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A ação do agente ou o agente da ação? Presos sem condenação na periferia de Alagoas

The Agent Action or the Action Agent? Arrested Without Condemnation on the Periphery of Alagoas

RESUMO

Sabe-se que os principais alvos do encarceramento provisório são os praticantes de crimes patrimoniais. Mas há diferenças entre eles? Esta pesquisa buscou conhecer o perfil dos presos sem condenação, acusados de furto e estelionato. A escolha dos crimes ampara-se no fato de que, embora o processo penal brasileiro impute penas semelhantes a ambos os tipos penais, o sistema de justiça tem acolhido de maneiras distintas um e outro casos. A hipótese desta pesquisa é a de que o agente da ação, e não a ação em si, tem sido objeto de punição.

Palavras-chave:
encarceramento; punição; estelionato; furto; perfil dos presos

ABSTRACT

It is known that the main targets of provisional incarceration are the perpetrators of property crimes. But is there a difference between them? The Agent Action or the Action Agent? Arrested Without Condemnation on the Periphery of Alagoas sought to know the social characteristic of prisoners without condemnation, accused of theft and fraud. The choice of crimes is based on the fact that, although the Brazilian criminal proceedings impose similar punishment to both types of criminal offences, the justice system has received in different ways their accused. The hypothesis of the research is that the agent of the action and not the action in has been the object of punishment.

Keywords:
imprisonment; punishment; fraud; theft; social characteristic of prisoners

Introdução

As pesquisas e os dados em âmbito nacional e estadual demonstram que o aprisionamento sem condenação em Alagoas tem crescido nos últimos anos (CNJ, 2017; MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014, 2017; IPEA, 2015). No entanto, diferentemente do que possa parecer a um observador mais afoito, o aumento do encarceramento não diz respeito a uma maior eficiência dos sistema. Ao contrário, revela um tipo de atuação do sistema de justiça criminal1 1 Quando nos referirmos ao sistema de justiça criminal, entenda-se como o sistema composto por polícias (Polícias Militar e Civil), Ministério Público, Judiciário, Defensoria Pública e as instituições penitenciárias (Casas de Custódia e Presídios). que tem impactado especialmente determinados estratos da sociedade.

Da mesma forma, quando se atenta para os números, percebe-se que o aprisionamento anterior à sentença tem sido dirigido aos acusados de certos crimes, em especial, os patrimoniais. Somadas, as práticas de furto, roubo e estelionato são as que mais encarceram no Brasil (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014, 2017), ficando à frente, inclusive, do tráfico de drogas e dos homicídios. No entanto, tais delitos não são recebidos pelo sistema de maneira isonômica. Na verdade, constata-se entre eles a existência de uma hierarquia, homóloga à classe social de seus praticantes, que os vulnerabiliza ou protege em relação a esse modus operandi que se tornou epidêmico no sistema carcerário brasileiro: a chamada prisão provisória ou preventiva2 2 O item “prisão provisória” diz respeito a prisões que não têm natureza permanente, diferentes da prisão por sentença condenatória. Trata-se de prisões efetuadas no início ou ao longo dos processos criminais, podendo aparecer, neste trabalho, com a designação de prisão em flagrante ou preventiva. .

Nesse cenário, por exemplo, o furto possui destaque singular. Primeiro, por ser um crime que não envolve violência ou ameaça às vítimas; segundo, porque é rara a probabilidade de alguém ser punido com pena privativa de liberdade em razão de seu cometimento. No entanto, ainda assim, o sistema de justiça criminal tem optado por manter os acusados presos até o julgamento. O mesmo não se observa nos casos envolvendo estelionato. Ainda que a legislação brasileira tenha imputado uma pena semelhante a ambos os crimes3 3 Os crimes de furto e estelionato estão tipificados, respectivamente, nos artigos 155 e 171 do Código Penal Brasileiro (BRASIL, 1940). Na modalidade simples, ou seja, a prática principal que foi criminalizada no caput do artigo, a pena estipulada para o furto é de 1 a 4 anos de reclusão, e a pena cominada para o estelionato é de 1 a 5 anos de reclusão. , o que, em um primeiro momento, poderia ser lido como um sentimento similar de repulsa por parte da sociedade brasileira diante das duas práticas, diferentemente do que acontece com os casos de furto, os dados apontam que os acusados de estelionato não têm sido alvo de aprisionamento prévio à sentença. Isso significa que, quando presos em razão de flagrante, por denúncia ou outra diligência investigativa, os réus frequentemente aguardarem seus julgamentos em liberdade, graças ao trâmite e às decisões prévias ao sentenciamento.

Dado o problema, as perguntas que se seguem são: considerando que a legislação brasileira imputa aos dois crimes penas bastante similares, conforme tipifica o Código Penal (BRASIL, 1940) - de um a quatro anos de reclusão para o furto e de um a cinco anos de reclusão para o estelionato -, o que torna os acusados das duas práticas mais ou menos aptos a serem presos provisoriamente? Por que os juízes, mesmo sabendo que, na hipótese de condenação de réus acusados por furto, a penalidade prevista não contemplará a restrição da liberdade, têm como prática usual decretarem prisões provisórias para esses casos? Nossa hipótese é a de que a severidade da punição está direcionada para objetos diferentes em um e em outro caso, vale dizer, no furto, pune-se o agente da ação e não o ato praticado. O contrário ocorre nos casos de estelionato.

A prisão em flagrante, e consequente prisão preventiva, não configura uma regularidade nos processos de estelionato. Entre as razões para tanto está a situação socioeconômica do sujeito acusado, que contribui para que haja por parte dos julgadores certa “proteção ao cidadão”. O respeito às garantias constitucionais e processuais que, em teoria, deveriam se estender a todos, na prática judicial do sistema criminal alcança apenas algumas pessoas, a depender de características subjetivas de raça, classe e gênero4 4 Como demonstraremos mais adiante com gráficos, constatamos que nos “crimes de rua” (furto e roubo), mais suscetíveis à incidência de prisão provisória (flagrante e preventiva), o gênero masculino tem destaque considerável. Lado outro, no crime de estelionato, proporcionalmente, há mais mulheres criminalizadas. .

Com vistas a testar a nossa hipótese, trouxemos para a análise os processos em trâmite na 5ª Vara Criminal de Arapiraca, cidade localizada no agreste de Alagoas, a segunda maior do estado. A escolha do campo de pesquisa deu-se em razão de os números de encarcerados provisórios nessa comarca serem ainda mais expressivos do que a média encontrada no restante do país. Conforme levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em fevereiro de 2017, a média de presos provisórios no Brasil era de 34% do total de pessoas em situação de prisão (CNJ, 2017). Enquanto isso, somente Alagoas concentrava um percentual de 80,92% de presos não condenados, tendo apresentado a segunda maior média de presos provisórios de todas as unidades federativas.

Durante a pesquisa, a partir de dados da Secretaria de Estado de Ressocialização e Inclusão Social (Seris) (2017), comparamos proporcionalmente o número de pessoas não condenadas em situação de prisão nas unidades do sistema prisional em Alagoas. Arapiraca apresentou a média de 72,37% de presos provisórios do total dos aprisionados, maior média proporcional do estado.

Foram analisados 122 processos criminais, 101 envolvendo o crime de furto e 21 relativos a estelionato, nos quais figuraram como acusados e/ou aprisionados 133 indivíduos: 104 criminalizados por furto e 29 criminalizados por estelionato. O marco temporal compreendeu o período entre 2011 e 2016. A partir das informações coletadas, buscamos construir um perfil sobre os indivíduos em cada um dos dois crimes analisados. Em seguida, cotejamos o perfil dos acusados com o crime praticado e a subsequente resposta do sistema de justiça criminal acerca de seu encarceramento provisório. Sempre que possível, também procuramos apresentar os números regionais face à média nacional, com vistas a mostrar se há ou não compatibilidade e regularidades no fenômeno.

