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Populismo, confusão de poderes e manipulação midiática: a democracia política sob ataque

Populism, confusion of powers and media manipulation: political democracy under attack

Resumo

Este artigo pretende discutir a crise da democracia contemporânea, tema cujo protagonismo permeia, há décadas, debates acadêmicos nos mais variados campos do conhecimento científico. Entretanto, dados os múltiplos diagnósticos sobre as suas causas, bem como a necessidade de se conferir profundidade teórica à pesquisa, optou-se pelo exame de apenas duas delas, reconhecidamente nocivas à estabilidade dos Estados Democráticos de Direito: a) o populismo, que tem se fortalecido, nos últimos anos, em razão da escalada de movimentos ligados à extrema direita na Europa e América Latina; e b) a confusão entre poderes públicos e privados, aliada aos efeitos da sua conexão com oligopólios detentores de grandes conglomerados midiáticos. Realizada a investigação, segundo as premissas da metodologia hipotético-dedutiva e da técnica de revisão bibliográfica, foi possível concluir que ambos os fenômenos analisados constituem anomalias institucionais, as quais concorrem para a ruptura da ordem legal e comprometem a clássica separação entre Estado e sociedade.

Palavras-chave:
Crise da Democracia; Populismo; Poderes Públicos; Meios de Comunicação

Abstract

This article intends to discuss the crisis of contemporary democracy, a theme whose protagonism has permeated, for decades, academic debates in the most varied fields of scientific knowledge. However, given the multiple diagnoses about its causes, as well as the need to give theoretical depth to the research, it was decided to examine only two of it, admittedly harmful to the stability of Rules of Law: a) the populism, which has been strengthened in recent years due to the escalation of movements linked to the extreme right in Europe ans Latin America; and b) the confusion between public and private powers, allied to the effects of its connection with oligopolies that own large media conglomerates. After carrying out the investigation, according to the assumptions of the hypothetical-deductive methodology and the bibliographic review technique, it was possible to conclude that both analyzed phenomena constitute institutional anomalies, which contribute to the rupture of the legal order and compromise the classic separation between State and society.

Keywords:
Crisis of Democracy; Populism; Public Authorities; Media

1 INTRODUÇÃO

A crise da democracia vem sendo objeto de expressivos debates nas últimas décadas, e a sua análise contempla múltiplos diagnósticos. Independentemente de quais sejam as explicações a respeito do tema, parece inexistir dúvida de que os sistemas democráticos, como concebidos no pós-segunda guerra, enfrentam dificuldades de afirmação, especialmente quando a sociedade civil é submetida a efeitos destrutivos de reveses econômicos.

Tempos difíceis favorecem o (re) surgimento de ideologias extremistas, que denunciam a suposta inefetividade do regime democrático e, com frequência, defendem a sua extinção. Este escrito, longe de apresentar soluções definitivas para a crise da democracia, propõe-se a dissecar dois elementos, comumente invocados como causas da sua erosão: o populismo e os conflitos de interesses entre poderes públicos e privados.

De início, trata-se do populismo que, nos últimos anos, tem aflorado de maneira recorrente, sobretudo pela atuação de movimentos ligados à extrema direita (mencione-se o caso do Brasil, em que o ex-Presidente da República, amparado em circunstancial apoio majoritário, notabilizou-se pela sistemática adoção de posturas antidemocráticas e apologéticas à ruptura da ordem institucional).

Em seguida, discorre-se sobre a confusão entre poderes públicos e privados, típica de regimes patrimonialistas, protagonizada por autoridades estatais e forças econômico-financeiras. São analisados, ainda, os efeitos da associação de tais agentes a oligopólios detentores de grandes conglomerados midiáticos, que têm poder de influência na formação da opinião pública e dos consensos eleitorais.

Para a confecção do artigo, é utilizada a metodologia hipotético-dedutiva, pois, busca-se confirmar/falsear as seguintes hipóteses: a) o populismo é causa de degradação da democracia; b) a conjugação de forças político-econômicas, com grandes meios difusores de informação, tem condicionado decisões tomadas no âmbito da administração pública e contribuído para a manipulação de pleitos eleitorais. Emprega-se a técnica de pesquisa de revisão bibliográfica, subsidiada por consultas a livros, artigos científicos e material publicado na imprensa.

2 POPULISMO E DEMOCRACIA: UMA CONVERGÊNCIA (IM) POSSÍVEL

Uma das alegadas causas de degeneração da democracia política é a personalização representativa, decorrente do populismo1 1 O objetivo deste capítulo não é realizar estudo profundo acerca do populismo, mas identificar as suas principais características e influências no processo erosivo da democracia. No entanto, é importante aludir ao cientista político argentino, Ernesto Laclau, que foi um dos mais expressivos estudiosos da temática nas últimas décadas. Para ele, em linhas muito gerais, o populismo se assenta em premissa de natureza coletivista e postula a emancipação social por meio do rompimento com a ordem jurídica vigente. Busca-se, então, a afirmação da identidade do povo, compreendido como unidade orgânica (LACLAU, 1996), (LACLAU, 2015) e (LACLAU, 2013). . Referido fenômeno tem sido observado, nos últimos anos, em diversos países afetados por grandes crises (Mudde, 2019MUDDE, Cas. The far right today. Hoboken: John Wiley & Sons, 2019., p. 47), nos quais a celebração dos chamados líderes nacionais e a debilitação das prerrogativas parlamentares vem se impondo como preocupante realidade.

