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Espaços inabitáveis, discursos de torturabilidade: Entrevista com Ignacio Mendiola

O conceito de tortura adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU), sobretudo a partir da publicação, em 2002, do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura (OPCAT, na sigla em inglês)1 1 O OPCAT constituiu um sistema de inspeções sem aviso prévio a espaços de privação de liberdade, operacionalizado pelo Subcomitê de Prevenção à Tortura (SPT) e por Mecanismos Preventivos Nacionais. Ver também a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, publicada pela ONU em 1984. , tem como parâmetro um viés preventivo, pautado por uma abordagem criminológica ecológica (DUARTE e JESUS, 2020DUARTE, Thais Lemos; JESUS, Maria Gorete Marques de. “Prevenção à tortura: uma mera questão de oportunidade aos mecanismos latino-americanos?”. Revista Direitos Humanos e Democracia, vol. 8, n. 15, pp. 134-152, 2020.). Esse documento propõe inibir a violência cometida por agentes estatais, incidindo sobre os chamados “fatores de risco”, de tal modo que a dissuasão se converte na principal estratégia de repressão daquela prática abjeta (PASTORAL CARCERÁRIA, 2016). Por meio de visitas periódicas a espaços considerados vulneráveis à tortura - como cárceres, centros socioeducativos e hospitais psiquiátricos, entre outros - seria possível diminuir as chances de perpetuação de violações (MAIA, 2006). Os agentes estatais saberiam que a qualquer momento estariam sujeitos ao monitoramento efetuado por um órgão externo, o que evitaria o cometimento de uma conduta arbitrária - configurando um sistema de controle sobre vigilantes e custodiadores particular, já qualificado como um “panóptico invertido” (CLIQUENNOIS e SNACKEN, 2018CLIQUENNOIS, Gaëtan; SNACKEN, Sonja. “European and United Nations monitoring penal and prison policies as a source of an inverted panopticon?”. Crime, Law and Social Change, vol. 70, n. 1, pp. 1-18, 2018.).

Em outros termos, a ótica vigente na ONU situa a tortura como uma espécie de crime de oportunidade, cometido em ambientes e momentos específicos, por atores também específicos, contra indivíduos considerados vulneráveis, como as pessoas privadas de liberdade. Em boa medida, porém, tal preceito se distancia do entendimento de que esse tipo de violência exerce papel estrutural nas dinâmicas sociais, especialmente no sistema de justiça criminal de países periféricos como o Brasil (SALLA e ALVAREZ, 2006SALLA, Fernando A.; ALVAREZ, Marcos César. “Apontamentos para uma história das práticas de tortura no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 63, pp. 277-295, 2006.; TEIXEIRA, 2009TEIXEIRA, Alessandra. Prisões da exceção: Política penal e penitenciária no Brasil contemporâneo. São Paulo: Juruá, 2009.; SALLA e CARDIA, 2014). As abordagens policiais, os cenários judiciais e os contextos de privação de liberdade mobilizam a tortura como marca cotidiana, como expediente difuso e continuado (GODOI, 2017GODOI, Rafael. “Tortura difusa e continuada”. In: MALLART, Fábio; GODOI, Rafael (orgs). BR 111: A rota das prisões brasileiras. São Paulo: Veneta, 2017, pp. 117-126.), sendo praticamente impossível isolá-la em um só tempo e espaço. Esse ato vil se apresenta como uma ferramenta ordinária destinada à sujeição, ao controle e ao disciplinamento contínuo de populações marginalizadas, compostas, em geral, por pessoas pobres e negras.

Logo, em vez de repensar as lógicas que engendram o sistema de justiça criminal afetadas pela violência, temos interpretado, em consonância com outros pesquisadores e certas entidades da sociedade civil, que a abordagem prevalente na ONU acaba por obnubilar aspectos específicos e decisivos da violência estatal em contextos como o nosso. Em vista disso, ela tende a promover reformas nas instituições de privação de liberdade, quase sempre incapazes de responder às necessidades das populações que acabam por compor suas fileiras. As ações de inspeção se voltariam, mormente, a uma “humanização” desses espaços, e não à transformação radical de suas estruturas, pautadas por relações de poder entre classes desigualmente situadas em nossa sociedade (DUARTE e JESUS, 2020DUARTE, Thais Lemos; JESUS, Maria Gorete Marques de. “Prevenção à tortura: uma mera questão de oportunidade aos mecanismos latino-americanos?”. Revista Direitos Humanos e Democracia, vol. 8, n. 15, pp. 134-152, 2020.).

Para desdobrar e desenvolver essa perspectiva crítica ao conceito e às práticas institucionalizadas de prevenção à tortura apregoadas no âmbito internacional, temos conduzido um enredo de discussões, questionamentos, críticas e reflexões sobre a questão. Compõe essa trama de ações a série de encontros realizados no âmbito do Seminário Internacional “Caminhos e descaminhos da prevenção à tortura: quais obstáculos devemos ultrapassar?”, promovido em março de 2021. O evento foi organizado pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), pelo Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça (Seviju) da Universidade Federal do ABC (UFABC), pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Todos esses grupos acadêmicos apresentam a temática da violência estatal e da tortura em suas agendas de pesquisa, a partir de distintas vertentes teóricas e empíricas.