Algumas observações de cunho metodológico se fazem necessárias antes do prosseguimento destas laudas. Como dito, os dados primários foram coletados junto à 5ª Vara Criminal de Arapiraca, Alagoas, onde obtivemos uma listagem de todos os processos sobre furto e estelionato durante o recorte temporal eleito. Como tais processos já se encontravam digitalizados, foi possível acessá-los a partir do portal do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas (TJ-AL), com uma senha de acesso concedida aos advogados, da qual dispúnhamos desde a inscrição no quadro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

A ideia inicial era analisar somente as decisões interlocutórias e as sentenças. No entanto, tão logo nos debruçamos sobre os processos, percebemos que, para mapear o fenômeno investigado, não poderíamos nos deter apenas nessas decisões, já que passamos a identificar similaridades não apenas entre os perfis dos sujeitos de um e de outro crime, como também a resposta dada pelo sistema. Ou seja, para se chegar ao aprisionamento sem condenação, é necessário ter uma história específica, que orienta do crime praticado até o trânsito do acusado dentro do processo penal. Desde então, demos início a um levantamento baseado nas análises dos processos, desde o primeiro ato documentado ao último, cada ato anexado e produzido, do inquérito policial à sentença.

Ao longo do texto e nas tabelas apresentadas, quando nos referirmos a “processos analisados” e a “indivíduos criminalizados”, é possível que haja dúvidas sobre o total de cada variável. Em “indivíduos criminalizados”, consta um quantitativo maior do que o de “processos analisados”. Isso ocorre ou porque em alguns processos mais de uma pessoa figura como parte ré, ou seja, um só fato criminoso com o envolvimento de dois ou mais indivíduos, ou porque um mesmo indivíduo responde a mais de um processo criminal computado para esse levantamento.

A partir dos dados contidos nos inquéritos, retiramos as informações sobre sexo, idade, ocupação, escolaridade, estado civil e raça. Em relação a essa última variável, necessário se faz dizer que os dados primários usados na pesquisa não seguiram o critério de autodeclaração, uma vez que a raça é imputada pelos agentes do sistema de justiça criminal, em específico, por agentes policiais, quando da elaboração do inquérito policial, e por agentes penitenciários, no prontuário dos presos.

A reflexão analítica por nós empreendida valeu-se da teorização feita nos trabalhos de Hasenbalg e Silva (1979HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979., 1988), os quais incluíram pretos e pardos numa só categoria: negros. Mesmo os pesquisadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) têm feito de igual modo, incorporando em uma mesma variável (negros) os pretos e os pardos (IBGE, 2017a, 2017b, 2018). Quanto à variável “ocupação”, importa dizer que desagregamos os dados no que diz respeito aos perfis de criminalizados por furto e por estelionato. Esse aspecto tornou possível entender melhor quem são esses indivíduos e por que são ou não punidos.

O perfil dos acusados de furto e de estelionato no município de Arapiraca/AL: danos sociais similares, punitividades distintas

Os Gráficos 1, 2 e 3 apresentam os dados de perfil dos indivíduos criminalizados por furto e estelionato em trâmite na 5ª Vara Criminal de Arapiraca entre 2011 e 2016. Neles estão contidas informações sobre sexo, raça, idade, escolaridade, ocupação, tipo de prisão (se provisória ou não) e espécie de assistência jurídica recebida (se Defensoria Pública ou advocacia particular). Como se pode visualizar, encontramos para furto 89 homens e 15 mulheres; para estelionato, 21 homens e oito mulheres. Em relação à raça, cinco acusados da prática de furto são brancos e 99 são negros. No caso do estelionato, 11 são negros e 18 são brancos. Proporcionalmente, verifica-se que as mulheres se envolvem com mais frequência no crime de estelionato (27,58%) do que no de furto (14,42%).

Gráfico 1:
Sexo dos criminalizados e/ou presos conforme o crime praticado

Gráfico 2:
Faixa etária dos criminalizados e/ou presos conforme o crime praticado

Gráfico 3:
Escolaridade dos criminalizados e/ou presos conforme o crime praticado

Dentre os processados por furto, 2,88% possuíam ensino médio; 22,11%, ensino fundamental; 53,84%, tinham sido apenas alfabetizados e 21,15%, eram analfabetos. Em relação aos processados por estelionato, 31,03%, tinham ensino superior; 55,17%, ensino médio, 10,34% eram alfabetizados e 3,44%, ensino fundamental. Tais números não surpreendem quando se verifica que Arapiraca possui uma das menores notas do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) nas séries finais do ensino médio. Apenas três municípios possuem nota inferior. Dos 33 municípios com uma população entre 200 e 250 mil habitantes, Arapiraca possui a terceira pior nota, empatando com outros dois, Itaboraí (RJ) e Juazeiro (BA). Em âmbito nacional, dos 5.570 munícipios brasileiros, Arapiraca ocupa a posição 3.699º, o que a situa no grupo dos 1.900 municípios com as piores notas do Ideb nas séries finais do ensino fundamental.

De acordo com os dados mais recentes do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017)5 5 Cabe salientar que foram utilizados dados tanto do Infopen (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017) quanto do Conselho Nacional de Justiça (2017), porque, embora tenhamos estabelecido como recorte temporal para a pesquisa os processos instaurados entre 2011 e 2016, a maioria desses processos não obteve sentença (conclusão) até o final da pesquisa (dezembro de 2017). Logo, as pessoas envolvidas e/ou aprisionadas em razão desses processos ainda integravam as estatísticas feitas em 2017. , a escolaridade dos presos brasileiros aparece em um lugar de destaque não favorável. Das 27 unidades federativas, a população em situação de prisão em Alagoas é a que apresenta o menor percentual de ensino fundamental completo, empatando com Bahia, Paraíba e Piauí. Inferior ao percentual de Alagoas, apenas o de Pernambuco. Além disso, Alagoas é o estado com o maior percentual de analfabetos e alfabetizados (sem cursos regulares), lembrando que esse percentual é três vezes maior do que a média nacional (Idem). Logo, não se trata de coincidência que o segundo maior município do estado possua uma nota tão baixa junto às series finais do Ideb, pois parte significativa da população não concluiu o ensino fundamental, principalmente o contingente populacional submetido ao contexto de extrema pobreza, em que se localiza a maioria dos indivíduos em situação de prisão provisória.

Gráfico 4:
Ocupação dos criminalizados e/ou presos conforme o crime praticado

Das 104 pessoas acusadas de furto, apenas 6,73% estavam empregadas formalmente. Dos que possuíam emprego formal, uma trabalhava como babá, dois eram motoristas de empresa, um era auxiliar de enfermagem, dois eram comerciantes e um era técnico em refrigeração. O restante possuía trabalho informal (22,11%), como guardador de carros e ajudante de pedreiro, ou estava desempregado (71,15%). A maioria dos acusados não ascendeu socialmente, morando no mesmo lugar de origem, quase sempre em bairros periféricos e vulneráveis. No caso do estelionato, todas as pessoas envolvidas possuíam emprego formal.

Adicionando as informações obtidas no inquérito policial àquelas colhidas ao longo dos processos analisados, das 104 pessoas criminalizadas, 21 foram processadas por tentativa, 52 por furto simples e 31 por furto qualificado - nessa modalidade enquadram-se, por exemplo, os furtos praticados por mais de uma pessoa ou cometidos mediante escalada e rompimento de barreira. No caso do estelionato, todos os acusados estavam empregados: um advogado, seis vendedores, sete comerciantes, um motorista, três corretores de imóveis, dois auxiliares de cartório, um designer gráfico, três funcionários públicos, dois empresários, um consultor de vendas e um corretor de seguros.

Comparado ao estelionato, o furto reúne mais indivíduos em situação de vulnerabilidade e exclusão. De fato, pelo que pudemos constatar a partir dos dados recolhidos, a prática de furto na comarca de Arapiraca tem como agentes prioritários sujeitos que reúnem uma série de marcadores sociais, como raça, baixa escolaridade e ocupação precária.

Gráfico 5:
Defesa processual dos criminalizados e/ou presos conforme o crime praticado

Ressaltamos a quantidade de acusados assistidos pela Defensoria Pública - pessoas sem condições financeiras, pobres na forma da lei - e aqueles que possuíam advogados durante o processo: dos 104 processados por furto, 20 (19,23%) tiveram sua defesa feita via advocacia particular; já em relação ao estelionato, dos 29 acusados, todos dispunham de advogados particulares.

