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A influência das audiências públicas e dos amicus curiae na construção da resposta certa pelo Supremo Tribunal Federal

The influence of public hearings and amicus curiae in the construction of the right answer by the Brazilian Supreme Court

Resumo

O artigo, por meio da revisão bibliográfica e utilizando como marco teórico Dworkin, revela a necessidade de aprimoramentos no uso dos institutos dos amicus curiae e das audiências públicas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para que esses contribuam para pluralização do debate e para a melhor qualidade das decisões, auxiliando os ministros a desvelarem a moralidade política da comunidade e a construírem a resposta certa para o caso.

Palavras-chave
Supremo Tribunal Federal; Audiências públicas; Amicus curiae; Dworkin

Abstract

The article, through bibliographic review and using Dworkin as a theoretical framework, demonstrates the need for improvements in the use of the amicus curiae and public hearings by the Brazilian Supreme Court (STF) so they contribute to the plurality of the debate and to improve the quality of decisions, helping ministers to unveil the community’s political morality and construct the right answer for the case.

Keywords
Brazilian Supreme Court; Public hearings; Amicus curiae; Dworkin

1 INTRODUÇÃO

Conforme Conrado Hübner Mendes, um tribunal deliberativo de tipo ideal é aquele que maximiza a diversidade de argumentos dos interlocutores fomentando a contestação pública na fase pré-decisória; que incentiva os julgadores ao engajamento colegiado na fase decisional e que na fase pós-decisória elabora uma decisão deliberativa por escrito. Nesse aspecto, as audiências públicas e os amicus curiae são instrumentos que, na classificação de Mendes, dizem respeito à fase pré-decisória de um tribunal deliberativo de tipo ideal, em que se deve buscar a maximização da diversidade de argumentos dos interlocutores, incentivando a contestação pública (Mendes, 2013, p. 105, 107).

A fase pré-decisória é iniciada por um grupo de atores políticos que formalmente podem submeter um caso à Corte Constitucional e perpassa todos os momentos até a fase de decisão. A qualidade da contestação pública irá variar conforme a importância do caso e de acordo como a comunidade política irá contribuir com as questões debatidas, dizendo respeito tanto ao envolvimento dos atores interessados na apresentação de argumentos como à atenção sincera dos julgadores a tais argumentos. Cabe ao tribunal constitucional deliberativo possuir uma abertura institucional aos atores externos, podendo contar com dispositivos institucionais que facilitem a contestação pública, buscando coletar o máximo de argumentos possíveis de seus interlocutores e contestar publicamente esses argumentos (Mendes, 2013MENDES, C. H. Constitutional courts and deliberative democracy. Oxford: Oxford University Press, 2013., p. 107, 108).

Nesse contexto, a fase de contestação pública é caracterizada pela virtude da curiosidade respeitosa, de acordo com a qual um tribunal constitucional deliberativo deve ouvir e entender o que um grupo plural de interlocutores tem a dizer e ser aberto aos argumentos externos, filtrando qualitativamente os argumentos que merecerão uma maior reflexão pelos deliberadores. A curiosidade respeitosa envolve uma escuta ativa, a compreensão do que os interlocutores têm a dizer, buscando o esclarecimento sobre suas alegações e desafiando os argumentos levantados, de modo que os juízes deveriam resistir a formar suas convicções antes da interação argumentativa (Mendes, 2013MENDES, C. H. Constitutional courts and deliberative democracy. Oxford: Oxford University Press, 2013., p. 127, 128).

O modo de interação entre os julgadores e interlocutores deve fornecer condições para curiosidade respeitosa. A Corte deliberativa necessita ter liberdade para desafiar os argumentos dos interlocutores, para imaginar argumentos não levantados, estando aberta à interação, sem um ritualismo rígido. Um procedimento rígido, que impeça a Corte de calibrar a participação dos interlocutores, poderia dificultar a contestação pública, sendo necessária uma flexibilidade e seleção, considerando as promessas da deliberação, as diferentes posições sociais e originalidade dos argumentos (Mendes, 2013MENDES, C. H. Constitutional courts and deliberative democracy. Oxford: Oxford University Press, 2013., p. 128, 163, 164).

Ainda, o grau de diversidade dos interlocutores influencia o desempenho deliberativo da contestação pública, pois a diversidade de interlocutores pode contribuir para aumentar o leque de perspectivas a serem analisadas pelo tribunal. Assim, os procedimentos da Corte devem permitir a confluência de argumentos de interlocutores heterogêneos como especialistas e amicus curiae (Mendes, 2013MENDES, C. H. Constitutional courts and deliberative democracy. Oxford: Oxford University Press, 2013., p. 161, 162).

Em sentido semelhante, Vale destaca a diretriz da amplitude informativa e cognitiva ao tratar das diretrizes para o aperfeiçoamento institucional da capacidade deliberativa das Cortes Constitucionais. A diretriz envolve tanto a necessidade de circulação entre os deliberadores das informações disponíveis sobre a matéria, como de ampliação das vias de acesso e de conhecimento das questões envolvidas. Isso porque, quanto maior a circulação de informações e o conhecimento dos ministros sobre a matéria, maior a probabilidade de uma maior qualidade na deliberação e de se vislumbrar soluções alternativas. O favorecimento dessa diretriz poderia se dar pelas audiências públicas (Vale, 2015, p. 385, 386).

Ainda, Vale trata da diretriz da inclusividade e diversidade de razões, segundo a qual, as normas e procedimentos devem objetivar o maior número possível de razões para o debate, incorporando as razões das partes e dos setores interessados ou afetados pela decisão. O objetivo da diretriz é levar ao interior do colegiado o pluralismo existente na sociedade, exigindo a abertura do processo constitucional da Corte às razões e perspectivas que podem ser trazidas pelos diferentes segmentos políticos e sociais, ganhando importância em relação à diretriz a figura dos amicus curiae. (Vale, 2015, p. 387, 388).

Assim, na fase pré-decisória, cabe ao STF estar aberto à interação com os seus interlocutores, sem um ritualismo rígido, buscando coletar o maior número de argumentos possíveis e prestando atenção em tais contribuições, de modo a aumentar o leque de razões e perspectivas a serem debatidas pelo tribunal e a qualidade das decisões.

Nesse âmbito, na fase pré-decisória, as audiências públicas e os amicus curiae são dispositivos institucionais com a potencialidade de trazer novos argumentos, perspectivas e informações para a Corte em relação às matérias a serem decididas, pluralizando e fomentando o debate e contribuindo para melhor qualidade e legitimidade das decisões.

Contudo, apesar dessa potencialidade, esses dispositivos institucionais na prática podem não cumprir tais funções, e podem produzir manifestações que não são de fato ouvidas pela Corte. Isto é, pode ser que o STF escolha quem ouvir e quando ouvir, sem um espaço efetivo para consideração dos diversos pontos de vista. Conforme destaca Fernando Leal (2019LEAL, F. O mito da sociedade aberta de intérpretes da Constituição. In: FALCÃO, J.; ARGUELHES, D. W.; PEREIRA, T.; RECONDO, F. (org.). O Supremo e o processo eleitoral. Belo Horizonte: Letramento ; Casa do Direito; FGV Direito Rio; Supra; Jota. 2019., p. 42): “falar não significa ser ouvido, e fazer-se ouvir não significa influenciar”.