O seminário contou com a participação de diversos atores importantes do debate público e especializado sobre tortura, entre eles o professor e sociólogo basco Ignácio Mendiola, que proferiu a conferência de abertura2 2 Disponível (on-line) em: https://www.youtube.com/watch?v=4pD_GUXJQ80 . Mendiola acaba de publicar no Brasil, na revista Dados, o artigo “En torno a la definición de tortura: La necesidad y dificultad de conceptualizar la producción ilimitada de sufrimiento” (MENDIOLA, 2020). O texto é um desdobramento de seu livro Habitar lo inhabitable: La práctica político-punitiva de la tortura (Idem, 2014). Nesses trabalhos, o autor justamente problematiza a definição da tortura adotada pela ONU, destacando a complexidade que a prática carrega e a necessidade de uma definição que mobilize, pelo menos, três dimensões interconectadas que remetem: “à captura (vinculada direta ou indiretamente à estrutura público-estatal), ao inabitável (referida à produção de um corpo sofredor sem proteção) e à alteridade (relacionada com as subjetividades não reconhecidas sobre as quais se projeta)” (Idem, 2020, p. 31). Interpelados pela agudeza de seu pensamento, decidimos convidá-lo a participar do seminário, no que fomos pronta e gentilmente acolhidos3 3 O contato com Mendiola foi mediado por Dario Malventi, a quem registramos nossos sinceros agradecimentos. .

Logo após o evento, pensamos que seria muito importante difundir ainda mais as reflexões de Mendiola no Brasil. Optamos, então, por convidá-lo para uma entrevista, a fim de abordar alguns de seus esforços de reflexão fundamentais4 4 A entrevista aconteceu em 21 de abril de 2021. Foi transcrita com o auxílio de Adriana Urbina e traduzida pelos entrevistadores Rafael Godoi, Thais Duarte e Maria Gorete M. de Jesus. Agradecemos também a revisão parcial de Efraín García Sanchez. . A publicação desta entrevista soma-se, então, ao enredo que segue o rumo de aprofundar as reflexões sobre o conceito de tortura, bem como seus efeitos, consequências, limites e possibilidades no Brasil. Desejamos a vocês uma boa leitura e que as ideias de Mendiola circulem, criem e fomentem possibilidades de rupturas mais transformadoras.

Gostaríamos de começar perguntando sobre sua trajetória profissional e sua trajetória de pesquisa.

Comecei a minha graduação em sociologia na Universidade do País Basco. Ali me formei sociólogo e fiz minha tese de doutorado em sociologia. Mais tarde, em um contexto mais tranquilo do que agora, consegui me realocar na universidade e continuar trabalhando como professor. Foi um longo período de formação para poder acessar a posição de docente na universidade.

No que se refere à minha carreira de pesquisador, apesar de ter trabalhado diferentes temas, existe um substrato que se manteve ao longo do tempo. Creio que minha abordagem no campo da sociologia ou das ciências sociais desde a conclusão da minha tese de doutorado foi marcada fundamentalmente por uma tentativa de aprofundar-me nas relações de poder e violência por meio das quais se conformam processos de subjetivação. Lembrando que esses processos de subjetivação ocorrem sempre a partir dos espaços em que habitamos e sentimos. Ou seja, o social se produz partir de sua espacialidade constitutiva, mas também essa emergência do social pode reconfigurar os espaços nos quais ele surge. É nesse sentido que acredito que se pode articular um olhar analítico sobre o social em que o próprio exercício do pensar se redefina como uma geografia crítica que analisa os habitats que habitamos e os hábitos que configuram os habitats nos quais estamos imersos. A partir dessa preocupação com a forte relação entre o social e a espacialidade, em que a noção de habitar desempenha um papel preponderante e o viver se redefine como prática de habitar, é possível compreender o título do livro sobre a tortura [Habitar lo inhabitable: La práctica político-punitiva de la tortura] no sentido de “habitar o inabitável”.

Pesquisar para mim sempre foi buscar essas relações que se desencadeiam entre espaço, poder e subjetividade.

Mas a pesquisa que deu origem a seu livro sobre tortura foi a do seu doutorado ou foi uma pesquisa que você fez depois?

É uma investigação que fiz depois. Minha tese de doutorado foi uma tese em grande medida teórica, na qual trabalhei com quatro dimensões teóricas: espaço, tempo, poder e subjetividade - quatro dimensões que também foram colocadas em relação com o campo dos movimentos sociais. Ali, o que eu estava tentando fazer era formar certa perspectiva analítica a partir da qual abordar a análise do social por meio dessas dimensões. A realidade dos movimentos sociais funcionava como uma exemplificação para analisar criticamente os processos de produção do social, suas espacialidades e subjetividades, mas também as resistências e linhas de fuga que aí se desencadeiam.

E como você chegou ao tema da tortura? Como essa questão se impôs para sua reflexão e em que contexto que esse trabalho foi feito? Como foi esse processo?