Conhecer o tipo de assistência legal usufruída pelo réu, antes de pretender um debate sobre a qualidade dos serviços jurídicos prestados, vincula-se a fatos que podem ocorrer na chamada fase pré-processual, momento em que o direito de defesa não é garantido pelo Estado. Essa fase compreende desde a efetivação da prisão em flagrante, passando pela coleta de provas feita pela Polícia Civil (Judiciária) e todo o decurso do inquérito policial. Em termos práticos, isso significa que, durante toda a fase policial, caso o indivíduo seja preso e não tenha condições de custear um advogado, o Estado não está obrigado a fornecer um defensor público para acompanhar o réu durante sua prisão, interrogatório na polícia e demais atos vinculados ao inquérito policial.

Quando se está desassistido de advogado, não é possível ao acusado acompanhar o processo investigativo que corre contra si. Tampouco terá ele como ser instruído e acompanhado durante um interrogatório da Polícia Civil, o que pode implicar riscos na formação da culpa, que será construída posteriormente ao longo do processo por promotores e juízes. A presença de um profissional pode garantir que o processo seja formado de maneira adequada, com provas lícitas, com celeridade e respeito aos direitos e às garantias jurídicas do acusado, algo crucial nessa fase prévia, pois dela dependerão as chances de desdobramentos mais favoráveis ao réu no decorrer do processo judicial.

Direitos considerados simples para quem pertence ao campo penal, como o de não se autoincriminar, estariam garantidos caso o acusado contasse com uma assistência jurídica durante o inquérito policial. O que se percebeu ao longo das análises dos processos foram situações que ou comprometeram o trabalho da defesa ou foram utilizadas pela acusação e julgadores para reforçar estigmas. Exemplo constatado diversas vezes nos processos, mesmo quando à luz do Direito não se poderia falar em reincidência, com o intuito de traçar um perfil criminoso dos acusados, promotores e juízes se valiam, em seus pareceres e decisões, de declarações concedidas em interrogatórios durante o inquérito. Fato este que poderia ser evitado caso o acusado pudesse contar com a assistência de um defensor para instrui-lo.

Gráfico 6:
Raça dos criminalizados e/ou presos conforme o crime praticado

A variável raça mostrou-se um indicador importante para cada tipo criminal estudado. Nos processos de furto, das 104 pessoas criminalizadas, 5 (4,80%) são brancas; nos de estelionato, de 29 criminalizadas, 18 (62%) são brancas. Dentre os 36 analfabetos, apenas 2 são brancos e, entre as 9 pessoas que cursaram o ensino superior, somente 2 são negras, e todas as 9 estavam envolvidas em processos de estelionato.

O perfil contido na Tabela 1 se coaduna com os dados divulgados pelo último Infopen (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017). Nela consta que 80% dos indivíduos privados de liberdade em Alagoas são negros. De acordo com o último censo oficial brasileiro, a população negra em Alagoas representava 64% do total do estado, o que significa dizer que, em números proporcionais, o sistema de justiça criminal nesse estado tem aprisionado sobremaneira pessoas negras. Vale ressaltar que o dado diz respeito à totalidade dos sujeitos aprisionados no estado, tanto presos provisórios quanto condenados; o que aponta para o fato de que, em Alagoas, os negros, têm sido presos de forma desproporcional se comparados aos brancos.

Tabela 1:
Raça, cor ou etnia das pessoas privadas de liberdade por unidades da federação

Se a escala populacional e racial for ampliada, a mesma disparidade se constata em âmbito nacional. De acordo com o Infopen (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017), 53% da população brasileira corresponde a negros, no entanto, os negros representam 64% do contingente populacional em situação de prisão. Passando pela escala estadual e nacional, a população negra é menor no total da população e maior no total de indivíduos aprisionados. Assim, como mencionamos, independentemente da unidade federativa, mas principalmente em Alagoas, o sistema de justiça criminal tem aprisionado sobremodo pessoas negras.

Para explicar tal fato, consideramos que concorrem diversos fatores, que vão desde a desigualdade e as assimetrias históricas entre pessoas brancas e negras no Brasil até uma prática segregacionista punitivista pautada massivamente no trabalho de repressão da Polícia Militar (PM) em detrimento do trabalho investigativo feito por meio da Polícia Judicial. O trabalho da PM tem por objeto principal os crimes de rua, praticados, em sua maioria, como constatamos na pesquisa, por sujeitos em situação de vulnerabilidade e não inclusão social. O furto é um tipo de crime que reúne um alto contingente populacional em situação de pobreza e de extrema pobreza - além de apresentar um número expressivo de desempregados. Dos acusados dos casos por nós analisados, 8 eram moradores de rua, 11 eram usuários de drogas e 12 eram agricultores.

Para ilustrar o que apresentamos em números, trazemos o caso de Carlos Henrique do Nascimento, homem, negro, analfabeto, dependente químico e desempregado durante todo período compreendido entre os dois processos que havia contra si, de 2012 a 2016. À época da primeira imputação, tinha 19 anos de idade e estava em situação de rua. Ambos os processos nos quais figurou como acusado tratavam de tentativa de furto. No primeiro, datado de 2012, Carlos respondeu judicialmente por tentativa de furto de um botijão de gás. Ele declarou no interrogatório em sede policial:

Que é verdadeira a imputação que lhe é atribuída; que é morador de rua e na madrugada de hoje encontrava-se na companhia de “Wila” e uma mulher por nome “Vânia”, os quais resolveram furtar botijões de gás, “Wila” e “Vânia” perceberam a presença de vigias noturnos e foragiram do local; que quando também tentava sair da loja fora detido por aqueles; que é viciado em “crack” e fora furtar para manter o vício; que já foi internado uma vez em uma Casa de Recuperação na Cohab para se recuperar do vício; que saiu de casa pelo motivo de seu pai batia com cipó, mas só quando fazia coisas erradas; que já fora preso e processado por atos dessa natureza; que as pessoas que participaram do crime podem ser encontradas no calçadão da cidade (NASCIMENTO, autos nº 0002083-61.2012.8.02.0058, grifo nosso).

Carlos Henrique permaneceu preso sem condenação durante 8 meses, com a justificativa de garantia da ordem pública, utilizada tanto pelo promotor de justiça quanto pelo juiz. Após os 8 meses, foi condenado e liberado. Quando da conclusão do processo, o promotor emitiu parecer requerendo a condenação do acusado, com a justificativa de que, embora não tivesse consumado o crime por razões alheias à sua vontade, Carlos confessou tê-lo praticado. O parecer foi fundamentado nas próprias declarações do acusado. Por outro lado, o defensor público, André Lima, requereu a absolvição em razão do princípio da insignificância:

O objeto material do presente crime de furto na modalidade tentada fora um botijão de gás, que custa em torno de R$45,00. (...) Em resumo, o conceito do princípio da insignificância é o de que a conduta praticada pelo agente atinge de forma tão ínfima o valor tutelado pela norma, que não se justifica a repressão. Juridicamente, isso significa que não houve crime algum.

Sendo assim, é de rigor que seja aplicado ao caso o Princípio da Insignificância/Bagatela na sua vertente própria, pois a conduta do acusado já nasceu sem nenhuma relevância penal, devido ao fato de que o objeto que foi tentativa de furto ter sido recuperado, não havendo prejuízo à vítima, como consta nos autos (LIMA, autos nº 0002083-61.2012.8.02.0058, grifo nosso).

Os argumentos acerca do princípio da insignificância, trazidos na petição do defensor público, repetiram-se reiteradas vezes nesse tipo de processo. Verificamos cerca de 14 processos que tiveram esse pleito por parte da Defensoria Pública. Desses, a insignificância foi reconhecida como válida em 4 deles. Neste ponto, embora não possamos ir além de apresentar esses números, é importante relatar que em todas as 4 vezes em que o pedido foi deferido, o Ministério Público (MP) também havia pleiteado que fosse concedida a atipicidade criminal pelo mesmo motivo.

A sentença que condenou Carlos Henrique à pena de 10 meses de prestação de serviços à comunidade foi promulgada 8 meses depois do início do processo. O réu foi mantido preso durante todo esse tempo antes da sentença condenatória, esta que, no seu caso como em muitos outros casos de furto, resultou numa prestação de serviços à comunidade, pena que não implica a privação da liberdade. O juiz, em resposta à petição do defensor público, fez a seguinte fundamentação:

É bem verdade que algumas situações, mesmo sendo tipificadas, não devem ser levadas à apreciação do Direito Penal, pois não possuem relevância significativa que se enquadre no caráter de exceção que deve configurar a aplicação do Direito Penal.

