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Uma interface entre a teoria da justiça de John Rawls e a justiça restaurativa como política criminal

An interface between the theory of justice of John Rawls and the restorative justice as criminal policy

Resumo

O artigo objetiva investigar como a Teoria da Justiça proposta por John Rawls pode contribuir para o desenvolvimento teórico da Justiça Restaurativa como política criminal capaz de otimizar o atendimento judicial dos membros de um Estado Democrático. Na metodologia, realizou-se uma análise descritiva dos princípios da Justiça Restaurativa dispostos na Resolução n. 12/2002 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas em interface com os princípios universais propostos por Rawls em sua teoria. Em conclusão, observa-se que os princípios básicos da liberdade e da igualdade enfatizados na Teoria da Justiça de Rawls oferecem uma base filosófica capaz de contribuir com a teoria da Justiça Restaurativa vista como política de prestação jurisdicional de um Estado Democrático aos seus membros, que se realiza por meio da participação, cooperação e integração dos atores processuais na Justiça Criminal.

Palavras-chave
Justiça Criminal; Justiça Restaurativa; Teoria da Justiça

Abstract

The article aims to investigate how the Theory of Justice proposed by John Rawls can contribute to the theoretical development of Restorative Justice as a criminal policy capable of optimizing the judicial care of members of a Democratic State. In the methodology, the descriptive analysis of the principles of Restorative Justice arranged in Resolution No. 12/2002 of the United Nations Economic and Social Council and the universal principles proposed by Rawls in his theory was used. In conclusion, it is observed that the basic principles of freedom and equality emphasized in Rawls’ Theory of Justice offer a philosophical basis capable of contributing to the theory of restorative justice seen as a policy of judicial provision of a Democratic State to its members, which takes place through participation, cooperation and integration in criminal justice.

Keywords
Criminal Justice; Restorative Justice; Theory of Justice

1 INTRODUÇÃO

O sistema de justiça criminal construído no Estado moderno com o objetivo primordial de promover a pacificação social e evitar a prática vindicativa nos conflitos acarretou, em contrapartida, o distanciamento entre ofensor, ofendido e demais envolvidos em um fato delituoso, bem como impediu a participação deles na construção de possíveis formas de reparação dos resultados ocasionados pelo delito. Assim, relegou-se ao Poder Judiciário a difícil tarefa de decidir, praticamente sem o auxílio das partes, acerca da melhor forma de distribuir a justiça no caso concreto, bem como de pensar em soluções judiciais capazes de contribuir para a ressocialização do infrator, e ainda para a diminuição dos índices de reincidência e de criminalidade.

Além disto, o atual desempenho dessa função do Estado está atrelada aos complicados mecanismos que envolvem as disparidades econômicas e sociais da população atendida que, na maioria das vezes, encontra dificuldades de acesso ao Poder Judiciário, sobretudo em países como o Brasil, onde grande parte da população desconhece os caminhos para chegar ao atendimento judicial, ou, quando o encontra, sofre grande demora para o atendimento de suas necessidades, seja quando se encontra na posição de vítima ou de acusado.

A conquista do Estado de Direito, que orienta a atual atividade do Poder Judiciário segundo os moldes previstos no ordenamento jurídico brasileiro, é resultado de um longo processo político que recebeu a influência dos acontecimentos provocados pela Revolução Francesa de 1789, os quais tiveram repercussão decisiva no mundo ocidental, superando o modelo de Estado Absolutista que colocava o soberano como última instância decisória nos conflitos interpessoais ou grupais.

Por outro lado, a construção do aparelho judiciário próprio do Estado Moderno não se mostrou, de início, suficiente para o alcance dos objetivos de realização da justiça tão almejada por aqueles que idealizaram a superação do Estado absolutista, porque os primeiros direitos humanos que inspiraram as constituições modernas estavam voltados apenas para a satisfação individual, de modo que as demais necessidades seriam supridas mais adiante com o reconhecimento dos direitos de igualdade e dos direitos sociais, como saúde, educação e segurança.

O modelo do Estado Democrático de Direito veio a propor o equilíbrio entre a realização dos direitos individuais e coletivos, entre o poder do Estado e os direitos do cidadão, tendo em vista transformar positivamente a realidade social, obrigando o Estado a responder a qualquer ameaça ou lesão a direito dos cidadãos, bem como realizar uma distribuição equitativa da justiça.