Entre o que foi a tese de doutorado e a pesquisa sobre tortura, desenvolvi outros tipos de investigação. Fundamentalmente uma que tinha a ver com a produção de plantas transgênicas - o que poderíamos dizer [que] não tem nada a ver com tortura, mas que se conecta com a análise crítica da produção de espacialidades mediadas por relações de poder e violência. Nesse caso concreto, [tinha a ver] com uma produção específica do espaço agrícola e as consequências sociais e ecológicas que daí derivam por meio do aparecimento de uma planta transgênica. Aqui se coloca a questão da ecologia política, da produção conjunta da sociedade e da natureza, que é outra das minhas grandes preocupações.

Quanto à questão específica de como me aproximo do tema da tortura, creio que se pode entender, em primeiro lugar e como já disse, por certa sensibilidade que procuro manter para com essas relações de poder e violência e, mais especificamente, pela forma como essas relações estão inseridas nas lógicas de funcionamento do aparelho estatal e nas formas como este concebe e exerce o castigo.

Em segundo lugar, no contexto imediato do País Basco onde vivo, a prática da tortura tem sido um elemento que teve uma forte presença em consequência da resposta do Estado ao que foram as ações da organização terrorista ETA [sigla em basco para Euskadi Ta Askatasuna, ou Pátria Basca e Liberdade, em português]. Existiu uma prática, em um contexto histórico específico, que foi praticamente de tortura sistemática das pessoas que eram associadas à organização ETA, e isso é algo que no País Basco temos tido como uma realidade muito presente no cotidiano. Também não se pode esquecer que, juntamente com essa sensibilidade específica para com o que foi a situação particular do País Basco, a partir do ataque às Torres Gêmeas [do complexo empresarial do World Trade Center, em Nova York] e da crescente importância que adquiriu todo tema do securitário, nos confrontamos com uma preocupação crescente sobre a tortura na arena internacional, nos quadros daquilo que veio a se chamar de “guerra ao terror” e em que o espaço específico de Guantánamo adquiriu uma relevância muito forte. Naquele momento houve uma maior presença midiática, mas também analítica, da questão da tortura e da forma como ela poderia estar operando em contextos políticos que se associam à democracia e ao respeito pelos direitos humanos.

E, em terceiro lugar, também devo mencionar a leitura de alguns textos que foram muito importantes para mim. São textos que relatam a experiência nos campos de concentração de autores como Primo Levi ou Robert Antelme, entre outros. Textos que narraram a experiência de passar por algo tão violento e decisivo como o espaço do campo de concentração.

Penso que em certo sentido isso me marcou, por um lado, pela dureza do que aí se narra e, por outro, pela inquietação que se desencadeia ao buscar reformulações do que subjaz do campo de concentração nos contextos atuais. Repensar a própria transformação de determinada subjetividade, com todo o seu contexto social e simbólico, em um corpo nu sobre o qual pode se infligir uma violência ilimitada, mas também tendo a convicção de que isso não é algo que só ocorreu no passado, mas que é uma realidade que se plasma no presente. Questiona-se então, a partir daí, a sobrevivência da tortura no presente, as mutações que existem dentro dessa violência estatal e em seu aparato punitivo, rastreando os espaços em que ocorre a prática da tortura e as subjetividades às quais ela é mais aplicada. Aqui, em paralelo, seria necessário destacar algumas das análises teóricas sobre a destruição da subjetividade no espaço dos campos de concentração e, principalmente, as contribuições de [Giorgio] Agamben sobre a vida nua e o homo sacer. Apesar das controvérsias que a contribuição de Agamben despertou, costumo dizer que é preciso pensar com e contra Agamben ao mesmo tempo. Parece-me uma leitura fundamental para nos aprofundarmos sobre a sobrevivência e o significado da tortura hoje.

E qual é a sua avaliação geral das diretrizes da ONU sobre tortura?

Acredito que no texto das Nações Unidas sobre a tortura há três eixos principais por meio dos quais se tenta propor ou conceber o que é a prática da tortura. São eixos que podem ser interessantes em si mesmos, mas acho que também podem ser problemáticos de alguma forma. Em primeiro lugar, parece-me essencial tentar manter a relação da tortura com o aparato estatal e o aparato político-punitivo. Aqui, deve-se destacar uma dupla dimensão que tem a ver com a ação direta do Estado no que seria uma geografia da privação de liberdade, em que a prisão adquire uma relevância indiscutível; embora também seja necessário considerar outros tipos de espaços que ficam subsumidos ao aparato punitivo estatal, espaços menos formalizados, como uma viatura da polícia ou mesmo uma ação policial na própria rua, a depender de como é feita. Mas, juntamente com essa ação direta, também estou interessado no que o Estado deixa fazer; não apenas no que o Estado faz diretamente, mas no que ele consente em situações nas quais ocorre uma violação dos direitos humanos, a permissividade que pode chegar a ter com situações de violência. Acho que estas duas dimensões são importantes para levar em consideração e elas devem ser trabalhadas em conjunto: tanto o que é feito quanto o que se sabe que acontece, mas se consente, se deixa fazer. Essa dupla dimensão está ligada a questões mais teóricas, como a necropolítica - não tanto uma produção direta da morte, mas também uma produção de uma exposição à morte. Esse duplo plano de análise, em última instância, teria que ser projetado para uma etnografia da trama punitiva do Estado, para aqueles espaços mais ou menos formalizados onde se instauram ou se toleram práticas de castigo. A partir desse prisma, a forma Estado pode ir além de suas fronteiras reconhecidas e reconhecíveis.