Ocorre que muitas vezes, ao analisar casos concretos envolvendo o princípio da insignificância, as pessoas são levadas ao erro por acreditarem que esta insignificância está restrita ao valor econômico do bem e à condição financeira das partes envolvidas.

Na verdade, o princípio refere-se à insignificância da situação e do dano provocado ao contexto social, ou seja, à forma com que a ação ou omissão podem afetar a ordem social.

No caso em análise, entende este Juízo que a conduta do acusado não apresenta reduzidíssimo grau de reprovabilidade, visto que o delito contra o patrimônio foi praticado com a finalidade de manter o vício do acusado, uma vez que o mesmo é usuário de drogas.

Assim, levando-se em consideração o elevado grau de reprovação da conduta do acusado, afasto no presente caso a tese da defesa no que tange ao princípio acima referido (MIRANDA, autos nº 0002083-61.2012.8.02.0058, grifo nosso).

O princípio da insignificância, como sustentado pelo defensor público, poderia ter sido reconhecido antes mesmo da sentença, uma vez que o objeto alvo da tentativa de furto valia a R$45,00 (reais). O principal argumento do juiz para rechaçar a aplicação do princípio da insignificância no caso de Carlos fundamentou-se no fato de o acusado ter dito que o objetivo do furto era a manutenção de sua dependência química, o que para o magistrado se configuraria como conduta reprovável.

O processo de Carlos Henrique mostra a dinâmica da maioria dos processos de furto analisados. São praticados por sujeitos em situação de vulnerabilidade extrema, demonstrando não possuírem disposições mínimas de autoproteção e terem conseguido - mesmo após reiteradas passagens pelo sistema de justiça criminal - incorporar noções de como lidar com os rituais do campo jurídico, como, por exemplo, manter-se em silêncio para não constituir provas contra si.

A prática dos agentes acusatórios do sistema judicial nos casos de estelionato segue lógica distinta, embora guarde similitude peculiar: o ato infracional em si parece não estar em questão, mas, sim, seu autor. Dito de outro modo, se, no furto, as chances de ser preso em flagrante e mantido aprisionado em razão de decretação de uma prisão preventiva estão atreladas às características subjetivas e socioeconômicas do acusado, bem como ao tipo de crime praticado, no estelionato, é também por causa do crime e das condições de existência que o sujeito não é preso em flagrante e, quando preso, é liberado em seguida.

Dos 21 casos de estelionato em curso na 5ª Vara Criminal de Arapiraca, houve representação pela prisão preventiva em 4, que, ainda assim, não foram acolhidos em juízo e não obtiveram êxito. Trouxemos um deles para ilustrar a dinâmica e a lógica aplicada pelo juiz. Trata-se de acusação de estelionato cometido por Maximiano e Eduardo, praticado contra 24 pessoas da cidade de Arapiraca, alvos de uma fraude que retornou aos acusados vantagem de R$17.000,00 (reais). Maximiano e Eduardo eram dois jovens brancos, sócios em uma empresa de concessão de empréstimos situada no centro daquela cidade. Maximiano tinha 25 anos, ensino superior, estava solteiro e era natural do estado de São Paulo. Eduardo estava casado, também havia estudado até o ensino superior e era natural de São Paulo. Tinha 29 anos à época do fato.

O caso aconteceu em agosto de 2015, mas somente em março de 2016 o promotor de justiça ofereceu a denúncia, embora a delegada tenha representado pela prisão preventiva dos acusados em setembro de 2015. Na representação feita, catalogada como urgente, a delegada Tacyane Ribeiro justificou:

No caso em tela é patente a existência do crime, diante das oitivas realizadas, documentos, boletim de ocorrência. (...) No caso em análise a prisão deve ser decretada com base na garantia da aplicação da lei penal, porquanto os indiciados se evadiram do distrito da culpa no intuito de se livrar da penalidade eventualmente aplicada, gerando impunidade. Assim, a evasão do distrito da culpa é suficiente para a manutenção da segregação cautelar (RIBEIRO, autos nº 0800050-26.2016.8.02.0058).

A delegada que investigou e requereu a prisão preventiva no caso de Maximiano e Eduardo foi responsável também por investigar e representar pela prisão preventiva nos outros três casos de estelionato em que a prisão foi requerida. Neste caso, apesar de ter concluído o inquérito em um mês, ouvido as 24 pessoas que foram ludibriadas e lesionadas e anexado ao processo documentos capazes de atestar a prática delitiva e a fuga dos acusados, e apesar de os acusados estarem em local incerto e não sabido, não conseguiu fazer com que o promotor de justiça julgasse necessária a prisão dos dois. Em abril de 2016, sete meses após a conclusão do inquérito, a promotora que assumiu o caso, Viviane Wanderley, manifestou-se a favor da prisão preventiva dos acusados, que estavam foragidos desde agosto de 2015. Disse em seu parecer:

A segregação dos indiciados é fundamental para assegurar a aplicação da lei penal. É evidente, posto que os mesmos se evadiram do distrito de culpa logo após a constatação do delito pelas vítimas.

Não satisfeitos, os agentes delitivos ainda subtraíram diversos documentos de clientes e funcionários, o que demonstra de forma cristalina sua tentativa de embaraçar o andamento das investigações e a construção da opinio delicti pelo Ministério Público.

À vista das circunstâncias fáticas e jurídicas que cercam o caso em tela, constata-se hipótese na qual o ordenamento jurídico permite a aplicação da prisão preventiva (WANDERLEY, autos nº 0800050-26.2016.8.02.0058).

Dias após, o juiz recebeu a denúncia e o referido parecer, mas não se pronunciou sobre o requerimento da prisão preventiva, feito por duas vezes e em momentos distintos durante o processamento do fato. Até a conclusão desta pesquisa, em dezembro de 2017, o processo havia estagnado nesse ato de recebimento da denúncia e ainda não obtivera uma conclusão (sentença). Maximiano e Eduardo não foram presos, apesar das duas representações feitas, uma da delegada e uma da promotora. O juiz não apreciou os requerimentos, e o processo permaneceu parado por pelo menos mais de um ano. Durante esse período os acusados deixaram a cidade onde praticaram o crime estelionato e as 24 pessoas lesadas foram ouvidas. Todas atestaram os danos sofridos no inquérito policial.

Tal situação é homóloga à dos três outros processos de estelionato. No único em que o juiz aceitou a representação pela prisão, revogou-a antes de o acusado ter sido preso. É uma dinâmica processual-acusatória como não constatamos nos 101 processos de furto analisados.

Na próxima seção, abordaremos a questão da raça, que, juntamente com os aspectos de classe, contribui para o incremento da vulnerabilidade penal dos sujeitos aprisionados sem condenação. O procedimento será feito a partir da apresentação de casos emblemáticos e de dados desagregados da Tabela 1.

Antes de prosseguirmos, necessário se faz justificar por qual motivo não abordamos a audiência de custódia tanto durante a pesquisa quanto neste trabalho. A princípio, importa também explicar do que se trata.

Prevista no artigo 9º, item 3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (BRASIL, 1992a), bem como no artigo 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Pacto de São José da Costa Rica (BRASIL, 1992b), a audiência de custódia foi acolhida no Brasil inicialmente através do Provimento Conjunto n. 03/2015 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, implementado em janeiro de 2015. A medida foi estabelecida para todas as outras unidades federativas brasileiras após a Resolução 213, de 15 de dezembro de 2015, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2015), que determinou a “apresentação de toda a pessoa presa à autoridade judicial em 24 horas”, predizendo que “independentemente da motivação ou natureza do ato”, as pessoas presas em flagrante delito devem ser ouvidas sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão. Tal medida passou a vigorar em todo o território nacional a partir de 1 de fevereiro de 2016.