Enquanto práxis político-governamental, o populismo possui algumas peculiaridades, cujo domínio é importante para a compreensão do seu poder destrutivo frente à democracia: a) o povo é considerado uma unidade sociológica, que necessariamente se opõe ao “sistema”, segundo a lógica dicotômica amigo/inimigo; b) as instituições democráticas são alvo constante de descrédito, com o objetivo de se estabelecer direta conexão entre o líder e as camadas populares, em prejuízo das instâncias representativas; c) a população é mantida em permanente estágio de mobilização, que se fortalece mediante apelo a símbolos previamente determinados (Cademartori, 2020CADEMARTORI, Sérgio. Pandemia sanitária em terras de endemia autoritária. In: RIBEIRO, Diógenes Vicente Hassan; ACHUTTI, Daniel Silva (org.). A Crise Sanitária vista pelo Direito: observações desde PPGD/Unilasalle sobre a COVID-19 (versão eletrônica). Canoas, RS: Ed. Unilasalle, 2020., p. 113-114).

Afora as características anteriormente ressaltadas, a peculiaridade mais incisiva do populismo constitui a busca pela “conciliação” entre as camadas sociais, fundada numa ótica formalista de igualdade, que se opõe à adoção de políticas inclusivas das minorias historicamente vilipendiadas (Villacañas Berlanga, 2015VILLACAÑAS BERLANGA, José Luis. Populismo. Madrid: La huerta Grande, 2015.). Com efeito, a perspectiva populista visa à supressão das diferenças de classe, trazendo à baila o confronto com inimigos vagamente conceituados (Miguel, 2021MIGUEL, Luis Felipe. Despolitização e antipolítica: a extrema-direita na crise da democracia. Revista Argumentum, Vitória, v. 13, n. 2, mai./ago 2021., p. 15), como as “elites” e as “ideologias globalistas”. Assim, o populismo endossa um discurso de oposição à política e aos políticos tradicionais, vistos como origem de todos os males e tumor a ser extirpado.

Para a estratégia de afirmação populista ser exitosa, é fundamental o reforço às premissas do populismo no seio de determinado Estado Nacional2 2 O populismo endossa o isolamento do Estado-Nação, como recusa ao imperialismo estrangeiro e a políticas integrativas supranacionais (MARCHETTONI, 2017). , sob a contundente liderança do “chefe” (Ferrajoli, 2018FERRAJOLI, Luigi. Democrazia e populismo. Revista AIC, Roma, n. 3, 2018., p. 516) que, sistematicamente, alerta para a necessidade de enfrentamento aos malefícios causados pela ordem internacional e os seus organismos multilaterais. O populismo notabiliza-se, assim, por uma radical rejeição à supranacionalidade e a qualquer dos seus mecanismos integrativos (Cademartori, 2020CADEMARTORI, Sérgio. Pandemia sanitária em terras de endemia autoritária. In: RIBEIRO, Diógenes Vicente Hassan; ACHUTTI, Daniel Silva (org.). A Crise Sanitária vista pelo Direito: observações desde PPGD/Unilasalle sobre a COVID-19 (versão eletrônica). Canoas, RS: Ed. Unilasalle, 2020., p. 114).

Ante o avanço mundial do presidencialismo, que geralmente se conjuga com sistemas eleitorais de cunho majoritário, a representação política tende a associar-se, de modo cada vez mais contundente, à figura do chefe populista (Pazé, 2018PAZÉ, Valentina. Il populismo come antitesi della democrazia. Revista Teoria Politica. Nuova serie Annali, Torino, n. 3, 2018., p. 122-123). Citado processo de personalização estatal é devastador, tendo em vista o viés ideológico a si inerente, exteriorizado pela negativa ao clássico axioma democrático da separação entre Estado e sociedade (Ferrajoli, 2011FERRAJOLI, Luigi. Poderes salvajes. La crisis de la democracia constitucional. Madrid: Trotta, 2011., p. 46).

Nos sistemas de governo majoritários, cujo flerte com o populismo tem se evidenciado comum, abre-se considerável espaço para o exercício da democracia, todavia restrito à predileção eleitoral por determinada tendência circunstancialmente dominante. Tal lógica negligencia a pluralidade político-representativa encontrada na sociedade (Bovero, 2015BOVERO, Michelangelo. Para uma teoria neobobbiana da democracia. São Paulo: FGV, 2015., p. 42) e tende a produzir autocracias eletivas3 3 Nas autocracias eletivas, as competições eleitorais se sobrepõem aos processos formadores de mandatos populares. Nesse contexto, em que pese haver democracia formal, observa-se uma falência das instituições e da mediação representativa (FERRAJOLI, 2018a). .

Nesse cenário, a opção eleitoral do grupo social majoritário e o “culto” ao líder se impõem, distorcidamente, como suposta causa de fortalecimento da representação política (Ferrajoli, 2014FERRAJOLI, Luigi. La democracia a través de los derechos. El constitucionalismo garantista como modelo teórico y como proyecto político. Madrid: Trotta, 2014., p. 150-151). No entanto, mencionada concepção endossa modalidade democrática deformada, de cunho plebiscitário, na qual é possível observar as seguintes e nocivas consequências práticas: a) a transmudação dos partidos em espaços privados, controlados pelo líder; b) a conexão direta entre o líder e o povo, especialmente por intermédio da mídia televisiva; c) o reforço à onipotência majoritária (Ferrajoli, 2011FERRAJOLI, Luigi. Poderes salvajes. La crisis de la democracia constitucional. Madrid: Trotta, 2011.).

