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Sujeição ou evidência: A excepcionalidade do flagrante por tráfico de drogas

Subjection or Evidence: The Exceptionality of the Flagrant for Drug Trafficking

RESUMO

Este artigo apresenta uma investigação empírica acerca da hipótese de pesquisa de que há um contexto criminológico específico e distinto na aplicação de flagrantes por tráfico de drogas, quando comparados a flagrantes por outros crimes. Será utilizada, para testar essa hipótese, a metodologia quantitativa, com a construção de análises descritivas e regressões logísticas, mediante o manejo de um banco de dados cedido pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os dados foram coletados em audiências de custódia, em Belo Horizonte, entre setembro de 2015 e março de 2016.

Palavras-chave:
sujeição criminal; normalização; flagrante delito; tráfico de drogas; seletividade

ABSTRACT

Subjection or Evidence: The Exceptionality of the Flagrant for Drug Trafficking presents an empirical investigation about the research hypothesis that there is a specific and distinct criminological context in the application of drug traffickers, when compared to those for other crimes. The quantitative methodology will be used to test this hypothesis, with the construction of descriptive analyzes and logistic regressions, through the management of a database provided by the Center for the Study of Crime and Public Security (Crisp), of the Federal University of Minas Gerais (UFMG). The data were collected in custody hearings, in Belo Horizonte, between September 2015 and March 2016.

Keywords:
criminal subjection; normalization; flagrant offense; drug trafficking; selectivity

Introdução

Não é novidade que a questão do tráfico de drogas se tornou central para os estudiosos da sociologia do crime e da criminologia. Parece inegável que ela e o encarceramento em massa estejam fortemente atrelados um ao outro: juntamente com o roubo, o tráfico de drogas é o crime que mais encarcera no Brasil (MOURA SILVA, 2018MOURA SILVA, Marcos Vinícius (org). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Atualização - Dezembro de 2016. Brasília: Ministério da Justiça, Departamento Penitenciário Nacional, 2018. Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-dez-2016-rev-12072019-0802.pdf
http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/s...
). Mas o que o torna peculiar é sua relação intrínseca com os temas da seletividade penal, isto é, da segregação de determinada população carcerária por características sociais e subjetivas específicas. Essa relação é bastante explorada na literatura especializada. Várias pesquisas mostram que parece existir efetivamente seletividade de uma população marginalizada, segregada sob acusação relacionada ao tráfico de drogas (JESUS, 2016JESUS, Maria Gorete Marques de. “O que está no mundo não está nos autos”: A construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016., LEMGRUBER e FERNANDES, 2015LEMGRUBER, Julita; FERNANDES, Márcia. “Tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro: Prisão provisória e direito de defesa”. Boletim Segurança e Cidadania, n. 17, nov. 2015., GRILLO et al., 2011GRILLO, Carolina Christoph; POLICARPO, Frederico; VERISSIMO, Marcos. “A ‘dura’ e o ‘desenrolo’: Efeitos práticos da nova Lei de Drogas”. Revista de Sociologia e Política, vol. 19, n. 40, pp. 135-148, 2011.). Mas ainda há muito mistério quando se especula como a repressão ao tráfico de drogas se efetiva, e por quais canais burocráticos se torna possível tamanha performance de encarceramento.

Para quem que não está socializado com toda a histeria que se desenvolveu em torno da chamada “guerra às drogas”, pode parecer estranho prender alguém porque a pessoa vende, comercializa alguma coisa. Recorrendo aos clássicos, se tentarmos nos livrar de todas as nossas prenoções, seguindo o conselho metodológico de Durkheim (1987DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Nacional, 1987[1895].[1895]), no caso da repressão às drogas descobriremos, no fim, que se trata da punição da conduta de alguém que “vende”, “comercializa” alguma coisa que pode ocasionar dano a outrem, mas apenas mediante expressa concessão daquele que compra, no caso, o usuário de drogas. Delmanto (2015DELMANTO, Júlio. “Drogas e opinião pública no Brasil: Hegemonia da desinformação”. In: BOKANY, Vilma (org). Drogas no Brasil: Entre a saúde e a justiça - Proximidades e opiniões. São Paulo: FPA, 2015.) trabalha com essa ideia e ressalta que, ao longo da história, a humanidade sempre conviveu harmonicamente com as drogas, sendo certo que grande parte da política de “guerra às drogas” surgiu apenas no recente contexto geopolítico do século XX, especialmente a partir do governo Nixon (1969-1974) nos EUA.

Entretanto, no contexto atual, a conduta de tentar obter lucro às custas do sofrimento alheio pode ser de certa forma bastante comum nas sociedades modernas, como no caso do álcool e do tabaco, que mesmo assim são substâncias legais no Brasil e têm sua comercialização permitida pelo direito nacional vigente. Sendo assim, por qual razão a repressão às drogas representaria motivo para reações tão rigorosas do sistema penal, a ponto de o tráfico de drogas ser considerado, em termos legais, crime equiparado a hediondo1 1 Tanto a Constituição Federal, no art. 5º, XLIII, como a lei no 8.072/90, a chamada “lei dos crimes hediondos”, consideram o tráfico de drogas crime equiparado a hediondo. ? Por que ela ocasiona pesados estigmas para quem tem sob suas costas semelhante acusação?

Se não cairmos em uma sedutora tautologia especulativa acerca da essência do crime, usaremos provavelmente apenas o bom senso - considerando que, conforme explicita Chauí (1995CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995.), ele representa uma forma benéfica do senso comum - para concluir que um homicídio a sangue frio em tese causaria muito mais repulsa do que a comercialização de uma substância nociva para o usuário consciente de sua nocividade. A comparação com o roubo também é válida, pois ele envolve violência contra a vítima, diferentemente do tráfico de drogas2 2 Diz o art. 157 do Código Penal, responsável por tipificar o crime de roubo: “Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa”. No caso do roubo, para que o delito se configure é preciso haver violência ou grave ameaça contra a vítima, condição que não se faz necessária no caso do tráfico de drogas, uma vez que sua vítima é uma coletividade, especificamente a “saúde pública”. .

