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‘Pra eles verem que nós somos ruim’: Violência extrema no mercado de drogas no Rio Grande do Sul

Resumos

Este artigo procura entender por que facções e seus sujeitos envolvidos no mercado de drogas gaúcho recorreram à violência extrema, entre 2016 e 2018. Com base em notícias de jornal, grupos focais e entrevistas narrativas com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação, concluiu-se que o emprego de violência extrema constituiu um instrumento essencial na estratégia de expansão dos embolamentos no mercado de droga no estado. O uso da violência como fim principal da ação aprofundou o envolvimento dos sujeitos na “guerra”, apontando para um padrão de sociabilidade, com códigos de solidariedade internos aos grupos.

Palavras-chave:
violência extrema; tráfico de drogas; mercados ilícitos; facções; juventude


“So They Can See How Bad We Are”: Extreme Violence in Rio Grande Do Sul’s Drug Market seeks to understand why factions and the individuals involved in the Rio Grande do Sul drug market resorted to extreme violence between 2016 and 2018. We concluded that the use of extreme violence was an essential instrument in the strategy of expansion of criminal groups in the drug market in the state. The use of violence as the main purpose of the action deepened the involvement of the subjects in the “war”, pointing to a pattern of sociability, with codes of solidarity internal to the groups.

Keywords:
extreme violence; drug trafficking; illicit market; criminal groups; youth


Introdução

Entre 2016 e 2018 um fenômeno relacionado aos crimes de tráfico de entorpecentes operado por organizações criminosas se destacou em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, e em sua região metropolitana: as mortes por esquartejamento, decapitação e alvejamento deixaram de ser exceção e ganharam protagonismo. Conforme noticiado na imprensa local, em 2016 houve na região 16 decapitações e 15 chacinas que vitimaram ao menos 50 pessoas. Apenas nos primeiros dois meses de 2017 foram nove casos de esquartejamentos. De janeiro a maio de 2018 registrou-se na capital do estado a média de um esquartejamento por mês (ZERO HORA, 10/01/2017ZERO HORA. “16 decapitações, 1 inquérito concluído”. Zero Hora, 10 jan. 2017, p. 19., 16/02/2017ZERO HORA. “Policiais se especializam para apurar decapitações”. Zero Hora, 16 fev. 2017, p. 19.; DIÁRIO GAÚCHO, 22/05/2018DIÁRIO GAÚCHO. “Porto Alegre teve um esquartejamento por mês em 2018”. Diário Gaúcho, 22 maio 2018.).

Essa diferenciação qualitativa de um conjunto importante de episódios de violência letal veio acompanhada de um ápice nas taxas de homicídios de Porto Alegre, que saltou de 44 para 52,9 homicídios por 100 mil habitantes (FBSP, 2017FBPS. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017. Fórum Brasileiro De Segurança Pública (FBSP), 2017., 2019FBPS. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Fórum Brasileiro De Segurança Pública (FBPS), 2019.). À época, especialistas da segurança pública, autoridades policiais e imprensa formaram um consenso de que os eventos decorriam das disputas entre grupos criminosos pelo predomínio no mercado das drogas em certas localidades da cidade.

O objetivo deste artigo é apresentar algumas explicações para as mortes com uso do que chamamos de violência extrema: esquartejamentos, decapitações e alvejamentos, assim como o aumento do número de chacinas na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA) e na capital, perpetradas por facções do tráfico de drogas que operam no estado. Partimos do pressuposto de que essas práticas configuraram novas maneiras de mediar os conflitos entre grupos ligados ao tráfico de drogas que, como consequência, produziram novas formas de sociabilidade entre os jovens que faziam parte desses grupos.

Como ponto de partida, o termo violência extrema também pode ser entendido como sinônimo para mortes com características de crueldade, denominação utilizada por parte da literatura para designar atos cometidos por meio da violência exacerbada, que causa sofrimento à vítima e cuja justificativa não é evidente (BARREIRA, 2015BARREIRA, César. “Crueldade: A face inesperada da violência difusa”. Sociedade e Estado, vol. 30, n. 1, pp. 55-74, 2015.). Os resultados da pesquisa buscam enfatizar um conjunto específico de episódios de violência letal que estamos chamando genericamente de violência extrema e que se aproximam do conceito cunhado pela autora mexicana Sayak Valencia (2010)VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. Madri: Melusina, 2010. de “violência gore”. Para a autora, assim como nos filmes do gênero1 1 Gore é um subgênero cinematográfico de filmes de horror caracterizado pela presença de cenas extremamente violentas, com muito sangue, vísceras e restos mortais de humanos ou animais. Para ilustrar, o gênero terror gore pode ser representado pelo filme italiano Holocausto Canibal, do diretor Ruggero Deodato, de 1980. , nas práticas gore há uma teatralização da violência, um excesso de derramamento de sangue e uma exposição visceral do corpo (Ibid., p. 24). Retomaremos adiante essa perspectiva para afirmar a possibilidade de utilizá-la como lente teórica para o fenômeno social em análise.

As categorias nativas utilizadas neste artigo para definir os grupos praticantes de tal violência são quase sempre embolamento ou facção2 2 Nesse sentido, coaduna-se com a crítica de Paiva quanto aos limites da categoria nativa facção, mas parte-se dela para trabalhar a ideia um “coletivo constituído por associações, relacionamentos, aproximações, conflitos e distâncias necessárias entre pessoas comprometidas em fazer o crime, desenvolvendo relações afetivas profundas, laços sociais elaborados como os de família, e um sentimento de pertença desenvolvido pela crença em determinadas orientações políticas e éticas que a sustentam” (PAIVA, 2019, p. 170). . A primeira é bastante característica das dinâmicas dos grupos da região: não se trata de um agrupamento coeso e hierárquico, mas de grupos embolados entre si, em relações dinâmicas e provisórias3 3 Cipriani (2019, p. 20) entende os embolamentos como “frente de alianças” ou ainda como “termo utilizado para se referir às relações internas a um grupo ou à aliança entre diferentes grupos (p. 98)”. . Definimos embolamento como um conjunto de relações entre sujeitos reunidos para comercializar drogas ilícitas em um determinado território. Trata-se de um ente que emerge da interação entre os sujeitos embolados, ganha nome e “personalidade” própria, de modo que é possível pensar no grupo como uma estrutura social com relativa autonomia e especificidades que extrapolam o somatório das características individuais dos sujeitos que a integram.

O artigo é baseado em uma pesquisa realizada em Porto Alegre, entre 2018 e 2019, por meio da combinação de três técnicas. A primeira foi a análise documental do material midiático publicado entre janeiro de 2016 e dezembro de 2018 em dois jornais regionais, Zero Hora e Diário Gaúcho, a respeito das dinâmicas do tráfico de drogas local4 4 O levantamento foi feito no Centro de Documentação do Grupo RBS, conglomerado midiático que publica e comercializa os periódicos. A busca foi feita utilizando-se as palavras-chave “facções” e “violência” e, após a filtragem das notícias que não se relacionavam com o tema da pesquisa, chegou-se a um total de 127 páginas em formato PDF com notícias sobre as facções criminosas que operam na capital. . A análise das notícias permitiu a reconstrução histórica dos conflitos com uso de extrema violência entre os embolamentos do estado.

A segunda técnica foi a realização de grupos focais com adolescentes vinculados às facções do tráfico de drogas e internados em uma Unidade Socioeducativa da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase/RS)5 5 A pesquisa observou os procedimentos internos para a realização de pesquisas na instituição, tendo sido aprovada em observância da resolução no 004/2017 da Fase e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) (CEP-UFRGS). Ela está registrada na Plataforma Brasil sob parecer no 14306719.0.0000.5347. Além disso, outros procedimentos foram utilizados visando à garantia ética da pesquisa, como a troca dos nomes dos interlocutores para garantir o anonimato e a obtenção de assinaturas de Termos de Consentimento Livre e Esclarecido e Termos de Assentimento pelos adolescentes e seus responsáveis. . Os grupos contaram com dez adolescentes, divididos em dois grupos compostos por quatro e seis participantes. A seleção e divisão dos adolescentes levou em consideração o nível do envolvimento com os grupos criminais e a maneira como eles já estavam divididos no interior da unidade. O método foi utilizado a fim de compreender como as redes sociais poderiam estar relacionadas com a violência no contexto dos conflitos entre facções em Porto Alegre e na RMPA.

As discussões nos grupos focais se deram em torno do tema “redes sociais e violência” por duas razões principais. A primeira foi a emergência, durante o campo exploratório, de relatos a respeito da importância que as mensagens de WhatsApp e os perfis do Facebook tiveram na dinâmica das facções do tráfico durante o período entendido como guerra. A segunda razão foi a opção por um tema que apenas tangenciasse a questão da “violência do tráfico de drogas”, deixando para os adolescentes a escolha de como gostariam de adentrar na temática.

Finalmente, entrevistamos quatro dos adolescentes internos da Fase/RS que participaram dos grupos focais, utilizando a técnica de entrevistas narrativas individuais do tipo “trajetórias de vida”, nas quais o sujeito narra suas experiências de vida no contexto da entrevista de história oral (SANTOS, VOLTER e WELLER, 2014SANTOS, Hermílio; VOLTER, Bettina; WELLER, Wivian. “Teorias e métodos”. Civitas, vol. 14, n. 2, pp. 199-203, 2014., p. 200).

O material coletado nos dois periódicos indicou maior ocorrência de mortes por alvejamento, esquartejamento e decapitação, em um contexto nomeado pela mídia local como de disseminação da “brutalidade na capital” (ZERO HORA, 08/08/2016ZERO HORA. “Autor de mutilação é procurado na capital”. Zero Hora, 8 ago. 2016, p. 19.). Duas características permitem tratar essas distintas manifestações da violência extrema como parte de um mesmo fenômeno social: a visibilidade das mortes e o alvo da violência centrado no corpo e na individualidade de um sujeito embolado em uma facção rival (o chamado contra). Conforme será desenvolvido ao longo do artigo, a segunda característica se transformou no momento mais recente da guerra, quando os atentados passaram a ser a tática principal.