A implantação da audiência de custódia no Tribunal de Justiça de Alagoas, estado onde esta pesquisa foi realizada, ocorreu em julho de 2015, com a visita do então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, para firmar o termo de adesão com o governo do estado. No entanto, importa destacar que a implementação efetiva somente ocorreu em julho de 2016, quando foi realizado contingente razoável (18) de audiências de custódia no estado.6 6 Essas informações podem ser consultadas no site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Disponível em: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=be50c488-e480-40ef-af6a-46a7a89074bd&sheet=ed897a66-bae0-4183-bf52-571e7de97ac1⟨=pt-BR&opt=currsel O recorte temporal estabelecido para a investigação empreendida na pesquisa que originou este artigo estava situado entre 2011 e 2016, contudo, no local de investigação, a cidade de Arapiraca, as audiências de custódia somente passaram a ser realizadas em 2018.

Negros e pobres sem trabalho e sem moradia: aspectos autorizativos e preventivos da prisão provisória

A raça, sobretudo quando aliada à classe, tem sido crucial no processo de constituição do “ciclo cumulativo de desvantagens” (HASENBALG, 1979HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979.) e do “habitus precário” (SOUZA, 2009SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: Quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.), e impacta a forma como o sistema de justiça criminal mobiliza seu dispositivo prisional sem condenação. Dos 83 indivíduos criminalizados por furto presos em flagrante, 79 eram negros. Em relação às pessoas brancas, das 5 criminalizadas por furto, 4 foram presas em flagrante. O Gráfico 7 demonstra que, das 83 prisões em flagrante por furto, 57 (68,67%) foram convertidas em preventivas, ou seja, os indivíduos presos em flagrante permaneceram aprisionados sem condenação. Dos 4 indivíduos brancos que foram presos em flagrante por furto, 3 (75%) tiveram suas prisões convertidas em preventiva. As justificativas para a manutenção da prisão em geral foram: a reincidência, a não comprovação do exercício de trabalho lícito e formal e a não comprovação de residência fixa.

Gráfico 7:
Prisões em flagrante no furto - corte por raça

Em Arapiraca, a penalização da miséria exposta por Wacquant (2007WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2007.) pode ser vista nas prisões preventivas decretadas nos processos de furto. Na maioria das vezes, a prisão foi mantida exclusivamente por força de parecer do Ministério Público, seja fundamentado na ausência de trabalho lícito e regular por parte do acusado, seja com a justificativa de que o acusado não havia comprovado possuir residência fixa. Tais requisitos autorizativos para a prisão foram identificados por Foucault (2015FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva. São Paulo: Martins Fontes, 2015.) como “delito de vagabundagem”, definido pela ausência de domicílio fixo e o deslocamento sem documentos, sobretudo a carteira de trabalho.

Além desses aspectos, o desmantelamento dos serviços de assistência social colocou em evidência essa população, identificada como problemática e indesejável. Embora a Constituição Federal (BRASIL, 1988) estabeleça a moradia, o emprego e a qualificação educacional como direitos, tais ausências tornaram-se as frestas pelas quais a punitividade (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva. São Paulo: Martins Fontes, 2015.) se faz presente no mesmo compasso em que o Estado aciona a insegurança social e, com ela, promove a invisibilidade desses sujeitos (WACQUANT, 2007WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2007.).

O caso de José Roberto parece-nos emblemático nesse sentido. Negro, 35 anos, analfabeto, desempregado, em união estável, sem residência fixa. José foi preso em flagrante e processado por furto por duas vezes em 2015. Foi assistido pela Defensoria Pública. Na primeira vez em que foi preso, o acusado havia furtado uma bolsa na feira livre de Arapiraca, no bairro Centro. Neste processo, José, quando interrogado em sede policial, disse que só tinha como documento de identificação a certidão de nascimento, que não estava morando em local fixo, mas que a mãe residia no bairro Manoel Teles, em Arapiraca, e que já tinha sido preso outras vezes, sempre por crimes de furto.

A juíza, Ana Gama, responsável por homologar a prisão em flagrante de José converteu-a em preventiva.

Considerando as circunstâncias nas quais se deu o crime em tela, bem como o fato de inexistir nos autos comprovante de residência ou documentação que comprove a identidade civil do flagranteado, constato que sua liberdade torna-se um perigo concreto à ordem pública, à aplicação da lei penal e à conveniência da instrução processual, sendo imperiosa, portanto, a decretação da prisão preventiva em seu desfavor (GAMA, autos nº 0703960-87.2015.8.02.0058, grifo nosso).

Logo após a prisão ter sido convertida em preventiva, o defensor público requereu sua revogação. Quando o processo foi remetido ao promotor de justiça, este emitiu parecer favorável, justificando que não havia nos autos informação de que o acusado respondia a outros processos criminais. No mesmo dia, o promotor ofereceu denúncia e propôs a suspensão condicional do processo por dois anos. José foi beneficiado com essa suspensão e foi liberado um mês após ter sido preso em flagrante.

Passados três meses desde que José havia sido liberado do sistema prisional, foi novamente preso em flagrante, desta vez por tentativa de furto de 2 latas de energético, de valor equivalente a R$16,00 (reais). José foi apreendido e agredido por populares. O delegado arbitrou uma fiança no valor de R$394,00 (reais), que não foi quitada por ausência de condições financeiras do réu. Quando foi interrogado em sede policial, José disse que não tinha consciência do que havia acontecido, que estava desnorteado e embriagado. O juiz que homologou a prisão em flagrante converteu-a em preventiva, com a justificativa da garantia da ordem pública.

O promotor de justiça que tinha proposto o benefício de suspender o outro processo de José, desta vez não reconheceu a incidência do princípio insignificância em razão do valor irrisório do objeto furtado quando o defensor público o requereu, sob a justificativa de que o acusado respondia a outro processo de furto. Contudo, o promotor emitiu parecer requerendo a revogação da prisão preventiva, e José foi liberado um mês após ter sido preso em flagrante.

Tais casos são significativos pois mostram a situação de muitos indivíduos criminalizados por furto: permanecem no mesmo ponto após passar, desde adolescentes, várias e repetidas vezes pelo sistema de justiça criminal, acumulando desvantagens que remontam às suas trajetórias de raça e classe. Mesmo quando recebem algum benefício jurídico, este não é suficiente para afastá-los de uma trajetória desviante. A maioria, assim como José e os outros citados anteriormente, não nega a autoria do fato delitivo, mencionando, inclusive, outros eventos que não eram objeto da prisão.

Verificamos que muitos, quando respondem a mais de um processo criminal, estavam desempregados quando do processo mais antigo e assim permaneciam quando do mais novo. São indivíduos invisíveis e sem lugar no mercado de trabalho, sem possibilidade de inserção em outros mercados informais, como os destinados aos cuidados das residências, trabalhos que não requerem qualificação escolar mas recrutam primordialmente mulheres, especialmente as jovens.

Os casos analisados e os dados coletados sobre o município de Arapiraca, bem como as problematizações realizadas pela literatura nacional, autorizam a constatação de uma dupla centralidade no processo de seletividade penal ocorrido no Brasil. Essa centralidade é exercida pela Polícia Militar e pelo Ministério Público. Cada um, a seu modo, contribui para um tipo de seletividade já bastante destacado pelas pesquisas e reflexões teóricas desenvolvidas no Brasil.

As características socioeconômicas e raciais dos indivíduos em questão revelam aspectos teóricos extensamente tratados e enfatizados por autores como Sinhoretto e Lima (2015SINHORETTO, Jacqueline; LIMA, Renato Sérgio de. “Narrativa autoritária e pressões democráticas na segurança pública e no controle do crime”. Contemporânea, vol. 5, n. 1, pp. 119-141, 2015.), Ribeiro (2017RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes. “Ministério Público: Velha instituição com novas funções?”. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 113, pp. 51-82, 2017.) e Misse (2011MISSE, Michel. “O papel do inquérito policial no processo de incriminação no Brasil: Algumas reflexões a partir de uma pesquisa”. Sociedade e Estado, vol. 26, n. 1, pp. 15-27, 2011.). Sinhoretto e Lima (2015), por exemplo, trataram desses fenômenos com muita propriedade, lançando mão de conceitos e categorias que contribuem amplamente para elucidar as especificidades da seletividade penal brasileira. Em um mapeamento empírico bastante abrangente e rigoroso, os autores demonstraram que tanto as mortes violentas quanto o aprisionamento em massa decorrem dos contatos e das interações seletivas entre a polícia e a juventude:

A morte violenta tem cor, idade e endereço no Brasil, e está longe de ser um tabu. Uma parte das mortes violentas, ao que tudo indica, está fortemente correlacionada à interação entre polícia e juventude. De um lado, a juventude não conta com políticas orientadas para o seu direito à vida e à segurança, especialmente a juventude negra; de outro, a juventude - especialmente a ju ventude negra - é o alvo privilegiado da vigilância policial, conforme indicam os dados sobre a população prisional e os dados sobre mortes em decorrência de ação policial. (...) Além da morte violenta causada por ação policial, o predomínio da vi gilância policial sobre jovens negros também é constatado pelas taxas de encarceramento. Além de serem vítimas preferenciais dos homicídios co metidos no país, inclusive por policiais, os jovens e negros são mais en carcerados do que os brancos e do que os adultos, a ponto de ser possível afirmar que o crescimento do número de presos no Brasil (que foi da ordem de 74% entre 2005 e 2012) foi impulsionado principalmente pela prisão de jovens e de negros (SINHORETTO e LIMA, 2015SINHORETTO, Jacqueline; LIMA, Renato Sérgio de. “Narrativa autoritária e pressões democráticas na segurança pública e no controle do crime”. Contemporânea, vol. 5, n. 1, pp. 119-141, 2015., p. 124).