O aval à onipotência do líder, enquanto elocução orgânica das aspirações do povo é, nos regimes de constitucionalismo democrático, simultaneamente, inconstitucional e avesso à efetiva representatividade política, por menosprezar os limites e os vínculos constitucionais impostos às prerrogativas majoritárias (Ferrajoli, 2018FERRAJOLI, Luigi. Democrazia e populismo. Revista AIC, Roma, n. 3, 2018., p. 517). Engendra-se, assim, uma perniciosa prática, cuja relação com os populismos é patente: a legitimação do governo dos homens, personificado no “chefe mítico”, em contraponto ao governo das leis (Bobbio, 2009BOBBIO, Norberto. Teoría general de la política. Madrid: Trotta, 2009.), com o consequente endosso à ideia de que o princípio da legalidade e os mecanismos de controle judiciais constituem espúrios óbices à adoção de políticas nacionalistas.

Hans Kelsen, ainda no início do século XX, alertou para a inexistência da famigerada vontade geral, ao afirmar que a sua conotação ideológica instrumentaliza a instauração de autocracias (Salatini, 2016SALATINI, Rafael. Michelangelo Bovero. A crise da democracia. Revista Teoria e Pesquisa, São Carlos, v. 25, n. 2, 2016., p. 294). Segundo o entendimento kelseniano (Kelsen, 1995KELSEN, Hans. La democrazia. Bologna: Il Mulino, 1995.), o padrão ideal de democracia seria incompatível com o processo de celebração de líderes, os quais tendem, naturalmente, a autoproclamar-se indivíduos excepcionais, especialmente capacitados para interpretar e contemplar os reclamos populares.

Tratar o povo como conjunto uníssono, identificado com o seu líder, é a mais robusta característica do fascismo, cuja figura de um dirigente carismático lhe é indispensável. Todavia, como a história tem mostrado, a exaltação da imagem de um guia cativante é inconciliável com o regime democrático, pois este sempre reivindicará a sua sofística relação orgânica com o povo, o que já levou o Mundo ao ápice da barbárie em tempos recentes (Ferrajoli, 2011FERRAJOLI, Luigi. Poderes salvajes. La crisis de la democracia constitucional. Madrid: Trotta, 2011., p. 51).

Assim, o populismo de extrema direita está sempre a um passo de reviver o fenômeno social totalitário que assolou a Itália, a Alemanha, a Espanha e Portugal, dentre outros países, na primeira metade do século XX. A propósito, Umberto Eco (2002ECO, Umberto. Cinco Escritos Morais. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002.) enuncia de forma didática e marcante as características daquilo que ele denomina de “Ur-fascismo”, ou “fascismo eterno”: a) o culto à tradição; b) em consequência, a recusa à modernidade; c) o culto à ação, tomada como um fim em si; d) a intolerância perante os desacordos; e) o medo à diferença; f) o apelo à pequena burguesia frustrada; g) um férreo nacionalismo, derivando, daí, a elaboração de teorias da conspiração envolvendo grupos cosmopolitas (forças estrangeiras, o judaísmo internacional e etc.); h) a exploração de certo sentimento de humilhação perante os ditos inimigos externos; i) o belicismo (o pacifismo é conluio com o inimigo); j) o elitismo popular, ou seja, o desprezo pelos fracos; l) o culto ao heroísmo, ligado ao culto à morte; k) um arraigado machismo; m) um “populismo qualitativo”, ou “a resposta emocional de um selecionado grupo de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a ‘voz do povo”; e n) a criação de uma “novilíngua”4 4 Este conceito remete à ficção orwelliana, com destaque para a obra “1984”, escrita por Athur Blair sob o pseudônimo de George Orwell. No livro, o autor descreve uma sociedade totalitária, marcada pela total ausência de liberdade, que, na linha do conceito de totalitarismo cunhado por Hannah Arendt, atinge os mais expressivos níveis de desumanização dos indivíduos. Orwell certamente se refere ao regime stalinista, reconhecidamente um grande terror para a população soviética. Nesse contexto se insere a novilíngua, idioma fictício criado com o objetivo de reduzir a comunicação entre os sujeitos para controla-los integralmente, processo que resulta na destruição da língua vigente. Vide ORWELL (1991) e ARENDT (2012). rústica e limitada.

O conceito de vontade geral derivado do povo como conjunto orgânico foi defendido por Carl Schmitt (2007SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.), no icônico debate travado com Kelsen (2003KELSEN, Hans. Quem deve ser o guardião da Constituição? São Paulo: Martins Fontes, 2003.), anteriormente à instauração do regime nazista alemão (Martins, 2017MARTINS, Argemiro. O debate entre Hans Kelsen e Carl Schmitt em seu tempo e para além dele. In: BUENO, Roberto.; RAMIRO, Caio Henrique Lopes (org.). Sonhos e pesadelos da democracia em Weimar - Tensões entre Carl Schmitt e Hans Kelsen. São Paulo: Libertas, 2017., pp. 34-36). As ideias de Schmitt, intelectual reconhecidamente adepto do nazismo, impuseram-se sobre as perspectivas democráticas kelsenianas, tendo Kelsen, de ascendência judia, se radicado nos Estados Unidos, para fugir da perseguição hitlerista (Kelsen, 2018KELSEN, Hans. Autobiografia de Hans Kelsen. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018.).