Já a visibilidade das mortes mantém-se como elemento que perpassa todo o período analisado, possibilitando um primeiro questionamento de fundo: por que os envolvidos6 6 Para designar a unidade de análise sujeito, optamos por respeitar a forma como os próprios jovens se identificavam. Todos eles, ao se referirem às suas práticas no “mundo do crime”, o fizeram pela autodesignação como envolvidos. Nessa mesma linha, Cecchetto, Muniz e Monteiro (2018, p. 108) apresentam a ideia de uma “economia do envolvimento”, estabelecendo uma nova gramática para falar sobre os sujeitos do “mundo do crime” que abdica das noções mais difundidas de “bandido” (ZALUAR, 2010) e “vagabundo” (MISSE, 1999) em nome da ideia de envolvido, um adjetivo com maior grau de ambiguidade e abrangência. decidiram tornar a violência visível se, ao fazê-lo, atraíram maior atenção das forças policiais, correndo o risco de prejudicar os negócios?

Antes de discutir os resultados da pesquisa, articularemos o arcabouço teórico que fundamenta as análises e retomaremos algumas produções sobre mercados ilícitos das drogas nos campos da sociologia e da antropologia. Em seguida, apresentaremos um panorama geral da constituição das facções gaúchas, explicitando os conflitos que levaram à escalada da violência extrema no período em análise e contextualizando os três principais embolamentos do estado. Discutiremos então quais foram e por que surgiram, entre 2016 e 2018, o que estamos chamando de novas formas de matar, além do papel que o aplicativo de mensagens WhatsApp e a rede social Facebook tiveram na efetivação dessas práticas. Por fim, analisaremos as justificativas apresentadas pelos envolvidos para os comportamentos violentos e os significados exteriorizados a partir delas.

Ao final do texto, esperamos ter mostrado como as facções encadearam suas estratégias de ação tomando como referência a possibilidade de transformação da violência letal extrema em capital econômico, valendo-se, para isso, do aspecto simbólico contido nesse tipo de violência e da construção de uma sociabilidade violenta coletiva (MACHADO, 2004; GRILLO, 2019GRILLO, Carolina Christoph. “Da violência urbana à guerra: Repensando a sociabilidade violenta”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1, p. 62-92, 2019.). Como resultado, vislumbramos um cenário de reafirmação do poder dos agentes perpetradores da violência — que, com isso, aumentam seus lucros (VALENCIA, 2010VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. Madri: Melusina, 2010.) — e de aprofundamento da adesão dos envolvidos à sociabilidade que emerge nesse contexto de violência urbana extrema.

Mercados ilícitos, capitalismo ‘gore’ e sociabilidade violenta

Por meio da teoria proposta pela filósofa mexicana Sayak Valencia (2010VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. Madri: Melusina, 2010., 2012VALENCIA, Sayak. “Capitalismo Gore y necropolítica en México Contemporáneo”. Relaciones Internacionales, vol. 19, pp. 83-103, 2012.), propomos uma perspectiva mais global do tráfico de drogas e de sua compreensão como vetor de produção de violência extrema nos países em desenvolvimento. Em articulação, a análise do fenômeno se guia também pela teoria da sociabilidade violenta desenvolvida por Machado da Silva (2004MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. “Sociabilidade violenta: Por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano”. Sociedade e Estado, vol. 19, n. 1, pp. 53-84, 2004., 2008MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio (org). Vida sob cerco: Violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008., 2010MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. “‘Violência urbana’, segurança pública e favelas: O caso do Rio de Janeiro atual”. Cadernos CRH, vol. 23, n. 59, pp. 283-300, 2010.) a partir de observações na cidade do Rio de Janeiro na primeira década do século XXI e das reformulações dessa teoria no período mais recente (cf. GRILLO, 2019GRILLO, Carolina Christoph. “Da violência urbana à guerra: Repensando a sociabilidade violenta”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1, p. 62-92, 2019.; WERNECK e TALONE, 2019WERNECK, Alexandre; TALONE, Vittorio. “A ‘sociabilidade violenta’ como interpretante efetivador de ações de força: Uma sugestão de encaminhamento pragmático para a hipótese de Machado da Silva”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1, pp. 24-61, 2019.).

O termo gore é utilizado por Valencia (2010)VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. Madri: Melusina, 2010. para qualificar o capitalismo, as práticas e a violência próprios do contexto do narcotráfico mexicano, e pretende traduzir uma realidade específica fortemente marcada pela violência, pelo narcotráfico e pelo necropoder7 7 Valencia é pioneira ao retomar o conceito teórico de Achille Mbembe (2014, 2018) de necropolítica para explicar a realidade específica do tráfico de drogas na América Latina. Ainda que ultrapasse os limites deste trabalho desenvolver os pormenores da teoria como gostaríamos, relembramos que a construção do conceito é uma subversão pós-colonial da célebre biopolítica foucaultiana e, em suma, prevê que a manifestação do necropoder tem três principais características: a fragmentação territorial, o acesso proibido a certas zonas e a expansão dos assentamentos (MBEMBE, 2018, p. 43). Trata-se, portanto, de uma ocupação fragmentada produzida pelo encadeamento dos poderes disciplinar, biopolítico e necropolítico. Para Valencia, o fenômeno do narcotráfico no México é uma realidade que poderia ser lida por meio dessa lente teórica. , mas inserida em um processo mais amplo de globalização, em que há um fluxo livremente permitido de drogas, violência e do capital por ele produzido (Ibid., pp. 20-21). O capitalismo gore poderia ser entendido ainda como uma luta internacional do “pós-colonialismo distópico extremo”, recolocado na ordem mundial pelo hiperconsumismo e pela obediência acrítica à ordem hegemônica masculinista (Idem, 2012, p. 89).

Nesse marco teórico compreende-se a violência e sua espetacularização como vetores em todos os campos do conhecimento e da ação. Da união dessa episteme da violência com o sistema capitalista surge, na compreensão de Valencia (2010VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. Madri: Melusina, 2010., p. 27), o chamado capitalismo gore. A autora retoma algumas questões próprias do neoliberalismo com ênfase nas exigências que o sistema impõe sobre o indivíduo, tornando-o responsável por si próprio e situando tanto o indivíduo como a governamentalidade sob uma racionalidade econômica que cria a precarização laboral e faz surgir as práticas gore. Tais práticas são executadas por sujeitos que encarnam o self-made man ao buscarem o cumprimento das regras liberais referentes aos aspectos econômicos e às imposições da masculinidade hegemônica (Ibid., p. 30).

Ao fim e ao cabo, os conflitos entre os grupos criminais da droga seriam, segundo a teoria, lutas pelo necropoder, por meio das quais os “vencedores” se liberariam do controle estatal e maximizariam seus lucros (ESTÉVEZ, 2017ESTÉVEZ, Ariadna. “La gubernamentalización necropolítica del Estado y la masculindiad hegemónica: Dislocación y recomposición ontológica de los derechos humanos”. Derecho y Crítica Social, vol. 3, n. 1, pp. 45-74, 2017., p. 81). Talvez a grande inovação de Valencia (2010)VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. Madri: Melusina, 2010. tenha sido perceber que, no caso dos países do chamado Terceiro Mundo impactados pelo mercado da droga e da violência, são os próprios indivíduos assujeitados pelo Estado os responsáveis por efetivar boa parte das estratégias da necropolítica.

Na visão da autora, a crise econômica da década de 1980 no continente latino-americano, em conjunto com as políticas de desregulação dos mercados, a ineficiência estatal e o bombardeio de informação consumista levaram ao aprofundamento da pobreza, contribuindo para alavancar a popularização da economia criminal e o uso da violência como ferramenta mercantil (Ibid., p. 36). É justamente a subversão dos processos tradicionais de trabalho, o fortalecimento do desprezo pela condição de proletariado e pela cultura laboral e a profunda socialização pelo consumo que gera as condições para o surgimento das práticas gore, entendidas como o exercício sistemático e repetido da violência mais explícita, ferramenta de enriquecimento rápido que permite tanto o custeio de bens comerciais como a conquista da valorização social (Idem, 2012, p. 82).

Para a autora, as redes criminais seriam os exemplos mais visíveis e representativos do capitalismo gore, sobretudo aquelas que se destinam ao tráfico de drogas. Trata-se de redes responsáveis por novas formas de gestão da violência, concebendo-se um tipo de organização laboral em que há divisão de tarefas entre os trabalhadores, com especial destaque para a precarização das atividades desenvolvidas pelos jovens que se colocam na linha de frente da venda de drogas (Idem, 2010, p. 100).

Na busca pela compreensão das dinâmicas sociais que constroem esse mundo das drogas e do crime no caso do Brasil, alguns cientistas sociais constituíram o que veio a ser conhecido como teoria etnográfica do crime (HIRATA e AQUINO, 2018HIRATA, Daniel; AQUINO, Jânia Perla Diógenes de. “Inserções etnográficas ao universo do crime: algumas considerações sobre pesquisas realizadas no Brasil entre 2000 e 2017”. Rev. BIB, São Paulo, n. 84, 2018, pp. 107-147, 2018., p. 113). São pioneiros os estudos de Zaluar (1985)ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: As organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1985. e Machado da Silva (1999)MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. “Criminalidade violenta: Por uma nova perspctiva de análise”. Rev. Sociol. Polít., vol. 13, pp. 115-124, 1999. sobre as práticas de violência nas favelas cariocas. Há, contudo, há uma distinção importante entre os conceitos que estão na base de suas teorias: o de revolta, em Zaluar, e o de sociabilidade violenta, em Machado.