Mas isso até o momento em que a expressão “tráfico de drogas” é utilizada. A partir desse instante, a situação parece mudar completamente, e parece até elementar que se passe a se tratar de crimes de mesmo porte ou semelhantes em termos de elevada gravidade. Interessante observar, nesse sentido, que o roubo simples não era considerado crime hediondo até 2020 - passou a sê-lo com a lei no 13.964/2019 - e o homicídio simples ainda hoje não é considerado crime hediondo, ao passo que o tráfico de drogas o é desde 1990, com a entrada em vigor da Lei dos Crimes Hediondos (lei no 8.072/90)3 3 O art. 2º da Lei de Crimes Hediondos (lei no 8072/90) equipara tráfico de drogas, tortura e terrorismo aos chamados crimes hediondos, considerados mais graves pelo ordenamento jurídico e, por isso, tendo regimes de punição mais gravosos que os crimes comuns que não são hediondos. , o que explicita a disparidade de como esse crime vem sendo tratado de modo mais gravoso pelo direito em comparação aos outros crimes.

Talvez seja por isto que o tráfico de drogas chame tanta atenção dos pesquisadores: possivelmente, ele implica a utilização do sistema penal para outro motivo, além de reprovar e punir, qual seja, controlar. No mundo das drogas, essa premissa parece emergir. Poderia haver objeção em relação aos grandes traficantes, aqueles que são apreendidos com um “caminhão de droga”, mas não é o que parece acontecer no cotidiano das prisões, das apreensões no Brasil. É quase consenso entre os pesquisadores que a grande maioria dos presos por tráfico de drogas constitui acusados que portavam pequena quantidade de droga (JESUS et al., 2013; JESUS, 2016; LEMGRUBER e FERNANDES, 2015LEMGRUBER, Julita; FERNANDES, Márcia. “Tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro: Prisão provisória e direito de defesa”. Boletim Segurança e Cidadania, n. 17, nov. 2015.; BOITEUX, 2006BOITEUX, Luciana. “A Nova Lei Antidrogas e o aumento da pena do delito de tráfico de entorpecentes”. Boletim IBCCrim, São Paulo, vol. 14, n. 167, pp. 8-9, 2006).

Se a reprovabilidade imediata da conduta de comercializar drogas não é tão nítida quando o pesquisador se despe de preconceitos e prenoções, é mesmo a questão do controle que vem à tona. Controle de quem? E para quê? A possível resposta é esclarecedora: controle do que se faz com o próprio corpo. Essa parece ser a questão sensível principal quando se trata da questão das drogas. Delmanto (2015DELMANTO, Júlio. “Drogas e opinião pública no Brasil: Hegemonia da desinformação”. In: BOKANY, Vilma (org). Drogas no Brasil: Entre a saúde e a justiça - Proximidades e opiniões. São Paulo: FPA, 2015.) toca justamente nesse ponto. A tradição liberal se constrói a partir da premissa de que cada sujeito possa fazer o que quiser com o seu próprio corpo. A partir dessa tradição, o Estado não poderia “tocar” no corpo do sujeito, fornecer-lhe diretrizes de preferências pessoais. Esse movimento seria ilícito sob a ótica liberal, que era a predominante no mundo ocidental até metade do século XX. A partir da ascensão e do fortalecimento do Estado e seu poder burocrático, como coloca Delmanto (Ibid.), o poder estatal passou a contrariar essa lógica, e começaram a emergir as pretensões do Estado de indicar o caminho da felicidade para o indivíduo.

Esse cenário de controle aparece, em termos teóricos, como decorrência do novo contexto de “sociedade disciplinar” (FOUCAULT, 1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: O nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987., 2004, 2005), que, nos termos foucaultianos, teria sua gênese histórica construída desde a paulatina extinção dos suplícios, iniciada a partir da segunda metade do século XVIII, como pena predominante do Antigo Regime, até a sucessiva consolidação das prisões como instrumentalidade de punição hegemônica do mundo moderno. A noção foucaultiana do “biopoder” retira daí sua fonte de significação. A partir de então, passam a ser desenvolvidas “tecnologias de si” que atuariam no sentido do disciplinamento, da normalização. A repressão às drogas, no formato que se desenvolveu no mundo moderno, parece nascer com esse movimento de acirramento do poder disciplinar sobre o indivíduo. O indivíduo com suas escolhas pessoais, tão caro à tradição liberal, vai perdendo gradativamente a autonomia e a capacidade de definir ele próprio o que lhe faz bem e o que lhe faz mal, sendo desenvolvida uma prescrição disciplinar que está acima dele e que ele deveria, em tese, acatar, no sentido foucaultiano da teoria do poder.

Essa questão também desemboca em importantes consequências relacionadas à promiscuidade formal da diferenciação entre o tráfico de drogas e o uso de drogas no direito penal brasileiro. Isso porque a dubiedade na distinção fala a favor da intolerância quanto às duas condutas, ainda que formalmente haja enormes distinções entre elas, e que apenas a primeira seja de fato penalizada. Formalmente, está estabelecido que o tráfico de drogas é crime grave, tipificado pelo art. 33 da lei no 11.343/2006, que sujeita a uma pena de cinco a 15 anos de reclusão, ao passo que o uso de drogas está formalmente quase descriminalizado - ou, segundo penalistas, despenalizado, pois o art. 28 da mesma lei sequer comina pena de prisão a essa conduta. Porém, ao analisar mais detalhadamente esse cenário, fica claro que a situação não é tão simples como parece4 4 O art. 33 da lei no 11.343/2006, que tipifica o tráfico de drogas, comina pena de reclusão de cinco a 15 anos. Já o art. 28 da mesma lei, apesar de se situar na seção relativa aos crimes, não comina sequer pena de prisão. . A linha que separa as duas condutas, uso e tráfico de drogas, é tão tênue que possivelmente torna difícil, ou até mesmo inviável, qualquer diferenciação objetiva. O art. 33 do tráfico comina nada menos que 19 verbos como aptos a fazer incidir o crime de tráfico de drogas, e não somente enfatiza a questão da comercialização, mas também as condutas de “guardar consigo”, “ter em depósito”, “oferecer”, “adquirir”, “fabricar” e etc.5 5 Assim prescreve o art. 33: “Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa”. A única diferença formalmente estabelecida em lei mais evidente em relação ao uso de drogas é a questão da mercancia, que define o tráfico, ao passo que para o uso a droga se destina somente ao consumo pessoal. Também não existe na lei a delimitação de uma quantidade específica de drogas que diferencie o uso do tráfico; essa tarefa fica sob o critério de interpretação do policial quando da abordagem e apreensão do suspeito. Mas existem poucos critérios objetivos para a efetiva distinção entre uso e tráfico na prática, sendo que concretamente é plausível cogitar que ambas as condutas continuam sendo altamente vigiadas em termos penais (CAMPOS, 2013CAMPOS, Marcelo da Silveira. “Drogas e justiça criminal em São Paulo: Conversações”. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, vol. 5, n. 1, pp. 120-132, 2013.).