Ressurgidas dentro do modelo de Estado Democrático de Direito, as primitivas práticas de Justiça Restaurativa vêm sendo propostas como uma forma de cooperação entre o Estado e a população que recorre ao Poder Judiciário, no sentido de otimizar o atendimento e os resultados do processo, seja no que se refere à satisfação da vítima, como também das necessidades do ofensor e da comunidade envolvida no fato delituoso.

Assim é que a aplicação da Justiça Restaurativa em diversos países, como nos Estados Unidos, no Canadá, em alguns países da Europa e mesmo na América Latina, como é o caso da Colômbia, tem ocasionado uma significativa transformação no modelo de distribuição de justiça nesses Estados, levando a comunidade acadêmica à reflexão acerca de suas bases filosóficas como política criminal e de administração da justiça.

O presente artigo trata de enfocar o modelo não abolicionista de Justiça Restaurativa, o qual se apresenta como política pública capaz de atender às necessidades de excelência na prestação jurisdicional equitativa de todos os membros de um Estado, respeitando-se as diferenças pessoais na vida privada, mas oportunizando-se o acesso à justiça aos menos favorecidos social e economicamente, como é o caso de grande parte da população brasileira.

O aporte teórico para a análise foi encontrado na Teoria da Justiça como Equidade, de John Rawls (2008RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes , 2008.), que enfatiza os princípios universais da liberdade e da igualdade, sendo que este último se desdobra nos princípios da diferença e da oportunidade. Na análise, a teoria de Rawls foi relacionada aos princípios da Justiça Restaurativa elencados na Resolução n. 12/2002 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. (ECOSOC/0NU, 2002ECOSOC. The Economic and Social Council. Basic principles on the use of restorative justice programmes in criminal matters. ECOSOC. Res 2002/12. 2002. Disponível em: Disponível em: http://www.restorativejustice.org . Acesso em 11 de janeiro de 2016.
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)

Seguindo a metodologia analítico-descritiva, a primeira parte do artigo apresenta uma brevíssima descrição das teorias contratualistas mais conhecidas na atualidade, apenas para introduzir a noção do contratualismo proposto por John Rawls na sua Teoria da Justiça como Equidade. Na segunda parte, propõe-se uma análise da Justiça Restaurativa como política criminal de acesso à justiça que responde às necessidades individuais e coletivas, bem como a alguns deveres e responsabilidades recíprocos de um Estado e de seus membros. Por fim, na terceira parte, discute-se a possibilidade de fundamentar a Justiça Restaurativa como Política Pública consonante à Teoria de Rawls, em razão dos elementos que conjugam liberdade, igualdade, diferença e oportunidade presente neste modo de distribuição da justiça.

2 AS TEORIAS CONTRATUALISTAS MODERNAS E A TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQUIDADE

A distribuição da justiça pelo Estado tem sido, ao longo do tempo, objeto de exaustivas análises realizadas sob a perspectiva de diversas teorias filosóficas e políticas desde a antiguidade, passando pelo contratualismo moderno, que tem como expoentes emblemáticos os filósofos Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, até chegar à contemporaneidade. Dentre eles, destaca-se Hobbes (1997HOBBES, Thomas de Malmesbury. Leviatã. Os Pensadores. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997.), cujo contratualismo parte da ideia de que os seres humanos são, por natureza, propensos a destruir-se mutuamente como lobos vorazes, sendo necessário que o Estado desempenhe sua função de manter a paz e a ordem entre eles por meio de uma força comparável à do monstro mitológico Leviatã. Assim, conforme esta posição, seria mais perfeito o Estado na medida em que fosse mais absoluta a sua autoridade sobre os homens, relação que deveria ser formalizada pela transferência irrestrita de seus direitos à autoridade estatal por meio de um contrato social.

Opondo-se a Hobbes, Locke (1998LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. Tradução Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes , 1998.) apresentou uma filosofia contratualista de Estado que defendia os direitos dos homens com base em um pacto de consentimento livre para a tutela jurídica do Estado apenas com vistas à proteção de sua vida, liberdade e bens, o que seria concretizado sob o amparo da lei, pela ação conjunta de um árbitro e do corpo político do Estado. Para Locke, a propriedade privada é direito fundamental da pessoa, razão pela qual, em caso de divergência, o Estado poderia ser destituído da mencionada função no momento em que deixasse de cumprir o fim protetivo ao que foi contratado.