Ao ocupar-se dos efeitos da globalização nos atores no varejo do tráfico, Zaluar (2010)ZALUAR, Alba. “Do dinheiro e dos homens no tráfico de drogas”. In: WESTPHAL, Márcia Faria; BYDLOWSKI, Cynthia Rachid (orgs). Violência e juventude. São Paulo: Hucitec, 2010, pp. 162-194. analisa os impactos da colonização das relações sociais pelo mercado, destacando a ampliação do interesse pelas formas de consumo hedonista nas práticas sociais de jovens “quadrilheiros”. Um dos paradoxos apontados pela autora é justamente o fato de o “crime-negócio”, em se tratando do tráfico de drogas, fomentar “práticas subterrâneas violentas de resolução de conflitos e de luta perene pelo controle do comércio e as posições de poder” (Ibid., p. 167). Para Zaluar, entretanto, a combinação entre pobreza, falta de emprego e marginalização social não é suficiente para entender as dinâmicas de envolvimento com o tráfico. Um componente “civilizacional” estaria faltando, na medida em que sociabilidades próprias do “mundo urbano cosmopolita e mais diversificado e menos segmentado em grupos fechados de parentesco ou localidade” (Ibid., p. 183) estariam ausentes, substituídas por um ethos guerreiro e violento por meio do qual se estabelece controle sobre seus comandados e seus territórios, “segundo as regras da reciprocidade violenta e da vingança privada pela ausência de uma instância jurídica na resolução de conflitos internos” (Idem). Trata-se de um estilo de masculinidade hiperbolizado, em expressões de prestígio e poder por meio de armas, dinheiro fácil e ações violentas e arriscadas.

Ao contrário de Zaluar, para quem o envolvimento direto com o crime e práticas violentas pode ser justificado a partir de um compartilhamento de valores pela comunidade que confere legitimidade a certas situações de uso da força física (FRANÇA, 2019FRANÇA, Márcio Abreu de. “Sociabilidade violenta como modo de orientação da conduta: Entendendo a especificidade da violência urbana brasileira contemporânea”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1, pp. 93-123, 2019., p. 112), Machado da Silva (2004)MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. “Sociabilidade violenta: Por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano”. Sociedade e Estado, vol. 19, n. 1, pp. 53-84, 2004. entende que a sociabilidade violenta destrói essas possibilidades de legitimação do uso da força. Para justificar essa afirmação, o autor sugere uma readequação do conceito de violência urbana, que passa a ser entendida como um conjunto de práticas de certa ordem social. Ou seja, trata-se de um conceito que engloba as ações entendidas como ameaças ao sentimento de segurança existencial que acompanha a vida cotidiana. Esse sentimento seria composto por duas características principais: ameaça à integridade física e ameaça à garantia patrimonial (Ibid., p. 57). A violência seria, portanto, o rompimento com a normalidade da vida cotidiana.

Na teoria de Machado da Silva, a violência urbana não é, contudo, apenas a descrição de determinadas práticas. Trata-se fundamentalmente de uma representação, de uma expressão simbólica que orienta as ações dos atores apontando-lhes modelos de conduta. Como o próprio autor sintetiza, é um “mapa” (Ibid., p. 58). Na interpretação de Werneck e Talone (2019)WERNECK, Alexandre; TALONE, Vittorio. “A ‘sociabilidade violenta’ como interpretante efetivador de ações de força: Uma sugestão de encaminhamento pragmático para a hipótese de Machado da Silva”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1, pp. 24-61, 2019. sobre o conceito, a violência urbana poderia ser entendida como representação na medida em que generaliza “a amplitude do alcance da violência criminal para todo o social” (p. 30).

Com essa percepção de ameaça generalizada à continuidade da rotina básica da vida associada à violência criminal, há uma construção fundamental para o pensamento de Machado da Silva: a mudança da linguagem dos direitos humanos para a linguagem da violência. Se antes a função do Estado era garantir a proteção social para mediar os conflitos nas relações entre os indivíduos, a partir da emergência da linguagem da violência ela passa a ser oferecer a garantia da rotina cotidiana. Trata-se de uma mediação para evitar o conflito entre “as classes” que, como consequência, acaba por evitar o próprio contato entre elas (MISSE et al., 2011MISSE, Michel; WERNECK, Alexandre; ZALUAR, Alba; LEITE, Márcia Pereira; VIEIRA, Neiva; FELTRAN, Gabriel. “Uma vida e uma obra dedicadas à favela e às ciências sociais: Entrevista comemorativa de 70 anos de Luiz Antônio Machado da Silva”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 4, n. 4, pp. 663-698, 2011., p. 686).

Diante desse cenário, há um objeto de análise específico a que Machado da Silva se volta e que, em sua visão, não constava na gramática das abordagens do tema até então, uma vez que nenhuma delas propunha um padrão de sociabilidade inédito, específico e apenas reconhecido a partir da representação da violência urbana. Esse objeto é um tipo-ideal histórico nos termos weberianos, denominado pelo autor como sociabilidade violenta, em que

a força física, com ou sem instrumentos e tecnologias que a potencializam, deixa de ser um meio de ação regulado por fins que se deseja atingir, para se transformar em um princípio de coordenação (um “regime de ação”) das práticas (MACHADO DA SILVA, 2010MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. “‘Violência urbana’, segurança pública e favelas: O caso do Rio de Janeiro atual”. Cadernos CRH, vol. 23, n. 59, pp. 283-300, 2010., p. 286).

Na medida em que essa forma de vida autônoma utiliza a força como única referência para o modo de coordenação das ações, a sociabilidade violenta, por um lado, suspende a alteridade e a produção de sentido intersubjetivo e, por outro, mantém o prolongamento das relações ao longo do tempo (Idem, 2008, p. 52). Por se tratar de um problema cujo cerne é o uso da força, a sociabilidade violenta traz em si a questão da dominação. De pronto, portanto, o conceito reverbera uma compreensão conflitualista da ideia de sociabilidade, mais próxima de uma teoria da ação em que a dominação está em disputa pelos atores (WERNECK e TALONE, 2019WERNECK, Alexandre; TALONE, Vittorio. “A ‘sociabilidade violenta’ como interpretante efetivador de ações de força: Uma sugestão de encaminhamento pragmático para a hipótese de Machado da Silva”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1, pp. 24-61, 2019., p. 37).

Pelo conjunto de características excepcionais que compõem essa forma de vida, o autor se singulariza em relação a seus colegas ao afirmar a existência de uma sociabilidade que responde a uma configuração social centrada na mudança qualitativa do uso da violência, cuja emergência se dá principalmente com o fortalecimento do tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro. A proposta teórico-metodológica de Machado da Silva é que esse novo padrão de sociabilidade consolida a emergência de uma nova ordem social, violenta por excelência.

Ainda, a fim de constatar a existência de tal padrão de sociabilidade, o autor argumenta que se deve considerar como os agentes se distribuem pelas diferentes posições hierárquicas, pois há quem seja “portador” da ordem social, há quem esteja na condição de dominado e há, ainda, as situações intermediárias (MACHADO DA SILVA, 2008MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio (org). Vida sob cerco: Violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008., p. 42). Nesse sentido, não há apenas uma forma de expressão desse padrão de sociabilidade, mas diferentes posições perante a ordem social da violência urbana, justamente porque “não se nasce portador da sociabilidade violenta” (Ibid., p. 43), mas se aprende a portá-la. Segundo o autor, para compreender esse processo

seria preciso indagar as trajetórias (ou, dito de outra maneira, o acúmulo de experiências) que podem conduzir ao engajamento nesta forma de vida, sem esquecer que antes de um ponto indefinido de cristalização, a trajetória pode ser revertida, depois retomada, etc. (Ibid., p. 42).

Instrumentaliza-se a categoria de sociabilidade violenta, na medida em que são interrogadas as justificativas para os comportamentos dos agentes da violência letal, que podem levar à compreensão dos significados culturais nelas exteriorizadas (Idem, 1999, p. 121). Se, na teoria de Machado da Silva, a mais forte incidência da sociabilidade violenta é observada nos jovens do tráfico de drogas, para que se compreendam as minúcias desse padrão de socialização seria então necessário deter-se sobre os modos de adesão dos jovens a tais redes criminosas. Esses são os desafios propostos pelo autor, conforme bem observou Grillo (2019GRILLO, Carolina Christoph. “Da violência urbana à guerra: Repensando a sociabilidade violenta”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1, p. 62-92, 2019., p. 81).

Mais recentemente, algumas reformulações sugeridas por Grillo propuseram uma nova forma de compreender a noção de sociabilidade violenta. A proposta consiste basicamente em transpor a unidade de análise do sujeito para os coletivos criminais. Para a autora, “a construção de alteridades radicais e hostis que objetificam o outro são muitas vezes procedimentos coletivos” (Ibid., p. 87), de modo que seria possível realocar a sociabilidade violenta para as radicalidades coletivamente construídas que envolvem, necessariamente, certo nível de solidariedade interna dos grupos.

Entendendo as potencialidades analíticas quando se olha para o coletivo — ou do embolamento, no caso do campo no Rio Grande do Sul —, adotamos a ideia de transpor a unidade de análise da sociabilidade violenta para os grupos criminais. Nesse sentido, se, por um lado, as normas do “mundo do crime” a que respondem os sujeitos que fazem parte dessa realidade produzem uma solidariedade interna que poderia explicar a negação da alteridade do grupo contrário, por outro, há uma racionalidade econômica que envolve as justificativas “comerciais” para o uso da força pelos grupos. Ao se articular simbólico e econômico, sujeito e estrutura, os significados da violência extrema exercida emergem das falas dos envolvidos e se tornam objeto de compreensão sociológica.

Assim, a violência extrema operou como linguagem (códigos) na relação entre grupos rivais, por meio da qual se pautaram os conflitos pelo poder sobre territórios, bocas, comandados e comunidades. Há uma dimensão simbólica no uso da violência presente nas práticas e ações dos embolamentos que opera em duas direções: na comunicação para dentro do grupo e também para fora, para os contras. Há também um caráter identitário que confere status de pertencimento, na medida em que a violência também marca os sujeitos que a ela recorrem para se afirmarem como membros desta ou daquela facção. Conforme percebido por Diógenes (2008)DIÓGENES, Glória. Cartografias da cultura e da violência: Gangues, galeras e o movimento Hip Hop. São Paulo: Annablume, 2008. em etnografias realizadas em Fortaleza, no Ceará, com grupos organizados denominados “gangues”:

Observa-se que as marcas relativas a ser de uma gangue provocam um efeito cadeia da violência que parece não ter fim. Pode-se perceber que a memória coletiva que institui a gangue parece se nutrir das inscrições, dos códigos, das marcas da violência fincadas no território-corpo da gangue e, por consonância, em cada um dos seus integrantes. O ato de matar um membro de outra gangue é respondido por todos, nesse sentido, todos mataram, todos carregam essa marca (Ibid., p. 120).