A partir desse cenário de incoerências distintivas entre condutas que acarretam intensidades tão diferentes de punição, algumas especulações teóricas aparecem para explicar o que acontece de diferente na questão da droga e de todo o seu entorno, quando em comparação com outros crimes. Particularmente, a questão foucaultiana do “biopoder”, conforme mencionado, surge como arcabouço teórico importante a se considerar quando se trata de qualquer assunto correlato às drogas. Seja como uso seja como tráfico, o que pode hipoteticamente estar sendo configurado é a ascensão disciplinar da estrutura sobre o indivíduo, que sofre os efeitos normalizadores do poder disciplinar e perde sua autonomia de fazer o que lhe aprouver com o próprio corpo.

Nesse sentido, conforme Delmanto (2015DELMANTO, Júlio. “Drogas e opinião pública no Brasil: Hegemonia da desinformação”. In: BOKANY, Vilma (org). Drogas no Brasil: Entre a saúde e a justiça - Proximidades e opiniões. São Paulo: FPA, 2015.), no século XX, principalmente a partir do pós-guerra, o rearranjo das forças dominantes construiu de certa forma uma independência burocrática, que passou a atuar de maneira mais intensa sobre a agência individual. O biopoder atinge na repressão às drogas alta expressividade, por tudo o que foi exposto. A questão aqui se desenvolve pela ótica do poder disciplinar, e não do poder repressor, pois, como já foi mencionado, a própria repressão às drogas parece ter muito pouco a ver com reprovabilidade da conduta, com a punição. O que parece ocorrer, quando se analisa a questão tão somente pelo prisma normativo, é que o Estado não quer que as pessoas usem drogas, e não quer que as pessoas vendam drogas, porque a droga é uma força para escapar dos tentáculos do poder disciplinar, de não se submeter ao establishment. Nesse sentido, são os inadaptados que parecem incomodar o sistema, os que não estão disciplinados. São esses corpos que o Estado possivelmente quer endireitar, como diria Foucault, normalizar.

No caso brasileiro, parece existir um contexto ainda mais diferenciado de incriminação dos mais pobres, que de certa forma pode até mesmo ir além da questão normalizadora - que, conforme Delmanto (2015DELMANTO, Júlio. “Drogas e opinião pública no Brasil: Hegemonia da desinformação”. In: BOKANY, Vilma (org). Drogas no Brasil: Entre a saúde e a justiça - Proximidades e opiniões. São Paulo: FPA, 2015.), parece ser universal nas sociedades ocidentais, dado o contexto histórico desencadeado a partir do pós-Segunda Guerra Mundial. No Brasil, parece haver a construção social e histórica de um perfil específico de criminoso, uma tipologia bem definida, que encontra nas drogas forte vazão repressiva e expressiva.

A esse respeito, é preciso fazer considerações acerca do conceito de sujeição criminal, criado por Michel Misse (1999MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagaundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999., 2010, 2011, 2014a). Como conceituada teoricamente, ela envolve os mecanismos sociais de incriminação do sujeito - diga-se, do sujeito, e não de sua ação. Nesse sentido, ele é punido pelo que é, e não pelo que faz ou fez. Essa significação, conforme prescreve Misse (1999, 2010), vem na esteira do deslocamento foucaultiano mencionado acima, da repressão para o controle - ou, como Foucault descreve em Vigiar e punir (1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: O nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.), do “corpo para a alma” do desviante. Mas, no caso brasileiro, isso ocorre com algumas especificidades a serem somadas. Misse (2010, 2011) coloca que esse perfil é construído sob uma perspectiva macrossociológica, por questões histórico-culturais, que excedem até mesmo o microcosmo da construção do mundo social no processo interacional entre policiais e bandidos, na esteira na influência da sociologia interacionista na construção do conceito. A construção de uma tipologia do “malandro” envolveria assim profundas raízes histórico-culturais e também inúmeras nuanças, como o “jeito de andar”, a forma de se vestir, a maneira pela qual os socialmente acusados utilizam a linguagem, as “gírias”, e todo um conjunto de códigos rigidamente construídos acerca da figura de um potencial desviante.

Conforme preceituado por Misse (2010MISSE, Michel. “Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria ‘bandido’”. Lua Nova, n. 79, pp. 15-38, 2010.), os códigos escritos, como o Código Penal e o Código de Processo Penal (CPP), apenas mostram abstrações, o esquema codificado de “cursos de ações”. Mas na realidade concreta que perfaz a interação entre policiais e supostos bandidos, os códigos que estruturam os respectivos papéis sociais de cada qual podem ser totalmente diferentes dos positivados nesses códigos jurídicos. De modo que aqui, somada à interação, nos termos descritos por Misse (2010, 2011, 2014), existe também a construção de um perfil social historicamente consolidado sobre quem poderiam ser os criminosos em potencial em uma determinada sociedade. E esse perfil social é o que pode estar nos bastidores da repressão às drogas. Inclusive, a sujeição criminal como conceito, conforme admite o autor (MISSE, 2014), foi pensada primeiramente e especificamente para os casos relacionados ao tráfico de drogas. Somente depois, como conceito criminológico consolidado, se expandiu para os outros crimes.

A partir de toda essa explanação inicial, surge como indagação deste trabalho a seguinte pergunta: existiria então um contexto burocrático determinado de diferenciação na vigilância entre os crimes de tráfico de drogas e os outros crimes? Ou melhor, um canal em que a burocracia penal possa expressar de maneira efetiva essa possivelmente maior vigilância em relação ao tráfico? Em face dessa questão principal, chegamos à temática da prisão em flagrante, que parece ser de suma importância para o contexto das drogas. Como instrumento jurídico de incriminação, ela vem sendo pouco valorizada nas pesquisas sociológicas (JESUS, 2016JESUS, Maria Gorete Marques de. “O que está no mundo não está nos autos”: A construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.), que vêm dando muito mais atenção ao inquérito policial. Isso pode ser um erro metodológico quando se trata de pesquisas relacionadas às drogas. A questão que emerge a partir da indagação apresentada é se a prisão em flagrante pode cumprir função disciplinar essencial ao sistema no caso da repressão às drogas, se ela pode ser a verdadeira força motriz capaz de tornar efetiva a possível diferença de vigilância entre o crime de tráfico de drogas e os outros crimes.