Diante desse quadro, este trabalho, por meio de uma revisão bibliográfica, à luz da teoria de Dworkin, discute as fragilidades encontradas pelos institutos das audiências públicas e dos amicus curiae e a importância desses instrumentos para auxiliar os ministros do STF a desvelarem a moralidade política da comunidade e a construírem argumentativamente a resposta certa para o caso em análise. Para tal, considerando o papel, já exposto, desses institutos na fase pré-decisória da Corte Constitucional, em um primeiro momento, o artigo irá expor brevemente a ligação desses mecanismos com a teoria de Dworkin, para então sugerir aprimoramentos em sua utilização.

2 O PAPEL DAS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS E DOS AMICUS CURIAE NA CONSTRUÇÃO ARGUMENTATIVA DA RESPOSTA CERTA NOS CASOS DIFÍCEIS: UMA ANÁLISE A PARTIR DA TEORIA DE DWORKIN

A adoção de Dworkin como marco teórico do artigo se justifica pela valorização em sua teoria do conteúdo e da substância das decisões, do modo pelo qual os magistrados decidem os casos. Isto é, só há sentido discutir a necessidade de aprimoramentos em institutos relativos à fase pré-decisória do STF quando os argumentos considerados pela Corte são efetivamente importantes para construção da melhor resposta para o caso, que vinculará a decisão de casos futuros. Nessa conjuntura, o presente trabalho tem como enfoque especialmente a teoria de Dworkin sobre a construção da resposta certa nos casos difíceis.

Conforme leciona Pugliese, na teoria de Dworkin, os casos fáceis são aqueles que possuem uma regra aplicável que determina o resultado do julgamento, enquanto os casos difíceis não possuem uma regra aplicável para sua solução, envolvendo uma discussão genuína sobre o direito. Com essa distinção, para Pugliese, Dworkin quer explicitar que nos casos difíceis a decisão do magistrado vai além da simples aplicação de regras, sendo a esfera argumentativa essencial para compreensão do direito (Pugliese, 2016PUGLIESE, W. S. A ratio da jurisprudência: coerência, integridade, estabilidade e uniformidade. 310 f. Tese (Doutorado em Direito) - Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016., p. 39).

Para Dworkin, mesmo nos casos difíceis, não há uma discricionariedade, uma criação do direito pelo juiz diante do caso concreto, pois ao juiz, conforme salientam Chueiri e Sampaio (2009CHUEIRI, V. K. de; SAMPAIO, J. M. de A. Como levar o Supremo Tribunal Federal a sério: sobre a suspensão de tutela antecipada n.91. Revista Direito GV, [S.l.], v. 5, n. 1, p. 045-066, jan. 2009. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2Z3G0me . Acesso em: 18 dez. 2019.
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, p. 52), é: “dado interpretar o conjunto de práticas que significam o direito como os precedentes, a legislação e os padrões morais socialmente compartilhados e, a partir deles, construir a sua decisão baseada no princípio que melhor descreva essas práticas”. Assim, em um caso difícil o juiz não criaria o direito, mas resolveria o caso com base nos princípios constitucionais (Chueiri; Sampaio, 2009, p. 53).

Além disso, nesse cenário, cabe destacar que, para Dworkin, toda demanda judicial possui uma resposta certa1 1 Segundo Dworkin, se existem casos sem uma resposta certa em um ordenamento jurídico eles devem ser raros (DWORKIN, 2001, p. 215). , que deve ser construída de forma coerente a partir de princípios (Chueiri; Sampaio, 2009CHUEIRI, V. K. de; SAMPAIO, J. M. de A. Como levar o Supremo Tribunal Federal a sério: sobre a suspensão de tutela antecipada n.91. Revista Direito GV, [S.l.], v. 5, n. 1, p. 045-066, jan. 2009. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2Z3G0me . Acesso em: 18 dez. 2019.
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, p. 52). Para Dworkin seria possível encontrar a resposta certa para um caso a partir de uma análise do ordenamento jurídico, de suas regras e princípios subjacentes (Kozicki, 2000KOZICKI, K. Conflito e estabilização: comprometendo radicalmente a aplicação do direito com a democracia nas sociedades contemporâneas. 266 f. Tese (Doutorado em direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000., p. 182).

A resposta certa seria aquela capaz de fazer as decisões políticas anteriores de certa comunidade parecerem um todo coerente, baseado em princípios comuns (MAchado, 2014MACHADO, I. S. Os medos de Dworkin e a jurisdição constitucional brasileira: o Direito entre a Moral e a Política na prática. Revista Novos Estudos Jurídicos - Eletrônica, Vol. 19, n. 2, mai/ago 2014., p. 613). De acordo com Chueiri e Sampaio (2009CHUEIRI, V. K. de; SAMPAIO, J. M. de A. Como levar o Supremo Tribunal Federal a sério: sobre a suspensão de tutela antecipada n.91. Revista Direito GV, [S.l.], v. 5, n. 1, p. 045-066, jan. 2009. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2Z3G0me . Acesso em: 18 dez. 2019.
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, p. 63): “segundo a teoria da resposta certa de Dworkin, o judiciário deve decidir da melhor maneira, analisando qual seria a decisão mais coerente possível frente ao sistema principiológico constitucional”.

Nesse aspecto, de acordo com Macedo Jr. (2013MACEDO JR., R. P. Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. , p. 48), a tese de Dworkin da resposta certa: “está na base de uma concepção interpretativa da verdade e da objetividade, segundo a qual afirmar a objetividade de uma proposição significa reconhecer que ela está justificada pelos melhores argumentos disponíveis”.

Dessa forma, conforme destaca Chueiri (1995CHUEIRI, V. K. de. Filosofia do direito e modernidade: Dworkin e a possibilidade de um discurso instituinte de direitos. Curitiba: JM, 1995., p. 68), a resposta certa é construída argumentativamente, não havendo espaço para o ato discricionário do juiz. Sob o mesmo viés, Kozicki (2000KOZICKI, K. Conflito e estabilização: comprometendo radicalmente a aplicação do direito com a democracia nas sociedades contemporâneas. 266 f. Tese (Doutorado em direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000., p. 198) salienta que a resposta certa seria uma resposta possível entre várias, uma interpretação possível construída a partir do ato interpretativo.

Ainda, para Dworkin, para se objetar sua teoria da resposta certa deve-se, a partir de um argumento filosófico, contestar sua suposição de que em um sistema jurídico complexo é improvável que duas teses exijam respostas diversas em um caso e ao mesmo tempo se adequem igualmente bem ao conteúdo jurídico relevante (dimensão da adequação). Ademais, deve-se defender alguma visão de ceticismo ou de indeterminação na teoria moral que permita supor que nenhuma das teorias pode ser preferida com base na moralidade política (dimensão da moralidade política) (Dworkin, 2001, p. 215, 216).

Nesse cenário, ao construir sua teoria do direito como integridade e a metáfora do romance em cadeia, o autor distingue dimensões da interpretação a serem consideradas pelos juízes na construção da resposta certa para os casos. A primeira delas é a da adequação, segundo a qual a interpretação deve fluir ao longo de todo o texto, com um poder explicativo geral, não sendo bem sucedida se não explicar um importante aspecto estrutural do texto (Dworkin, 1999DWORKIN, R. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes , 1999., p. 277, 278).