Aqui cabe um breve e exemplar recorte sobre a conjuntura política nacional do último quadriênio, período em que o Brasil teve, à frente do Poder Executivo, um governante tendencialmente populista, embora tenha lhe faltado, para tal, o apoio de expressivas maiorias do eleitorado (Cademartori, 2020CADEMARTORI, Sérgio. Pandemia sanitária em terras de endemia autoritária. In: RIBEIRO, Diógenes Vicente Hassan; ACHUTTI, Daniel Silva (org.). A Crise Sanitária vista pelo Direito: observações desde PPGD/Unilasalle sobre a COVID-19 (versão eletrônica). Canoas, RS: Ed. Unilasalle, 2020., p. 116). Com efeito, o governante, ao longo do mandato, empenhou-se em afirmar um contumaz apelo à figura do presidente da República como encarnação da vontade popular e guardião de supostos valores cívico-militares inatos à sociedade (Maitino, 2020MAITINO, Martin Egon. Populismo e Bolsonaro. Cadernos Cemarx, Campinas, n. 13, 2020.).

Assim, no intento de viabilizar a sua direta conexão com o povo, o mandatário insistiu na recorrente estratégia de contestação da legitimidade das instituições democráticas. A campanha desconstrutiva mirou especialmente o órgão de maior hierarquia no Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal, que foi reiteradamente acusado, sem motivos plausíveis, de interferir indevidamente nas atribuições do Poder Executivo, mediante instauração de uma presumida “ditadura da toga” (Gazeta do Povo, 2021Bolsonaro ameaça tomar medida “fora da constituição” ao criticar “ditadura de toga”. Gazeta do Povo, 5 ago. 2021. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/bolsonaro-ameaca-tomar-medida-fora-da-constituicao/. Acesso em: 6 fev. 2023.
https://www.gazetadopovo.com.br/republic...
).

Em sintonia com uma conhecida prática fascista, o presidente investiu pesadamente na militarização da estrutura do Estado, nomeando centenas de oficiais para ocupar postos estratégicos no seu governo (Brandino; Galf, 2021BRANDINO, Jéssica.; GALF, Renata. Entenda a militarização do governo Bolsonaro e as ameaças que isso representa. Folha de São Paulo, 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/02/entenda-a-militarizacao-do-governo-bolsonaro-e-as-ameacas-que-isso-representa.shtml. Acesso em: 6 fev. 2023.
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021...
). Além disso, fomentou política armamentista de amplo alcance social, a fim de assegurar a lealdade de eleitores identificados com a pré-moderna ideia de autodefesa populacional frente à violência (Cavalcanti; Yamaguti, 2023CAVALCANTI, Leonardo.; YAMAGUTI, Bruna. Em 4 anos de governo, Bolsonaro liberou 1.041 armas por dia. SBT news, 2023. Disponível em: https://www.sbtnews.com.br/noticia/governo/235336-em-4-anos-de-governo-bolsonaro-liberou-1100-armas-por-dia. Acesso em: 6 fev. 2023.
https://www.sbtnews.com.br/noticia/gover...
).

Findas as recentes eleições, nas quais foi derrotado, o representante da extrema direita adotou a tática antidemocrática de negação da lisura do pleito, o que soou como “chamamento messiânico” aos seus seguidores mais radicais, que se mobilizaram em acampamentos, erguidos defronte a quartéis, suplicando, às forças armadas, intervenção junto aos poderes legalmente constituídos (BBC, 2022A rotina do acampamento em SP onde bolsonaristas pedem intervenção militar. BBC news Brasil, 26 dez. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64042482. Acesso em: 6 fev. 2023.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64...
).

Mantida a conduta provocativa do presidente em fim de mandato, até a ocasião de posse do seu sucessor, o movimento parafascista desaguou em tentativa de golpe de Estado, marcada pela invasão dos prédios dos três poderes, o que resultou em danos incalculáveis à história e à memória do país (BBC, 2023Lula decreta intervenção no DF após apoiadores de Jair Bolsonaro invadirem Congresso, STF e Palácio do Planalto. BBC news Brasil, 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64205788. Acesso em: 6 fev. 2023.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64...
). Embora frustradas no seu desiderato principal, as ações terroristas, ocorridas em 08 de janeiro de 2023, ao menos serviram para desvelar a face dantesca da ralé5 5 A ralé, cujo conceito é comumente distorcido pelo senso comum, corresponde ao subproduto humano da sociedade burguesa, sem vinculação direta com classe social específica. Hannah Arendt associa o protagonismo da ralé a fenômenos históricos altamente destrutivos, como o antissemitismo, o imperialismo e o totalitarismo (ARENDT, 2012). tupiniquim.

Essa canhestra imitação do putsch da Cervejaria, primeira tentativa nazista de tomada de poder, contrariando a célebre frase do início do “18 Brumário” (“Hegel observa algures que todos os grandes factos e personagens da história universal aparecem como que duas vezes. Mas esqueceu-se de acrescentar: uma vez como tragédia e a outra como farsa”) (Marx, 1982MARX, Karl. “O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte”. In: MARX, Karl.; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. Lisboa/Moscou: ed. Progresso, 1982.), a farsa deu-se em 8 de novembro de 1923, pois não passou de um discurso na Bürgerbräukeller, enquanto a tragédia para a cultura e as instituições brasileiras encenou-se quase um século depois.