Em segundo lugar está a questão da intencionalidade, que também me parece um elemento importante. No entanto, aqui o problema é que a intencionalidade fique reduzida a uma questão de sujeitos específicos que torturam, que têm a intenção de torturar, de produzir sofrimento. A tortura como tal é uma prática política que se refere a determinada forma de fazer e pensar, que aparece em espaços específicos e produz um tipo específico de subjetividade, que é o torturador. A trama punitiva do Estado habilita uma série de espaços que, pela forma como são concebidos e organizados, possibilitam em si mesmos a prática da tortura. Não negaria a importância da intencionalidade como tal, mas parece-me que como elemento analítico [ela] pode ser insuficiente se a questão fica reduzida apenas a um sujeito específico que tortura, que quer torturar. Diante disso, acho que seria necessário destacar como os espaços punitivos são organizados de forma a possibilitar a tortura. E isso não se refere a um sujeito específico que tortura, mas a como esse espaço é produzido e como são compreendidas as subjetividades para as quais se projeta a violência que cabe definir em termos de tortura.

Por fim, em terceiro lugar está a dimensão da gravidade, no sentido de que, conforme definido no texto das Nações Unidas, cabe pensar que existe uma espécie de gradiente de gravidade dos danos que se impõem aos sujeitos, de tal de forma que no ápice desse dano houvesse algo que correspondesse à tortura. Creio que mais uma espécie de gradiente de danos que se impõem a determinados sujeitos, parece-me mais importante e analiticamente mais preciso falar sobre o que acontece na prática da tortura, à margem do gradiente de dor que se impõe. Aqui se coloca uma questão chave: o que acontece na prática da tortura e que tipo de realidade se abre na prática da tortura? Isso é algo que no texto das Nações Unidas talvez fique superficial. Logicamente, esse é um texto que se articula em um contexto institucional e tem uma argumentação política e normativa que não corresponde a uma análise conceitual. O texto da ONU não aponta para o que realmente acontece quando se pratica tortura para além de uma escala de dor. E o que acontece na tortura, dito de uma forma muito sucinta, seria uma negação radical do cuidado, entendendo o cuidado como uma questão ontológica fundamental, por meio da qual se articula o viver e o conviver, em tramas de interdependência. A tortura se enfurece com a abertura do ser humano aos outros, atenta contra a vulnerabilidade e o faz para expor a pessoa torturada a uma dor ilimitada que não produz empatia. Essa negação radical do cuidado, da própria ontologia do humano, é o que tentei pensar sob a figura do inabitável.

A partir da perspectiva em vigor no âmbito internacional, qual perfil de pessoas estaria mais sujeito a sofrer tortura? Quais seriam os grupos mais vitimizados?

Acredito que em um contexto mais internacional existem dois grandes campos de subjetividade em que as pessoas que ali estão imersas, pela forma como são concebidas e narradas simbolicamente, estão mais sujeitas a sofrer a prática de tortura. Me parece importante levar em conta algo anterior que tem a ver com o tipo de discursos e práticas que se vão impondo. Eu enfatizaria tudo o que tem a ver com a segurança, já que isso tem se convertido em um grande discurso político por meio do qual se estrutura toda uma série de dimensões políticas, jurídicas, econômicas e simbólicas. A partir dessa primazia da segurança, que acho que está sendo amplamente banalizada, e que está sendo assumida e incorporada como hábito naturalizado e hegemônico, toda uma série de situações sociopolíticas são interpretadas em termos do risco que podem acarretar para os modelos de ordenamento político-econômico-jurídico que pretendem impor. O problema é como nos relacionamos com o sujeito que, desde a perspectiva da segurança, encarna o risco.

Creio que as grandes figuras no contexto internacional que estão atualmente associados à tortura são figuras que o discurso da segurança nomeia como ameaças. Aí nos encontramos com a figura do suspeito de ser terrorista e a figura do migrante. Eu não falaria tanto da figura do terrorista porque creio que é uma figura que foi amplificada de tal forma que não corresponde a uma lógica dicotômica amigo-inimigo; está atravessada por uma lógica de suspeita de tal modo que o inimigo não tem um contorno nítido. O inimigo é alguém que se define em termos de uma suspeita de ser um inimigo e isso amplifica e aumenta de forma perceptível o que é a figura do terrorismo. A partir dessa amplificação, é possível até mesmo produzir entrelaçamentos com a figura do migrante, de forma que o migrante possa ser lido como um potencial terrorista que transita pelos espaços. A criminalização da migração não é alheia ao discurso securitário que amplifica a figura do terrorismo.

Essas duas figuras são as que ficam submetidas, a partir de uma ótica securitária, em uma narrativa de desprezo e indiferença, ao que eu tenho chamado de torturabilidade. O desprezo e a indiferença são elementos determinantes porque possibilitam a prática da violência, o fato de que haja uma negação radical do cuidado e uma violência que se pode infligir sem que apareça uma lógica de reconhecimento que atuaria como freio para a imposição da violência. Quando o outro está ligado à ameaça, ao desprezo, quando o reconhecimento desaparece, o sofrimento muito frequentemente pode ser causado sem que tenha limites que nele gerem um curto-circuito. O modo em que se ativam relações de poder e violência específicos desde uma ótica securitária com respeito a essas subjetividades ameaçadoras é o que venho trabalhando despois de acabar o livro sobre tortura.