Antes, contudo, vale retomar que o modelo explicativo construído por Machado da Silva abriu caminhos para pesquisas etnográficas no campo da sociologia da violência e da antropologia do crime realizadas a partir dos anos 2000. Nesse vasto campo destacam-se os trabalhos de Feltran (2008FELTRAN, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: Um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008., 2018FELTRAN, Gabriel de Santis. Irmãos: Uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.) Hirata (2010)HIRATA, Daniel Veloso. Sobreviver na adversidade: Entre o mercado e a vida. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., Dias (2011)DIAS, Camila Caldeira Nunes. Da pulverização ao monopólio da violência: Expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011., Grillo (2013)GRILLO, Carolina Christoph. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., Lyra (2013)LYRA, Diogo. A República dos Meninos: Juventude, tráfico e virtude. Rio de Janeiro: Mauad X; Faperj, 2013. e Biondi (2014)BIONDI, Karina. Etnografia no movimento: Território, hierarquia e lei no PCC. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade de São Carlos, São Carlos, 2014., ainda que nem todos os autores articulem expressamente os conceitos machadianos. Enquanto os trabalhos de Grillo e Lyra abordam a realidade do Rio de Janeiro, os demais tratam do cenário paulista do tráfico de drogas.

Em densa investigação etnográfica realizada em uma favela na capital carioca onde atuava o Comando Vermelho (CV), Grillo (2013)GRILLO, Carolina Christoph. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. analisou as relações sociais que constituem o crime — tomado como um universo de ação e um estilo de vida — para demonstrar “as práticas por meio das quais o ‘mundo do crime’ acontece, sobrevive, se adapta e se renova” (Ibid., p. 9). O caminho analítico parte de uma análise macrossociológica centrada nas articulações do mercado ilegal com o universo pesquisado para uma análise da “pessoa-bandido”, aquele que é tanto autor como vítima do homicídio. Para a autora, a identidade individual do sujeito do crime é construída pela ação que entrelaça o ser, o ter e o fazer (Ibid., p. 227). Ao relacionar tais dimensões, Grillo se aproxima de Lyra (2013)LYRA, Diogo. A República dos Meninos: Juventude, tráfico e virtude. Rio de Janeiro: Mauad X; Faperj, 2013. quando este estabelece a importância de se compreender o fenômeno da adesão ao tráfico de drogas não como a simples satisfação de um desejo (de “ter” ou de “ser”), mas entendido “como parte de um processo singular, no qual esses mesmos desejos estão presentes, sem que, contudo, sejam considerados por si mesmos” (Ibid., p. 72).

A partir do material empírico produzido na interação com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de semiliberdade no Rio de Janeiro, o autor desenvolveu a categoria “sujeito-homem”, que se caracteriza pela condição de respeito, independência e aceitação por parte daquele que, apesar de jovem, desempenha papeis adultos na comunidade em que vive (Ibid.). Essa importante categoria permite compreender o “processo de adesão” ao tráfico de drogas (Ibid., p. 91).

Grillo (2013GRILLO, Carolina Christoph. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., p. 253), por outro lado, relativiza essa ideia de autonomia do sujeito bandido, afirmando que em grande parte dos casos há uma negação da subjetividade individual em favor das referências do coletivo facção. Ao contrário das perspectivas que identificam o mercado ilegal de drogas como elemento produtor de individualismo (cf. ZALUAR, 1994ZALUAR, Alba. Condomínio do diabo. Rio de Janeiro: Revan: EdUerj, 1994.; MACHADO DA SILVA, 1999MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. “Criminalidade violenta: Por uma nova perspctiva de análise”. Rev. Sociol. Polít., vol. 13, pp. 115-124, 1999.), a autora observa que, na medida em que as “pessoas-criminais” não objetificam apenas o outro, mas a si próprias, transformam-se “ora em instrumentos de uma ‘certa’ organização criminosa, ora em equivalentes de objetos capazes de englobar as suas pessoalidades” (como as armas, por exemplo) (GRILLO, 2013GRILLO, Carolina Christoph. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., p. 253). Ao fim e ao cabo, o sujeito é dissolvido em nome do crime, esse “algo maior” responsável por pautar as performances individuais.

A expansão do “mundo do crime” para jovens da periferia também é o tema que Feltran (2008)FELTRAN, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: Um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008. se propõe a analisar em São Paulo. A pesquisa do autor, contudo, confere maior ênfase às relações entre as práticas ilegais e as dinâmicas sociais consideradas legítimas, como trabalho, família e religião (p. 94). Para ele, a partir do início dos anos 2000 constitui-se uma série de crises nos territórios periféricos das grandes metrópoles (no emprego, na religiosidade, nos movimentos sociais) ao mesmo tempo que cresce uma criminalidade urbana que se apresenta como “mundo social” alternativo (Ibid., p. 97).

Em trabalho posterior, Feltran (2018)FELTRAN, Gabriel de Santis. Irmãos: Uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. relaciona os processos de adesão dos meninos ao “mundo do crime” às organizações consolidadas do tráfico, com ênfase na constituição do Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo. Antes dele, Biondi (2014BIONDI, Karina. Etnografia no movimento: Território, hierarquia e lei no PCC. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade de São Carlos, São Carlos, 2014., p. 294) já vinha estabelecendo essas relações para demonstrar a existência de diversos movimentos no interior da facção e de uma diversidade de organizações que afastam a ideia de unidade monolítica. As configurações do PCC à época da pesquisa da autora indicavam que não havia “caminhos definidos rumo a uma missão ou objetivo comum por meio dos quais as coisas concorram, todas juntas” (Ibid., p. 295). Na medida em que não há uma unidade estruturada e organizada, as ditas “ondas de violência” são resultado dos jogos de força de quem integra o movimento e dos esforços dos seus agentes em imprimir rumos que lhes sejam mais favoráveis.

Já a pesquisa de Dias e Manso (2018)DIAS, Camila Nunes; MANSO, Bruno. A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018. difere um pouco dessa percepção, em parte porque analisa o PCC em outro momento histórico, em parte pela metodologia empregada: enquanto Biondi se filia a uma linha de pesquisa etnográfica realizada nas ruas, Dias e Manso, entre outras técnicas de coleta de dados, realizaram entrevistas pontuais com sujeitos com importância na hierarquia da organização. A tese central de sua pesquisa está mais centrada nas vinculações entre a consolidação do PCC no país e a forma como o sistema prisional foi gerido, e menos nas relações das práticas do tráfico nas comunidades.

Todos os trabalhos citados até aqui dizem respeito ao cenário das capitais do Rio de Janeiro e São Paulo. Após a segunda metade da década de 2000, contudo, ocorre um fenômeno “silencioso” — ou silenciado, como apontam os autores do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018 — de expansão das “facções prisionais” para além dos tradicionais redutos das maiores capitais do país (FBSP, 2018FBPS. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014 a 2017. Fórum Brasileiro De Segurança Pública (FBSP), 2018.). A expansão dos grupos para estados do Nordeste ganha proeminência com a produção de um campo de pesquisa específico (cf. PAIVA, 2019PAIVA, Luiz Fábio S. “‘Aqui não tem gangue, tem facção’: As transformações sociais do crime em Fortaleza, Brasil”. Cadernos CRH, vol. 32, n. 85, pp. 165-184, 2019.; DAUDELIN e RATTON, 2017DAUDELIN, Jean; RATTON, José Luiz. “Drug Markets, War and Peace in Recife”. Tempo Social, vol. 29, n. 2, pp. 115-134, 2017.; RATTON et al., 2011RATTON, José Luiz; GALVÃO, Clarissa; ANDRADE, Rayane; PAVÃO, Nara. “Configurações de homicídios em recife: um estudo de caso”. In: Segurança, Justiça e Cidadania: O panorama dos homicídios no Brasil. Brasília, DF: Secretaria Nacional de Segurança Pública, Ministério da Justiça, 2011, pp. 73-89.). É também esse o caso do mercado da droga no Rio Grande do Sul. As maneiras encontradas pelos grupos para consumar essa expansão, as razões que justificam a opção por determinados tipos de violência extrema, bem como as consequências produzidas para a dinâmica do mercado da droga no Rio Grande do Sul após o ano de 2018 serão expostas a seguir.

Das facções prisionais aos ‘embolamentos’: dinâmicas do tráfico no Rio Grande do Sul

Conhecida como Falange Gaúcha, a primeira facção prisional do Rio Grande do Sul se caracterizava pela criação de mecanismos de auxílio aos presos do Presídio Central de Porto Alegre e aos apenados libertos ou foragidos, tendo clara inspiração na já consolidada Falange Vermelha no Rio de Janeiro (CIPRIANI, 2019CIPRIANI, Marcelli. Os coletivos criminais de Porto Alegre entre a “paz” na prisão e a guerra na rua. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019., p. 50). Em seu princípio, ainda no final da década de 1980, a facção foi liderada por Dilonei Melara, cuja capacidade de liderança entre os presos lhe possibilitou mobilizar a população carcerária em um grupo forte o suficiente para demandar melhorias ao Estado e articular o crime na rua.

Entretanto, em 1990 uma guerra entre grupos rivais começou a se consolidar dentro e fora das prisões, sobretudo na busca pela hegemonia do controle dos presídios e do tráfico de drogas em Porto Alegre. Os conflitos perduraram durante toda a década, entremeados por uma situação de muita instabilidade no sistema prisional do estado. Em 1995, após uma série de motins, fugas e rebeliões, a Polícia Militar do Rio Grande do Sul, conhecida como Brigada Militar, passou a ser responsável pela administração do Presídio Central em Porto Alegre (SCHABBACH e PASSOS, 2020SCHABBACH, Letícia Maria; PASSOS, Iara Cunha. “A produção da ordem no Presídio Central de Porto Alegre pela Polícia Militar”. Revista Direito GV, vol. 16, n. 2:e1963, 2020.). Nesse mesmo período a Falange Gaúcha se extinguiu e deu lugar a outro agrupamento, denominado Manos, cujo líder central era o próprio Melara.