Chega-se então ao objeto deste estudo, a prisão em flagrante delito. O flagrante delito, especificamente para o caso do tráfico de drogas, envolve uma variável que não existe para os outros crimes: a difícil distinção entre tráfico e uso para consumo pessoal. Já se mencionou aqui que essa distinção é difícil - a literatura especializada com frequência toca nesse ponto (GRILO et al., 2012; CAMPOS, 2013CAMPOS, Marcelo da Silveira. “Drogas e justiça criminal em São Paulo: Conversações”. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, vol. 5, n. 1, pp. 120-132, 2013.; CAMPOS, 2015aCAMPOS, Marcelo da Silveira. “Drogas e Justiça Criminal em São Paulo: Uma análise da origem social dos criminalizados por drogas desde 2004 a 2009”. Revista Contemporânea, vol. 5, n. 1, pp. 167-189, 2015a.). E a distinção ocorre justamente quando o policial decide entre prender em flagrante (interpretar pelo tráfico) ou liberar o suspeito (interpretar pelo uso). Somada a essa questão, conforme preceitua Tourinho Filho (2013TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2013.), há também a questão da “permanência” do tráfico de drogas, pois o flagrante por esse crime, como dizem os juristas, se “protrai no tempo”, isto é, não cessa com uma suposta ação criminosa, permanecendo por todo lapso de tempo em que o acusado porta a droga, ainda que já tenha deixado de a comercializar. Nesse sentido, não é preciso que o policial capture o acusado no momento em que ele vende/comercializa a droga, porque a consumação se prolonga no tempo, fica mantida sob uma latência que autoriza em tese a aplicação do flagrante delito a qualquer momento. Esses fatores, somados, podem fazer da aplicação do flagrante por tráfico de drogas uma instrumentalidade sui generis de repressão penal, com importante potencial para explicar as razões para o tráfico de drogas encarcerar tanto no Brasil.

Pois então, a partir da delineação do objeto de pesquisa, desvela-se derradeiramente a pergunta de pesquisa que este artigo visa responder: o flagrante delito por tráfico de drogas é diferente do flagrante delito por outros crimes sob que aspectos e circunstâncias? E quais implicações criminológicas essa diferença poderia acarretar?

Metodologia

Para responder à pergunta de pesquisa, será utilizada basicamente a metodologia quantitativa. É claro que pesquisas de natureza quali são muito importantes para questões criminológicas, principalmente quando se aborda questões relacionadas aos processos de incriminação. As nuanças em determinado contexto social pedem a utilização dessa metodologia, mas a proposta deste artigo coloca em ênfase uma abordagem diferente. Este texto visa mostrar da maneira mais objetiva possível, sem se preocupar com os pormenores em torno da incriminação, se é efetivamente o flagrante delito que representa o meio utilizado pelo sistema para diferenciar a incriminação do tráfico de drogas da incriminação por outros crimes. A hipótese desenvolvida é que a diferença de vigilância possivelmente existente entre tráfico de drogas e outros crimes se torna possível a partir do flagrante delito, e não do inquérito policial. Por isso, um trabalho de cunho quantitativo, a fim de detectar as diferenças entre os flagrantes por tráfico de drogas e os flagrantes por outros crimes, se torna, em tese, apto a responder à pergunta de pesquisa.

Diante da escolha pela metodologia quantitativa, optou-se também por utilizar a base de dados da pesquisa “Audiência de Custódia: um panorama”, fornecida pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e coletada a partir das audiências de custódia ocorridas em Belo Horizonte, Minas Gerais. Isso porque as audiências de custódia implicam necessariamente a ocorrência de um anterior flagrante delito; é impossível se pensar em um acusado que passe pela audiência de custódia e não tenha sido submetido ao flagrante delito. Isso seria jurídica e burocraticamente impossível, pois a própria definição da audiência de custódia está relacionada à submissão do preso em flagrante diretamente à presença do juiz, para que este avalie a sua legalidade ou não. Então, é plausível cogitar que uma das melhores formas de entender a dinâmica das aplicações dos flagrantes é pela coleta de dados dos presos e dos flagrantes nas audiências de custódia.

A base utilizada nesta pesquisa foi construída entre setembro de 2015 e março de 2016. Os dados foram coletados por meio de observação direta nas audiências de custódia e de análise documental dos autos de prisão em flagrante delito (APFDs), documentos oficiais que contêm as informações mais importantes da aplicação do flagrante delito de cada ocorrência, relativos a todos os crimes que geraram a prisão em flagrante no período escolhido para análise. Os dados também fornecem os indicadores sociodemográficos dos acusados e as circunstâncias nas quais a prisão em flagrante foi aplicada. A partir de então, foi obtida uma amostra de 825 casos, representativa do universo em que as audiências de custódia foram realizadas, e por consequência do universo em que as prisões em flagrante foram aplicadas.

O que se pretende obter com o manejo da metodologia quantitativa é o diferencial de incriminação do flagrante por tráfico de drogas, quando comparado ao flagrante por outros crimes. Como afirmam Kitsuse e Cicourel (1963KITSUSE, John I.; CICOUREL, Aaron V. “A Note on the use of Official Statistics”. Social Problems, vol. 11, n. 2, pp. 131-139, 1963.), as estatísticas podem representar instrumento metodológico valioso. Os autores ressaltam que quando o recorte de pesquisa apresenta questões mais relacionadas à acusação social, à imputação contra determinado indivíduo ou população, e não aos motivos subjetivos do cometimento do crime em si, as perspectivas metodológicas quantitativas respondem de maneira satisfatória em termos científicos. É o caso da pesquisa relacionada a este artigo, pois aqui a preocupação relativa ao objeto de pesquisa envolve justamente esse diferencial de incriminação, no sentido de mensurar se o flagrante delito, como instituto de exceção, é também instrumento que viabiliza o sentido de controle social quando se pensa na repressão às drogas de forma geral.