Todavia, o julgador pode considerar que mais de uma interpretação se enquadra no conjunto do texto. Nesse caso, a segunda dimensão da interpretação exige que ele escolha qual dessas leituras possíveis se ajusta melhor a obra em desenvolvimento, que mostre o texto sob uma melhor luz, se ajustando a uma maior parte do texto ou permitindo uma integração mais interessante de estilo e conteúdo (Dworkin, 1999DWORKIN, R. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes , 1999., p. 278).

Assim, a adequação exige um patamar a que a interpretação de alguma parte do direito deve atender para se tornar aceitável, de modo que os fatos brutos da história jurídica irão limitar o papel das convicções pessoais do juiz sobre questões de justiça. Ou seja, a história política da comunidade irá restringir as convicções políticas no juízo interpretativo (Dworkin, 1999DWORKIN, R. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes , 1999., p. 305).

Quando a adequação não desempenha nenhum papel útil na deliberação, nem mesmo em sua segunda dimensão, cabe ao julgador decidir: “qual é a interpretação que mostra o histórico jurídico como o melhor possível do ponto de vista da moral política substantiva” (Dworkin, 1999DWORKIN, R. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes , 1999., P. 298, 299). Desse modo, os casos difíceis se apresentariam quando essa análise preliminar da adequação não fizer prevalecer uma das interpretações, devendo então o juiz questionar “qual delas apresenta em sua melhor luz, do ponto de vista da moral política, a estrutura das instituições e decisões da comunidade - suas normas públicas como um todo” (Dworkin, 1999, p. 306). Nesse caso, a decisão irá refletir a opinião do juiz sobre a justiça e a equidade e sobre a possibilidade de acordo sobre esses ideais quando estão em competição. Para o autor, as questões de adequação voltam a aparecer nessa fase da interpretação. Ademais, diferentes juízes divergirão sobre essas questões, possuindo pontos de vista distintos sobre o que é o direito de sua comunidade (Dworkin, 1999, p. 306).

Portanto, para o autor, a concepção de integridade e coerência do direito como instituição irá limitar as convicções do juiz sobre em que medida uma interpretação deve se ajustar ao direito anterior e de que maneira. Todavia, nem sempre o juiz conseguirá a partir desse critério produzir uma interpretação única, o que talvez traga a distinção entre os casos controversos e fáceis. Isto é, dois princípios podem encontrar apoio suficiente nas decisões do passado, satisfazendo a dimensão de adequação, cabendo a teoria política substantiva, a moralidade política, desempenhar um papel decisivo (Dworkin, 2001DWORKIN, R. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes , 2001., p. 240, 241).

Dessa forma, as decisões precisam ter uma coerência com os princípios2 2 Para Chueiri e Sampaio (2009, p. 56): “A comunidade de princípios é uma comunidade moralmente plural, ou seja, ela procura uma integridade entre os diversos valores morais, respeitando igualmente a moral de todos os cidadãos”. que representam a moralidade política da comunidade (Barboza, 2011BARBOZA, E. M. de Q. Stare decisis, Integridade e Segurança Jurídica: Reflexões Críticas a Partir da Aproximação dos Sistemas de Common Law e Civil Law na Sociedade Contemporânea. 264 p. Tese (Doutorado em direito) - PUCPR, Curitiba, 2011., p. 25). Nesse âmbito, Dworkin (2002DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. 197) sustenta que: “(...) a moralidade comunitária é a moralidade política que as leis e as instituições da comunidade pressupõem”. Ademais, conforme Barboza (2011, p. 128, 129), a moralidade política da comunidade pode ser buscada na sua história, nos princípios presentes na Constituição e que embasaram decisões anteriores.

Assim, ao decidir os casos, o julgador deve levar em consideração as tradições morais da comunidade, ao menos da forma como são capturadas no registro institucional, o qual deve interpretar. Todavia, certas decisões podem se opor a moralidade popular por essa ser considerada incoerente diante da moralidade constitucional, isto é, diante da justificação dada à Constituição quando interpretada por seus juízes3 3 Barboza (2011, p. 122) destaca que as decisões judiciais que envolvam questões atinentes à moralidade política da comunidade devem respeitar a Constituição e as decisões anteriores que interpretam seus dispositivos. . Nesse aspecto, caberá ao julgador aplicar consistentemente os princípios sobre os quais se assentam as instituições, defendendo a moralidade constitucional da comunidade contra qualquer opinião incoerente (Dworkin, 2002DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. 196, 197).

Ainda, a decisão do julgador sobre o conteúdo da moralidade comunitária pode ser passível de controvérsia, quando a história institucional necessitar ser justificada por meio de um recurso a um conceito político contestado, como o de igualdade, mas que não esteja suficientemente detalhada para ser justificada por uma entre as diferentes concepções do conceito. Nesse caso, o julgador deverá analisar os casos claros e estabelecidos nos quais o conceito se aplica e tentar se colocar no contexto mais geral das crenças e atitudes daqueles que valorizam o conceito, buscando a formulação de uma teoria mais geral do conceito para responder as questões que a história institucional deixa em aberto (Dworkin, 2002DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. 198, 199).

Nesse contexto, na solução de casos difíceis que envolvam conceitos interpretativos contestados, as intervenções dos amicus curiae e a realização das audiências públicas, com novos argumentos, perspectivas e informações, podem contribuir para que os ministros do STF desvelem a moralidade política da comunidade para construção argumentativa da resposta certa para o caso.

Contudo, conforme será revelado no próximo capítulo, são necessários aprimoramentos no uso dos institutos das audiências públicas e dos amicus curiae para que esses cumpram suas funções de proporcionar uma pluralidade do debate na fase pré-decisória, auxiliar os ministros do STF a desvelarem a moralidade política da comunidade e contribuir para uma melhor qualidade das decisões.

3 AUDIÊNCIAS PÚBLICAS E AMICUS CURIAE: FRAGILIDADES E APRIMORAMENTOS

A Lei nº 9.868/1999, que trata sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, prevê em seu art. 7º, § 2º a possibilidade de intervenção dos amicus curiae. Conforme o dispositivo legal, o relator pode admitir a participação de órgãos ou entidades nessas ações considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes. Ademais, em relação à ADPF, a Lei nº 9.882/1999, em seu art. 6º, §1, também prevê a possibilidade de participação dos amicus curiae no processo.

Além de tais previsões do controle concentrado de constitucionalidade, de maneira geral, o art. 138 do CPC/2015 regulamentou a figura dos amicus curiae, trazendo como requisitos para sua intervenção a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia. A intervenção dos amicus curiae pode ocorrer por decisão de ofício, pelo requerimento das partes ou por requerimento de quem pretende intervir no feito. Pode intervir como amicus curiae pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada. Ademais, conforme o art. 138, § 2º do CPC/2015, cabe ao juiz ou relator definir os poderes dos amicus curiae na decisão que solicitar ou admitir a intervenção. Nesse aspecto, a positivação da figura dos amicus curiae no art. 138 do CPC/2015, o qual se localiza na parte geral do código, abre a possibilidade de utilização do instituto nos diversos tipos de ações (Rocha, 2017ROCHA, V. Y. B. da. Amicus curiae, para que? O papel dos amicus curiae na jurisdição constitucional e seus desafios à luz no novo Código de Processo Civil de 2015. 109 f. Dissertação (Mestrado em direito) - Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2017., p. 70).