Estimulados pela nova administração do presídio, os rivais dos Manos acabaram constituindo outra facção, os Brasas, em referência ao seu líder de mesmo nome. Como uma espécie de terceira via, os Abertos se tornaram um agrupamento que unia aqueles que estavam em desacordo tanto com os Manos como com os Brasas, ou seja, um coletivo formado por aqueles que “abriram” em relação aos dois grupos (DORNELLES, 2017DORNELLES, Renato. Falange gaúcha: O Presídio Central e a história do crimes organizado no RS. Porto Alegre: Diadorim, 2017., p. 157).

O assassinato de Melara, em 2005, consolidou o fim de um importante período dos coletivos criminais da capital gaúcha, sucedido por uma fase de crescente divisão das galerias do Presídio Central por parte das facções, que começavam “a se tornar não só mais homogêneas internamente (...), como também mais diversificadas entre si” (CIPRIANI, 2019CIPRIANI, Marcelli. Os coletivos criminais de Porto Alegre entre a “paz” na prisão e a guerra na rua. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019., p. 115). Assim, de 2005 a 2011 os coletivos criminais coexistiram de forma menos violenta, respeitando as divisões do território da cidade no que se refere ao domínio do mercado ilícito de drogas. Como bem concluiu Cipriani (Ibid.), essa divisão tanto “fora” do Presídio Central como “dentro” dele (por meio da gerência das galerias prisionais) se estabeleceu, nesse período, como uma lógica de fortalecimento dos grupos: o poder espacial no interior do Central aumentava o poder econômico no mercado de drogas e vice-versa (p. 128).

A relação de forças equilibrada dentro da instituição prisional, contudo, foi rompida pela emergência dos Bala na Cara e seus contras, os Antibala, grupos que surgiram fora da instituição prisional e se tornaram os protagonistas da guerra ocorrida entre 2016 e 2018 em Porto Alegre. Durante esse período não apenas se contabilizaram centenas de mortes, como novas formas de matar foram operacionalizadas em ciclos de ação e reação entre esses dois embolamentos principais.

Oriundos da parte mais carente de recursos do bairro Bom Jesus8 8 O bairro Bom Jesus, local de surgimento dos Balas, localiza-se na Zona Lesta de Porto Alegre e conta com quase 30 mil moradores, dos quais 35% são adolescentes e jovens. A renda média dos seus habitantes, segundo o Censo de 2010, é de apenas R$705,50 mensais. Seu território é delimitado por uma grande avenida ao norte, mas o espaço é relativamente plano, sem que barreiras geográficas auxiliem na determinação dos limites que o distinguem dos bairros vizinhos (OBSERVAPOA, 2019). , os Bala na Cara despontaram para os olhos das forças policiais em 2007. Agindo primeiramente como uma espécie de “braço armado” dos Manos — por meio da realização de execuções em nome da facção — o grupo, desde o princípio, estabeleceu um modo de ação extremamente violento, demonstrado pelo seu próprio nome. A autodenominação da facção fundou-se no que viria a ser a sua marca registrada, o tiro de esculacho, ou seja, a preferência por atirar no rosto do desafeto, de modo que fosse enterrado com caixão fechado, ação que “estendia a humilhação da vítima para o velório” (Ibid., p. 138).

Após se afastar dos Manos, os Bala se estabeleceram como um grupo do mercado da droga distinto dos demais, em razão de um modo específico de agir. Pela lógica do mercado do capitalismo gore, uma nova empresa precisa de uma marca registrada™ (VALENCIA, 2010VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. Madri: Melusina, 2010., p. 105) e o tiro de esculacho cumpriu exatamente esse papel na apresentação dos Bala aos seus concorrentes. O modus operandi da facção não se diferenciava apenas pela forma eleita para matar, mas também em razão das táticas utilizadas para tomar as bocas contrárias. A estratégia consistia na coação especialmente violenta dos gerentes das bocas para que se filiassem ao grupo, somada à oferta de vantagens comerciais aos traficantes recém cooptados, como o empréstimo de armas e o fornecimento de drogas (CIPRIANI, 2019CIPRIANI, Marcelli. Os coletivos criminais de Porto Alegre entre a “paz” na prisão e a guerra na rua. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019., p. 134).

De modo a criar uma resistência contra o avanço dos Bala, os grupos que até então mantinham sua atuação restrita a um local específico estreitaram relações para criar uma “quadrilha com um objetivo em comum” (DIáRIO GAúCHO, 16/09/2016DIÁRIO GAÚCHO. “Facções criminais avançam na capital”. Diário Gaúcho, 16 set. 2016, p. 28.). Os Antibala, organizados especialmente a partir da aliança entre os traficantes do bairro Vila Jardim — bairro fronteiriço ao Bom Jesus — e o grupo oriundo da Vila 27 na Cruzeiro, o V7, passaram ao conhecimento da população da cidade por meio de uma série de ações de extrema violência, como o uso de decapitações e esquartejamentos. Essa proximidade acabou facilitando as incursões armadas de um embolamento no território contrário, além de ter tornado os territórios do entorno espaços à mercê da disputa, muitas vezes subdivididos por fronteiras imaginadas e conhecidas apenas pelos próprios envolvidos. Assim, as novas formas de matar foram precedidas de novas formas de gerir os territórios do tráfico, com a constituição de alianças entre grupos de espaços geograficamente distantes.

Como consequência do conflito que se espalhou por toda a cidade, tanto Balas como Antibalas passaram a executar sujeitos do grupo contrário, os contras, por meio da violência extrema. No ano seguinte a disputa se alastrou também para as cidades vizinhas, como Alvorada, Viamão, Canoas e Eldorado do Sul, na RMPA (Ibid., 09/01/2017DIÁRIO GAÚCHO. “Facções espalham mortes”. Diário Gaúcho, 9 jan. 2017, p. 24.. Em muitos casos essas cidades fazem fronteira com os bairros da capital que estavam em disputa, de modo que os conflitos acabaram transbordando para outros municípios também pela contiguidade no espaço urbano.

Com a formação dos Antibalas, o chamado tiro de esculacho passou a ser contraposto pelos atos de decapitações e esquartejamentos. Por fim, mais recentemente começaram a ocorrer mortes por meio dos chamados atentados9 9 O atentado — também chamado de “bondes da morte” ou “tiros a esmo” — é um tipo de ação em que grupos de jovens fortemente armados se deslocam em veículos a territórios dominados pela facção contrária para executar alguns integrantes, disparando muitos tiros a uma boca ou à residência de um sujeito em específico, sem necessariamente se preocuparem em mirar os disparos em uma única direção. Por vezes a ação é gravada e veiculada em sites de compartilhamento de vídeos em que se observa a rota planejada, as execuções de inimigos específicos e a entoação do nome da facção da qual se faz parte. Os vídeos também podem ser enviados àqueles que ordenaram a ação, de modo a produzir uma prova de que o fato foi realizado. e carbonizações. O que se instaurou a partir desse momento foi o acirramento dos conflitos entre esses dois polos de poder. Segundo Cipriani (Ibid.), a formação dos Antibala se justificou internamente a partir de duas frentes: os interesses comerciais e o discurso de reação às covardias cometidas pelos Bala (p. 132). Essas covardias — como a tomada de bocas pelo uso da violência e ausência de “limites” à ambição comercial — foram entendidas como uma “falta de ética” no crime, um desrespeito aos acordos estabelecidos até então. Foi durante a guerra que o uso de performances violentas foi operacionalizado não apenas contra os envolvidos, mas contra suas mulheres e familiares.

Para os envolvidos no tráfico, a polarização entre Balas e Antibalas, reforçada pelos episódios de violência extrema que ocorreram durante o conflito, ganhou significados para além da disputa pelo monopólio da venda da droga. O contra virou um inimigo a ser combatido a todo e qualquer custo, um Outro desumanizado, que não apenas deveria ser morto, mas ter seu corpo humilhado e destroçado. Essas novas configurações sociais do crime, portanto, levaram ao uso recorrente da violência extrema por parte dos envolvidos, cujas justificativas serão analisadas a seguir.

O recurso à violência extrema: entre a racionalidade econômica e a manifestação da sociabilidade violenta

Em conformidade com as perspectivas teóricas de Valencia e Machado da Silva apresentadas, busca-se explicações para a opção pelo uso da violência extrema por parte dos embolamentos e dos sujeitos envolvidos: 1) a partir do seu processo de envolvimento ou de adesão ao tráfico de drogas, 2) pela captação das suas justificativas para a prática dos atos violentos e 3) pela ponderação sobre como a racionalidade econômica cerca parte importante dessas justificativas.

A respeito do recurso à violência extrema no conflito entre os embolamentos, os adolescentes interlocutores da pesquisa sintetizaram as razões do seu emprego na ideia de que seriam recursos para “mostrar poder” e “botar respeito” para o grupo contrário. Também foi apontada a necessidade de “humilhar” esse sujeito, sobretudo pela divulgação dos atos por meio da filmagem e divulgação: “se nós pegar um deles, nós vamos humilhar eles”. Algumas dessas filmagens acabavam sendo veiculadas para um maior grupo de pessoas, ou então caíam “na mídia”, como explicaram os adolescentes durante os grupos focais. Eram casos de maior espetacularização do evento violento, que deixou de atingir apenas os destinatários originários, vinculados ao embolamento rival, para se dissipar por grupos de WhatsApp de moradores das vilas ou até em mídias tradicionais, como telejornais regionais, por exemplo.

Para Valencia (2010)VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. Madri: Melusina, 2010., esse processo de disseminação da violência através dos meios de comunicação por parte dos grupos do narcotráfico visa concretizar uma espécie de “publicidade não paga” (p. 101), constituindo-se como um elemento fundamental de visibilização e status que confere legitimação ao grupo, sobretudo pela proliferação social de um “medo endêmico”. Ressaltamos, contudo, que no caso de Porto Alegre a espetacularização da violência nos níveis mais drásticos ocorreu de maneira localizada, pois tanto os vídeos das execuções como as informações a respeito das modalidades mais extremas da violência, na grande maioria dos casos, não extrapolaram os limites dos territórios ocupados pelo tráfico de drogas.