Certamente há de se fazer algumas ressalvas metodológicas ao uso das estatísticas oficiais. A primeira delas é bem pontuada por Campos Coelho (1978COELHO, Edmundo Campos. “Criminalização da marginalidade e a marginalização da criminalidade”. Revista de Administração Pública, vol. 12, n. 2, pp.139-61, 1978.), que mostra como o pesquisador deve agir com parcimônia na interpretação desses dados: eles não devem ser tomados como descritivos da integralidade de todos os crimes que acontecem em determinada sociedade, mas tão somente aqueles que são registrados. O pesquisador deve considerar a chamada “cifra oculta”, isto é, os crimes que de fato se consolidam, mas não chegam, por diversos motivos que variam de caso a caso, a ser registrados. No caso desta pesquisa, como são exatamente os casos registrados que perfazem a preocupação metodológica relacionada mais diretamente ao objeto de estudo, os dados estatísticos oficiais e a metodologia quantitativa se amoldam adequadamente aos objetivos e justificativas propostos.

Na construção do desenho metodológico da pesquisa, foi confeccionada uma variável dependente principal, designada “var _ dep”, que divide os 825 casos da amostra entre os flagrantes por tráfico-1 e os flagrantes por outros crimes-0. Em seguida, a partir dos dados do banco, foram manejadas as variáveis explicativas sociodemográficas dos acusados: 1) sexo, 2) idade, 3) escolaridade, 4) estado civil e 5) cor.

Posteriormente, foram construídas as variáveis explicativas relacionadas à aplicação do flagrante delito, ou seja, às circunstâncias de fato e pessoais em que ele foi aplicado. As variáveis discriminadas foram: 1) testemunhas (presença ou não de testemunhas não policiais), 2) abordagem (motivos que ocasionaram a abordagem do suspeito), 3) armas (presença ou não de armas com acusado no momento da prisão) e 4) local de ocorrência (onde foi aplicado o flagrante delito).

A partir disso, foram realizadas análises descritivas tendo como norte a variável resposta, var_dep, por um lado, e as variáveis independentes explicativas, por outro. Nessa etapa das análises descritivas também foram realizados os respectivos testes qui-quadrado de associação e de homogeneidade, para avaliar o grau de associação entre cada variável explicativa e a variável resposta, bem como o grau de homogeneidade entre as frequências das variáveis explicativas e da variável resposta.

Em seguida, foram realizadas as análises multivariadas. Partiu-se da mesma variável resposta, var_dep, e das variáveis explicativas trabalhadas nas análises descritivas (as sociodemográficas e as relacionadas à aplicação do flagrante delito). Foram realizadas assim regressões logísticas. Os modelos logísticos foram construídos para avaliar a influência em uma mesma equação de todas as variáveis explicativas nos resultados da variável resposta. Nesse sentido, Finlay e Agresti (2012AGRESTI, Alan; FINLAY, Barbara. Métodos estatísticos para as ciências sociais: Métodos de pesquisa. Porto Alegre: Penso, 2012) ressaltam que a construção de modelos logísticos representa o instrumento correto para que seja calculada a razão de chances (odds ratio) de sucesso da variável resposta, em face das variáveis explicativas que entram no modelo.

As análises mutlivariadas foram construídas a partir de dois modelos. No primeiro, entraram na equação somente as variáveis independentes sociodemográficas dos acusados, em face é claro, da variável resposta, var_dep. No segundo, foram acrescentadas as variáveis explicativas relacionadas à aplicação do flagrante delito.

A partir dos resultados conjuntos das estatísticas descritivas e das análises multivariadas, partiu-se para a avaliação de como a variável resposta foi influenciada, se existem diferenças e em quais pontos entre os flagrantes por tráfico de drogas e os flagrantes por outros crimes e, finalmente, os desdobramentos criminológicos decorrentes.

Resultados

Estatística descritiva

Os resultados das análises descritivas mostram que no que tange às variáveis sociodemográficas, não existe muita diferença quanto à aplicação do flagrante por tráfico de drogas, por um lado, e da aplicação do flagrante por outros crimes, por outro. O Quadro 1 mostra esses resultados. De fato, parece ser comum o perfil social selecionado para todos os flagrantes, seja por tráfico seja por outros crimes. É o perfil composto por acusados jovens, do sexo masculino, de baixa escolaridade (no máximo até o ensino fundamental completo), solteiros e majoritariamente pretos e pardos. A semelhança desse perfil em face da variável resposta é clara pela análise descritiva. Esse cenário mostra que a própria aplicação do flagrante como um todo pode ser seletiva, não sendo uma particularidade do tráfico de drogas.

Quadro 1:
Análises descritivas, variáveis explicativas sociodemográficas e relacionadas ao flagrante deligo x var_dep

Não foi utilizada nenhuma variável relacionada à renda, mas a variável “escolaridade” pode representar talvez sucedâneo analítico para essa questão, conforme admite Campos (2013CAMPOS, Marcelo da Silveira. “Drogas e justiça criminal em São Paulo: Conversações”. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, vol. 5, n. 1, pp. 120-132, 2013., 2015), pois é possível inferir que acusados de baixíssima escolaridade representam extratos mais marginalizados e empobrecidos da população. Assim como também é possível concluir que o sistema como um todo apresenta vieses de cor, tendendo sempre a selecionar pretos e pardos em detrimentos de brancos. A ausência de significância estatística aponta efetivamente apenas que esses vieses não são exclusivos dos flagrantes por tráfico de drogas, mas se aplicam à totalidade dos flagrantes, para todos os crimes.

A situação se altera quando são analisadas as outras variáveis explicativas, relacionadas ao flagrante delito. A partir daí, começa a haver as diferenciações entre os flagrantes por tráfico de drogas e por outros crimes. Em relação às testemunhas, os números mostram diferenças substantivas entre as frequências de um e de outro. Em nada menos que 96,7% dos flagrantes por tráfico não houve testemunhas, ao passo que apenas 31,2% dos flagrantes por outros crimes não apresentaram testemunhas. Tão somente a análise descritiva já demonstra a grande diferença no quesito evidência dos flagrantes por tráfico de drogas. A ausência majoritária de testemunhas para os flagrantes por tráfico de drogas mostra possibilidades de conclusões relacionadas à pouca evidência do flagrante, desvirtuando a natureza do instituto, que denota em sua significação a clareza da situação em que o agente é capturado, no exato momento, ou logo após, em que está cometendo o crime6 6 Assim prescreve o art. 302 do CPP, que define o que é considerado prisão em flagrante: “Considera-se em flagrante delito quem: I - está cometendo a infração penal; II - acaba de cometê-la; III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração. . O teste qui-quadrado não deixa dúvida em relação à associação positiva entre a variável testemunha e a variável resposta, sendo que tanto o teste de homogeneidade como o de associação apresentaram significância estatística relevante.