O objetivo do instituto dos amicus curiae é dar voz a entidades que representem a sociedade civil, que auxiliem a Corte a coletar informações sobre os diferentes pontos de vista quanto ao julgamento, podendo esses realizar sustentação oral e apresentar manifestação escrita sobre a matéria objeto do julgamento (Mello, 2014MELLO, P. P. C. Nos bastidores do Supremo Tribunal Federal: constituição, emoção, estratégia e espetáculo. 477 f. Tese (Doutorado em Direito) -Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014., p. 415). Contudo, como os ministros costumam ir para a sessão de julgamento dos casos difíceis com votos prontos, as condições de influência das sustentações orais realizadas nas sessões plenárias tende a ser diminuída (Almeida, 2019ALMEIDA, E. M. de. Capacidades institucionais dos amici curiae no Supremo Tribunal Federal: acessibilidade, admissibilidade e influência. Rev. Direito Práxis. Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 678-707, Mar. 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2WS5dxs . Acesso em: 13 dez. 2019.
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, p. 696, 697).

Nesse contexto, Almeida realiza um estudo das capacidades institucionais dos amicus curiae no STF, salientando que, nos processos de controle de constitucionalidade, quanto aos critérios para admissão dos amicus curiae, o quesito da relevância da matéria vem sendo analisado como relacionado à complexidade da matéria ou à grande repercussão social, enquanto a representatividade dos postulantes tem sido relacionada à existência de vinculação do interveniente a pessoas potencialmente afetadas pelo caso e/ou sua especialidade em relação ao tema. Ademais, além desses dois critérios, o STF costuma utilizar nas decisões de inadmissibilidade dos amicus curiae o quesito de utilidade e inovação da manifestação, averiguando se a manifestação de quem requer a intervenção traria inovações em argumentos e informações. O critério da utilidade e inovação da manifestação está ligado a ideia de que o objetivo dos amicus curiae é pluralizar o debate constitucional, ampliando o campo de análise da ação, trazendo um maior ônus argumentativo aos ministros e provocando uma melhor decisão (Almeida, 2019, p. 686-692).

Ainda, o art. 7º, §2º, da Lei 9.868/1999 prevê que a decisão de admissão de amicus curiae é irrecorrível e o STF, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 602.584, firmou entendimento de que também é irrecorrível a decisão do ministro relator que inadmite a participação de amicus curiae, não comportando recurso de agravo regimental. Contudo, conforme Godoy, o entendimento firmado pela Corte é criticável, pois interessa não apenas ao relator, mas também ao plenário, a análise sobre a contribuição a ser dada pelo amicus curiae. Desse modo, deveria ser o plenário o último a se manifestar sobre a importância ou não da participação dos amicus curiae quando esses têm seu pedido de ingresso negado pelo relator. O entendimento do STF sobre a irrecorribilidade da decisão do relator que inadmite a participação dos amicus curiae acaba potencializando a atuação monocrática dos ministros, e fechando a abertura da Corte a diferentes ideias e perspectivas (Godoy, 2019GODOY, M. G. de. Mais um passo para um supremo monocrático. In: FALCÃO, J.; ARGUELHES, D. W.; PEREIRA, T.; RECONDO, F. (org.). O Supremo e o processo eleitoral. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito; FGV Direito Rio; Supra; Jota. 2019., p. 95, 97).

Outro problema é que, diante dos requisitos legais abertos de representatividade dos postulantes e relevância da matéria discutida, nas ações de controle concentrado de constitucionalidade observa-se a inexistência de critérios claros e uma variabilidade de decisões em relação à admissibilidade dos amicus curiae a depender do ministro relator. Ademais, para Almeida, o critério da representatividade dos postulantes, com a exigência de pertinência temática, especialização, representação por advogado e constituição formal, acaba influenciando no perfil dos amicus curiae e reduzindo os potenciais participantes do debate constitucional, afastando povos indígenas, comunidades quilombolas e certos movimentos sociais (Almeida, 2019, p. 700, 701, 703).

Nesse ponto, a partir de dados do projeto Supremo em Números da FGV Direito Rio, Leal afirma que, entre as entidades habilitadas em quatro ou mais processos como amicus curiae, grande parte das habilitações são de entidades públicas e, entre as entidades privadas, uma grande parcela é constituída por associações de classe de carreiras jurídicas, de modo que o STF conta com a maior participação de experts do que da sociedade civil “não-jurídica” (Leal, F., 2019, p. 43, 44).

Nesse âmbito, Godoy destaca que os amicus curiae deveriam trazer contribuições para a Corte para além daquelas já levantadas pelas partes e informantes, e não serem admitidos sem qualquer rigor quanto aos critérios. A admissão dos amicus curiae deveria ocorrer de forma excepcional, quando há essa possibilidade de contribuição e não apenas o intuito de defesa de um dos posicionamentos. Assim, caberia ao STF, de forma rígida, exigir a representatividade e capacidade de contribuição dos amicus curiae, definindo seus poderes e limites de atuação, nos termos do art. 138, §2º do CPC/2015, evitando que esses atuem como partes e reprodutores de argumentos já conhecidos. Isso porque, é a intervenção excepcional e qualificada que permite a participação de diferentes agentes no processo de discussão e decisão, corrigindo déficits e desigualdades, e tal conduta da Corte teria o potencial de reduzir o número excessivo de pedidos de ingresso de amicus curiae (Godoy, 2019, p. 97, 98).

Nesse cenário, diante da ampla variabilidade da interpretação dos requisitos a depender dos ministros, faz-se necessária a melhor delimitação interpretativa dos critérios de admissão dos amicus curiae, para que sejam aplicados de forma fundamentada, uniforme e clara, preservando a isonomia e a segurança jurídica, bem como para que garantam a pluralidade de participantes e a adequada aptidão dos amicus curiae em trazer novos subsídios para a decisão, evitando seu uso estratégico apenas para legitimar as decisões.

Já quanto às audiências públicas, a Lei n. 9.868/99, que trata do processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o STF, em seu art. 9º, § 1º e 20, § 1º, permite que o relator realize audiência pública para ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria quando for notória a insuficiência de informações nos autos ou em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato. Ademais, em relação à ADPF, a Lei nº 9.882/99, em seu art. 6º, §1º, prevê a possibilidade de o relator realizar audiência pública para ouvir declarações de pessoas com experiência e autoridade na matéria, não elencando expressamente as hipóteses de cabimento. Todavia, apesar das leis datarem de 1999, o STF apenas realizou sua primeira audiência pública em 2007, a qual referia-se à ADI 3510, que envolvia a discussão sobre a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias (Mello, 2014MELLO, P. P. C. Nos bastidores do Supremo Tribunal Federal: constituição, emoção, estratégia e espetáculo. 477 f. Tese (Doutorado em Direito) -Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014., p. 416).