Por sua vez, Rousseau (1978ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social, tradução de Lourdes Santos Machado; introdução e notas de Paulo Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado. - 2ª edição - São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os Pensadores.) construiu seu contratualismo a partir de uma história hipotética da humanidade, que parte da condição de liberdade no Estado de natureza, mas acaba por degenerar-se para a servidão. Ele opõe-se a Hobbes quanto à visão dos homens, pois os considera bons por natureza, posteriormente corrompidos em função de relações sociais egoístas. Também se distingue de Locke, sobretudo no que diz respeito à administração da propriedade privada, que na visão de Rousseau, deve ser cedida de modo irrestrito ao Estado. Para Rousseau, a distribuição da justiça só poderia ocorrer pela construção de um pacto legítimo capaz de conjugar liberdade e obediência, uma vez que os homens deveriam submeter-se irrestritamente às leis que eles mesmos construiriam como vontade geral.

Dentre as elaborações filosóficas do contratualismo moderno, destaca-se ainda Kant (1992KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.), que construiu sua noção de direito público e de direito privado com base na existência de categorias preexistentes no ser humano capazes de inspirar-lhe as ações corretas como lei universal. Kant defendeu a possibilidade de coexistência entre o livre-arbítrio de cada homem, de modo que a ação do Estado seria necessária em razão do conflito de liberdades, quando a Justiça Estatal poderia tomar para si o direito de julgar e punir o causador dos danos.

As teorias contratualistas construídas no período moderno da filosofia representam uma contribuição significativa para a construção do aparelho vigente até hoje na justiça dos Estados ocidentais, dada a representação paradigmática do contrato social, ainda que por vertentes diferenciadas. Entretanto, as teorias contratualistas contemporâneas, como a de Habermas (2003HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 2.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, v. 1), que procura integrar ideias e interesses considerando o consenso social e jurídico; Dworkin (2001DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001.), para quem toda decisão, seja ela judicial ou não, será necessariamente política; e Rawls (2000RAWLS, John. O Liberalismo Político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000.; 2003RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes , 2003.; 2008RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes , 2008.), que se destaca pela tentativa de fomentar a equidade por meio da construção de princípios comuns que sustentem as instituições básicas da sociedade.

Apesar de ter sido influenciado por Kant, Locke e Rousseau com a ideia de um contrato social, Rawls (2000RAWLS, John. O Liberalismo Político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000.), cuja teoria da justiça como equidade é objeto deste artigo, propõe um contrato diferenciado em relação a eles. Isto sobretudo porque sua ideia de contrato parte da formulação prévia de princípios sociais imparciais e universais, construídos pelos membros de um Estado sob o véu da ignorância, ou seja, desconsiderando os próprios interesses em prol da equidade na distribuição dos bens pelo Estado à sociedade.

Para Rawls (2003RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes , 2003.), o Estado deve recorrer à contratualidade prévia dos representantes da sociedade para a elaboração de uma estrutura básica radicada em princípios construídos de modo imparcial, ou seja, que a escolha seja feita sem interesses pessoais. Esta forma de se exercer a imparcialidade que deve reger as instituições de um Estado consiste na eleição prévia de parâmetros gerais de justiça com base em elementos de solidariedade.

Rawls defende que, em um Estado Democrático, todos devem ter as liberdades de ordem privada, os direitos, civis e políticos, assim como as liberdades de pensamento, consciência, palavra, reunião, dentre outras, às quais as instituições públicas não podem criar obstáculo. Por outro lado, ao considerar as diferenças naturais entre pessoas que possuem mais ou menos possibilidades e potencialidades, deverá fomentar a criação de normas e instituições voltadas para oportunizar o acesso dos menos favorecidos à mobilidade social e aos bens de diversas ordens, como saúde, educação, lazer, salário, previdência e segurança, por exemplo (Rawls, 2008RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes , 2008.).

Isto porque as pessoas mais providas de recursos físicos, psíquicos, relacionais e socioeconômicos, por exemplo, têm maior possibilidade de satisfazer adequadamente e por si mesmas suas necessidades básicas, enquanto outras ficam à margem das mencionadas possibilidades por terem nascido na pobreza, na marginalidade, ou por não ter os talentos naturais dos primeiros, gerando para si um insucesso que pode se dar em vários aspectos de sua existência.

Para realizar esta forma de Justiça, Rawls defende que o Estado, a par de aceitar a liberdade de todos, deverá distribuir bens e direitos entre os cidadãos que se encontram em desvantagem, como oportunidades de estudos, empregos, assistência de saúde, tendo em vista a possibilitar a equalização socioeconômica daqueles membros que se encontram em situação de desvantagem em relação aos mais dotados.