O exemplo brasileiro atesta a natureza equivocada da concepção de que o líder da nação personifica a vontade da totalidade dos eleitores, o que redunda, em verdade, no comprometimento do instituto da mediação representativa, caracterizada pelo exercício de mandato eletivo não imperativo. Referido preceito, reconhecidamente um dos pilares da democracia, tem sido substituído, tanto nas discussões políticas, quanto no imaginário social, pela mistificação ideológica alusiva à automática identificação dos representantes, e de seu líder, com os anseios populares, considerando-se, o povo, unidade orgânica (Ferrajoli, 2011FERRAJOLI, Luigi. Poderes salvajes. La crisis de la democracia constitucional. Madrid: Trotta, 2011.a, p. 462).

É possível observar, na atualidade, uma crítica modificação estrutural no ordenamento democrático, provocada, dentre outros fatores, pelo avanço do ideário populista, sobretudo em alguns países da Europa e da América Latina. Sempre que a correlação entre líder e povo supera a natureza meramente publicitária, impondo-se como real fator de instabilidade institucional, é de se identificar o surgimento de peculiar sistema político. O populismo corresponde, assim, enquanto produto desta trágica mudança paradigmática, à forma degenerada de democracia (Ferrajoli, 2018FERRAJOLI, Luigi. Democrazia e populismo. Revista AIC, Roma, n. 3, 2018., p. 516), ou à demagogia6 6 A demagogia, segundo Aristóteles, é a forma degenerada de democracia, na qual a soberania pertence às massas e não às leis (ARISTOTELES, 2019). , segundo lecionava, já na antiguidade, Aristóteles.

3 CONFUSÃO DE PODERES, MANIPULAÇÃO MIDIÁTICA E SEUS EFEITOS NA ESFERA PÚBLICA

Afora o populismo, há outro suposto elemento de degeneração da esfera estatal: o endêmico processo de confusão entre os poderes. Tal desarranjo, para além do agravo ao tradicional princípio da divisão dos poderes em âmbito público, suprime a necessária cisão entre os poderes políticos e econômicos, que integra o “DNA” do constitucionalismo moderno (Ferrajoli, 2011FERRAJOLI, Luigi. Poderes salvajes. La crisis de la democracia constitucional. Madrid: Trotta, 2011., p. 52).

Mencionada confusão seguramente ocasiona conflitos de interesses sociais, tendo em vista a sólida correlação entre instâncias políticas públicas e forças econômico-financeiras privadas (Barreto Júnior, 2022BARRETO JÚNIOR, Williem da Silva. Crítica garantista ao Estado Constitucional de Direito e o constitucionalismo global. Curitiba: Juruá, 2022., p. 70-73). Dos citados embates entre poderes, advêm práticas nocivas à democracia, como a corrupção, os lobbies corporativos e o uso dos meios de comunicação de massa com finalidade desinformadora (Ferrajoli, 2014FERRAJOLI, Luigi. La democracia a través de los derechos. El constitucionalismo garantista como modelo teórico y como proyecto político. Madrid: Trotta, 2014., p. 140), o que tonifica a perigosa tríade dinheiro, informação e política.

Num mundo globalizado, a atividade regulatória heterônoma da economia pela política se enfraquece, na medida em que a prevalência dos interesses privados propala a redução do potencial interventivo estatal nos mercados dos Estados Nacionais, sob a justificativa da necessidade de se garantir ampla concorrência. Com efeito, está em voga uma verdadeira regressão pré-moderna, consubstanciada na inversão do relacionamento entre os espectros públicos e os privados. Isso decorre da crescente confusão e concentração das duas classes de poderes nas mãos das mesmas pessoas (Ferrajoli, 2011FERRAJOLI, Luigi. Poderes salvajes. La crisis de la democracia constitucional. Madrid: Trotta, 2011., p. 54).

A disputa de interesses nas altas esferas estatais tem se exteriorizado por diversos mecanismos, especialmente em razão da excessiva concentração de poderes governamentais, recursos econômicos e oligopolizados conglomerados midiáticos. A separação entre poderes políticos e econômicos é crucial, de forma que a economia se submeta às determinações estatais, ao revés do observado hodiernamente, quando o capital tem sido sistematicamente usado para viabilizar aspirações pessoais específicas, em prejuízo da lógica democrática (Vitale, 2010VITALE, Ermanno. Difendersi dal potere. Per una resistenza costituzionale. Roma: Laterza, 2010., p. 84).

Ao acessar instâncias representativas, em especial à chefia do Poder Executivo, um detentor de expressivos recursos econômicos e influência junto a meios de comunicação tende a condicionar eventuais decisões, no campo da administração pública, a seus próprios interesses, de forma que a separação entre poder econômico e político se dissolve. Tal cenário deve ser reputado sintoma de grave anomalia institucional, cuja ocorrência evidencia a deformação do sistema político (Barreto Júnior; Cademartori, 2021BARRETO JÚNIOR, Williem da Silva; CADEMARTORI, Sérgio. Repensando a democracia: uma crítica garantista à atual configuração do Estado de Direito. Revista Direito em Debate, Ijuí, n. 56, jul./dez, 2021.).

Os partidos políticos - que deveriam funcionar como base para a representação popular - têm se convertido nas instituições mais impopulares, e o seu descrédito acaba por se transferir para as próprias instituições representativas, como os parlamentos (Ferrajoli, 2011FERRAJOLI, Luigi. Poderes salvajes. La crisis de la democracia constitucional. Madrid: Trotta, 2011., p. 46). Nesse contexto, elevam-se os índices de abstenção nos pleitos eleitorais, o que interessa sobremaneira às pautas neoliberais e alavanca o emprego do poder de influência econômico-financeiro. Estabelece-se então uma onipotência em relação às sociedades, promove-se o enfraquecimento das oposições e efetivam-se diretivas tendentes à subtração de direitos sociais básicos (Avelãs Nunes, 2003AVELÃS NUNES, Antônio José. Neoliberalismo e direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.).