Posteriormente, a emenda regimental 29/2009 do Regimento Interno do STF, regulamentou a matéria, passando a prever a possibilidade de convocação pelo relator do processo ou pelo Presidente da Corte de audiências públicas, para ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em determinada matéria, sempre que necessário ao esclarecimento de questões ou circunstâncias de fato, com repercussão geral e de interesse público relevante (art. 13, inc. XVII e art. 21, XVII). Nesse cenário, a Emenda Regimental 29/2009 trouxe a possibilidade de convocação de audiências públicas para todos os tipos de ações julgadas no STF (Leal, F. et al., 2018, p. 337, 338).

A emenda também estabeleceu a ampla divulgação da convocação das audiências públicas, o estabelecimento de prazo para indicação de pessoas a serem ouvidas, a garantia da participação das diferentes correntes de opinião e sua transmissão pela TV Justiça e Rádio Justiça (art. 154, parágrafo único). O site do STF, seu Twitter e canal no YouTube também divulgam informações sobre as audiências públicas realizadas pela Corte. Ainda, conforme o inc. III do parágrafo único do art. 154 do Regimento Interno do STF, cabe ao ministro que presidir a audiência selecionar as pessoas que serão ouvidas, divulgar a lista dos habilitados, determinar a ordem dos trabalhos e fixar o tempo que cada um terá para se manifestar. Ademais, conforme o inc. IV caberá ao depoente se limitar ao tema ou questão em debate.

Nesse contexto, as audiências públicas objetivam potencializar um debate plural, com a participação de diferentes segmentos sociais, bem como permitir a formulação pelos ministros de um entendimento mais completo sobre as matérias debatidas (Leal, M. C. H., 2014LEAL, M. C. H. As audiências públicas no âmbito do Supremo Tribunal Federal brasileiro: uma nova forma de participação?. Novos Estudos Jurídicos, [S.l.], v. 19, n. 2, p. 327-347, jul. 2014. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3bwHrvY . Acesso em: 10 dez. 2019.
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, p. 343). Podem participar das audiências públicas os requerentes e os requeridos na ação, os amicus curiae, especialistas sobre a matéria, autoridades e órgãos públicos, entidades representativas da sociedade civil e movimentos sociais (Mello, 2014MELLO, P. P. C. Nos bastidores do Supremo Tribunal Federal: constituição, emoção, estratégia e espetáculo. 477 f. Tese (Doutorado em Direito) -Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014., p. 417).

Ademais, a partir das disposições normativas observa-se que há uma ampla liberdade do relator do processo ou do Presidente da Corte em relação à convocação das audiências públicas, à seleção das pessoas que serão ouvidas, ao estabelecimento da ordem dos trabalhos e do tempo de fala dos interessados. Essa liberdade pode ser positiva por permitir ao relator ou Presidente adaptar o modo de realização das audiências de acordo com o caso debatido e os seus participantes, sem um ritualismo rígido. Todavia, tal flexibilidade não pode significar a inexistência de parâmetros devidamente fundamentados, devendo a conduta do relator ou Presidente se pautar pela busca de uma maior pluralidade dos argumentos, pelo incentivo ao debate de ideias e pela isonomia entre os participantes.

Ainda, é comum que os relatores realizem alguma forma de controle em relação ao conteúdo das exposições nas audiências públicas, por exemplo, afastando exposições tipicamente jurídicas ou incentivando o foco em questões técnicas. Assim, os expositores não são completamente livres sobre o conteúdo dos tópicos a serem tratados (Marona; Rocha, 2017MARONA, M. C.; ROCHA, M. M. da. Democratizar a jurisdição constitucional? O caso das audiências públicas no Supremo Tribunal Federal. Rev. Sociol. Polit., Curitiba , v. 25, n. 62, p. 131-156, jun. 2017 . Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2zxjqb0 . Acesso em: 15 dez. 2019.
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, p. 148). Esse controle é relevante para que as audiências não percam seu foco em relação à matéria discutida, bem como para que não se limitem a reiteração de argumentos já levantados. Contudo, não deve significar uma limitação ao debate e a ampla exposição de diferentes perspectivas, não sendo necessário um procedimento rígido, mas sim passível de flexibilização de acordo com o transcorrer da audiência.

Quanto à função, os discursos vinculados pelos ministros nas primeiras audiências traziam a ligação dessas com a possibilidade de participação popular, que trariam maior legitimidade para os julgamentos, enquanto as normas que regulamentam o instituto ressaltam seu papel de trazer informações para os julgadores (Guimarães, 2019GUIMARÃES, L. G. Participação Social no STF: repensando o papel das audiências públicas. Revista Direito e Práxis, [S.l.], jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3bpNvXe . Acesso em: 18 dez. 2019.
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, p. 4).

Nesse ponto, Guimarães, a partir da análise das 19 primeiras audiências públicas do STF, busca identificar as funções que são dadas na prática às audiências. A partir da pesquisa empírica, Guimarães constata que o discurso dos ministros sobre o papel das audiências públicas afirma que elas servem para trazer informações, permitir uma democracia participativa, legitimar as decisões e criar um espaço de diálogo social. Todavia, na prática, as audiências públicas apenas exercem seu papel informacional, deixando deficitárias as demais funções, tendo em vista seus problemas de estrutura e organização, de seleção de participantes, de admissibilidade e acessibilidade (Guimarães, 2019, p. 5, 19-21).

Em primeiro lugar, a estrutura e organização das audiências públicas não favorecem a troca de argumentos entre os participantes e entre eles e os ministros. Isso porque, em sua maioria, são organizadas de modo não dialógico, desenhando as demandas de forma bilateral, colocando os participantes em uma lógica adversarial, sem a fragmentação das demandas em diversos pontos a serem discutidos. Ademais, em poucas audiências houve desde o início um questionamento específico direcionado aos participantes, o que facilitaria a troca de argumentos e poderia incentivar a discussão de diversos pontos (Guimarães, 2019GUIMARÃES, L. G. Participação Social no STF: repensando o papel das audiências públicas. Revista Direito e Práxis, [S.l.], jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3bpNvXe . Acesso em: 18 dez. 2019.
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, p. 21).

Nesse ponto, analisando 15 casos de audiências públicas realizadas pelo STF entre 2007 e 2014, Marona e Rocha (2017ROCHA, V. Y. B. da. Amicus curiae, para que? O papel dos amicus curiae na jurisdição constitucional e seus desafios à luz no novo Código de Processo Civil de 2015. 109 f. Dissertação (Mestrado em direito) - Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2017., p. 148, 149) concluem que há uma limitação à interação entre os participantes nas audiências. Na maior parte dos casos não há uma interação entre os participantes e os ministros e, em nenhum caso, foi permitido aos participantes dirigirem a palavra uns aos outros, de modo que as audiências se assemelham mais a uma arguição do que a um debate. Contudo, é possível perceber um intercâmbio indireto de ideias e informações.

Assim, as audiências se tornam um local de exposição de diferentes manifestações orais, sem um caráter dialógico (Pinhão, 2018PINHÃO, K. A. G. A inserção das audiências públicas: reforço ou enfraquecimento da legitimidade democrática das decisões do Supremo Tribunal Federal?. Rei - Revista Estudos Institucionais, [S.l.], v. 4, n. 1, p. 459-483, ago. 2018. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3fFphLU . Acesso em: 05 dez. 2019.
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, p. 476). Para Godoy, no modelo atual, a restrição aos debates entre os expositores das audiências e os amicus curiae ocasiona uma redução do potencial deliberativo da fase pré-decisional (Godoy, 2015, p. 209).