Quais elementos ajudam a configurar a omissão estatal como uma prática de tortura?

Eu ressaltaria fundamentalmente o que é a dimensão simbólica das pessoas que são torturadas. Quer dizer, a tortura, como eu disse antes, está completamente ligada a um discurso da torturabilidade. A prática da tortura não é compreendida no seu exercício a menos que consideremos que há uma série de pessoas, de subjetividades, que pelo que são - nem tanto pelo que fizeram ou pelo que poderiam fazer - se definem como torturáveis. O fato de serem definidas como torturáveis significa que estão subsumidas a uma lógica de desprezo, de indiferença e, consequentemente, o sofrimento que se projeta sobre elas não é mais um sofrimento que afeta ou desafia a maquinaria de poder que tortura. Com a suposição da torturabilidade, dessas narrativas prévias que desprezam e animalizam algumas subjetividades, o próprio exercício da tortura torna-se insensível para quem assume a tortura; já não se sente o sofrimento produzido como um dano inaceitável, mas sim como castigo que deve ser imposto.

É nesse sentido que eu acho que o aparato punitivo estatal possibilita a prática da tortura com respeito a um determinado tipo de subjetividade. Creio que a implementação de toda uma série de mecanismos, como os de controle policial, responsabilização, vigilância nas instituições prisionais - em última análise, mecanismos que podem operar em diferentes níveis para impedir o exercício da violência -, é completamente necessária. Mas por si só eles não são suficientes, sempre pode haver maneiras de se esquivar desses mecanismos de controle. O elemento fundamental que está por trás de toda a problemática da tortura é uma lógica simbólica da negação do reconhecimento de uma série de pessoas, e nesse sentido creio que a crítica à tortura passa por duas grandes dimensões. Uma que é colocar em questão, de forma radical, o fato de que não se pode haver um discurso de torturabilidade, um discurso no qual haja uma negação radical desse tipo de subjetividades. E essa negação deve ocorrer logicamente, independentemente das circunstâncias específicas nas quais estão imersas essas subjetividades que foram localizadas dentro de uma narrativa de desprezo. Junto com a crítica incondicional da tortura, em qualquer circunstância, e ativando os mecanismos necessários para que ela não aconteça e para detectar quando acontece, deve ser feito um trabalho prévio que passa por minar o discurso da torturabilidade de determinadas subjetividades. Ninguém pode ser torturável. A outra dimensão passa pela ativação de mecanismos de controle eficazes.

Há todo um trabalho para fazer manifesta a lógica de crueldade que assume o Estado, um trabalho prévio, de corte mais simbólico, que assuma que a tortura como prática punitiva é inaceitável em qualquer tipo de situação e com qualquer tipo de subjetividade. Há uma discussão prévia que é mais de caráter simbólico, que tem a ver mais com como nos relacionamos com o sofrimento que se pode causar em um sujeito e como não podemos assumir uma prática de produzir sofrimento nos sujeitos, sejam quais forem as circunstâncias nas quais estejam imersos. E, ao lado disso, em paralelo, estaria essa outra dimensão que passa por ativar práticas concretas de controle da ação punitiva, seja qual for a geografia em que ela se impõe, com o fim de que, pelo modo como está regulado e supervisionado o espaço punitivo, se dificulte e, em última instância, se erradique a possibilidade mesmo da prática da tortura. Essas duas dimensões, a simbólica que aponta o reconhecimento e a procedimental que regula a punição, deveriam ir de forma conjunta. De fato, se não se fazem de forma conjunta, dificilmente podemos chegar a articular um cenário em que se erradique a tortura.

Você poderia nos dar exemplos de quais práticas sistemáticas de tortura são aplicadas a esses sujeitos torturáveis, como os imigrantes, por exemplo, considerando as situações de tortura como frutos de ações e omissões do Estado?

Creio que em relação a isso há também um elemento que é interessante, no sentido de que há muitas análises que se concentraram no que é a geografia da privação de liberdade administrada pelo Estado. Ou seja, uma geografia formalizada da privação de liberdade, na qual existem instituições muito concretas, como uma delegacia de polícia, uma prisão, uma viatura policial, entre outras. Essa análise crítica é muito interessante, mas também é necessário colocá-la em relação com espaços nos quais não haveria uma formalização institucionalizada dessa geografia punitiva em que se projeta a violência do Estado.

Digo isso porque tem a ver, por exemplo, com a questão dos migrantes e com o fato de como estão conformados os regimes de mobilidade que estabelecem uma hierarquia de mobilidade, em que se diz quem pode se mover e quem não pode. O fato de que um migrante para se deslocar tenha que optar por um percurso de deslocamento potencialmente longo e perigoso, no qual existem práticas de assédio policial ou militar, já se revela como uma punição antecipada que se projeta sobre subjetividades que se encontram em situação de uma espécie de ilegalidade antecipada. O castigo se projeta no próprio corpo do migrante, mesmo que não esteja detido em uma geografia de privação de liberdade formalizada. Em seu caminho, sofrerá violências simbólicas e físicas.

