supremo Tribunal Federal instaurou uma investigação ilegal para a qual é incompetente.

Dessa maneira, apresentadas as inconstitucionalidades que maculam o Inquérito n. 4.781, é relevante ressaltar que Procuradoria-Geral da República se manifestou pelo seu arquivamento, informando que todas as provas nele produzidas serão desconsideradas pelo titular da ação penal:

Considerando os fundamentos constitucionais desta promoção de arquivamento, registro, como consequência, que nenhum elemento de convicção ou de prova de natureza cautelar produzida será considerada pelo titular da ação penal ao formar sua opinio delicti. Também como consequência do arquivamento, todas as decisões proferidas estão automaticamente prejudicadas37 37 Informação disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/INQ4781.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019. .

O ministro Alexandre de Moraes, porém, se limitou a dizer o seguinte:

Não se configura constitucional e legalmente lícito o pedido genérico de arquivamento da Procuradoria-Geral da República, sob o argumento da titularidade da ação penal pública, impedir qualquer investigação que não seja requisitada pelo Ministério Público.

Assim foi que o Inquérito n. 4.781 tramitou à revelia do órgão titular do oferecimento da ação penal, sendo prorrogado em pelo menos duas oportunidades38 38 Em 16 de abril de 2019, o ministro Dias Toffoli prorrogou o Inquérito por mais 90 dias. Em 1º de agosto de 2019, o ministro Alexandre de Moraes prorrogou a investigação por outros 180 dias, o que significa que os trabalhos podem se estender (pelo menos) até fevereiro de 2020. . Durante sua vigência, como se pôde observar nas linhas antecedentes, todo e qualquer cidadão brasileiro foi um investigado do STF em potencial.

À luz da filosofia de Giorgio Agamben (2005AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.), o Inquérito n. 4.781 parece ter estabelecido um espaço de atuação do STF que não é “[...] nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico [...]”, mas que habita uma “[...] zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam” (AGAMBEN, 2005, p. 39AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.). A deliberada suspensão do direito, das normas de competência, de delimitação investigativa, do juiz natural etc., não significam a abolição definitiva da normatividade do direito, mas, ao contrário, estabelecem a própria relação da exceção com a ordem jurídica: o STF suspende o estatuto constitucional dos Acusados para aplicar o direito e promover a persecução penal contra eles.

Por meio de uma decisão verdadeiramente soberana, os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes abriram o campo do direito para o fato político e, ao fazê-lo, desnudaram as profundas aporias de uma instituição aturdida por uma realidade dual e contraditória: um ator político que manipula o direito como técnica (o que lhe dá um poder político descomunal); e um órgão jurídico que passa a considerar o fato político para fins de sobrevivência institucional.

4 Conclusão

Como mencionado na introdução deste trabalho, a proposta aqui delineada é complexa porque transita entre campos de profunda indeterminação, seja da anomia jurídica da exceção (que está e não está no direito, ao mesmo tempo), da fluidez do direito constitucional, ou mesmo da potencialidade/não potencialidade linguística.

Exatamente por esses motivos, a obra de Agamben tem sido prolífica em gerar trabalhos acadêmicos com conclusões radicalmente distintas, mediante o manejo de sua filosofia sob a luz de diferentes perspectivas teóricas. Muitas vezes, porém, seu sistema de pensamento é falsificado, reduzido artificialmente para atender às necessidades de ocasião do investigador da vez. Mesmo ministros do Supremo Tribunal Federal parecem ter cometido esse erro, como demonstrado por Cláudia Honório (2007HONÓRIO, Cláudia. Estado de Exceção: estudo de caso. Revista Eletrônica do CEJUR, [S.l.], n. 2, v. 1, n. 2, 2007.).

Ainda assim, entendido o estado de exceção como uma suspensão da ordem jurídica para a administração de casos extremos, a partir da decisão do soberano, é possível estabelecer algumas relações entre teoria e práxis na perspectiva aqui encartada. É que o Supremo Tribunal Federal, suspendendo a aplicação de todo o estatuto constitucional da distribuição de competências, das liberdades individuais e das garantias processuais, para investigar supostas ameaças que lhe ameaçam a segurança e a “honorabilidade”, inegavelmente pratica alguns atos situados na zona de indeterminação anômica: eles são direito, porque praticados pela Suprema Corte, intérprete principal do direito, e eles não são direito, porque são interpretações fraudulentas, “publicamente expostas sob máscaras” (HONÓRIO, 2007, p. 116HONÓRIO, Cláudia. Estado de Exceção: estudo de caso. Revista Eletrônica do CEJUR, [S.l.], n. 2, v. 1, n. 2, 2007.).