O propósito com a propagação do medo era atingir destinatários específicos, ou seja, os próprios contras, e não o conjunto da sociedade. Nesse sentido, não havia capitais políticos mais amplos em disputa pelas facções, como o desejo de demonstrar poder às forças policiais, por exemplo. Durante o período da guerra, em suma, os capitais de legitimação social se mantiveram em disputa apenas entre os embolamentos que buscavam alcançar um nível maior de poder e respeito em relação aos seus contras. Nesse contexto, a moeda necessária para a conquista do patamar almejado foi aquilo que, para os fins desta análise, denominamos violência letal extrema.

Se os dados empíricos permitem ponderar a ideia de que a violência extrema — ou atos cometidos com crueldade — seria injustificável ou irracional por natureza, a análise da historicidade dos atos faz emergir sentidos próprios para a operacionalização dessa violência. Esses novos sentidos surgem tanto da lógica econômica que pauta o desejo de expansão e consolidação dos embolamentos no mercado de drogas regional, quanto da constatação, a ser desenvolvida em futuros trabalhos, de que a violência extrema atua no fortalecimento do envolvimento dos sujeitos nesses grupos criminais.

Nesse sentido, os extratos jornalísticos coletados permitem duas análises principais. Em primeiro lugar, ficou demonstrado que as estratégias das facções se modificaram em um curto espaço de tempo. Embora a racionalidade dessas necropráticas esteja comumente escondida sob o véu da crueldade, que faz parecer não haver justificativa possível quando se trata de violência extrema, tais transformações não foram aleatórias. A compreensão do fenômeno a partir da teoria do capitalismo gore possibilita romper com essa linha de pensamento — também responsável pela atribuição de características monstruosas aos sujeitos envolvidos nesses atos — e torna possível perceber o uso da violência tanto como ferramenta de autoafirmação pessoal, quanto como um modo de subsistência (VALENCIA, 2010VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. Madri: Melusina, 2010., p. 91).

Há, portanto, uma coerência interna própria nessa lógica alternativa de produção de ganhos financeiros demonstrada pelo encadeamento dos tipos de violência extrema acionados pelos grupos. A destruição dos corpos realizada por meio dos alvejamentos — morte sem assinatura — foi sobreposta, em seguida, pela letalidade com marca registrada, ou seja, as decapitações e os esquartejamentos. Inicialmente essa destruição dos corpos foi a resposta encontrada pelos Antibala para demarcar seu espaço e demonstrar poder no mercado da droga, mas logo se generalizou e deixou de servir como forma de identificação da autoria do fato. Em meio a isso, os atentados extrapolaram em mais um nível os limites que se impunham até então.

O corpo do Outro — que, na fase das decapitações precisava ser absolutamente destruído em sua individualidade, desconfigurado e desidentificado (BARREIRA, 2015BARREIRA, César. “Crueldade: A face inesperada da violência difusa”. Sociedade e Estado, vol. 30, n. 1, pp. 55-74, 2015., p. 65) — perdeu relevância. Com os atentados, era o espaço territorial onde a facção contrária estava estabelecida que precisava ser atingida. Nessa nova configuração, a violência transbordava tanto o corpo dos envolvidos como suas relações pessoais: não era mais necessário ter qualquer relação afetiva ou de parentesco para se tornar um alvo, bastava estar espacialmente próximo. O alvo era o todo.

Aqui é relevante retomar que não apenas o território é concebido como espaço delimitado pelas relações de poder, como também o poder “só se exerce com referência a um território e, muito frequentemente, por meio de um território” (SOUZA, 2013SOUZA, Marcelo de Lopes. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013., p. 87). O atentado, por sua vez, visa atentar justamente contra a ligação afetiva e de identidade entre um grupo social e seu espaço. O embolamento que ataca por meio dos tiros sem direção, no fundo, está emitindo uma dúvida a respeito das relações de poder dentro desse espaço; está questionando quem, afinal, domina ou influencia esse território (Ibid., p. 89).

Essa estratégia tornou mais evidente um senso de coletividade entre os executores da ação. Os atentados deviam ser realizados em grupos (normalmente quatro jovens em um carro) que se entendiam como equipes alinhadas e concentradas em garantir o sucesso da empreitada. Essa noção de coletividade ficou clara no relato de um adolescente a respeito da metáfora utilizada por eles para se referirem à ação:

— É porque quando nós ia dá atentado, nós falemo: “Ô meu, vamo parti um futebol”. É assim que o cara fala na rua: “Ô meu, vamo parti um futebol”. [Isso] é dar atentado. É um time, né. Bah, minha equipe era só de menor, era tudo de menor. Era quatro cinco de menor indo dá tiro nos cara. Tudo de menor. Mas já era monstro já, fazia um bolo. E por o cara ser de menor, eles preferem o cara também, né. “Não, vamo leva os guri, os guri são monstro10 10 O uso da representação de um “monstro” para designar a qualidade e o comprometimento dos adolescentes com o embolamento pressupõe a ideia de alguém que precisa produzir medo para ser valorizado. ”.

(Entrevista com João Pedro, 20 anos)

Um fato afirmado pelos interlocutores é que o aumento da violência produziu baixa na venda das bocas, pois os consumidores se sentiam receosos de se deslocarem até esses territórios e a polícia ficou mais presente, além de deixar os envolvidos mais apreensivos por ficar nas ruas vendendo as mercadorias, pelo risco de sofrerem ataques de seus contras. Se as práticas como os atentados nem sempre produziam a tomada imediata da boca, criavam a expectativa, contudo, de que no longo prazo, “de boca em boca”, os grupos acabariam se expandindo.

— Mas daí não entra outros no lugar? [referindo-se à substituição daqueles agentes do tráfico que são mortos nos atentados] (Pesquisadora)

— Entra, mas entra outros que não conhece a boca. O cara tem que matar os cria primeiro. Mesma coisa os cara vão lá na minha boca, os cara vão ter que me matar. Se tiver eu e outro gurizão que tiver de outra boca lá, junto, dando um apoio pra nós, os cara vão preferir matar eu do que o gurizão, porque eu sou o cria, eu conheço a boca, eu sei, eu conheço tudo. Já o gurizão não. (Matheus)

— Entendi. Então tu acha que é pela grana, assim? Pela missão de... (Pesquisadora)

— É, o cara vai lá toma uma boca e o cara... O cara vai ser apoiado, né dona? Se eu vou lá e tomo uma boca, os cara vão fala: “Viu, pega essa parte pra ti”. Já vão te largar uma droga, daí tu vende. Então é dinheiro pra eles e pra nós. Mais pra eles, claro. (Matheus, 17 anos)

O que identificamos, portanto, foi uma sistemática coerente no uso dessas práticas. São estratégias de produção de capital econômico, pautadas pelas leis do mercado de drogas local e entendidas como práticas gore (VALENCIA, 2010VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. Madri: Melusina, 2010., p. 51). Para Valencia, os únicos limites ao exercício dessa violência são aqueles das leis da oferta e demanda dos seus próprios negócios, de modo que ela está pautada por uma “disciplina econômica” e é operacionalizada para imprimir marcas específicas de cada grupo criminal — quando isso for conveniente aos negócios. Assim, a truculência da sua produção mascara uma racionalização distópica e propriamente econômica em que, ao contrário do que poderia se pensar, não se perderam as referências do porquê se mata (Ibid., p. 105).

Nessa interpretação, quando o mercado de drogas alcança um ponto de crise, por exemplo, pela inserção de um conjunto de sujeitos que pautam novas estratégias de expansão territorial, há um incremento da violência nas ações, como no caso da polarização entre Balas e Antibalas entre 2016 e 2018. Demonstrou-se, portanto, que as distintas formas de uso da violência extrema por parte dos coletivos têm correlação com o seu posicionamento no mercado da droga do estado. A opção por elevar o nível de exercício da violência — do homicídio simples ao tiro de esculacho, e desse às decapitações — se justificou na medida em que, para a lógica do capitalismo gore, essa violência pôde ser transformada em chave de acesso à competição do mercado da droga. As quantias despendidas nessas estratégias violentas foram recompensadas pelo domínio de outros territórios, conforme explicou um dos adolescentes entrevistados:

— É o poder, porque se a boca deles vende 20 mil num dia, vamo matar. Agora num tempo não vai ter como funcionar, mas depois de um tempo vai ser nosso e vai tá funcionando. Vai tá rendendo dinheiro. E hoje em dia, o cara querendo ou não, o tráfico, bah, o tráfico rende dinheiro afu11 11 Afu é uma expressão linguageira regional que significa “muito”. . (João Pedro, 20 anos)

Um ponto que que merece destaque é que, para que os episódios de violência extrema pudessem ser transformados em capital econômico para a facção, foi necessário realizar uma operação de “marketing” entre os grupos, efetivada a partir da veiculação de vídeos, fotos e mensagens no WhatsApp e no Facebook. Ambos acabaram se tornando elementos propulsores da violência no contexto em questão. Na visão dos interlocutores, as discussões e conflitos iniciados por meio desses canais acabavam gerando mortes, de modo mais veloz e com menos possibilidades de controle em relação ao período em que os aplicativos de comunicação não eram difundidos.

— Facebook dá várias mortes, né dona? (Wellington)

— É? Por quê? (Pesquisadora)

— Ah, porque daí, por exemplo... (Wellington)

— Tu pode postar uma foto e tá marcado ali em cima onde é que tu tá. Daí a pessoa olha: “Ah, ali o fulano”. (Matheus)

— Eles vão e te matam. (Wellington)

— “Ah, ali o fulano. Vamo vê a hora. Ah, postou agora, então quer dizer que ele tá agora, vamo lá então”. (Matheus) (Grupo focal 2)

A vigilância dos contras por meio das postagens nas redes é um exemplo da transformação do modo de atuação no tráfico na “era dos aplicativos”. Segundo um dos interlocutores, atualmente é mais fácil “pegar os cara”, na medida em que os próprios sujeitos indicam pelos seus perfis no Facebook o lugar em que se encontram, facilitando com que sejam localizados: “Ó, fulano tá em tal lugar, vamo lá pegar”. Outro fator essencial para os desdobramentos desse conflito bélico foram as mídias contendo filmagens de execuções, principalmente no caso das mortes com violência extrema. Os adolescentes explicaram que durante o período mais intenso de disputas as facções começaram a filmar certos homicídios, utilizando os vídeos como forma de demonstração de poder entre os grupos: “Olha aí o que nós fizemos com vocês, ó”.