O segundo aspecto destacado pelos autores, a vigilância policial contumaz exercida sobre os jovens, negros, pobres e periféricos, nos interessa mais de perto. Os autores usam uma chave empírica que dialoga diretamente com o objeto aqui investigado. A vigilância policial desencadeia todo o fluxo e o circuito de punição, objetiva e subjetiva, que organiza o sistema de justiça criminal no Brasil. A Polícia Militar, em especial, é a parte primeira e fundamental do processo de gestão dos conflitos, abordando, vigiando e encarcerando indivíduos que cometeram pequenos delitos patrimoniais. Os autores avançam na interpretação, demonstrando que a seletividade prática começa com a atuação dos policiais, revelando uma dimensão teórica que escapa ao formalismo dos protocolos e das normas procedimentais dos manuais das polícias e capturando aquilo que, mais à frente, será reiterado por promotores e magistrados, a saber: o conteúdo prático da discriminação racial, econômica, cultural e social.

As polícias militares são as responsáveis por determinar o conteúdo prático do conceito de ordem pública e as fronteiras do legal e do ilegal. Nesse processo, são poucas as polícias militares que dispõem de Protocolos Opera cionais Padrão (POPs) para regular tanto as abordagens quanto o uso gradual da força. E mesmo nas que possuem este tipo de procedimento, como a Polícia Militar de São Paulo, há um hiato entre o que esses documentos preconizam e a conduta dos policiais na linha de frente (Idem, ibid., pp. 126-127).

O conteúdo prático e operacional do conceito de ordem pública e de outros dispositivos legais e jurídicos amplamente disseminados e conhecidos é manuseado e empregado com maior ênfase sobre determinados indivíduos. Os exemplos seguintes, novamente retirados dos processos analisados no município de Arapiraca, permitem constatar a fecundidade das análises de Sinhoretto e Lima e a sua proximidade com autores como Wacquant e Misse. Esse conteúdo prático e operacional se estende às abordagens, às interpretações e aos atos processuais realizados por promotores e magistrados.

Por exemplo, os casos de Joé Roberto e de Rafaela Silva, este que será relatado adiante, são dois dos quatro casos dentre as 104 pessoas criminalizadas por furto, a maioria por furto simples, em que o MP resolveu reconhecer o princípio da insignificância, muito embora tenha sido pleiteado diversas vezes também em outros casos tanto pela defensoria quanto por advogados. Nos quatro casos em que o promotor de justiça entendeu ser cabível o princípio, com a finalidade de declarar a atipicidade da conduta e, consequentemente, absolver o acusado, o juiz seguiu inteiramente o parecer do MP. Em todos os outros processos nos quais a insignificância foi suscitada e requerida pela defesa mas o MP não emitiu parecer favorável, o juiz não acolheu o pedido e seguiu, igualmente, o entendimento do promotor de justiça.

Dito de outro modo, apesar de esses dois casos específicos tratarem de situações em que o MP atuou em sentido favorável à absolvição dos acusados, tal conduta foi posterior à prisão provisória e não expressa a regularidade da prática do MP. Nos dois casos e nos outros dois em que também emitiu parecer favorável à absolvição, o promotor de justiça havia emitido pareceres, durante o processo, favoráveis à manutenção da prisão provisória. Ou seja, apesar de entender, ao final do processo, que os 4 acusados entre 104 criminalizados deveriam ser absolvidos, o MP foi responsável por mantê-los presos provisoriamente. Tal conduta reforça nosso argumento quanto ao peso do MP nas decisões do sistema de justiça criminal em casos de furto e estelionato, uma vez que, de um lado, quando entende que a prisão deve ser mantida, o juiz segue seu parecer e, lado outro, nas raras situações em que solicita a absolvição, o magistrado, igual modo, segue seu entendimento.

Diante desses exemplos e das contribuições de Sinhoretto e Lima (2015SINHORETTO, Jacqueline; LIMA, Renato Sérgio de. “Narrativa autoritária e pressões democráticas na segurança pública e no controle do crime”. Contemporânea, vol. 5, n. 1, pp. 119-141, 2015.), é possível assinalar que a vigilância realizada pela polícia e, mais tarde, o tipo de gestão de conflito aplicado pelo sistema de justiça criminal, aprisionando em massa e mantendo as prisões provisórias, partem do mesmo conteúdo prático: um olhar seletivo, enviesado e punitivista dirigido aos jovens, pretos, pobres e periféricos.

Necessário se faz, ainda, destacar que, das quatro vezes em que a prisão preventiva foi suscitada nos processos de estelionato, a única em que o juiz acatou a representação e decretou a prisão preventiva foi quando o MP endossou o pedido feito pela delegada. Nas outras vezes, em que a delegada pleiteou sozinha a prisão preventiva, o juiz a ignorou, sequer se manifestou sobre o mérito da representação.

Entendemos, de acordo com os dados coletados e construídos durante a pesquisa, que a atuação do MP é preponderante dentro do sistema de justiça criminal, a ponto de definir quem será mantido preso ou não e quem será condenado ou absolvido. Conquanto a figura do juiz seja percebida como principal, nesses casos criminais, constatamos que o promotor de justiça é uma peça extremamente relevante. Apenas para complementar, na única vez em que o promotor de justiça requereu a prisão preventiva para um acusado de estelionato e o juiz não acatou, o acusado era pessoa branca, bastante escolarizada e exercia a ocupação de empresário.

Desse modo, importa salientar que o conteúdo prático desencadeado pala vigilância policial é reiterado e reforçado pelo Ministério Público. Sobre a relevância da função exercida pelo MP, Ribeiro (2017RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes. “Ministério Público: Velha instituição com novas funções?”. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 113, pp. 51-82, 2017.) constatou, em pesquisa realizada com diversos representantes do parquet (promotores e procuradores) da qual restaram 899 questionários, que a principal motivação para a escolha da profissão por parte desses promotores e procuradores foi a estabilidade do cargo público, seguida pela provável “vocação” para “realização da justiça”, esta compreendida pelos entrevistados como a atuação no combate à criminalidade. A autora verificou, ainda, que esta tem sido a principal atividade do MP brasileiro, em detrimento do desempenho precário dos promotores e procuradores em suas outras atribuições, como, por exemplo, o controle externo da atividade policial e a promoção da justiça social através da defesa de minorias e dos direitos difusos e coletivos.

Um dos processos por nós analisados mais reveladores da singularidade da seletividade penal brasileira foi o de Rafaela Silva. Trata-se de uma mulher de 26 anos, negra, alfabetizada, solteira e em situação de rua em Maceió que foi assistida por uma defensora pública. Rafaela foi presa em flagrante por furtar 2 loções hidratantes, 2 condicionadores para crianças, 1 creme para pentear cabelos e 1 kit com 4 géis dentais. O gerente da loja alvo do furto percebeu sua ação e a deteve. A acusada devolveu os objetos e pediu para que a polícia não fosse acionada, o que não aconteceu. Quando foi interrogada em sede policial, Rafaela declarou:

Que é verdadeira a imputação que lhe é feita; que adentrou na loja; que não foi com intenção de praticar nenhum delito, mas percebeu que era fácil furtar alguns produtos do interior da loja; que estava passando fome, como também estava precisando de alguns produtos de higiene pessoal; que resolveu furtar alguns produtos de cabelo; que tinha a intenção de vender os produtos furtados para comprar quentinha; que não furtou nenhum tipo de biscoito, pois biscoito não dá sangue; que colocou os produtos em uma mochila de costas que carregava; que não tem ninguém a quem possa ser comunicada sobre sua prisão, pois está há três anos morando na rua e perdeu os contatos com a família (SILVA, autos nº 0703432-19.2016.8.02.0058, grifo nosso).