A mesma conclusão se aplica às variáveis armas, local de ocorrência e abordagem. Quanto à primeira, as frequências mostram que existe diferenciação efetiva nos flagrantes por tráfico e nos flagrantes por outros crimes. Os números mostram que em mais de 90% dos flagrantes por tráfico de drogas os acusados estavam desarmados, ao passo que nos flagrantes por outros crimes, 74% não estavam armados. O teste qui-quadrado de homegeneidade mostra que de fato existe diferenciação no que tange à variável armas; e o testo qui-quadrado de associação mostra também a associação estatística positiva entre as variáveis.

Em relação à variável abordagem, as frequências mudam conforme a variável resposta. No caso, o motivo relacionado à “atitude suspeita” é o mais importante para os flagrantes por tráfico, constituindo nada menos que 58% de todos os flagrantes por tráfico, ao passo que, para os outros crimes, o principal motivo da abordagem foi a “denúncia identificada”, que corresponde a 51% do percentual de motivos que ensejou todos os flagrantes por outros crimes. A diferença é corroborada pelos testes qui-quadrado de homogeneidade e de associação, que apresentam valores positivos para a associação estatística. Tal resultado novamente aponta para a diferenciação em termos de evidência no flagrante por tráfico, que parece ter evidência menor e ser mais suscetível a interpretações subjetivas do policial que aplica o flagrante, bem como a ações discricionárias no momento da aplicação. Isso porque a “atitude suspeita” representa o modo de abordagem quando a polícia está em ação de patrulhamento de rotina e se depara acidentalmente com o suspeito, ao passo que a denúncia identificada constitui forma de denúncia mais elaborada, em que um terceiro apresenta denúncia dizendo que em determinado local um crime aconteceu ou está acontecendo. Na denúncia identificada, o denunciante fornece sua identidade à polícia e denuncia que suposto crime está acontecendo. Intuitivamente é possível perceber que a denúncia identificada supostamente envolve uma situação de maior flagrância quando comparada à abordagem por motivo de atitude suspeita. Novamente as frequências em relação à variável resposta mostram que os flagrantes por tráfico de drogas possivelmente apresentam menor grau de evidência quando comparados aos flagrantes por outros crimes.

Por fim, terminando a apresentação de resultados das análises descritivas, o local de ocorrência do flagrante também se diferencia em face da variável resposta. Apesar de o principal local de aplicação do flagrante ser a via pública, tanto para os casos de tráfico como para os casos de outros crimes, para os primeiros há outro local de destaque, que apresenta frequência relevante, embora menor que o primeiro: a própria residência dos suspeitos. Para os outros crimes, a frequência de flagrantes ocorridos na própria residência é quase insignificante. Isso representa outro indício científico, que aponta para a diferença no grau de evidência entre o tráfico de drogas e os outros crimes quando da aplicação do flagrante delito. Como no caso do tráfico de drogas, trata-se, segundo juristas, de “crime permanente”, isto é, em que a consumação se “protrai no tempo”, e também para que esteja configurado não é necessário que haja explícita comercialização da substância proibida, bastando que qualquer um dos 19 verbos do tipo penal esteja presente; é possível que se torne viável a aplicação do flagrante tão somente se os policiais encontrarem droga na residência do indivíduo, mesmo que em pequena quantidade7 7 Isso porque existem relatos de que muitas vezes policiais “plantam” a droga com o suspeito. O caso Rafael Braga, por exemplo, gerou enorme repercussão penal, quando um jovem morador de rua, de periferia, pobre e negro foi preso com ínfima quantidade de droga. Ele ficou preso por muito tempo por isso, mas alegou que foram os policiais que “plantaram” a droga quando da aplicação da prisão em flagrante. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/caso-rafael-braga-justica-reforca-a-segregacao-racial-no-brasil/. . A maior frequência de apreensões de acusados na própria residência mostra novamente que a possível diferença entre o flagrante por tráfico e o flagrante por outros crimes se situa no grau de intensidade e evidência do flagrante. Isso possivelmente pode fornecer ao policial, nos casos de repressão ao tráfico, maior discricionariedade e margem para subjetivismos.

Análise multivariada

Os resultados das análises multivariadas mostram situação parecida. Conforme mencionado na apresentação da metodologia, foram construídos dois modelos de regressão logística. O primeiro coloca na equação somente as variáveis sociodemográficas em face da variável resposta. No segundo, foram acrescentadas na equação as variáveis relacionadas ao flagrante delito: testemunha, armas, local de ocorrência e abordagem. Os resultados são mostrados no Quadro 2.

Quadro 2:
Regressões Logísticas para as ocorrências relacionadas aos flagrantes por tráfico de drogas, var_dep (tráfico=1)

É possível perceber pela análise do Quadro 2 que no modelo 1 nenhuma das variáveis explicativas apresentou significância estatística relevante. Tal resultado mostra o que as análises bivariadas já indicavam: a diferença entre flagrante por tráfico e flagrante por outros crimes não se situa nas variáveis sociodemográficas, isto é, não está no perfil social do contingente selecionado. Mostra também, em uma análise preliminar, que existe de fato seletividade do contingente passível de sofrer prisão em flagrante. Nesse sentido, é possível afirmar que tão somente as análises descritivas já mostraram a plausibilidade dessa conclusão, mas, conforme mencionado na seção anterior, a conclusão vale para todos os crimes, ou melhor, todos os flagrantes, e não somente para os flagrantes por tráfico de drogas. As diferenças estão sim situadas nas variáveis explicativas relacionadas à própria aplicação do flagrante delito: testemunhas, armas e abordagem. Das variáveis relacionadas à aplicação do flagrante delito, apenas a variável local de ocorrência não apresentou significância estatística relevante. As outras três já mencionadas apresentaram. E detalhe: a de maior razão de chances (odds ratio) foi a variável testemunha, Exp (B)=103,233, o que significa que as chances de um flagrante por tráfico não apresentar testemunhas são 103 vezes maiores do que em um flagrante por outro crime. A variável armas foi a segunda que apresentou maior razão de chances, Exp (B)=3,465, o que significa que a chance de ter acusados desarmados é 3,465 vezes maior em um flagrante por tráfico do que em um flagrante por outro crime. Por fim, a variável abordagem apresentou razão de chances Exp (B)=2,119, o que significa que a chance de o acusado ser abordado por outro motivo que não a atitude suspeita é 2,119 vezes maior nos flagrantes por tráfico do que nos flagrantes por outros crimes.