Neste sentido, John Rawls (2000RAWLS, John. O Liberalismo Político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000.) é conhecido como um filósofo liberal que reputa a justiça como a primeira virtude das instituições e da sociedade, capaz de proporcionar um empreendimento cooperativo em benefício mútuo, embora esteja marcada, ao mesmo tempo, por um conflito e por uma identidade de interesses. Por esta razão, defende a necessidade de se estabelecer uma concepção compartilhada de justiça pelo acordo entre pessoas livres e iguais, concretizado nas instituições básicas de uma sociedade, como a família, a economia, o direito e a política.

Importante ressaltar que existem críticas à teoria de Rawls, como a de Sandel (2011SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Trad. 3ª Ed. Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.) acerca dos princípios acordados sob o véu da ignorância, questionando se existe tal imparcialidade no ser humano, como também os limites morais dos acordos, argumentando que nem todas as decisões consensuais são justas. Também Amartia Sen (2011SEN, Amartya. A Ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.), apesar de dedicar à Teoria da Justiça como Equidade grande admiração, não deixa de tecer críticas à prioridade irrestrita do princípio da liberdade que reporta ao contratualismo de Rawls o fato de estar focado na construção de instituições e regras justas, mas não garantir um comportamento justo por parte da sociedade e seus destinatários. Às possíveis falhas apontadas na teoria de Rawls, Sen opõe sua Teoria da Escolha Social, pela qual reconhece uma pluralidade de razões que exigem atenção quando se pretende realizar a justiça social.

Em resumo, a proposta contratualista de Rawls parte justamente do pressuposto pelo qual os cidadãos devem limitar sua liberdade em prol do respeito recíproco a regras racional e razoavelmente preestabelecidas que irão refletir-se na sua vida pública. Porém, Rawls (2008RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes , 2008.) refere-se à moral pública, distinguindo-a da moral privada, de modo que nesta seara cada um possa exercer suas escolhas livremente sem entrar na liberdade do outro.

Por fim, para concretizar possibilidades como a descrita acima, observa-se que será necessária a criação de regras de cooperação, desde que se atente à equalização das desigualdades, para que se promova a justiça nas instituições da sociedade que regulam a distribuição de direitos, deveres e demais bens sociais, bem como na elaboração das leis ordinárias e das decisões dos tribunais, levando-se em conta sua aplicação pelo Poder Judiciário de um Estado.

3 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO POLÍTICA PÚBLICA DE ACESSO À JUSTIÇA

Para se examinar os elementos capazes de fundamentar a aplicação da Justiça Restaurativa como política de acesso à Justiça, consonante à Teoria da Justiça como Equidade proposta por John Rawls, faz-se necessário optar por uma das conceituações de Justiça Restaurativa que vêm sendo construídas acerca do tema e, ainda, pela análise dos princípios elencados pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) que devem reger as práticas restaurativas na área criminal.

A conceituação de Justiça Restaurativa escolhida para análise trata-se daquela elaborada por McCold e Wachtel (2003MCOLD, Paul; WACHTEL, Ted. Em busca de um paradigma: uma teoria da Justiça Restaurativa. Trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia, 10-15 Agosto de 2003, Rio de Janeiro. Fonte: Fonte: http://www.iirp.edu . Acesso em: 10 de junho de 2013.
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), que a definem como “um processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente por um crime, chamados de ‘partes interessadas principais’, para chegar a um consenso sobre a forma de reparar o dano causado pela transgressão”. Tal processo pode ser analisado em três estruturas distintas, mas relacionadas, quais sejam: a Janela da Disciplina Social, o Papel das Partes Interessadas e a Tipologia das Práticas Restaurativas.

De acordo com a primeira estrutura conceitual, a Justiça Restaurativa irá promover o engajamento cooperativo de todos os envolvidos e afetados por uma transgressão para desenvolver um plano de reparação de danos e evitar a repetição do acontecimento; conforme a segunda estrutura conceitual, a Justiça Restaurativa terá como objetivo a reintegração de vítimas, transgressores e comunidade, como também a ampliação da capacidade dos cidadãos de solucionarem seus problemas; por fim, pela terceira estrutura conceitual considera-se a participação ativa e conjunta das vítimas, dos transgressores e de suas comunidades como um processo totalmente restaurativo. (McCold; Wachtel, 2003MCOLD, Paul; WACHTEL, Ted. Em busca de um paradigma: uma teoria da Justiça Restaurativa. Trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia, 10-15 Agosto de 2003, Rio de Janeiro. Fonte: Fonte: http://www.iirp.edu . Acesso em: 10 de junho de 2013.
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)