Em situação de rua havia 3 anos, Rafaela não reunia mais meios e condições de reencontrar a família, não possuía o contato de alguém que pudesse ter interesse em saber que tinha sido presa, não portava sequer documentos de identificação. O delegado arbitrou uma fiança de R$440,00 (reais) para a acusada. O juiz, Jandir Carvalho, homologou a prisão em flagrante. No mesmo dia, a defensora pública, Patrícia Barbosa, responsável por assistir Rafaela requereu a liberdade provisória sem fiança.

A fiança, tal como arbitrada, não se mostra adequada em relação à gravidade do suposto delito, nem às circunstâncias do fato, nem às condições pessoais da acusada (art. 282, inciso II). COMO JÁ DITO NO HABEAS CORPUS IMPETRADO, CUJOS TERMOS FORAM REITERADOS NESTE PROCESSO, A ACUSADA É MORADORA DE RUA E FOI PRESA EM FLAGRANTE SOB A ACUSAÇÃO DE FURTO DE OBJETOS COM VALOR NÃO SUPERIOR A R$ 50,00, OS QUAIS AFIRMOU SERIAM VENDIDOS PARA COMPRAR UMA QUENTINHA! COMO SE PODE IMAGINAR QUE TAL PESSOA TERÁ CONDIÇÕES DE PAGAR FIANÇA??? A SE MANTER A FIANÇA, ESTARÁ A ACUSADA SENDO MANTIDA PRESA PELA SIMPLES CONDIÇÃO DE SER POBRE!

Partindo, portanto, dessa premissa, deve ser lembrada a norma do art. 325, § 1º, inciso I, também do Código de Processo Penal, que invoca o art. 350 do mesmo diploma para prever a possibilidade de afastamento total da fiança, se a condição econômica do réu evidenciar a impossibilidade do pagamento.

É evidente, portanto, que tal fiança num patamar alto como está que foi arbitrada, não poderá ser paga, o que por via indireta manterá a acusada indevidamente no cárcere, ferindo de morte o princípio da dignidade da pessoa humana. Como se viu, não é intenção do legislador encarcerar as pessoas sem justo motivo. (BARBOSA, autos nº 0703432-19.2016.8.02.0058, grifos do texto original).

O promotor de justiça, José Neto, requereu que fosse reconhecido o princípio da insignificância e arquivado o processo contra a acusada. Em seu parecer, justificou:

A empresa lesada foi intimada por duas vezes a apresentar a nota fiscal de aquisição de tais produtos, sem, contudo, até o presente momento, ter juntado tal documento. Ademais, o fato ocorrido neste processo vai de encontro aos princípios penais da intervenção mínima, da fragmentariedade e da insignificância (...) No caso em tela, qual seja, o furto de pequeno valor, apesar de haver a tipicidade formal (art. 155, caput, do Código Penal), constata-se que a irrelevância do bem jurídico protegido, para fins de reclamar a intervenção do Direito Penal, não justifica a imposição de uma sanção penal, devendo ser excluída a tipicidade material. Não houve, portanto, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social, e se relevância houver, deverá a questão ser dirimida no juízo cível, mas não na seara criminal. Logo, com base nesse princípio, devem ser tidas como atípicas as ações ou omissões que afetem infimamente um bem jurídico penal. Fica demonstrado, assim, pelos argumentos acima expostos, que o direito penal não deve intervir em casos como o deste processo, em que se discute um crime de furto de produtos de valores, de fato, ínfimos. Frise-se que nosso Judiciário encontra-se abarrotado de processos importantes, que estão há anos aguardando seu desfecho final; dar andamento em um processo como este seria surreal (NETO, autos nº 0703432-19.2016.8.02.0058, grifo nosso).

Pensar como o ingresso no sistema de justiça criminal ocorre de maneira diametralmente oposta para os acusados de furto e estelionato nos faz mobilizar Misse (2011MISSE, Michel. “O papel do inquérito policial no processo de incriminação no Brasil: Algumas reflexões a partir de uma pesquisa”. Sociedade e Estado, vol. 26, n. 1, pp. 15-27, 2011.) e suas considerações no artigo “O papel do inquérito policial no processo de incriminação no Brasil”. Cabe lembrar que, para o autor, o inquérito policial cumpre função peculiar no sistema de justiça criminal brasileiro, tendo a Polícia Militar, com atribuições distintas das percebidas em outros países, papel central, com poder majoritariamente concentrado na figura do delegado de polícia.

Misse (2011MISSE, Michel. “O papel do inquérito policial no processo de incriminação no Brasil: Algumas reflexões a partir de uma pesquisa”. Sociedade e Estado, vol. 26, n. 1, pp. 15-27, 2011.) explica que, na modernidade, o crime tipificado em códigos penais consiste numa norma originada da reação moral dominante em relação a uma conduta determinada. Dessa forma, importa fazer uma distinção entre o processo de criminalização e o processo de criminação (MISSE, 2011MISSE, Michel. “O papel do inquérito policial no processo de incriminação no Brasil: Algumas reflexões a partir de uma pesquisa”. Sociedade e Estado, vol. 26, n. 1, pp. 15-27, 2011.) a indivíduos e eventos específicos: o primeiro, correspondente à instituição legal de uma norma dominante e o segundo, relativo à interpretação, à aplicação e à punição real a partir da norma legal vigente.

Misse (2011MISSE, Michel. “O papel do inquérito policial no processo de incriminação no Brasil: Algumas reflexões a partir de uma pesquisa”. Sociedade e Estado, vol. 26, n. 1, pp. 15-27, 2011.) afirma, tendo como fundamento, dentre outras, a teoria interacionista do desvio (labelling approach) do sociólogo estadunidense Howard Becker (2008BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.), que nem todo fato possivelmente enquadrado numa tipificação legal como crime é, de fato, selecionado e processado mediante um inquérito policial, não obstante a lei penal brasileira tenha instituído o inquérito como medida cabível à apuração de todo e qualquer evento no qual tenha sido constatado um crime. Desse modo, conclui, haveria um processo de subjetivação anterior à “perseguição criminal” de alguém que o levaria a estar enquadrado em rótulos impostos por uma dada sociedade, num processo de estigmatização que conduz a uma pecha de criminoso e, consequentemente, em diversas ocasiões, a uma “carreira criminosa”. Misse chama esse processo que leva um indivíduo, em razão de determinantes sociais (raça, classe, lugar etc.), a ser identificado com um “bandido” e possivelmente encaminhado a uma “carreira criminal” de “sujeição criminal”.

As pesquisas conduzidas por Sinhoretto e Lima (2015SINHORETTO, Jacqueline; LIMA, Renato Sérgio de. “Narrativa autoritária e pressões democráticas na segurança pública e no controle do crime”. Contemporânea, vol. 5, n. 1, pp. 119-141, 2015.) dialogam com as descobertas empíricas e conceituais de Misse, assim como o faz o destaque conferido pelos dois autores à dimensão prática da abordagem policial cotidiana exercida sobre um tipo específico de objeto de vigilância e controle. A sujeição criminal, para Misse (2011), seria um dentre os principais entraves para o desenvolvimento de um processo de criminalização moderno-racional-legal no Brasil. Nesse sentido, o autor demonstrou que, ao longo de um período de dez anos, a polícia do Rio de Janeiro matou, aparentemente em confrontos legais, sete mil suspeitos; em igual período e circunstâncias, somente 400 policiais foram mortos. De acordo com Misse, o sistema de justiça criminal brasileiro não possui a caracterização e o funcionamento próprios à administração moderna da justiça porque está atrelado a uma tradição inquisitorial, na qual a peça principal de um processo criminal ainda permanece sendo um inquérito policial com características medievais, como o dato de não possuir lugar para o contraditório com as participações da Defensoria Pública e do Ministério Público.