Ainda, cabe salientar que as audiências públicas normalmente são realizadas apenas na presença do relator, pois os demais ministros não costumam comparecer à sessão. Apesar disso, os outros ministros têm acesso ao material produzido na audiência, contudo, esse normalmente é pouco usado na fundamentação dos votos (Vale, 2015VALE, A. R. do. Argumentação Constitucional: Um estudo sobre a deliberação nos Tribunais Constitucionais. 415 f. Tese (Doutorado em direito) - Universidade de Brasília (UnB) em regime de cotutela com a Universidade de Alicante (UA), Brasília-Alicante, 2015., p. 237).

Em segundo lugar, quanto à seleção de participantes, Guimarães, a partir da análise das 19 primeiras audiências públicas, destaca que nas audiências analisadas ocorreram 511 participações, sendo que 22% representavam interesses privados (associações de classe e de empresas), 17 % interesses do poder público (União e órgãos da administração pública) e 15% a sociedade civil. Desse modo, a pesquisa evidencia que as audiências públicas não trazem uma ampla diversificação dos atores participantes em relação ao rol de atores legitimados a participar diretamente do controle concentrado de constitucionalidade, previsto no art. 103 da Constituição de 1988 (Guimarães, 2019, p. 23).

Ademais, conforme a pesquisa empírica, 57% das manifestações versaram sobre assuntos técnicos, 18% de cunho político, 15% jurídico, 9% científico acadêmico e 1% depoimento pessoal. O resultado, que expressa a maior parte dos discursos como técnicos, pode ser efeito da delimitação de despachos convocatórios, bem como das exigências das leis nº 9.868/99 e 9.882/99 e do Regimento Interno do STF, que tratam das intervenções de pessoas com experiência e autoridade na matéria (Guimarães, 2019GUIMARÃES, L. G. Participação Social no STF: repensando o papel das audiências públicas. Revista Direito e Práxis, [S.l.], jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3bpNvXe . Acesso em: 18 dez. 2019.
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, p. 25, 26).

Nesse contexto, vê-se que a maior parte das audiências públicas realizadas pelo STF contam em grande parte com a participação de técnicos, de especialistas no assunto, existindo uma tendência da Corte de utilizar tais audiências para ampliar as informações não jurídicas do tema em pauta, se aproximando especialmente de uma comunidade científica, de especialistas. Contudo, a ampla quantidade de argumentos técnicos pode levar a conclusão de que há um déficit representativo (Pinhão, 2018PINHÃO, K. A. G. A inserção das audiências públicas: reforço ou enfraquecimento da legitimidade democrática das decisões do Supremo Tribunal Federal?. Rei - Revista Estudos Institucionais, [S.l.], v. 4, n. 1, p. 459-483, ago. 2018. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3fFphLU . Acesso em: 05 dez. 2019.
https://bit.ly/3fFphLU...
, p. 474, 475). Isso porque, na prática, existe um óbice ao acesso da população sem representatividade política ou reconhecimento social a essas audiências. Isto é, há uma dificuldade das audiências contemplarem as demandas de movimentos sociais que não possuem poder e influência política para ter acesso a essa esfera pública de debate (Maia; Alban, 2018MAIA, S. J.; ALBAN, C. E. As assimetrias da esfera pública e a efetivação dos direitos das minorias: as audiências públicas do STF a partir dos novos movimentos sociais. Revista da AGU, v. 17, n. 2, 29 jun. 2018. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3buKsgn . Acesso em: 10 dez. 2019.
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, p. 356, 361).

No mesmo sentido, Bahia e Matos, a partir de uma pesquisa empírica, salientam que as audiências públicas e os amicus curiae, no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, não têm representado a existência de práticas dialógicas da Corte com os grupos minoritários. Há uma abertura à participação de tais grupos, todavia, não se trata de uma abertura substancial, a qual é dependente da discricionariedade do relator, que perpassa a decisão do relator quanto ao pedido de ingresso dos amicus curiae e sobre a convocação de audiências públicas e de seus participantes, bem como a decisão dos ministros sobre quais argumentos serão considerados (Bahia; Matos, 2016BAHIA, A. M. F. de M; MATOS, A. M. de. Amici curiae e audiências públicas no Supremo Tribunal Federal: uma análise da participação de grupos minoritários à luz da concepção deliberativa de democracia. In: VIEIRA, J. R.; CAMARGO, M. M. L.; LEGALE, S. (coord.). Jurisdição constitucional e direito constitucional internacional. E-book. Belo Horizonte: Fórum, 2016., p. 98).

Ainda, Guimarães destaca que as audiências públicas são um espaço institucional para que a Corte e os atores externos atuem em favor de seus interesses quanto às políticas públicas. A participação de especialistas, com a exposição oral e audiovisual nas audiências, pode exercer a função de ferramenta de lobby, buscando influenciar os julgadores. Contudo, o lobby nas audiências públicas, se possuir um maior controle das portas de acesso e admissão, pode ajudar a incrementar argumentativamente os debates e as decisões dos ministros (Guimarães, 2019, p. 11, 30). Nesse contexto de busca de influência da Corte, resta ainda mais evidente a importância da garantia da participação dos diferentes grupos sociais.

Em terceiro lugar, para Guimarães, em relação à admissibilidade e acessibilidade, não há a possibilidade dos participantes requererem direta e livremente a convocação da audiência pública, e inexiste uma transparência e objetividade quanto aos critérios de seleção dos participantes. Há uma vagueza nos critérios de seleção dos participantes das audiências públicas e inexiste uma lista com os nomes e a justificativa de indeferimento das participações, o que dificulta o controle pela sociedade (Guimarães, 2019, p. 27).

O ato de convocação das audiências é uma prerrogativa do relator ou do Presidente da Corte que conta com ampla liberdade, e todas as decisões sobre as audiências são irrecorríveis. Ademais, a maioria das audiências públicas permite a inscrição de participantes via e-mail, todavia, a expedição de convites por parte do relator ou a exclusiva indicação feita por amicus curiae pode limitar a participação popular (Guimarães, 2019GUIMARÃES, L. G. Participação Social no STF: repensando o papel das audiências públicas. Revista Direito e Práxis, [S.l.], jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3bpNvXe . Acesso em: 18 dez. 2019.
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, p. 27).

No mesmo sentido, Sombra (2017SOMBRA, T. L. S. Supremo Tribunal Federal representativo? O impacto das audiências públicas na deliberação. Rev. direito GV, São Paulo , v. 13, n. 1, p. 236-273, Abr. 2017. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3cHaj64 . Acesso em: 19 dez. 2019.
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, p. 245, 246), a partir da análise empírica de 18 audiências, conclui que não há critérios claros e uniformes na seleção dos participantes. Não há informação sobre os participantes que tiveram sua inscrição indeferida, o que dificulta a análise de quais seguimentos da sociedade civil não tiveram representação nas audiências.