O ECOSOC amplia tal conceituação definindo a Justiça Restaurativa como “qualquer programa que use processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos” para resolução de conflitos na área criminal. Os processos restaurativos podem ser a mediação, a conciliação, as reuniões familiares ou comunitárias e os círculos decisórios, ao passo que os resultados restaurativos podem consistir em reparação, restituição ou serviço comunitário, objetivando atender necessidades individuais e coletivas dos envolvidos no delito, responsabilizar as partes e ainda promover a reintegração da vítima e do ofensor (ECOSOC/ONU, 2002ECOSOC. The Economic and Social Council. Basic principles on the use of restorative justice programmes in criminal matters. ECOSOC. Res 2002/12. 2002. Disponível em: Disponível em: http://www.restorativejustice.org . Acesso em 11 de janeiro de 2016.
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).

De modo geral, os encontros restaurativos compõem-se de três etapas. A primeira etapa, no caso de aplicação por instituições formais ligadas ao Poder Judiciário, consiste em escutar o fato ocorrido e verificar-se a admissão de autoria pelo ofensor, bem como explicar como funciona o procedimento e confirmar a voluntariedade dos participantes. A segunda etapa consiste no encontro guiado por um facilitador habilitado em técnica específica para promover a expressão e escuta mútua das pessoas envolvidas no conflito e nas suas consequências, como o fato afetou a vida de cada um e como esperam que sejam reparadas suas consequências.

Desta etapa, poderá surgir ou não um acordo acerca das responsabilidades futuras a serem assumidas por cada um. Chegando os participantes a um acordo, este é redigido pelo facilitador e assinado pelos presentes; após, é agendada a terceira etapa, que consistirá em um encontro para avaliação do cumprimento do acordo e seus resultados, o qual contará com a presença dos participantes do Círculo Restaurativo e daqueles que colaboraram na realização das ações do acordo.

De acordo com a orientação do ECOSOC, os processos restaurativos só devem ser utilizados com o consentimento livre e voluntário da vítima e do ofensor, que podem revogar esse consentimento a qualquer momento. Além disso, a vítima e o ofensor devem normalmente concordar sobre os fatos essenciais do caso, sendo isso um dos fundamentos do processo restaurativo, levando-se em conta as diferenças culturais entre as partes envolvidas. Além de estabelecidos em consenso, os acordos resultantes de tal processo devem conter somente obrigações legalmente razoáveis e proporcionais, não podendo ser utilizados como prova de admissão de culpa em processo judicial posterior. (ECOSOC/ONU, 2002ECOSOC. The Economic and Social Council. Basic principles on the use of restorative justice programmes in criminal matters. ECOSOC. Res 2002/12. 2002. Disponível em: Disponível em: http://www.restorativejustice.org . Acesso em 11 de janeiro de 2016.
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)

Os princípios elencados acima serviram de base para a análise da consonância com a Teoria da Justiça de John Rawls pelo fato de promoverem uma política criminal diferenciada daquela que põe em relevo apenas a pretensão punitiva do Estado e as expectativas punitivas da sociedade, deixando de fora do âmbito processual as necessidades da vítima, da comunidade e também do autor do delito.

Assim, concorda-se com De Vitto (2005DE VITTO, Renato Campos Pinto. Justiça Criminal, Justiça Restaurativa e Direitos Humanos. In: Justiça Restaurativa. Brasil, Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). 2005. Disponível em: Disponível em: http://www.pnud.org.br . Acesso em 10 de janeiro de 2016.
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) no sentido de que a correta aplicação do modelo aqui descrito de Justiça Restaurativa deve provocar, em longo prazo, uma mudança de concepção em relação ao papel do Estado no fenômeno criminal com a definitiva inclusão da vítima no processo e com o fortalecimento do papel da comunidade na restauração e reintegração das partes e demais atingidos pelo ato delitivo.

Os programas de Justiça Restaurativa vêm alcançando espaço em diversos contextos internacionais, como nos Estados Unidos, Nova Zelândia, Austrália, África do Sul, Argentina e Colômbia, como também no Brasil, onde atualmente são recomendados pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ que, por meio da Resolução n. 225/2016 instituiu a Política Pública Nacional de Justiça Restaurativa, com o objetivo de consolidar a identidade e a qualidade de sua aplicação nesta política criminal. (Brasil, CNJ, 2016BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resolução 125/2010. Emenda 01/2013. 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.cnj.jus.br . Acesso em: 15 de maio de 2013.
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)

Em pesquisa realizada no Brasil no ano de 2006 junto aos programas piloto de Justiça Restaurativa que vinham sendo realizados de modo pioneiro em Porto Alegre (RS), São Caetano do Sul (SP) e Brasília (DF), o Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (ILANUD) identificou, entre as diversas concepções de Justiça Restaurativa, dois grandes grupos teleológicos: as concepções identificadas por sua finalidade institucional, que visam ao aprimoramento dos órgãos estatais na persecução do delito, e as concepções identificadas por sua finalidade de política criminal, que visam à transformação do fenômeno criminal através da intervenção social.