Este quadro, recorrente em muitas democracias políticas ocidentais7 7 Ferrajoli (2011) critica severamente o conflito de interesses desvelado quando da eleição de Silvio Berlusconi para o cargo de Primeiro-Ministro da Itália. O magnata italiano foi investido na chefia de governo do país europeu, apesar de deter um imenso conglomerado empresarial, que contempla ampla rede de mídias de comunicação. , é derivado, segundo afirma Luigi Ferrajoli, do patrimonialismo populista, fenômeno responsável por uma espécie de “feudalização da política”, cuja engrenagem se fundamenta na barganha entre lealdade e proteção. O patrimonialismo populista é relativamente recente na história dos institutos democráticos e não encontra paralelo com os antigos e conhecidos métodos de degradação da esfera estatal. Assim, das tradicionais negociatas espúrias, nas quais ainda se mantinha a separação entre poderes públicos e privados, involuiu-se para a confusão explícita e institucionalizada entre eles (Ferrajoli, 2011FERRAJOLI, Luigi. Poderes salvajes. La crisis de la democracia constitucional. Madrid: Trotta, 2011., p. 54).

Do patrimonialismo populista resulta a ruptura da natureza representativa da democracia, em suas duas acepções. Inicialmente, degrada-se a representação jurídico-legal do Estado, que é conceitualmente inconciliável com o conflito entre as aspirações pessoais do representante, e as coletivas, dos representados. Arruína-se, também, a representação política do corpo eleitoral, em decorrência da subjugação, sobre ela exercida, pelos interesses do representante, situação agravada quando o beneficiário da disfuncionalidade institucional é chefe de governo (Ferrajoli, 2018FERRAJOLI, Luigi. Democrazia e populismo. Revista AIC, Roma, n. 3, 2018., p. 518). Ao fim, são efetivamente contemplados os desígnios privados e não os da sociedade civil, em contraponto à natureza pública das instâncias de representação, teoricamente plasmada na separação entre Estado e sociedade.

Ademais, citados agentes deformadores da democracia política se fortalecem mutuamente, pois: a) a promiscuidade entre interesses públicos e privados, aliada ao domínio dos meios de comunicação, funciona como agente de manipulação do consenso eleitoral; b) o consenso majoritário é utilizado para chancelar os conflitos de interesses e desqualificar eventuais oposições advindas de indivíduos comuns, não pertencentes à estrutura do Estado, ou de opositores (Laclau, 2013LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013.). Com efeito, a perniciosa conjugação do populismo com o patrimonialismo redunda em evidente rejeição à separação de poderes e aos princípios da igualdade e legalidade (Ferrajoli, 2011FERRAJOLI, Luigi. Poderes salvajes. La crisis de la democracia constitucional. Madrid: Trotta, 2011., p. 57).

Outro problema resultante da degradação institucional - provocado pela relação indecorosa entre interesses públicos e privados - é a inefetividade de garantias do direito à informação. Nada obstante previstas as liberdades de imprensa e de informação nas Constituições, em muitos dos influentes conglomerados midiáticos brasileiros as garantias do livre exercício de tais preceitos fundamentais são comumente tolhidos, o que viola o direito dos cidadãos a uma informação não condicionada por interesses privados nebulosos (Marioni, 2015MARIONI, Bruno. Concentração dos meios de comunicação de massa e o desafio da democratização da mídia no Brasil. Intervozes, São Paulo, n. 13, 2015., p. 9).

O sistemático controle prévio dos editoriais televisivos e jornalísticos está necessariamente conectado à sua subordinação aos interesses dos controladores da imprensa, em regra integrantes de elitizados grupos de indivíduos. De outra banda, se o domínio dos veículos de comunicação pertence a políticos e a grandes agentes econômicos, os poderes midiáticos revelam-se incontrolados (Cademartori; Jacob de Menezes Neto, 2013CADEMARTORI, Daniela Mesquita Leutchuk.; MENEZES NETO, Elias Jacob de. Poder, Meios de Comunicação de Massas e Esfera Pública na Democracia Constitucional. Revista Sequência, Florianópolis, n. 66, jul. 2013., p. 189).

Em vista da crescente associação entre forças econômicas, políticas e midiáticas, as instâncias públicas vêm, cada vez mais, confundindo-se com a seara privada, em confirmação do diagnóstico sobre a erosão da democracia contemporânea (Ferrajoli, 2014FERRAJOLI, Luigi. La democracia a través de los derechos. El constitucionalismo garantista como modelo teórico y como proyecto político. Madrid: Trotta, 2014., p. 22). Hodiernamente, não são a informação e a opinião que moderam e pressionam o poder político; em sentido diverso, os agentes estatais e os conglomerados econômico-financeiros afiguram-se detentores, em conjunto, da prerrogativa de gerenciamento da difusão da informação e da formação da opinião pública (Levitsky, Ziblatt, 2018LEVITSKY, Steven.; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2018.).

Assim, é possível identificar o padecimento da democracia em defluência da concentração do controle político e da informação nas mãos dos mesmos grupos hegemônicos. Tal fator institucionaliza a supremacia dos oligopólios detentores de impérios televisivos e editoriais, responsáveis pela disseminação, para as grandes massas, de informações distorcidas, cujo fulcro é atender a interesses privados (Cademartori; Jacob de Menezes Neto, 2013CADEMARTORI, Daniela Mesquita Leutchuk.; MENEZES NETO, Elias Jacob de. Poder, Meios de Comunicação de Massas e Esfera Pública na Democracia Constitucional. Revista Sequência, Florianópolis, n. 66, jul. 2013., p. 199).