Sob o mesmo viés, Leal F., Herdy e Massadas (2018LEAL, F.; HERDY, R.; MASSADAS, J. Uma década de audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (2007-2017). Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 5, n. 1, p. 331-372, jan./abr. 2018. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2yKQ4WL . Acesso em: 18 dez. 2019.
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, p. 332, 333) analisaram as 22 audiências públicas realizadas pelo STF no período de 2007 até 2017 e concluíram que essas vêm sendo utilizadas de forma inconsistente. Conforme os autores, não há: “consistência tanto no que diz respeito à convocação das audiências públicas, como critérios de admissibilidade e natureza da questão a ser esclarecida, como aspectos específicos referentes ao procedimento de consulta e deferência aos especialistas” (Leal, F. et al., 2018, p. 333).

Nesse cenário, a acessibilidade por convites ou indicação dos amicus curiae, a vagueza de critérios de seleção dos expositores e a falta de transparência em relação à lista dos inscritos indeferidos permitiriam que os ministros escolhessem os grupos de interesse que gostariam de ouvir, evidenciando a fragilidade democrática das audiências públicas. Essa escolha dos ministros poderia se dar por esses entenderem certo selecionado como mais representativo de um segmento social, econômico ou político para exposição de argumentos; ou para mapear os atores que se interessam pela decisão e quais os contornos de seus interesses, analisando o impacto da decisão (Guimarães, 2019GUIMARÃES, L. G. Participação Social no STF: repensando o papel das audiências públicas. Revista Direito e Práxis, [S.l.], jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3bpNvXe . Acesso em: 18 dez. 2019.
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, p. 28); ou para corroborar uma linha argumentativa já definida.

Nesse aspecto, a desigualdade no acesso e na admissão também pode dificultar a disputa de argumentos, pois pode favorecer determinados segmentos sociais em detrimento de outros e impedir a livre circulação de ideias. Ademais, a seleção de apenas alguns grupos pode levar ao questionamento de se as audiências públicas são usadas pelos ministros como um mecanismo de autolegitimação das decisões. Isto é, se a escolha da oitiva de determinados grupos pode se dar pelo fato de esses compartilharem a mesma visão do ministro, validando seu entendimento. Outra alternativa é que os ministros tenham a visão de que a mera convocação da audiência seria suficiente para demonstrar sua vontade de ouvir a sociedade, independentemente de seus participantes (Guimarães, 2019GUIMARÃES, L. G. Participação Social no STF: repensando o papel das audiências públicas. Revista Direito e Práxis, [S.l.], jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3bpNvXe . Acesso em: 18 dez. 2019.
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, p. 28, 29).

Assim, a partir da pesquisa empírica, Guimarães conclui que na prática as audiências públicas podem servir: a) para trazer informações aos julgadores; b) como um espaço para que os participantes atuem em favor de seus interesses perante os ministros e para que esses mapeiem os diferentes grupos de interesse e impactos de sua decisão; c) como uma forma de autolegitimação da decisão pelos ministros, que encenam uma abertura ao diálogo social para fortalecer a autoridade das decisões (Guimarães, 2019, p. 29).

Nesse sentido, Leal destaca que: “os Ministros encontraram na audiência pública mais uma possibilidade de validação e de legitimação formal da decisão do que propriamente um elemento de informação e de pluralização do debate constitucional” (Leal, M. C. H., 2014, p. 344).

Nessa conjuntura, é preciso que sejam aprimorados os mecanismos de acesso, admissão e estrutura da organização das audiências públicas, para que não sejam privilegiados determinados grupos de interesse em detrimento de outros. Ademais, deve ser aprimorada a forma de participação dos expositores, para que seja mais dialógica, incentivando interações entre os participantes e entre esses e os ministros (Guimarães, 2019GUIMARÃES, L. G. Participação Social no STF: repensando o papel das audiências públicas. Revista Direito e Práxis, [S.l.], jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3bpNvXe . Acesso em: 18 dez. 2019.
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, p. 30, 31).

Portanto, a convocação das audiências públicas, a seleção de seus participantes e a organização dos trabalhos deve se dar por meio de decisões fundamentadas, com critérios claros e coerentes com precedentes anteriores, tendo em vista a busca de uma maior pluralidade de argumentos e a isonomia entre os participantes. Ademais, anteriormente à audiência pública, o relator pode fixar pontos a serem tratados, como forma de incentivo ao debate, bem como deve buscar a seleção de expositores que defendam diferentes perspectivas, não limitando os argumentos as exposições técnicas.

As audiências devem ter um procedimento flexível, de modo que, a depender do decorrer dos trabalhos, o relator possa possibilitar a realização de perguntas pelos ministros aos participantes ou o debate entre os próprios participantes sobre pontos específicos que necessitem ser esclarecidos. Ainda, mesmo que não compareçam às audiências públicas, cabe aos ministros analisarem os materiais nela produzidos antes de elaborarem seus votos.

Além disso, quanto à consideração pelos ministros dos argumentos obtidos a partir das audiências públicas e dos amicus curiae, o CPC/2015, em seu art. 489, §1º, inc. IV, exige que os ministros enfrentem todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador, havendo o dever de apreciação dos argumentos levantados pelos amicus curiae e nas audiências públicas, que não podem ser ignorados.

Nessa conjuntura, Ferreira e Branco (2017FERREIRA, D. C.; BRANCO, P. G. G. Amicus curiae em números. Nem amigo da corte, nem amigo da parte? Revista de Direito Brasileira, São Paulo, SP, v. 16, n. 7, p. 169-185, Jan./Abr. 2017., p. 180-182) analisaram os processos de controle concentrado de constitucionalidade entre 1990 e 2015 em que houve pelo menos a inclusão de um amicus curiae, examinando se os argumentos dos amicus curiae foram utilizados de forma explícita em 120 acórdãos. Os autores concluíram que em apenas 30% dos votos os argumentos dos amicus curiae foram expressamente considerados. Assim, não há significativa influência dos argumentos utilizados sobre a decisão constitucional.

Bahia e Matos também realizaram uma pesquisa empírica para analisar se o instituto dos amicus curiae tem permitido uma aproximação entre os grupos minoritários e a jurisdição constitucional, se seus argumentos vêm sendo considerados pelos ministros em suas decisões em uma construção dialógica. Para os autores, não raras vezes os argumentos trazidos pelos amicus curiae são desconsiderados pelos julgadores e, por vezes, o que ocorre é a existência de uma coincidência na argumentação (Bahia; Matos, 2016BAHIA, A. M. F. de M; MATOS, A. M. de. Amici curiae e audiências públicas no Supremo Tribunal Federal: uma análise da participação de grupos minoritários à luz da concepção deliberativa de democracia. In: VIEIRA, J. R.; CAMARGO, M. M. L.; LEGALE, S. (coord.). Jurisdição constitucional e direito constitucional internacional. E-book. Belo Horizonte: Fórum, 2016., p. 83).

Quanto às audiências, Leal, Herdy e Massadas estudaram as audiências públicas realizadas pelo STF no período de 2007 até 2017, concluindo que há um baixo número de referências expressas às audiências ou aos especialistas nos votos dos ministros. Ademais, há uma tendência de que os ministros apenas mencionem informações atinentes às audiências em seus votos quando eles as convocaram. Ainda, em 57% dos casos em que os ministros fazem referência às audiências e citam seus participantes eles concordam com o que foi dito pelo participante, o que exprime uma tendência dos ministros apresentarem informações que confirmam os argumentos de seus votos, o que pode revelar o uso estratégico das audiências ou um mero viés de confirmação (Leal, F. et al., 2018, p. 356, 359, 360).