As primeiras têm como exemplo emblemático aquela defendida por Braithwaite (2002BRAITHWAITE, John. Restorative justice and responsive regulation. Nova Iorque: Oxford, 2002.), que vê a Justiça Restaurativa como meio menos dispendioso de reação ao crime, e aquela defendida por Howard Zehr (2008ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.), que percebe a Justiça Restaurativa como mecanismo destinado a introjetar valores mais humanitários no sistema de justiça, restaurando as relações e reparando os danos causados aos indivíduos e às comunidades pelo delito. Quanto às tendências de ver a Justiça Restaurativa como política criminal de um Estado, podem ser classificadas em três grupos: as que defendem o incremento repressivo por parte do sistema penal, as que têm como objetivo fazer ajustes no sistema penal para evitar excessos punitivos, e, por fim, as chamadas abolicionistas. (ILANUD, 2006ILANUD - Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente. Relatório Final Projetos Piloto Justiça Restaurativa, 2006. Disponível em: Disponível em: https://erc.undp.org/evaluation/documents/download/3752 . Acesso em 10 de janeiro de 2016.
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)

O ILANUD (2006ILANUD - Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente. Relatório Final Projetos Piloto Justiça Restaurativa, 2006. Disponível em: Disponível em: https://erc.undp.org/evaluation/documents/download/3752 . Acesso em 10 de janeiro de 2016.
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) considera que o incremento repressivo do sistema penal pode atingir um ponto de centralização tal que torne impossível qualquer participação da sociedade na solução dos problemas levantados pelo crime. Neste sentido, a Justiça Restaurativa aparece como forma de aliar as finalidades institucionais e a as finalidades político criminais de um Estado, que demandam meios institucionais para serem postas em prática. Por esta razão, os programas de Justiça Restaurativa devem ter como meta institucional o aperfeiçoamento da administração da justiça, e como meta político-criminal evitar que o ofensor seja privado das garantias fundamentais às quais tem direito. (ILANUD, 2006ILANUD - Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente. Relatório Final Projetos Piloto Justiça Restaurativa, 2006. Disponível em: Disponível em: https://erc.undp.org/evaluation/documents/download/3752 . Acesso em 10 de janeiro de 2016.
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)

4 INTERFACE DA TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS COM A JUSTIÇA RESTAURATIVA VISTA COMO POLÍTICA PÚBLICA DE ATENDIMENTO À POPULAÇÃO DE UM ESTADO

A crescente violência observada na sociedade, por meio de atos contra a vida, a integridade física, a liberdade e o patrimônio, tem provocado o incremento das formas de tutela judicial para restauração do dano sofrido e do estabelecimento de uma condição de segurança pela prevenção de novos fatos dessa natureza, a ser realizada pelos órgãos públicos por meio de políticas eficientes. Nesse sentido, cabe ao Estado gerar políticas criminais capazes de efetivar e aprimorar tal tutela de modo racional e com o emprego de meios adequados, respeitando, obviamente, os limites exigidos pela lei.

A Justiça Restaurativa tem se destacado como um meio democrático de combate à criminalidade e à reincidência pelo uso do diálogo e do atendimento às diferentes necessidades das pessoas envolvidas em fatos delituosos, desde a vítima até o ofensor, capaz de reconstruir um sistema penal cidadão, pautado na cooperação da sociedade, que leva em conta, inclusive, as diferenças socioeconômicas, tentando equalizar os direitos de todos os envolvidos.

Ao tratar da Justiça Restaurativa como política pública no Brasil, Carvalho (2008CARVALHO, Luiza Maria S. dos Santos. Notas sobre a promoção da equidade no acesso e intervenção da Justiça Brasileira. In: Justiça Restaurativa. Brasil, Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). 2008. Disponível em: Disponível em: http://www.pnud.org.br . Acesso em 10 de janeiro de 2016.
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) enfatiza que esta é uma modalidade inclusiva de justiça que oferece, com sua abordagem reintegradora e restauradora das relações sociais entre diferentes parcelas da população, uma alternativa para a prestação de serviços jurídicos e de democratização do Poder Judiciário.