Considerações finais

Os resultados da pesquisa mostram que a diferenciação do tráfico de drogas está nos próprios fatores relacionados à aplicação do flagrante delito, e não nas variáveis sociodemográficas. É preciso dizer que estas apontam sim, em geral, para a seletividade como um todo de populações marginalizadas, mas não somente para os casos do tráfico de drogas. A não significância das análises multivariadas quanto às variáveis sociodemográficas mostra apenas que não existem diferenciações no que tange ao perfil social entre flagrantes por tráfico e flagrantes por outros crimes, mas a simples análise descritiva contida no Quadro 1 autoriza a conclusão de que as prisões em flagrante, de modo geral, miram parcelas mais marginalizadas da população. A estatística descritiva aponta que a população segregada por meio do flagrante delito é composta majoritariamente por jovens de periferia, na maioria homens, pretos e pardos, solteiros e de baixíssima escolaridade. Enfatize-se novamente, isso para todos os crimes, tanto os relacionados a flagrantes por tráfico de drogas como a flagrantes pelos outros crimes.

A grande diferença percebida no trabalho empírico, notadamente nas análises multivariadas, parece estar na significação histórica e jurídica do flagrante, que, no caso do tráfico de drogas, possivelmente se destitui de sua natureza de instituto de exceção para figurar como instrumento de banalização de prisões, colorindo situações cotidianas de duvidosas cores relacionadas à evidência que o instituto do flagrante delito denota. As análises multivariadas mostraram enfaticamente que a verdadeira diferença na aplicação dos flagrantes por tráfico de drogas encontra-se nas variáveis explicativas relacionadas à própria aplicação do flagrante delito - testemunhas, armas, abordagem e local de ocorrência -, especificamente no aspecto da diferença entre graus de evidência entre os flagrantes por tráfico de drogas e aqueles por outros crimes; no caso dos primeiros, parece ser muito menor.

Esse parece ser o aspecto fundamental. Para os outros crimes, talvez ainda existam aspectos de reação social e reprovabilidade misturados com aspectos de controle social, o que parece estar mitigado quando se trata de tráfico de drogas, em que o aspecto controle social possivelmente ganha o papel principal e coadjuva todos os outros. No caso do tráfico de drogas, a discricionariedade em aplicar o flagrante delito para situações de reduzido grau de evidência pode estar criando um sistema sui generis de controle social, em que a regra é a prisão e a exceção é a liberdade. Por esse sistema, prende-se em situações duvidosas, que se transformam a partir daí, com o rótulo do flagrante delito e sua significação de exceção, em situações evidentes. Pode ser este o diagnóstico central do problema relacionado ao elevado encarceramento pelo tráfico de drogas: transformar situações duvidosas em evidentes e, com isso, produzir estatísticas que aumentam o encarceramento, e que em muitas das vezes podem significar prisões completamente desnecessárias.

Aqui é preciso citar a questão do chamado “tráfico privilegiado”, pois existe na própria lei um dispositivo que pode diminuir sobremaneira a pena se o acusado for primário e não participante de organizações criminosas: o §4° do art. 338 8 Eis a causa de diminuição do art. 33, §4°, configuradora do chamado “tráfico privilegiado”: “Nos delitos definidos no caput e no § 1odeste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”. . Os juristas designam esse tipo legal como tráfico privilegiado. Muitas vezes, nem mesmo após a condenação, se for realizada nesses termos, levaria o acusado à prisão, pois poderia fazer com que a pena decaísse até o patamar de um ano e oito meses de reclusão pela redução de até 2/3 da pena, o que autoriza a substituição da pena privativa de liberdade. Permitir o encarceramento provisório de pequenos traficantes primários e varejistas que não participam de organizações criminosas é permitir que prisões desnecessárias se efetivem, gerando por consequência a desorganização de todo o sistema prisional. Acusados primários com pequena quantidade de drogas apreendida não precisariam ser encarcerados. Quando existisse suspeita, seria melhor que o Estado-acusação movimentasse o inquérito policial, e não a prisão em flagrante. Mesmo para os casos de reincidentes que fossem apreendidos com pequenas quantidades de drogas, que suscitassem dúvidas quanto à mercancia ou não, deveriam ter o direito constitucional de responder ao processo em liberdade, pois não representam em uma análise inicial qualquer ameaça iminente à sociedade9 9 No caso da prisão em flagrante, a mesma deve ser transformada em prisão preventiva apenas nos casos em que os requisitos do art. 312 do CPP estejam presentes. Somente se o acusado esteja coagindo testemunhas (assegurar a instrução criminal), tenha risco de fugir (assegurar a aplicação da lei penal) ou represente perigo à sociedade (garantir a ordem pública). Assim, acusados, mesmo se fossem reincidentes, tivessem residência fixa, não apresentassem indícios de que poderiam fugir e não acarretassem riscos à sociedade, poderiam/deveriam ser liberados. .

Possivelmente, essa é uma das mais graves questões de segurança pública relacionada ao sistema prisional na atualidade. Ela dá margens para que atitudes arbitrárias, injustas, não razoáveis, tenham a chancela do Estado, que, por sua vez, se volta contra às próprias finanças, pois é muito mais caro prender do que investigar - além do custo da manutenção do preso, há o custo da movimentação da máquina da segurança pública para efetivar a prisão. Ou então, após aplicada a prisão, poderia haver mais filtros para a correção de situações evidentemente excessivas.