O Supremo Tribunal Federal age hoje sob a aproximação, talvez inadvertida (na melhor das hipóteses), de uma “ditadura constitucional” schmittiana, que é aquela em que “medidas excepcionais” são aceitáveis para defesa da ordem constitucional. A Corte parece entender ser necessário fazer sua a defesa institucional, contra tudo e contra todos, custe o que custar - ela depõe o direito em nome da defesa do direito!

Assim, é difícil não estabelecer uma relação, ainda que metonímica, entre o Inquérito n. 4.781 e os decretos de iustituim da Roma Antiga39 39 “Há um instituto do direito romano que, de certa forma, pode ser considerado o arquétipo do moderno Ausnahmezustand e que, no entanto, e talvez justamente por isso, não parece ter recebido atenção suficiente por parte dos historiadores do direito e dos teóricos do direito público: o iustitium”. (AGAMBEN, 2005, p. 67). , quando deliberadamente se produzia um vazio jurídico diante do caos instaurado - as invasões estrangeiras de então são as “denunciações caluniosas” de agora -, dada a “necessidade de romper o ordenamento para salvá-lo” (HONÓRIO, 2007, p. 102HONÓRIO, Cláudia. Estado de Exceção: estudo de caso. Revista Eletrônica do CEJUR, [S.l.], n. 2, v. 1, n. 2, 2007.).

A conceituação de estado de exceção em Agamben, necessário dizer, apresenta também diversas caracterizações que não necessariamente encontram perfeita ressonância no fenômeno aqui sob investigação. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, não decide suspender a ordem jurídica por meio de um decreto suspensivo, nem mesmo através do reconhecimento formal de um estado de necessidade.

Ao contrário, nossa Suprema Corte instaura a exceção de maneira até mais sub-reptícia, adicionando à já complexa indeterminação de suas aporias jurídicas, temperamentos da falsidade e do engano. É dizer, o STF suspende o direito para protegê-lo, mas o faz disfarçadamente, sob a densa neblina da interpretação jurídica e através dos obscuros pretextos das melhores intenções.

As decisões do Supremo Tribunal Federal no Inquérito n. 4.781, assim, operam violências (mal) disfarçadas sobre as vidas das pessoas. Jornalistas são censurados, cidadãos têm bens apreendidos e suas liberdades de expressão e de pensamento tolhidas, tudo sob a juridicidade do direito e ao mesmo tempo à margem dele. Mas não são apenas eles. A se estabelecer um paradigma institucional a partir do Inquérito 4.781, qualquer cidadão brasileiro será um potencial homo sacer, ao menos no sentido (de novo) metonímico de que suas cidadanias serão “matáveis”, sem que isso represente maior ofensa ao próprio direito que as constitui.