É necessário tentar repensar os imaginários da tortura e sair da imagem da prisão e da delegacia como espaços predominantes da tortura. Não quero negar de maneira nenhuma a importância da prisão, da delegacia e desses espaços nos quais muitas vezes ocorrem situações muito claras de prática de tortura, mas é necessário fazer um esforço de se abrir a outros tipos de espaços punitivos nos quais estão acontecendo violências. Entendo que se trata de um debate complexo, mas seria necessário pensar se existem situações alheias àquela geografia punitiva formalizada que, pelo que nelas acontece, podem ser classificadas em termos de tortura. A análise do trânsito de migrantes, por todas as dificuldades que implica, porque se produzem nesses termos em função do discurso securitário, das condições que impõem o discurso securitário, desencadeia situações que creio que não são alheias à tortura. Nos encontramos aqui com todo o debate em torno da necropolítica, essa produção da morte que se associa intimamente ao discurso securitário e que não passa em grande parte por uma produção de morte direta, mas sim por uma produção recorrente de exposição à morte. Existem elementos aqui que estão intimamente ligados à prática da tortura. Em outras palavras, dado o fato de que muitos migrantes morrem, podemos ficar com uma mera contabilidade dessas mortes que por vezes são visíveis e muitas vezes não são, que não chegam sequer a ser contadas, mas também temos que levar em conta que antes que uma pessoa morra, ela está morrendo e está experimentando uma situação em que há sofrimento intenso; ali já se percebe e se sente a possibilidade iminente da morte.

Não creio que a produção dessa situação impregnada pelo securitário seja alheia à tortura. Não temos por que ignorá-la nas análises das práticas estatais de tortura, nem por que ficarmos apenas com as estatísticas ou necroestatísticas das pessoas que morrem no trânsito migratório. Que uma pessoa morra no deserto de Sonora tentando ir para os EUA, ou que uma pessoa morra no Mediterrâneo tentando chegar à Europa, acho que é uma experiência muito intensa e dolorosa que pode ser classificada em termos de tortura porque é uma consequência concreta de um fazer estatal. Teríamos também que levar em consideração, neste caso específico da Europa, as relações que se estabelecem com outros países no decurso do processo de externalização das fronteiras; as relações com os países do norte da África, no sentido de que há uma tentativa de levar as fronteiras europeias para o norte da África, e que sejam países do norte da África, como Marrocos ou a Líbia, que atuem como policiais ou Estados policiais por meio dos quais se tenta conter o trânsito migratório. O que é relevante aí é que atualmente esses Estados, no que se refere à detenção e perseguição à população migrante em trânsito, estão ativando situações que podem ser classificadas como tortura. O que acontece então é muito grave, porque se desencadeia uma convivência com a tortura. O discurso securitário tem uma convivência com a tortura porque assume, por um lado, as torturas que ocorrem em outros espaços, mas que estão em relação com a própria externalização das fronteiras e, por outro, novamente, porque se presume que o imigrante é um sujeito potencialmente torturável, um sujeito racializado, potencialmente perigoso, a quem se pode tratar com indiferença. Interesso-me muito por esses espaços que muitas vezes ficam fora do que é a geografia punitiva formalizada do Estado e pelos quais há uma produção recorrente de sofrimento para uma série de subjetividades. A partir daí, também teríamos que abordar a biopolítica e a necropolítica do securitário como uma estrutura narrativa fundamental a partir da qual se governa o ordenamento das sociedades.

Em que medida a visão internacional sobre a tortura impacta os processos de responsabilização e justiça?

O problema relacionado a essa questão, se nos referirmos novamente às figuras do sujeito migrante e do suspeito de terrorismo, é que nos deparamos com o fato de que essa produção de violência se ancora na impunidade. Ou seja, a segurança e a carga violenta desencadeada por ela se banalizam, pois são assumidas como parte constitutiva de um ordenamento político. A consequência que nos deixa esse cenário é que não há prestação de contas da violência perpetrada em relação ao sofrimento e às mortes ativadas pelo discurso securitário, relativo à gestão da mobilidade dos migrantes. Do mesmo modo, não há prestação de contas sobre as pessoas que foram mortas nessa guerra contínua, mais ou menos intensa, contra o terror, contra o que está definido em termos de terrorismo. Isso é facilmente observável no crescimento do uso de drones militares, por meio dos quais é operada uma redefinição das formas de conceber e exercer a guerra e em cujo curso ocorrem milhares de mortes, mais ou menos silenciadas, que permanecem subsumidas a uma lógica de absoluta impunidade. São danos colaterais de uma guerra que não é tão cirúrgica como se apresenta a si mesma. Teríamos de nos perguntar - e há relatórios nesse sentido que indicam haver pessoas em espaços onde a ameaça de ser atacado é relativamente contínua - o que supõe viver num local onde o risco de morrer está estendido sobre o território de um modo cotidiano. Essa situação foi classificada como tortura por alguns atores. Entendo que isso é parte de um processo conceitual e político, no qual se pode repensar as práticas e imaginários acerca da tortura, relacionados às geografias abertas do punitivo sobre o qual falávamos antes. Em qualquer caso, nessas situações necropolíticas ligadas ao migrante e ao suspeito de terrorismo, nessas situações de morte direta e de exposição à morte, nas quais são criados espaços inabitáveis, é produzido um intenso sofrimento que permanece impune. E isso nada mais é do que um reflexo do fato de essas subjetividades estarem imersas na narrativa da torturabilidade.