Da difusão de informações, condicionada a desígnios incompatíveis com o interesse público, resulta, também, o comprometimento da separação entre poderes políticos e ideológico-culturais, afirmada como um dos pilares da filosofia liberal. Ao desvirtuarem a informação, as forças econômico-financeiras e políticas almejam, conjuntamente, instaurar um quadro de alienação coletiva, de modo a afastar a sociedade civil de posições incompatíveis com as encampadas por seus aliados governantes (Ferrajoli, 2011FERRAJOLI, Luigi. Poderes salvajes. La crisis de la democracia constitucional. Madrid: Trotta, 2011., p. 63).

Deve ser denunciada e combatida, portanto, a sujeição da liberdade de informação à propriedade privada dos meios de comunicação por oligopólios (Marioni, 2015MARIONI, Bruno. Concentração dos meios de comunicação de massa e o desafio da democratização da mídia no Brasil. Intervozes, São Paulo, n. 13, 2015., p. 4), sobretudo os televisivos, pois, muito além dos jornais e revistas, livremente adquiríveis pelos consumidores, a televisão é um espaço público e decisivo para a formação do imaginário coletivo e do consenso.

Recentemente, para além da tradicional desinformação televisiva e editorial, a Internet assumiu protagonismo e passou a influenciar concretamente os processos eleitorais. Embora a rede mundial de computadores descentralize os veículos de comunicação, concedendo, em tese, maior liberdade de escolha para o grande público, a atuação de verdadeiras “milícias digitais” muito tem contribuído para o desmonte da democracia política. E não são ações isoladas e descoordenadas de indivíduos que almejam manipular a produção do consenso eleitoral, mas organizações “piramidais, ordenadas em células, com organização hierárquica rigorosa e distribuição eficiente de funções...” (Lôbo; Bolzan de Morais; Nemer, 2020LÔBO, Edilene; BOLZAN DE MORAIS, José Luís; NEMER, David. Democracia algoritmica: o futuro da democracia e o combate às milícias digitais no Brasil. Revista Culturas Jurídicas, Rio de Janeiro, v. 7, n. 17, mai./ago. 2020., p. 264).

Contextualizando brevemente o caso brasileiro, é possível identificar uma gigantesca rede de difusão de informações falsas, cuja velocidade de propagação pela internet assume contornos exponencialmente perigosos (Lôbo; Bolzan de Morais; Nemer, 2020LÔBO, Edilene; BOLZAN DE MORAIS, José Luís; NEMER, David. Democracia algoritmica: o futuro da democracia e o combate às milícias digitais no Brasil. Revista Culturas Jurídicas, Rio de Janeiro, v. 7, n. 17, mai./ago. 2020., p. 266). Nas eleições de 2018, restou clara a influência das fake news no processo eleitoral, que terminou por eleger um representante da extrema direita, amplamente conhecido por seus reiterados ataques às instituições democráticas.

O desenfreado exercício do direito de propriedade nos jornais, revistas, televisão e plataformas da Internet tem sistematicamente violado direitos fundamentais, pois as liberdades básicas, no contexto atual, ao invés de funcionarem como limites ao poder, têm sucumbido à lei do livre mercado e aos interesses político-econômicos a ela associados, que se revelam supremos em relação aos landmarks da democracia constitucional (Ferrajoli, 2011FERRAJOLI, Luigi. Poderes salvajes. La crisis de la democracia constitucional. Madrid: Trotta, 2011., p. 63).

Quanto a este particular, Ferrajoli (2014FERRAJOLI, Luigi. La democracia a través de los derechos. El constitucionalismo garantista como modelo teórico y como proyecto político. Madrid: Trotta, 2014.) empreende uma reflexão profunda, que visa ao desmonte da visão liberal segundo a qual o direito de propriedade tem status de liberdade básica, sendo impassível de limitação por parte do Estado. Os direitos fundamentais, de acordo com o jusfilósofo italiano, corporificam a igual e única personalidade jurídica de cada sujeito enquanto pessoa e cidadão, ensejando a formação básica do princípio da igualdade. Os direitos patrimoniais, por seu turno, reclamam qualificação prévia dos sujeitos para o seu exercício, endossando a concretização de desigualdades jurídicas8 8 Em linha similar, (COPETTI NETO, 2016). .

Desta forma, é necessário reforçar o óbvio: nenhum poder patrimonial pode sobrepor-se a direitos fundamentais inscritos nas Constituições, tendo em vista a superioridade hierárquica destes em relação àquele.

4 CONCLUSÃO

O populismo tem sido causa de degradação da democracia política, especialmente, em países impactados por grandes crises econômicas. Nesse contexto, a excessiva concentração de poderes nas mãos do líder é conjugada com o enfraquecimento das prerrogativas parlamentares, comprometendo-se o instituto da mediação representativa.

A práxis populista visa ao estabelecimento de direta conexão entre o líder e o povo, que é visto como unidade orgânica. Assim, as instituições democráticas são sistematicamente atacadas, com o desiderato de supressão das diferenças entre as classes, instadas a um permanente estado de hostilidade frente a inimigos imprecisamente conceituados. Em tal cenário, a escolha eleitoral majoritária e a reverência ao chefe ensejam espécie plebiscitária e degenerada de democracia.