O tema da eficiente prestação jurisdicional refere-se inicialmente ao acesso à justiça, mas envolve também a prestação jurisdicional, a qual deve resultar em um processo justo, rápido e eficiente, proposta que ocasionou diversas pesquisas por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), resultando no implemento de juízos arbitrais, de conciliação, de mediação e, atualmente, de práticas restaurativas. (Brasil, CNJ, 2016BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resolução 125/2010. Emenda 01/2013. 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.cnj.jus.br . Acesso em: 15 de maio de 2013.
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)

Analisam-se nesta parte do presente artigo, os princípios da Justiça Restaurativa cujos fundamentos que se coadunam com aqueles propostos por Rawls (2008RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes , 2008.) na sua Teoria da Justiça, vista como política pública capaz de gerar o bem estar e a segurança da sociedade, ao mesmo tempo em que promove a participação equitativa dos cidadãos na resolução de problemas ligados às diferenças socioeconômicas, promovendo a autonomia, responsabilidade e solidariedade.

Em uma de suas exposições, chamada “liberalismo político”, Rawls (2000RAWLS, John. O Liberalismo Político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000., p. 45) considera como uma questão fundamental sobre a justiça em uma sociedade democrática indagar: “qual a concepção de justiça mais apta a especificar os termos equitativos de cooperação social entre cidadãos considerados livres e iguais, e membros de uma vida toda, de uma geração até a seguinte?”.

Mais adiante, Rawls acrescenta outra pergunta à primeira, desta vez em busca de encontrar possibilidades para a existência de uma sociedade justa de cidadãos livre e iguais, atuando como um sistema equitativo de cooperação, guiada por regras e procedimentos publicamente reconhecidos, à qual denominou “justiça como equidade”. (Rawls, 2003RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes , 2003.)

Reportando-se às instituições encarregadas de distribuir a justiça nos tribunais, a igualdade democrática teorizada por Rawls consiste na distribuição equitativa de oportunidades, para além da justiça procedimental imperfeita, que ele exemplifica com o aprimoramento do processo penal ao afirmar: “O resultado desejado é que o réu seja declarado culpado se, e somente se, tiver cometido o crime de que é acusado. (...) Embora se obedeça criteriosamente à Lei e os processos sejam conduzidos de maneira justa e apropriada, um julgamento pode chegar ao resultado errado” (Rawls, 2008RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes , 2008., p.104).

Na análise, encontra-se que a Teoria da Justiça como equidade apresenta uma peculiaridade que se aproxima das políticas consentâneas à teoria da Justiça Restaurativa na medida em que se trabalha com o consenso entre os princípios da liberdade e da igualdade, uma vez que se busca, por meio do diálogo imparcial, um ponto de vista comum, tendo em vista responder as reivindicações das partes e chegar a uma solução proporcional e definitiva.

Observa-se que a conceituação de McCold e Wachtel (2003MCOLD, Paul; WACHTEL, Ted. Em busca de um paradigma: uma teoria da Justiça Restaurativa. Trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia, 10-15 Agosto de 2003, Rio de Janeiro. Fonte: Fonte: http://www.iirp.edu . Acesso em: 10 de junho de 2013.
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) para a Justiça Restaurativa, quando analisada sob a janela da disciplina social, explicita o envolvimento de todos os afetados por uma transgressão na restauração dos resultados ocasionados por uma transgressão, o que implica ofensor, vítima e demais envolvidos, expondo suas necessidades, responsabilidades e soluções, diante da imparcialidade do facilitador.

Embora Rawls, ao sugerir a análise de soluções criativas imparciais por parte dos membros de um Estado esteja se referindo a bases que irão sustentar as suas instituições, tal política irá reverberar nelas mesmas, como ele mesmo afirma referindo-se à família, ao direito e outras instituições, o que sugere a mesma imparcialidade com a qual os envolvidos e questões jurídicas podem criar parâmetros para chegar a uma solução consensual.

Foi sob a ótica de um Estado cujas leis sejam construídas com base nos princípios da dignidade humana, da liberdade e da igualdade, que se buscou, neste artigo, encontrar os elementos de consonância entre os princípios teóricos da Justiça Restaurativa relacionados na Resolução n.12/2002 do ECOSOC/ONU e os princípios básicos da liberdade e da igualdade eleitos por Rawls para sustentar sua Teoria da Justiça como Equidade, com vistas a promover a justiça nas instituições de um Estado.