Referências

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  • 1
    Portaria GP n. 69, de 14 de março de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/comunicado-supremo-tribunal-federal1.pdf. Acesso em: 5 ago. 2019.
  • 2
    “À incerteza do conceito corresponde exatamente a incerteza terminológica. O presente estudo se servirá do sintagma “estado de exceção” como um termo técnico para o conjunto coerente dos fenômenos jurídicos que se propõe a definir” (AGAMBEN, 2005, p. 15AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.).
  • 3
    “A simples oposição topográfica (dentro/fora implícita nessas teorias parece insuficiente para dar conta do fenômeno que deveria explicar. Se o que é próprio do estado de exceção é a suspensão (total ou parcial) do ordenamento jurídico, como poderá essa suspensão ser ainda compreendida na ordem legal? Como pode uma anomia ser inscrita na ordem jurídica? E se, ao contrário, o estado de exceção é apenas uma situação de fato e, enquanto tal, estranha ou contrária à lei; como é possível o ordenamento jurídico ter uma lacuna justamente quanto a uma situação crucial? E qual é o sentido dessa lacuna?” (AGAMBEN, 2005, p. 39AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.).
  • 4
    “O conceito de aplicação é certamente uma das categorias mais problemáticas da teoria jurídica, e não apenas dela. A questão foi mal colocada devido à referência à doutrina kantiana do juízo enquanto faculdade de pensar o particular como contido no geral. A aplicação de uma norma seria, assim, um caso de juízo determinante, em que o geral (a regra) é dado e tratado de lhe subsumir o caso particular (no juízo reflexivo, em contrapartida, o particular é dado e trata-se de encontrar a regra geral)”. (AGAMBEN, 2005, p. 61AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.)
  • 5
    “No contexto atual, o soberano é representado, em verdade, por aquele que pode decidir sobre o valor ou desvalor da vida dos indivíduos. Há uma verdadeira pulverização do centro de decisão soberana, que agora não reside mais unicamente sob apenas um gabinete ou sob as mãos do chefe de Estado. A decisão sobre a vida jurídica e politicamente relevante (portanto, vida que merece ser vivida) muitas vezes está nas mãos de cientistas e médicos, que estabelecem os limites além dos quais haverá somente vida sacra”. (HACHEM; PIVETTA, 2011, p. 353HACHEM, Daniel Wunder; PIVETTA, Saulo Lindorfer. A biopolítica em Giorgio Agamben e Michel Foucault: o Estado, a sociedade de segurança e a vida nua. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, [S.l.], n. 10, v. 10, 2011.)
  • 6
    A provocação consta na epígrafe do livro Estado de Exceção (AGAMBEN, 2005AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.).
  • 7
    Ver no mesmo sentido: Agamben (2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo , 2008.) e em Azevedo (2013, p. 77-88AZEVEDO, Estênio Ericson Botelho de. O campo de extermínio como paradigma do poder soberano na contemporaneidade. Cadernos Benjaminianos, Belo Horizonte, Número Especial, p. 77-88, 2013.).
  • 8
    “Nowhere in Homo Sacer, however, is a way out of the logic actually disclosed”. (CONNOLY apud ABDALLA, 2010ABDALLA, Guilherme de Andrade Campos. O estado de exceção em Giorgio Agamben - Contribuições ao estuado da relação Direito e Poder. 2010. 224 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.).
  • 9
    “We are told nothing about what a movement out of the paradox of sovereignty and ‘towards a politics freed from any ban’ would imply”. (LACLAU apud ABDALLA, 2010).
  • 10
    Diz-se que o poder de veto do STF sobre as instâncias políticas majoritárias é relativo porque não se trata verdadeiramente de uma interdição deliberativa ou decisória definitiva (veto absoluto), mas apenas de um veto temporalmente posicionado. É dizer, não sendo o Poder Judiciário detentor da “última palavra” em matéria hermenêutica constitucional, os parlamentos e governos poderão oferecer, no futuro, outra significação da Constituição, que não aquela apresentada pela Suprema Corte.
  • 11
    O fenômeno do surgimento de desafetos da Corte parece se relacionar com a noção de backlash. As decisões sobre temas controvertidos necessariamente fazem surgir reações na sociedade, e elas podem e devem ser compreendidas como uma virtude do sistema democrático liberal. Não se argumenta aqui, como já dito, que o Poder Judiciário seja detentor do monopólio da interpretação constitucional, mas que seu poder de veto se opera de maneira precária e necessariamente temporalizada (pode ser rediscutido pelas instâncias majoritárias no futuro). É esse o entendimento de Vera Karam de Chueiri e José Arthur Castillo de Macedo (2018CHUEIRI, Vera Karam de Chueiri; MACEDO, José Arthur Castillo de. Teorias Constitucionais Progressistas, Backlash e Vaquejada. Revista Sequência, Florianópolis, n. 80, p. 123-150, 2018.): “As reações provocadas por uma dada decisão podem estimular disputas acerca dos sentidos da Constituição ampliando a participação, para além da esfera jurisdicional. Quer dizer, os juízes não têm e não devem ter o monopólio sobre a interpretação da Constituição, podendo esta ser compartilhada; 6) Ainda, as reações às decisões não só deslocam do Poder judiciário a palavra final, mas desencadeiam eventos políticos, sociais e culturais”. (CHUEIRI; MACEDO, 2018, p. 123-150CHUEIRI, Vera Karam de Chueiri; MACEDO, José Arthur Castillo de. Teorias Constitucionais Progressistas, Backlash e Vaquejada. Revista Sequência, Florianópolis, n. 80, p. 123-150, 2018.).