Quais são os limites e as possibilidades de se pensar um conceito de tortura que envolva reparações, cuidados e medidas preventivas?

O limite fundamental radica em como pensamos criticamente, em como construímos uma reflexão que assume um componente analítico em torno do que é tortura, mas lembrando que isso não pode se desligar de uma dimensão política problematizadora de contextos sócio-históricos nos quais habitamos e que possibilitam, pela própria banalização do securitário, a aparição da tortura. Por isso, a questão de fundo, que creio ser importante ter como cerne, tem a ver com o fato de como o ordenamento punitivo, normativo e político assume a violência. E como a violência, nesse sentido, não é necessariamente algo à margem do direito, já que é parte constitutiva dele. Ou seja, a violência é uma engrenagem da maquinaria do direito que permite gerir uma série de espaços e uma série de subjetividades. Essa realidade pode ser facilmente encontrada, por exemplo, nos casos de tortura em que se impõe o castigo de isolamento durante um período prolongado. A prática punitiva de isolamento tem sido considerada como tortura, mas pode estar contemplada em determinadas circunstâncias em códigos penais. A tortura, aqui, é assumida e, assim, legalizada.

A questão da reparação deve adotar, como passo anterior, a radical inaceitabilidade da imposição da violência como parte constitutiva de uma engrenagem jurídica, política, econômica e simbólica. Isso exige problematizar o contexto político-simbólico que habitamos; livrar-nos, por exemplo, de todo o racismo implícito e institucionalizado que prevalece na relação securitária com aqueles outros-ameaçadores e racializados, encarnados nas figuras do migrante e do suspeito de terrorismo. Todas as medidas preventivas que podem ser instauradas em termos de controle, prestação de contas e exigências de responsabilidade requerem nos distanciarmos da desumanização a que os outros-ameaçadores são submetidos e, com isso, assumir a potência de seu discurso quando narram seu sofrimento.

E quais são os caminhos de pesquisa que você está trilhando atualmente?

Minhas últimas linhas de trabalho estão centradas na análise de um regime de poder móvel, flutuante, de profundo caráter securitário, que se desenvolve para fazer frente ao que fica definido em termos de ameaça. Isso tem relação com a externalização das fronteiras, com as reconfigurações por meio das quais se recompõem o bélico. Partindo das análises de [Grégoire] Chamayou sobre o poder cinegético, desenvolvendo questões apontadas pelo autor, mas que creio merecerem maior reflexão, procurei revelar as engrenagens constitutivas de um saber-poder cinegético. É um poder estruturado em termos de dispositivos de caça, ativando sistemas de vigilância para escrutinar os espaços e os percursos pelos quais transitam as pessoas definidas como ameaças ou presas, como as que compõem as subjetividades do migrante ou do sujeito suspeito de terrorismo. É um poder imunológico que afirma nos proteger. A imagem da caça atua como uma sorte de reservatório metafórico em que nos encontramos com os indícios, os rastros, as caçadas, as peças, as fugas etc. A partir dessa rede semântica é possível expor o modus operandi de um emaranhado de formas de fazer e pensar que permanecem englobadas dentro da imagem do cinegético. Uma maneira de proceder que detecta ameaças e ativa práticas para gerir essas ameaças. Assim nos encontramos com formas diversas que têm relação com a eliminação, a detenção ou a expulsão. Às vezes, esses jeitos de proceder funcionam de modo diferenciado, às vezes se sobrepõem.

O saber-poder cinegético pretende ser outra abordagem do securitário, por meio da articulação de um marco narrativo amplo que permite relacionar situações específicas que nada mais são do que exemplificações diversas de uma mesma realidade. O sujeito migrante e o suspeito de terrorismo formam parte dessa nebulosa tremendamente perniciosa que cria o securitário em torno da ameaça, com o agravante de que o securitário não só gerencia essas supostas ameaças de forma violenta, como também é parte constitutiva de sua criação. O desafio é desmontar política e teoricamente a arquitetura que dá suporte ao securitário. Deixar de reproduzir o que o securitário nos obriga a pensar e a sentir. Isso nos abre para outros sentidos.

Para finalizar, gostaríamos de saber como você analisa o momento atual no âmbito político internacional. Como você compreende o contexto pandêmico, este momento histórico sem precedentes?

As pandemias funcionam, ao menos em parte, como reflexos da sociedade, tanto na forma como são produzidas suas condições de possibilidade, quanto na maneira como, a partir de diversas esferas, são geridos os problemas que desencadeiam. Com esta pandemia, poderíamos dizer que fomos imersos subitamente em um devir-viral que alterou as lógicas de funcionamento das coisas. Em alguns casos são suspensas ou restritas as ações, como a mobilidade; em outros, as coisas são aceleradas, como o uso e consumo de tudo o que é digital. Mas não tem nada que fique à margem desse devir-viral. Não há um “fora” do coronavírus.