A ideia de que o líder personifica as aspirações populares é atentatória contra o instituto da representatividade política, pois, ao legitimar o governo dos homens, em detrimento do governo das leis, revela-se incompatível com pilares da democracia contemporânea, a exemplo do princípio da legalidade e dos mecanismos de controle judiciais. O recente e desastroso exemplo brasileiro demonstrou, na prática, o potencial golpista de um governo de feições populistas.

Resulta, ainda, da promíscua relação entre poderes públicos e privados, a inefetividade de garantias do direito à informação. Em decorrência da atuação conjunta das forças econômicas, políticas e midiáticas, dominadas pelos mesmos e elitizados grupos de indivíduos, as esferas estatais vêm amoldando-se, progressivamente, aos desígnios da iniciativa privada, o que reforça o diagnóstico de direcionamento da opinião pública e de influência junto a pleitos eleitorais.

Não bastasse a histórica influência do grande capital nos meios de comunicação tradicionais, como a televisão, as rádios, os jornais e as revistas, a internet tem se revelado campo fértil para a manipulação da opinião pública e, por conseguinte, dos pleitos eleitorais. No Brasil, recentemente, pôde-se vislumbrar a atuação das chamadas “milícias digitais”, cujo patrocínio, por agentes econômico-financeiros e políticos, contribuiu decisivamente o desequilíbrio do processo eleitoral, o que culminou na eleição de um Presidente da República avesso à democracia.

Em resumo, tendo em vista as considerações anteriormente feitas, é possível confirmar as seguintes hipóteses: a) o populismo é causa de grave comprometimento da legitimidade dos regimes democráticos, na medida em que se propõe a romper com a ordem institucional vigente; b) a confusão entre poderes públicos e privados, associada à influência dos agentes políticos e econômicos sobre os meios de comunicação, compromete a mediação representativa e, por conseguinte, a livre formação da opinião pública e dos consensos eleitorais.

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  • 1
    O objetivo deste capítulo não é realizar estudo profundo acerca do populismo, mas identificar as suas principais características e influências no processo erosivo da democracia. No entanto, é importante aludir ao cientista político argentino, Ernesto Laclau, que foi um dos mais expressivos estudiosos da temática nas últimas décadas. Para ele, em linhas muito gerais, o populismo se assenta em premissa de natureza coletivista e postula a emancipação social por meio do rompimento com a ordem jurídica vigente. Busca-se, então, a afirmação da identidade do povo, compreendido como unidade orgânica (LACLAU, 1996LACLAU, Ernesto. Emancipación y diferencia. Buenos Aires: Ariel, 1996.), (LACLAU, 2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios, 2015.) e (LACLAU, 2013LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013.).
  • 2
    O populismo endossa o isolamento do Estado-Nação, como recusa ao imperialismo estrangeiro e a políticas integrativas supranacionais (MARCHETTONI, 2017MARCHETTONI, Leonardo. Teorie del populismo. Jura Gentium, Firenze, v. 14, n. 2, 2017.).
  • 3
    Nas autocracias eletivas, as competições eleitorais se sobrepõem aos processos formadores de mandatos populares. Nesse contexto, em que pese haver democracia formal, observa-se uma falência das instituições e da mediação representativa (FERRAJOLI, 2018aFERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo más allá del estado. Madrid: Trotta, 2018a.).
  • 4
    Este conceito remete à ficção orwelliana, com destaque para a obra “1984”, escrita por Athur Blair sob o pseudônimo de George Orwell. No livro, o autor descreve uma sociedade totalitária, marcada pela total ausência de liberdade, que, na linha do conceito de totalitarismo cunhado por Hannah Arendt, atinge os mais expressivos níveis de desumanização dos indivíduos. Orwell certamente se refere ao regime stalinista, reconhecidamente um grande terror para a população soviética. Nesse contexto se insere a novilíngua, idioma fictício criado com o objetivo de reduzir a comunicação entre os sujeitos para controla-los integralmente, processo que resulta na destruição da língua vigente. Vide ORWELL (1991ORWELL, George. 1984. São Paulo: Editora Nacional, 1991.) e ARENDT (2012ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.).
  • 5
    A ralé, cujo conceito é comumente distorcido pelo senso comum, corresponde ao subproduto humano da sociedade burguesa, sem vinculação direta com classe social específica. Hannah Arendt associa o protagonismo da ralé a fenômenos históricos altamente destrutivos, como o antissemitismo, o imperialismo e o totalitarismo (ARENDT, 2012ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.).
  • 6
    A demagogia, segundo Aristóteles, é a forma degenerada de democracia, na qual a soberania pertence às massas e não às leis (ARISTOTELES, 2019ARISTOTELES. Política. São Paulo: Edipro, 2019.).
  • 7
    Ferrajoli (2011FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris. Teoria del derecho y de la democracia 1. Madrid: Trotta , 2011a.) critica severamente o conflito de interesses desvelado quando da eleição de Silvio Berlusconi para o cargo de Primeiro-Ministro da Itália. O magnata italiano foi investido na chefia de governo do país europeu, apesar de deter um imenso conglomerado empresarial, que contempla ampla rede de mídias de comunicação.
  • 8
    Em linha similar, (COPETTI NETO, 2016COPETTI NETO, Alfredo. A democracia constitucional sob o olhar do garantismo jurídico. Florianópolis: Empório do direito, 2016.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2023
  • Aceito
    13 Jun 2023
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