  • 12
    À luz da filosofia de Carl Schmitt, que em larga medida oferece a moldura teórica do pensamento de Giorgio Agamben, quando o soberano decide uma questão de interesse social, ele naturalmente estará prestigiando os interesses de um grupo político (seu amigo) em detrimento dos interesses de outro grupo politicamente relevante (seu inimigo). Obviamente que as decisões do Supremo Tribunal Federal não se guiam pela lógica exata do pensamento schmittiano, afinal a Corte fundamenta suas decisões nos parâmetros oferecidos pelo direito. Todavia, o paralelo que se traça aqui parece válido para resgatar a ideia de que os “efeitos” políticos das decisões da Corte resultam no surgimento de grupos sociais “amigos” e “inimigos” da Instituição (leia-se: vencedores e derrotados por suas decisões). Ver: Schmitt (1992SCHMITT, Carl. O conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1992.) e Lorenzetto (2014. p. 183LORENZETTO, Bruno Meneses. Os caminhos do constitucionalismo para a democracia. Curitiba, 2014. 323 f. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2014.).
  • 13
    Sobre o crescente descontentamento da população em relação ao STF, consultar: https://www.conjur.com.br/2017-ago-27/descontentamento-populacao-chega-supremo-segundo-pesquisa. Acesso em: 1º ago. 2019CONJUR. Descontentamento da população chega ao Supremo, segundo pesquisa. [2019a]. Disponível em: Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-ago-27/descontentamento-populacao-chega-supremo-segundo-pesquisa . Acesso em: 1º ago. 2019.
    https://www.conjur.com.br/2017-ago-27/de...
    .
  • 14
    Um terço da população brasileira aceitaria fechar o STF, conforme revelou pesquisa realizada pelo JOTA, consultar em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/stf/pesquisa-jota-34-dos-brasileiros-aceitam-fechar-o-congresso-e-32-o-stf-08072019. Acesso em: 1º ago. 2019.
  • 15
    Informação disponível em: https://www.oantagonista.com/brasil/procurador-da-lava-jato-denuncia-o-mais-novo-golpe-stf/. Acesso em: 3 ago. 2019ANTAGONISTA. Procurador da Lava Jato denuncia o mais novo golpe do STF. [2019b]. Disponível em: Disponível em: https://www.oantagonista.com/brasil/procurador-da-lava-jato-denuncia-o-mais-novo-golpe-stf/ . Acesso em: 3 ago. 2019.
    https://www.oantagonista.com/brasil/proc...
    .
  • 16
    Em resumo, o autor do texto sustenta que a “turma do abafa” pretende sedimentar uma nova e casuística orientação jurisprudencial na Segunda Turma do STF, para remeter todos os casos de corrupção envolvendo agentes políticos para a Justiça Eleitoral. A intenção maliciosa seria embaraçar a efetividade da persecução penal contra esses criminosos poderosos.
  • 17
    “Na década de 1990, o sorteio de cada processo no STF era feito com um pequeno globo e bolinhas, como se os ministros participassem de um permanente jogo de bingo. O sistema foi informatizado para adequar a Corte aos novos tempos e ao cada vez maior número de ações - em 2017, o Supremo distribuiu, em média, 224 processos por dia aos gabinetes dos ministros. O software, desenvolvido pela equipe de Tecnologia da Informação do tribunal, utiliza de um algoritmo, ou seja, uma sequência previamente definida de comandos, para estipular a qual gabinete será encaminhado cada processo. Com alguns cliques de mouse e um enter, o processo é inserido no sistema e sorteado”. (RECONDO; WEBER, 2019, p. 111RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.)
  • 18
    Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.
  • 19
    Em pertinente reprimenda institucional à conduta do ministro Dias Toffoli, a Procuradoria-Geral da República assim se manifestou em petição que requereu o arquivamento do procedimento: “O devido processo legal exige a delimitação da investigação penal em cada inquérito, seja para permitir o controle externo da atividade policial, seja para viabilizar a validade das provas, definir o juízo competente, e assegurar a ampla defesa e o contraditório, notadamente em relação a medidas cautelares determinadas pelo juízo processante. A delimitação da investigação não pode ser genérica, abstrata, nem pode ser exploratória de atos indeterminados, sem definição no tempo e espaço, nem de indivíduos. O devido processo legal reclama o reconhecimento da invalidade de inquérito sem tal delimitação”. Informação disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/INQ4781.pdf. Acesso em: 5 ago. 2019.
  • 20
    Informação disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/rede-adpf-inquerito-ameacas-ministros.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019CONJUR. Petição inicial de ADPF. [2019b]. Disponível em: Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/rede-adpf-inquerito-ameacas-ministros.pdf . Acesso em: 1º ago. 2019.