Para além dos discursos que, por vezes, eram escutados no início da pandemia, que indicavam uma mudança profunda de hábitos, impulsionada pelo confinamento generalizado, cujo efeito seria ativar lógicas sociais mais solidárias e igualitárias, o que o devir pandêmico nos deixa, em grande medida, é o reforço daquelas lógicas de poder produtoras de desigualdades. O vírus atravessa os espaços e os corpos. É um socio-vírus que reorganiza as relações, modifica as distâncias e os hábitos. Certamente, ocorreu uma reativação de lógicas solidárias, mas também é nítido que o neoliberalismo acompanha essa reconfiguração de relações e afeta o próprio devir-pandêmico, pelo modo em que foi criando nas últimas décadas uma infinidade de precarizações. Ou seja, não é o mesmo se os espaços, por exemplo, já estão atravessados por um fazer neoliberal que mina a potência de um sistema público de saúde generalizado ou se esses corpos habitam locais precários que dificultam a manutenção de medidas de proteção contra a doença. O aumento da precarização social e sanitária reforça a expansão do vírus. Creio não ser possível seguir falando de situações de vulnerabilidade sem citar os processos sociais que produzem essa vulnerabilidade, sem expor criticamente os modos de produção de vidas precarizadas que têm menos possibilidades de fazer frente às consequências sociais e sanitárias trazidas pelo vírus.

A pandemia nos interpela, com toda a sua crueza, mostrando-nos a necessidade de um reforço do público em diferentes níveis, mostrando-nos que não pode alterar ecossistemas sem arriscarmos que vírus que permaneciam isolados saltem ao mundo humano. A pandemia é um espelho de um fazer mundo neoliberal. E não se trata de cair no pessimismo ao se afirmar que o fazer neoliberal se manterá. Trata-se de manter a crítica, de organizar o pessimismo, como dito por Walter Benjamin; de acompanhar as iniciativas solidárias de reforço do comum, de não mercantilizar a natureza, de reforçar a saúde pública universal.

Do mesmo modo que falávamos antes sobre a falta de empatia ante o sofrimento que se projeta sobre determinadas subjetividades, a pandemia constitui outra situação que nos interpela, no sentido de que há ações que desencadeiam um fortalecimento do devir-viral e, com ele, um aumento de mortes e sofrimento. A forma como a pandemia é gerida é também uma maneira de como nos situamos em uma interdependência viral que é global. O que se faz e o que não se faz para impedir o avanço do vírus? Aqui pode haver espaço para empatia em relação a uma multiplicidade de situações, mas também pode ganhar terreno o neoliberalismo das grandes farmacêuticas.

Neste mundo neoliberal, que tem projetado o fronteiriço ao núcleo mesmo das políticas securitárias, um dos desafios que teríamos que nos impor quando a crise pandêmica arrefecer, mas também na própria gestão da pandemia, é repensar as fronteiras, as distâncias sociais e físicas, tecidas e consolidadas pelas desigualdades. Voltar a sentir os outros corpos, mas também sentir como violência, a violência que o neoliberalismo não deixa de produzir.

Referências

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  • DUARTE, Thais Lemos; JESUS, Maria Gorete Marques de. “Prevenção à tortura: uma mera questão de oportunidade aos mecanismos latino-americanos?”. Revista Direitos Humanos e Democracia, vol. 8, n. 15, pp. 134-152, 2020.
  • GODOI, Rafael. “Tortura difusa e continuada”. In: MALLART, Fábio; GODOI, Rafael (orgs). BR 111: A rota das prisões brasileiras. São Paulo: Veneta, 2017, pp. 117-126.
  • MENDIOLA, Ignacio. Habitar lo inhabitable: La práctica político-punitiva de la tortura. Barcelona: Bellaterra, 2014.
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  • SALLA, Fernando A.; CARDIA, Nancy. “Um panorama da tortura no Brasil”. In: CARDIA, Nancy; ASTOLFI, Roberta (org). Tortura na era dos direitos humanos. São Paulo: Edusp, 2014, pp. 315-358.
  • TEIXEIRA, Alessandra. Prisões da exceção: Política penal e penitenciária no Brasil contemporâneo. São Paulo: Juruá, 2009.
  • 1
    O OPCAT constituiu um sistema de inspeções sem aviso prévio a espaços de privação de liberdade, operacionalizado pelo Subcomitê de Prevenção à Tortura (SPT) e por Mecanismos Preventivos Nacionais. Ver também a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, publicada pela ONU em 1984.
  • 2
    Disponível (on-line) em: https://www.youtube.com/watch?v=4pD_GUXJQ80
  • 3
    O contato com Mendiola foi mediado por Dario Malventi, a quem registramos nossos sinceros agradecimentos.
  • 4
    A entrevista aconteceu em 21 de abril de 2021. Foi transcrita com o auxílio de Adriana Urbina e traduzida pelos entrevistadores Rafael Godoi, Thais Duarte e Maria Gorete M. de Jesus. Agradecemos também a revisão parcial de Efraín García Sanchez.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2021
  • Aceito
    16 Jun 2021
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