— Manda pros cara. Tipo os cara do presídio fala: “Ó peixe, tem que ali matar o fulano”. Aí o cara vai e já faz um vídeo. (João Pedro)

— “Ah, manda aí o vídeo”. Daí os cara mandam. (Felipe)

— O cara faz o vídeo e já manda: “Aí cupinxa, peguemo”. (João Pedro) (Grupo focal 1)

Observou-se, portanto, certo fluxo de comunicação: 1) os envolvidos com maior grau hierárquico dentro dos embolamentos, normalmente recolhidos no sistema prisional, requeriam àqueles em liberdade a realização de um determinado homicídio; 2) os executores recebiam a ordem e filmavam a ação, devolvendo também pelo WhatsApp o vídeo que provava que a solicitação foi cumprida.

As redes sociais também foram essenciais em uma estratégia que utilizava mulheres como instrumentos de emboscadas. Durante os grupos focais os interlocutores indicaram duas maneiras de operacionalizar essa emboscada: pelo acordo com meninas que atuavam em nome da facção — sejam efetivamente envolvidas com o embolamento ou familiares dos envolvidos — ou pela construção de perfis falsos no Facebook, com o uso de fotos de mulheres bonitas.

— Hoje também o cara fala pra uma mina: “Não, vai aí, chama o fulano”. Bah, a mina bonita, vai ver as fotos, [pensa] “vou ir”. Vai ir, os cara tão esperando pra matar. (João Pedro)

[sons variados de concordância]

— É assim, né dona. (João Pedro) (Grupo focal 1)

Ao observar estratégia muito semelhante em etnografia no bairro de South Bronx, em Nova York, Contreras (2013)CONTRERAS, Randol. The Stickup Kids: Race, Drugs, Violence, and the American Dream. Berkley/London: University of California, 2013. afirmou que com esse tipo de tática os garotos acabavam realizando “uma armadilha da masculinidade”, utilizando os valores hegemônicos do ser homem para vitimizar o próprio homem (p. 125). No caso de nossa pesquisa, esse paradoxo se repetiu: os envolvidos sabiam o quanto a ideia de um homem movido por seus desejos sexuais é importante para a afirmação da masculinidade e a utilizavam como mote dos seus próprios interesses. A consequência, no nível micro, era um adolescente que seria “arrastado” até seus contras e, então, provavelmente morto. No nível macro, trata-se do reforço do capitalismo gore pela obediência a uma ordem hegemônica masculinista (VALENCIA, 2012VALENCIA, Sayak. “Capitalismo Gore y necropolítica en México Contemporáneo”. Relaciones Internacionales, vol. 19, pp. 83-103, 2012., p. 89).

Algumas das práticas de gênero dos adolescentes emergiram em parte dos relatos sobre a violência extrema exercida. Nesse sentido, conforme já adiantamos, as justificativas apresentadas pelos sujeitos envolvidos no tráfico também constituíram material de análise central para a discussão. Seguindo os ensinamentos de Machado da Silva (2008MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio (org). Vida sob cerco: Violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008., p. 42), o procedimento central adotado partiu do acúmulo de experiências do sujeito como principal substrato para a compreensão de um suposto engajamento na sociabilidade violenta. Na proposta do autor, essa forma de vida se caracteriza principalmente pelo uso da força física como um regime de ação das práticas, isto é, a força como fim da ação (e não como meio para alcançar determinado fim) e estabelecida na continuidade, na rotina do indivíduo.

Como, então, os adolescentes entrevistados articularam os fins pretendidos com o uso da violência extrema? Um primeiro conjunto de justificativas, explicitado nos três diálogos a seguir, assemelham-se por indicarem a ausência de uma relação de causa e efeito entre certa ação e a violência cometida. Seria o caso típico da “violência como fim” ou da representação de que ela é o que o sujeito da sociabilidade violenta visa com suas ações:

— E era pela grana assim ou era mais tipo...? (Pesquisadora)

— Mais pela folia. Mais pra poder dar tiro nos cara mesmo. (Matheus, 17 anos)

— “Ah eu arranquei a cabeça dele”. Os outros vão e dão de 12 na cara e arrebenta a cabeça. “Ah, por quê?”. Ah, só pra eles verem que nós somos ruim. Os cara são mais assim hoje em dia, [querem] mostrar poder. Que nem os cara vão ali, tu vai com um oitãzinho pra matar o cara. Matou. Nem precisa dá-lhe mais, mas os cara vão lá e dão um pente de 30 na cara só pra mostrar poder. (João Pedro, 20 anos)

— Que nem, quando eu tava la fora eu não traficava né, mas os cara me davam dinheiro pra eu ir lá dar tiro nos cara. Os cara tipo... me dava, dava dinheiro pra nós pra nós ir matar os cara, pra nós ir matar pessoa. (Wellington)

— E pra tomar boca... (Pesquisadora)

— Sim, pra tomar boca. Mas mais pra matar pessoa, porque tomar nós já tinha tomado. Não tinha ninguém na vila mais. Nós queria voltar, daí quando vê eles falaram que não era o momento ainda. Mais pra matar as pessoas mesmo, que os cara são... (Wellington, 19 anos).

O terceiro diálogo é especialmente importante para o argumento proposto. Quando induzido a afirmar que as mortes realizadas teriam como objetivo a tomada da boca, o adolescente nega essa associação e reforça o seu argumento inicial de que a violência letal era o fim em si mesmo. Além disso, nos demais diálogos, fica explícito que a participação em atos de violência extrema “pra poder dar tiro nos cara”, “pra eles verem que nós [autores dos atos] somos ruim”, ou “pra matar as pessoas mesmo” são todas justificativas que frisam mais a prática, o fazer violento, do que o objetivo visado com o ato. A justificativa para uma suposta agressividade “nata” por parte de Matheus também merece destaque:

— E eu bebia remédio quando eu era pequeno né? Porque eu era muito brigão na escola. E depois que eu me envolvi eu parei de beber remédio, daí eu fiquei muito agressivo, eu gostava de agredir as pessoas. Entende? Tipo, na biqueira, depois de um tempo eu tava gerenciando uma biqueira antes de eu cair preso, né? Eu podia fazer o que eu queria lá. Naquela área eu podia fazer o que eu queria. Eu, vamos dizer... se tivesse alguém que tivesse devendo dinheiro eu ia lá e quebrava ele a pau. Eu era agressivo, eu gostava de bater nas pessoas. (Matheus)

— Mas não tinha uma razão, assim, tipo... (Pesquisadora)

— É, eu tava só por um motivo, entende? Ficava esperando um motivo pra eu bater numa pessoa. Eu chegava a falar pros cara: “Bah, só por um motivo pra eu pegar aquele cara e arrebentar ele”. Eu era muito agressivo. (Matheus)

Na narrativa de Matheus, na medida em que o próprio adolescente identifica a injustificabilidade da sua “agressividade”, fica clara a transformação da força de “meio eventual para obtenção de interesses, em princípio de regulação das relações sociais” (MACHADO DA SILVA, 2004MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. “Sociabilidade violenta: Por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano”. Sociedade e Estado, vol. 19, n. 1, pp. 53-84, 2004., p. 74). A busca por um motivo para o exercício da força é, portanto, secundária e perde relevância em relação ao desejo pela violência.

Nesse sentido, em nenhum excerto das entrevistas foi possível identificar racionalidades específicas para o uso da violência letal, como aquelas que já aparecerem em outros trabalhos sobre o “mundo do crime”, normalmente localizadas na lógica contextual, como a legítima defesa ou a punição por traições graves (GRILLO, 2013GRILLO, Carolina Christoph. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., p. 249). Ou seja, quando a unidade de análise é o sujeito há ausência de justificativas, mas, ao observar as dinâmicas dos grupos criminais, a violência extrema ganha um papel relevante na expansão do poder econômico das facções. Enquanto a racionalidade econômica é mais visível na estrutura do fenômeno social, no âmbito dos envolvidos as justificativas exaradas para a violência letal são menos associadas a ela. Enquanto João Pedro falou em “mostrar poder”, Matheus e Carlos identificaram uma agressividade nata e Wellington afirmou que o ato era realizado apenas “pra matar as pessoas mesmo”.

Assim, ainda que localizando a análise no contexto de Porto Alegre e RMPA entre 2016 e 2018, identificam-se os elementos que França (2019FRANÇA, Márcio Abreu de. “Sociabilidade violenta como modo de orientação da conduta: Entendendo a especificidade da violência urbana brasileira contemporânea”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1, pp. 93-123, 2019., p. 106) elencou como fundamentais para entender o uso da força física como inaugural de uma nova sociabilidade: 1) transformação no padrão quantitativo de uso da força (maior recorrência); 2) transformação no padrão qualitativo do uso da força (maior intensidade); e 3) transformação no padrão de justificativa do uso da força (injustificabilidade). Enquanto os dois primeiros foram trabalhados na primeira parte deste artigo, neste momento fica evidenciado que, também em relação às (ausências de) justificativas para o uso da violência — quando a unidade de análise é o sujeito envolvido —, é possível vislumbrar o padrão da sociabilidade violenta.

Há, contudo, uma ressalva a ser feita. Diferentemente de Machado da Silva, Grillo (2013GRILLO, Carolina Christoph. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., p. 253) propõe que se pense nos termos de “uma negação da subjetividade individual em favor de referências coletivas”, necessariamente produzidas nas relações com o “mundo do crime”. Seguindo esse raciocínio, a autora postulou uma segunda proposta à teoria da sociabilidade violenta para sugerir que a unidade de análise fosse transposta do indivíduo para o coletivo (GRILLO, 2019GRILLO, Carolina Christoph. “Da violência urbana à guerra: Repensando a sociabilidade violenta”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1, p. 62-92, 2019., p. 76). Nesse sentido, não seria necessário negar o que as etnografias da positivação do crime12 12 Seriam as pesquisas etnográficas que buscam compreender o crime como categoria positivadora das práticas sociais, em que essa positivação é tida não como um conceito moral, “mas analítico, que aponta para uma atenção aos aspectos produtivos das práticas etnográficas” (HIRATA e AQUINO, 2018, p. 107). (HIRATA; AQUINO, 2018HIRATA, Daniel; AQUINO, Jânia Perla Diógenes de. “Inserções etnográficas ao universo do crime: algumas considerações sobre pesquisas realizadas no Brasil entre 2000 e 2017”. Rev. BIB, São Paulo, n. 84, 2018, pp. 107-147, 2018., p. 107) vêm afirmando a respeito da existência de um compartilhamento de valores e de um senso de coletividade no interior dos coletivos criminais e facções. O argumento de Grillo, com o qual concordamos, é de que é justamente pela força dos laços internos aos grupos que é possível realizar a negação da alteridade do coletivo contrário que não compartilha desse universo de relações e que se materializa pelo ataque a qualquer um que seja vinculado a ele.