Sobre a interface de princípios entre as duas teorias em estudo, assinala-se que, embora a teoria de John Rawls (2008RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes , 2008.) não trate de problemas diretamente ligados à resolução de questões penais, observa-se que os princípios da liberdade e da igualdade pactuados na Constituição de um Estado contribuem para a aplicação prática da Justiça Restaurativa, lançando luz sobre as políticas criminais dela resultantes no que concerne a uma distribuição equitativa à justiça para a sociedade.

Entretanto, admite-se como pertinente a crítica de Amartya Sen (2011SEN, Amartya. A Ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.) quanto à amplitude devotada por Rawls ao princípio da liberdade, que não se adequa à toda situação concreta no caso da Justiça Restaurativa. De fato, a Teoria não abolicionista da Justiça Restaurativa admite a perda da liberdade nos crimes ou atos infracionais graves. Sobre isto, é preciso esclarecer que o princípio da liberdade, na aplicação prática da Justiça Restaurativa refere-se à voluntariedade na participação dos envolvidos e na consecução do acordo restaurativo, cuja restrição é que não se extrapole os limites legais.

Quanto ao desdobramento do princípio da igualdade realizado na teoria de Rawls em diferença e oportunidade, chama atenção para as diferenças sociais e econômicas apontando para formas de corrigir possíveis vantagens alcançadas por aquela parcela da população que possui, além de maiores meios de informação sobre os próprios direitos, o poder aquisitivo para contratar serviços com advogados particulares em detrimento daqueles que necessitam esperar nas filas de atendimento público.

Deste modo, as várias sociedades caracterizadas como Estados de Direito são formadas de indivíduos e grupos que formam um conjunto diversificado de posturas e doutrinas morais, econômicas, religiosas, as quais foram objeto da construção de novas teorias contratualistas, como a de Rawls, que levou em conta essa diversidade ao propor o consenso na escolha de princípios de justiça para serem aplicados nas instituições.

Assim, a Justiça Restaurativa, ao propor o enfrentamento do pluralismo pela cooperação voluntária entre as partes de um processo, com anuência do Poder Judiciário, encontra-se consonância com o liberalismo político de Rawls como política voltada ao Estado Democrático de Direito, sobretudo no que diz respeito à cooperação social entre cidadãos considerados livres e iguais, e ainda no esforço pela superação das desigualdades de oportunidades encontradas em economias desiguais.

5 CONCLUSÃO

A teoria retributiva do Direito Penal, que reforça o positivismo jurídico formalista, com a ideia do dever e do castigo, não dá conta dos desafios éticos das atuais sociedades constitucionais, com suas características pluralistas, uma vez que as razões pelas quais alguém comete um ato são múltiplas, como múltiplas são as condições internas e externas da pessoa, como talentos, condições sociais ou econômicas, além de preferências ideológicas ou morais.

John Rawls, em sua Teoria da Justiça, encerra uma crítica ao utilitarismo clássico, que enfatiza a obtenção do maior saldo líquido de satisfação da maioria em detrimento do bem do indivíduo, postura que é própria das teorias retributivas de justiça, ao promover a pena como meio de satisfação da sociedade pela mera punição do infrator.

Neste sentido, a Justiça Restaurativa apresenta-se como política pública voltada para a sociedade como um todo, enfatizando o elemento reparador, voltado para a restauração das consequências do delito, considerado não somente uma infração à lei, mas sobretudo um dano à pessoa, de modo que o Estado, ao oferecer este tipo de justiça ao cidadão, estará também gerando oportunidade de acesso àqueles que, por uma ou outra razão, têm encontrado dificuldade de satisfação na realização desse serviço.

Considerou-se, neste artigo, que a possibilidade da desigualdade social e econômica levou Rawls a elaborar pressupostos básicos para o estabelecimento de uma sociedade justa, quais sejam: a igualdade de oportunidades abertas a todos em condições de plena equidade; e a condição de que os benefícios nela auferidos devem ser repassados aos socialmente desfavorecidos de modo proporcional às suas necessidades.

Com base no consenso entre as concepções de justiça, Rawls reputa como requisitos para a viabilidade das comunidades humanas a coordenação entre os planos dos indivíduos, a eficiência e compatibilidade desses planos com os objetivos sociais e a estabilidade da cooperação social, com suas normas básicas cumpridas voluntariamente. Assim, apesar da evidente necessidade de adequação dos estudos de Rawls aos pensamentos restaurativos, há que se refletir acerca da efetividade da aplicação das suas práticas, discussão que poderá ser melhor desenvolvida em outros trabalhos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2019
  • Aceito
    04 Mar 2022
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