Se o inquérito policial cumpre papel considerável no processo criminal brasileiro, a Polícia Militar ocupa lugar determinante dentro do inquérito policial quando se trata dos chamados crimes de rua. Como é possível verificar nos Gráficos 8 e 9, dos processos criminais sobre furto que tramitaram na 5ª Vara Criminal de Arapiraca entre 2011 e 2016, cerca de 80% foram instaurados a partir de uma prisão em flagrante. A maioria deles contou somente com o depoimento dos policiais condutores como prova.

É sabido que tal situação não corresponde a uma exceção específica do lugar, mas se constitui em uma regularidade constatada em diversas outras pesquisas, como os estudos realizados por Sinhoretto e Lima (2015SINHORETTO, Jacqueline; LIMA, Renato Sérgio de. “Narrativa autoritária e pressões democráticas na segurança pública e no controle do crime”. Contemporânea, vol. 5, n. 1, pp. 119-141, 2015.).

Gráfico 8:
Incidência de prisão em flagrante por tipo de crime praticado

Gráfico 9:
Proporção de prisões em flagrante que foram convertidas em prisões preventivas de acordo com o crime praticado

Importa destacar, por fim, que fizemos acompanhamento periódico de cada processo até o final da pesquisa, em dezembro de 2017, e obtivemos as seguintes informações: dos 101 processos de furto instaurados entre 2011 e 2016, 15 foram sentenciados; dos 21 processos de estelionato que tramitaram nesse ínterim, nenhum havia sido concluído, ou seja, sentenciado.

Considerações finais

Diante de todas as questões envolvendo o encarceramento em massa percebido nas últimas décadas no Brasil, o aprisionamento sem condenação tem contornos peculiares. Antes de estarem relacionados ao contingente populacional mais punido e aos crimes mais punidos, ele revela o resultado de um longo processo da sociedade ocidental que transformou o não trabalhador, leia-se, o desempregado, em inimigo social (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva. São Paulo: Martins Fontes, 2015.), perturbador da chamada ordem pública.

O furto é um delito que, majoritariamente, exprime a criminalização da miséria, “que é complemento indispensável da impossibilidade do trabalho assalariado precário e sub-remunerado como a negação cívica, assim como o desdobramento dos programas sociais num sentido restritivo e punitivo que lhe é concomitante” (WACQUANT, 2007WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2007., p. 63). Já o estelionato, embora não se possa compará-lo aos chamados crimes de colarinho branco - até porque é tipo penal que comporta uma gama variável de ações em diversos estratos societários -, percebemos que para sua realização é preciso um domínio mais apurado do entorno social, de determinados códigos e padrões de comportamento. Esse transitar, ainda que apenas ligeiramente mais apurado quando comparado com os acusados da prática de furto, requer do seu agente um processo de socialização com escolarização mínimos (BOURDIEU, 2007BOURDIEU, Pierre. A distinção: Crítica social do julgamento. São Paulo/Porto Alegre: Edusp/Zouk, 2007.), capazes não apenas de dar credibilidade ao ato infracional praticado, mas, igualmente, de municiar o sujeito da ação, quando pego, a lidar com as distintas esferas da justiça.

A elevada punitividade verificada no crime de furto está alinhada ao forte sentimento de insegurança, incrementado por discursos de Estado interessados em gerir a miséria e, ainda, gerenciar o conflito social através do crescente senso de punição aos pequenos delitos patrimoniais, especialmente os pouco ofensivos como o furto. Na maioria das vezes, o furto poderia ser tratado de forma alternativa à prisão, entretanto, não o é, porque seus agentes possuem um status de subalternidade na sociedade. A possibilidade de ser e permanecer preso independe da gravidade do crime julgado: associa-se à invisibilidade do sujeito acusado e ao seu acesso precário à justiça, desencadeado com o conteúdo prático da abordagem e da vigilância permanentes exercidas sobre determinados grupos e populações específicas (SINHORETTO e LIMA, 2015SINHORETTO, Jacqueline; LIMA, Renato Sérgio de. “Narrativa autoritária e pressões democráticas na segurança pública e no controle do crime”. Contemporânea, vol. 5, n. 1, pp. 119-141, 2015.).

A exigência do trabalho formal e da comprovação de residência fixa equivalem à primariedade criminal do sujeito, como se pôde ver nas manifestações do Ministério Público e do juiz. O que nosso campo de pesquisa indicou é que a dignidade da pessoa acusada não raro está condicionada às suas condições socioeconômicas - raça, classe e moradia -, ou seja, às suas determinações sociológicas, muitas vezes consideradas menos importantes do que o próprio bem atingido. Esse aspecto, a nosso juízo, atravessa todo o fenômeno, se iniciando com a vigilância demasiada da polícia e se reforçando com as interpretações do Ministério Público e com as medidas e decisões adotadas pelos juízes.

Os dados coletados a partir dos processos levantados junto à 5º Vara Criminal de Arapiraca, Alagoas, não apenas se coadunam com os dados nacionais e estaduais acerca do encarceramento em massa e da seletividade penal, e lançam luz para uma situação mais dramática quanto ao aprisionamento provisório. Já os dados específicos acerca das variáveis emprego/rendimento e educação no município de Arapiraca alargam a compreensão sobre as determinações que atravessam e constituem as trajetórias dos indivíduos que residem no município, bem como de seus cidadãos que estão em situação de prisão.

Por fim, resta assinalar que, de acordo com os dados e a literatura nacional mobilizados, há um duplo protagonismo na operacionalização e na construção da seletividade penal brasileira exercido pela Polícia Militar e pelo Ministério Público. No caso da polícia, a seletividade opera na forma da abordagem a na aplicação de um conteúdo prático de associação da ordem pública à vigilância excessiva e à prisão dos jovens pretos, pobres e periféricos. Já no caso do Ministério Público, a seletividade ocorre mais nos atos processuais e na tipificação formal das exigências e das caraterísticas socioeconômicas dos acusados (classe, ocupação, moradia etc.), que recaem sobre os mesmos jovens abordados, vigiados e presos pela polícia. Tanto um quanto outro concorrem para que se puna notadamente o agente da ação e não a ação propriamente dita.

Referências

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  • WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

Notas

  • 1
    Quando nos referirmos ao sistema de justiça criminal, entenda-se como o sistema composto por polícias (Polícias Militar e Civil), Ministério Público, Judiciário, Defensoria Pública e as instituições penitenciárias (Casas de Custódia e Presídios).
  • 2
    O item “prisão provisória” diz respeito a prisões que não têm natureza permanente, diferentes da prisão por sentença condenatória. Trata-se de prisões efetuadas no início ou ao longo dos processos criminais, podendo aparecer, neste trabalho, com a designação de prisão em flagrante ou preventiva.
  • 3
    Os crimes de furto e estelionato estão tipificados, respectivamente, nos artigos 155 e 171 do Código Penal Brasileiro (BRASIL, 1940). Na modalidade simples, ou seja, a prática principal que foi criminalizada no caput do artigo, a pena estipulada para o furto é de 1 a 4 anos de reclusão, e a pena cominada para o estelionato é de 1 a 5 anos de reclusão.
  • 4
    Como demonstraremos mais adiante com gráficos, constatamos que nos “crimes de rua” (furto e roubo), mais suscetíveis à incidência de prisão provisória (flagrante e preventiva), o gênero masculino tem destaque considerável. Lado outro, no crime de estelionato, proporcionalmente, há mais mulheres criminalizadas.
  • 5
    Cabe salientar que foram utilizados dados tanto do Infopen (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017) quanto do Conselho Nacional de Justiça (2017), porque, embora tenhamos estabelecido como recorte temporal para a pesquisa os processos instaurados entre 2011 e 2016, a maioria desses processos não obteve sentença (conclusão) até o final da pesquisa (dezembro de 2017). Logo, as pessoas envolvidas e/ou aprisionadas em razão desses processos ainda integravam as estatísticas feitas em 2017.
  • 6
    Essas informações podem ser consultadas no site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Disponível em: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=be50c488-e480-40ef-af6a-46a7a89074bd&sheet=ed897a66-bae0-4183-bf52-571e7de97ac1⟨=pt-BR&opt=currsel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    05 Ago 2019
  • Aceito
    01 Set 2020
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