Já Godoy (2015GODOY, M. G. de. Devolver a constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos interinstitucionais. 266 p. Tese (Doutorado em direito) - UFPR, Curitiba, 2015., p. 193, 194, 202, 210), em uma pesquisa empírica, questiona se as audiências públicas e os amicus curiae, quando aceitos conjuntamente com as audiências públicas, influenciam as decisões do STF. O autor conclui que esses influenciam nas decisões da Corte, sendo que os ministros realizam mais referências expressas às razões e aos argumentos apresentados nas audiências do que aos apresentados pelos amicus curiae. Ademais, praticamente todos os ministros em todos os casos analisados utilizaram de forma expressa ou não expressa as razões e os argumentos expostos nas audiências públicas ou pelos amicus curiae. Todavia, para Godoy, o uso dos instrumentos ainda é precário, porque não permite o efetivo debate entre os participantes nem entre eles e o STF. Ainda, falta uma decisão deliberativa escrita, que rebata ou concorde com os argumentos levantados na fase pré-decisória e se fundamente em razões construídas durante a deliberação dos ministros.

Dessa forma, de modo geral, a partir das pesquisas empíricas vê-se que não há uma efetiva preocupação por parte dos ministros em analisar, acolher ou rebater os argumentos trazidos pelos amicus curiae e pelos participantes das audiências públicas. Contudo, é necessário destacar as limitações de tais pesquisas empíricas que buscam estudar a efetiva influência dos argumentos trazidos nas audiências públicas e pelos amicus curiae na elaboração dos votos dos ministros. Isso porque, a influência dos institutos nas decisões não pode ser averiguada apenas a partir da menção expressa nos votos, uma vez que a argumentação pode motivar a elaboração dos votos sem ser expressamente mencionada, bem como porque pode haver uma coincidência entre a argumentação dos ministros e a trazida por tais institutos, sem que os ministros tenham de fato os analisado.

Nesse contexto, além da liberdade por parte do relator quanto à admissão da participação dos amicus curiae, bem como na convocação das audiências públicas, na seleção dos participantes e na delimitação sobre o espaço e tempo de fala, constata-se que, na prática, há uma escolha por parte dos ministros em relação a se e quais dos argumentos obtidos na fase pré-decisória serão considerados em seus votos. Desse modo, é questionável se esses institutos representam uma verdadeira abertura da Corte para as diferentes perspectivas e argumentos ou apenas como uma forma de corroborar entendimentos fixados previamente.

Nesse aspecto, mesmo com a participação de terceiros por meio das audiências públicas e dos amicus curiae, os ministros ainda se comportam como indivíduos distantes que precisam ser convencidos e não como membros de uma Corte Constitucional, cuja função é apresentar os melhores argumentos para a solução do caso. Ademais, outro problema diz respeito ao fato de que, no modelo atual de deliberação e votação dos casos na sessão plenária, não há espaço para que os ministros discutam coletivamente os argumentos apresentados na fase pré-decisional (Godoy, 2015GODOY, M. G. de. Devolver a constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos interinstitucionais. 266 p. Tese (Doutorado em direito) - UFPR, Curitiba, 2015., p. 206, 208).

Nesse cenário, os amicus curiae e as audiências públicas não devem ser usados apenas como uma forma de legitimar formalmente a decisão, é preciso que os argumentos levantados na fase pré-decisional sejam levados em conta no momento decisório, fazendo parte da decisão ou sendo rejeitados (Godoy, 2015GODOY, M. G. de. Devolver a constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos interinstitucionais. 266 p. Tese (Doutorado em direito) - UFPR, Curitiba, 2015., p. 209).

Dessa forma, para além das modificações procedimentais específicas em relação a cada instituto, com vistas a garantia de uma participação plural e isonômica, é essencial que os ministros do STF se demonstrem abertos aos argumentos apresentados na fase pré-decisória. Cabe aos ministros praticarem a virtude da curiosidade respeitosa e levarem ao debate na sessão plenária os principais argumentos levantados pelos amicus curiae e nas audiências públicas, que não poderão ser ignorados na elaboração da decisão colegiada.

Nesse ponto, os principais argumentos obtidos a partir das audiências públicas e da intervenção dos amicus curiae devem de fato ser apreciados e sopesados. Em outras palavras, não basta a mera transcrição de trechos das audiências públicas ou das manifestações dos amicus curiae nos votos dos ministros para legitimar entendimentos previamente estabelecidos, sem uma verdadeira análise dos argumentos, seja para os acolher ou rejeitar.

Nesse contexto, apenas a partir da consideração dos argumentos apresentados na fase pré-decisória e das modificações procedimentais específicas em relação a cada instituto, com vistas a garantia de uma participação plural e isonômica, é que esses poderão contribuir efetivamente para construção da resposta certa nos casos difíceis pelo STF.

4 CONCLUSÃO

Na fase pré-decisória cabe aos ministros do STF desenvolverem a virtude da curiosidade respeitosa, buscando maximizar a diversidade de argumentos que chegam ao tribunal por meio do correto uso dos institutos dos amicus curiae e das audiências públicas.

Contudo, uma análise do uso dos institutos na prática revela que esses encontram fragilidades, necessitando ser aperfeiçoados para garantia de uma maior pluralidade e isonomia. De um lado, quanto aos amicus curiae é preciso uma melhor delimitação interpretativa dos requisitos de admissão, de outro lado, devem ser aprimoradas a forma de organização das audiências públicas e de acesso e seleção de seus participantes. Ademais, os principais argumentos levantados por meio desses mecanismos devem ser efetivamente debatidos entre os ministros e enfrentados nas decisões colegiadas.

Nesse cenário, realizados tais aprimoramentos, a diversidade de argumentos trazidos pelos amicus curiae e pelas audiências públicas na fase pré-decisória podem contribuir para a maior qualidade das decisões nos casos difíceis, auxiliando os ministros do STF a desvelarem a moralidade política da comunidade e a construírem argumentativamente a resposta certa para o caso, com base nos melhores argumentos de princípio.

REFERÊNCIAS

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  • BAHIA, A. M. F. de M; MATOS, A. M. de. Amici curiae e audiências públicas no Supremo Tribunal Federal: uma análise da participação de grupos minoritários à luz da concepção deliberativa de democracia. In: VIEIRA, J. R.; CAMARGO, M. M. L.; LEGALE, S. (coord.). Jurisdição constitucional e direito constitucional internacional. E-book. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
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  • 1
    Segundo Dworkin, se existem casos sem uma resposta certa em um ordenamento jurídico eles devem ser raros (DWORKIN, 2001, p. 215).
  • 2
    Para Chueiri e Sampaio (2009, p. 56): “A comunidade de princípios é uma comunidade moralmente plural, ou seja, ela procura uma integridade entre os diversos valores morais, respeitando igualmente a moral de todos os cidadãos”.
  • 3
    Barboza (2011, p. 122) destaca que as decisões judiciais que envolvam questões atinentes à moralidade política da comunidade devem respeitar a Constituição e as decisões anteriores que interpretam seus dispositivos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2021
  • Aceito
    15 Jun 2022
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