    https://www.conjur.com.br/dl/rede-adpf-i...
    .
  • 21
    Informação disponível em: https://crusoe.com.br/edicoes/50/o-amigo-do-amigo-de-meu-pai/. Acesso em: 1º ago. 2019ANTAGONISTA. O amigo do amigo de meu pai. [2019a]. Disponível em: Disponível em: https://crusoe.com.br/edicoes/50/o-amigo-do-amigo-de-meu-pai/ . Acesso em: 1º ago. 2019.
    https://crusoe.com.br/edicoes/50/o-amigo...
    .
  • 22
    Informação disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2019/04/Amigo-do-amigo-do-meu-pai.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019.
  • 23
    Curiosamente, o próprio Supremo Tribunal Federal, na ADPF 395, havia reconhecido “[...] a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
  • 24
    A reportagem mencionara textualmente que uma cópia do documento havia sido “remetida” pelos investigadores da Operação Lava Jato de Curitiba à Procuradoria-Geral da República, em Brasília. Entretanto, no dia seguinte à publicação da reportagem, a Procuradoria-Geral da República, que ainda não tinha conhecimento do referido documento, emitiu Nota de Esclarecimentos nos seguintes termos: “Ao contrário do que afirma o site O Antagonista, a Procuradoria-Geral da República (PGR) não recebeu nem da Força-Tarefa Lava Jato no Paraná e nem do delegado que preside o inquérito 1365/2015 qualquer informação que teria sido entregue pelo colaborador Marcelo Odebrecht em que ele afirma que a descrição “amigo do amigo de meu pai” refere-se ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli”. Ou seja, a nota mostrava-se imprópria porque, em nenhum momento, os jornalistas haviam afirmado que a PGR havia “recebido” o documento em questão, mas que ele havia sido a ela remetido. Comprovando esse fato, aliás, dias depois o documento teve sua existência confirmada por diversos meios e o ministro Alexandre de Moraes se viu obrigado a revogar a ordem cautelar, em decisão proferida em 18/04/2019.
  • 25
    Informação disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2019/4/art20190415-15.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019.
  • 26
    Informação disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2019/4/art20190416-10.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019.
  • 27
    Art. 243 O mandado de busca deverá: I - indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem.
  • 28
    Habeas Corpus n. 144.150/STF e Habeas Corpus 163.461/STF.
  • 29
    Súmula Vinculante n. 14: é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
  • 30
    Informação disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-opina-pelo-acesso-de-medico-investigado-pelo-stf-a-inquerito-que-apura-propagacao-de-fake-news-sobre-ministros. Acesso em: 1º ago. 2019.
  • 31
    Informação disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/alexandre-moraes-suspende-investigacoes.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019.
  • 32
    Informação disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/receita-federal-mira-em-esposa-de-toffoli-e-ministra-do-stj/. Acesso em: 1º ago. 2019.
  • 33
    Informação disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/02/receita-diz-que-nao-ha-fiscalizacao-sobre-gilmar-mendes.shtml. Acesso em: 1º ago. 2019.
  • 34
    Informação disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/01/politica/1564666744_332248.html. Acesso em: 1º ago. 2019EL PAIS. Dallagnol buscou dados para ofensiva contra Toffoli. [2019]. Disponível em: Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/01/politica/1564666744_332248.html . Acesso em: 3 ago. 2019.
    https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08...
    .
  • 35
    Excertos transcritos no corpo da decisão judicial, consultar em: https://www.conjur.com.br/dl/alexandre-moraes-suspende-investigacoes.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019.
  • 36
    A toda evidência, o acesso de terceiros - delegados, servidores, juízes etc. - ao conteúdo de mensagens interceptadas ilegalmente representa, logicamente, a continuação da ofensa ao bem jurídica “privacidade” dos cidadãos que foram hackeados.
  • 37
    Informação disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/INQ4781.pdf. Acesso em: 1º ago. 2019.
  • 38
    Em 16 de abril de 2019, o ministro Dias Toffoli prorrogou o Inquérito por mais 90 dias. Em 1º de agosto de 2019, o ministro Alexandre de Moraes prorrogou a investigação por outros 180 dias, o que significa que os trabalhos podem se estender (pelo menos) até fevereiro de 2020.
  • 39
    “Há um instituto do direito romano que, de certa forma, pode ser considerado o arquétipo do moderno Ausnahmezustand e que, no entanto, e talvez justamente por isso, não parece ter recebido atenção suficiente por parte dos historiadores do direito e dos teóricos do direito público: o iustitium”. (AGAMBEN, 2005, p. 67AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2020
  • Revisado
    30 Abr 2020
  • Aceito
    12 Maio 2020
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