Uma solução de certa forma simples para esse cenário seria a mudança na lei para que fossem estabelecidas quantidades padrão de drogas, com o intuito de diferenciar mais claramente o uso para consumo pessoal do tráfico de drogas. Inclusive, a Nota Técnica de Igarapé (2015) coloca essa mudança como potencialmente positiva para evitar o encarceramento desnecessário. Isso evitaria que muitas prisões em flagrantes sem necessidade fossem realizadas. Quando a prisão em flagrante, por determinadas circunstâncias, depende exclusivamente da interpretação do policial (geralmente do policial militar, quem primeiro aplica o flagrante), o que parece ocorrer é que a situação deixa de ser flagrante e passa a ser somente uma situação de suspeição, que em tese deveria ser assim tratada pelo sistema. Pequenos traficantes fatalmente serão condenados por tráfico privilegiado, e mesmo quando não o forem, não representam perigo iminente à sociedade, pois são facilmente substituíveis e não aumentam a oferta de drogas global com suas respectivas atividades (D’ELIA FILHO, 2007). É preciso ressaltar também que essa deturpação no requisito “evidência” para aplicação do flagrante delito facilita a confusão entre usuários e traficantes, sendo muito plausível que estejam ambos sofrendo com o encarceramento, mesmo que ao primeiro não seja sequer cominada pena de prisão (CAMPOS, 2013CAMPOS, Marcelo da Silveira. “Drogas e justiça criminal em São Paulo: Conversações”. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, vol. 5, n. 1, pp. 120-132, 2013., 2015b)

O canal que abre portas para a subjetivação da acusação criminal no caso da repressão às drogas, em detrimento de imputações objetivas e em decorrência da criação de espaço para a seletividade diferenciada, parece ser o flagrante delito, e não o inquérito policial. E isso só se torna possível com a desnaturação do sentido histórico de evidência que o flagrante delito tem. O mesmo não parece se aplicar aos outros crimes, pois as situações que originam seus respectivos flagrantes parecem denotar grau de evidência muito maior. Nesses casos, o sentido histórico do flagrante delito não se desnatura. Tanto as análises descritivas como as análises multivariadas apontaram para estas conclusões: semelhança quanto às variáveis sociodemográficas (ainda que tão somente a análise descritiva aponte para a seletividade), mas diferença nas variáveis diretamente relacionadas ao flagrante delito (testemunhas, armas e abordagem). Talvez a grande chaga que torne o tráfico de drogas um dos maiores encarceradores do sistema esteja situada mesmo na aplicação do flagrante. Se a opção, no caso de dúvidas, pequenas apreensões, pequenas quantidades de drogas e ausência de testemunhas, fosse a investigação e não a prisão, o sistema poderia perfeitamente evitar o encarceramento desnecessário, mitigando o elevado custo humano, social e orçamentário de sua aplicação descontrolada.

Em especial, chama atenção a questão das testemunhas. Foi a variável disparadamente com a maior razão de chances. O Exp (B) dessa variável aponta que existem mais de cem vezes mais chances de os flagrantes por tráfico de drogas não apresentarem testemunhas, em comparação aos flagrantes para os outros crimes. O número é expressivo em termos científicos e aponta para conclusões no sentido de que a ausência de testemunhas (que não sejam os próprios policiais que aplicaram a prisão) realmente tem a principal função de tornar o processo de acusação social amplamente discricionário e não respaldado em elementos concretos e objetivos de convicção. No caso, quando não houver testemunhas independentes (não policiais), talvez o melhor caminho não fosse a prisão, mas sim a abertura de inquérito policial. O sistema deixa decisões fundamentais (prisão/soltura) absolutamente dependentes de interpretações subjetivas dos policiais que efetuam as prisões, principalmente os militares. Isso pode ser perigoso para que eventuais violações aos direitos humanos sejam evitadas, e pode também acarretar esforços desnecessários da máquina pública e gastos desnecessários do dinheiro do contribuinte.

Os resultados da pesquisa mostram cientificamente, na espacialidade e temporalidade considerada, que a repressão às drogas mediante a instrumentalidade do flagrante delito é, no regime atual, altamente problemática, geradora de injustiças, e altamente dispendiosa em termos de finanças para a máquina pública. Tal realidade poderia ser alterada com simples ações, como a efetiva mudança na lei estabelecendo um parâmetro quantitativo para a separação entre uso e tráfico ou a criação de filtros mais efetivos para que correções das prisões injustas sejam facilitadas.

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  • TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2013.
  • 1
    Tanto a Constituição Federal, no art. 5º, XLIII, como a lei no 8.072/90, a chamada “lei dos crimes hediondos”, consideram o tráfico de drogas crime equiparado a hediondo.
  • 2
    Diz o art. 157 do Código Penal, responsável por tipificar o crime de roubo: “Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa”. No caso do roubo, para que o delito se configure é preciso haver violência ou grave ameaça contra a vítima, condição que não se faz necessária no caso do tráfico de drogas, uma vez que sua vítima é uma coletividade, especificamente a “saúde pública”.
  • 3
    O art. 2º da Lei de Crimes Hediondos (lei no 8072/90) equipara tráfico de drogas, tortura e terrorismo aos chamados crimes hediondos, considerados mais graves pelo ordenamento jurídico e, por isso, tendo regimes de punição mais gravosos que os crimes comuns que não são hediondos.
  • 4
    O art. 33 da lei no 11.343/2006, que tipifica o tráfico de drogas, comina pena de reclusão de cinco a 15 anos. Já o art. 28 da mesma lei, apesar de se situar na seção relativa aos crimes, não comina sequer pena de prisão.
  • 5
    Assim prescreve o art. 33: “Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa”.
  • 6
    Assim prescreve o art. 302 do CPP, que define o que é considerado prisão em flagrante: “Considera-se em flagrante delito quem: I - está cometendo a infração penal; II - acaba de cometê-la; III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
  • 7
    Isso porque existem relatos de que muitas vezes policiais “plantam” a droga com o suspeito. O caso Rafael Braga, por exemplo, gerou enorme repercussão penal, quando um jovem morador de rua, de periferia, pobre e negro foi preso com ínfima quantidade de droga. Ele ficou preso por muito tempo por isso, mas alegou que foram os policiais que “plantaram” a droga quando da aplicação da prisão em flagrante. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/caso-rafael-braga-justica-reforca-a-segregacao-racial-no-brasil/.
  • 8
    Eis a causa de diminuição do art. 33, §4°, configuradora do chamado “tráfico privilegiado”: “Nos delitos definidos no caput e no § 1odeste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”.
  • 9
    No caso da prisão em flagrante, a mesma deve ser transformada em prisão preventiva apenas nos casos em que os requisitos do art. 312 do CPP estejam presentes. Somente se o acusado esteja coagindo testemunhas (assegurar a instrução criminal), tenha risco de fugir (assegurar a aplicação da lei penal) ou represente perigo à sociedade (garantir a ordem pública). Assim, acusados, mesmo se fossem reincidentes, tivessem residência fixa, não apresentassem indícios de que poderiam fugir e não acarretassem riscos à sociedade, poderiam/deveriam ser liberados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2020
  • Aceito
    03 Maio 2021
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