A todo momento em que o envolvido age em nome da facção, sua própria individualidade fica ainda mais marcada pelo pertencimento coletivo, assinalando o agravamento do seu envolvimento e a diminuição do seu espaço de autonomia (GRILLO, 2013GRILLO, Carolina Christoph. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., p. 254). Esse fenômeno se dá de tal forma que o sujeito acredita estar agindo de acordo com o que deseja, e não seguindo ordens de seus superiores. Exemplo dessa articulação é a narrativa de João Pedro: o adolescente iniciou afirmando que “o cara faz porque quer”, mas logo acrescentou que, na verdade, há o desejo de mostrar pra os demais uma suposta capacidade de “ser ruim”:

— Não, ninguém fala “ah, tem que ser assim”. Tu faz porque tu quer. “Vou mostrar pros guri que eu sou ruim”. O cara faz porque o cara é de pegar arma. O cara faz porque quer, acha bonito. Porque no crime o cara mata um contra do cara, que é um contra teu, tu vai lá e mata ele. Daí tu fica feliz: “Não, peguei aquele putinho”. Vira troféu a cabeça dele. É assim.

Conforme buscamos argumentar, portanto, a afirmação da existência da sociabilidade violenta em um contexto de guerra entre facções do tráfico de drogas, nos termos ocorridos em Porto Alegre e RMPA entre 2016 e 2018, passa por identificar a negação da alteridade de um outro, característica básica para que se possa sustentar a existência de um regime de ação das práticas pautadas na violência. Contudo, seguindo o argumento proposto por Grillo (2019)GRILLO, Carolina Christoph. “Da violência urbana à guerra: Repensando a sociabilidade violenta”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1, p. 62-92, 2019., esse outro está mais caracterizado pela sua coletividade do que pela sua individualidade, de modo que são os laços comuns fortalecidos no interior dos embolamentos e o consequente antagonismo que se produz em relação ao embolamento dos contras os responsáveis por afirmar essa forma de vida na continuidade das relações sociais, sob a conformação, portanto, de uma nova “sociabilidade”.

Considerações finais

Diante dos dados reunidos, ficou evidenciado que, no nível da estrutura das facções do tráfico, o curso de ações praticado pelos embolamentos e, paralelamente, o encadeamento de distintas formas de violência extrema nos últimos anos demonstraram a centralidade da racionalidade econômica para entender por que esses coletivos haviam optado por essas novas formas de matar. Conforme argumentamos neste artigo, no contexto do capitalismo gore (VALENCIA, 2010VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. Madri: Melusina, 2010.) o sistema econômico neoliberal pautado no hiperconsumismo e na desregulamentação do trabalho, a imposição da masculinidade hegemônica13 13 Esse aspecto da teoria foi tratado apenas de modo lateral no presente artigo. Para um maior detalhamento ver Barros (2020). como padrão a ser alcançado e a organização do narcotráfico em países do chamado Terceiro Mundo permitem que a violência extrema seja um instrumento capaz de transformar morte em dinheiro.

No caso do Rio Grande do Sul, o surgimento dos Bala na Cara — facção que nasceu na rua e desde o princípio pautou a sua estratégia pela instrumentalização da violência extrema como “marca registrada” e capital de expansão territorial — foi o evento disruptivo dos conflitos ocorridos entre 2016 e 2018. As decapitações e os atentados que se seguiram foram violências decorrentes desse evento, gerando um encadeamento de ações cuja “coerência interna” (FONSECA, 2000FONSECA, Cláudia. Família, fofoca e honra: Etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2000., p. 10) só se torna sociologicamente compreensível na medida em que: 1) parte-se do pressuposto teórico de que nos encontramos em um sistema econômico e sociocultural que determina modos específicos de transformação de violência em capital econômico e 2) comprova-se empiricamente que a violência extrema nesse contexto específico se caracterizou como uma prática gore por excelência.

Ademais, para funcionar como capital, a prática da violência extrema precisou ser disseminada de forma instantânea, de modo que os vídeos e imagens compartilhados por meio do WhatsApp e do Facebook cumpriram seu papel como “engrenagens fundamentais para a propagação e popularização do capitalismo gore” (VALENCIA, 2010VALENCIA, Sayak. Capitalismo gore. Madri: Melusina, 2010., p. 103). Por meio das ações de violência extrema e da propagação virtual dos atos, os embolamentos envolvidos na guerra firmaram sua posição no mercado da droga, conquistaram o domínio de galerias no Presídio Central, expandiram seus territórios de ação e alçaram voos maiores.

A força adquirida pelos Bala por meio da guerra possibilitou que a facção alçasse voos maiores, também pretendendo, a partir de 2018, a disputa do mercado da droga para esses novos espaços mais distantes da capital. Já os V7, principais articuladores dos Antibala, que até então restringiam sua atuação a uma parte de um bairro na Zona Sul de Porto Alegre, conseguiram em menos de dois anos expandir sua influência, não apenas na sua região de origem — onde seu comando se tornou praticamente absoluto —, como em territórios antes intocáveis no cenário do tráfico de drogas de Porto Alegre.

A violência extrema operada pelos Balas e Antibalas, portanto, produziu diversas consequências: 1) entrelaçou efetivamente os sujeitos (envolvidos) na estrutura (facções); 2) por meio dela, os coletivos lograram se estabelecer no mercado da droga regional; e 3) ao final do período em que foi operacionalizada com mais intensidade, os grupos que a utilizaram saíram fortalecidos, com mais territórios de atuação e menos propícios a serem desmantelados, como os Bala e os V7.

No nível dos sujeitos do tráfico de drogas, por outro lado, o fator econômico se mostrou menos relevante nas justificativas articuladas pelos envolvidos para explicar o uso da violência extrema. Ainda que a expectativa da aquisição de bens materiais tenha sido importante para o primeiro momento do envolvimento dos meninos com o “mundo do crime”, na medida em que os adolescentes foram agravando esse envolvimento e a guerra estourou — consistindo nos confrontos violentos entre Balas e Antibalas em Porto Alegre e RMPA —, os valores oriundos do tráfico perderam centralidade nas justificativas apresentadas para as violências extremas cometidas.

Os adolescentes entrevistados foram bastante assertivos na indicação de que a guerra aprofundou sua vinculação com o “mundo do crime”. Mesmo que os conflitos conferissem níveis muito maiores de risco à atividade e que os lucros estivessem menos atrativos, eles se sentiram no dever de afirmar o seu envolvimento para garantir que seu embolamento saísse vitorioso nos seus respectivos territórios. Assim, quanto mais radical a operacionalização da violência se mostrava, mais os jovens aderiam à sociabilidade violenta: as justificativas dos atos se tornavam cada vez menos palpáveis e o uso da força como regime de ação, cada vez mais rotinizado.

Esse cenário, contudo, só foi possível pela adesão ao senso de coletividade entre eles em relação ao seu embolamento e pela força dos laços internos desses grupos. Dessa forma, a sociabilidade violenta só pôde ser identificada no presente trabalho a partir da modulação do conceito proposta por Grillo (2013)GRILLO, Carolina Christoph. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., que prevê a “negação da subjetividade individual em favor de referências coletivas” (p. 253). Nesse sentido, no nível dos sujeitos, a violência extrema atuou como fator essencial na instrumentalização dos envolvidos como agentes incumbidos de colocar em prática o que, para os embolamentos, consistia em uma estratégia de expansão e fortalecimento. A cada ato de violência extrema, os envolvidos ao mesmo tempo aprofundavam seu envolvimento e auxiliavam na construção de uma estrutura ainda mais consolidada.

Durante o período de operacionalização da violência extrema, portanto, os embolamentos construíram um caminho de radicalização das suas ações que transformou a maneira como eles passaram a ser entendidos por parte da sociedade e do Estado, de modo que a reconstrução da sua legitimidade moral diante desses atores — principalmente em relação às comunidades dos espaços em que atuam — parece ser um enorme desafio para esse momento pós-guerra. De todo modo, o que se pode concluir é que a violência extrema, marcada na memória e armazenada nas redes sociais de uma parte da população gaúcha, se tornou um importante recurso na lógica concorrencial das facções do estado. Mostrou-se efetiva e garantiu a sobrevivência dos embolamentos que optaram por utilizá-la. Não seria improvável, então, supor que ela seja reativada em momentos futuros.

Em relação aos sujeitos, os relatos aqui apresentados das violências vividas durante a guerra são excepcionais e dificilmente serão esquecidos. Se a guerra arrefeceu, conforme indicam os índices mais recentes de homicídios no estado, as consequências do que passou para meninos como João Pedro, Carlos, Matheus e Wellington não deveriam ser menosprezadas, sobretudo quando o que se almeja são ciclos mais longos de paz e estabilidade social. Afinal, constatar um novo padrão de sociabilidade regido pela violência como fim, ainda que pensada como um procedimento coletivo, indica que para uma parcela da juventude de Porto Alegre e RMPA o sentimento de pertencimento ao grupo criminoso foi reforçado pela adesão a práticas de violência extrema, de tal modo que se tornou uma espécie de “marca” e um componente formador de identidades cuja marginalidade é subvertida pela carga simbólica positiva contida na expressão “para eles verem como nós somos ruim”.

Notas

  • 1
    Gore é um subgênero cinematográfico de filmes de horror caracterizado pela presença de cenas extremamente violentas, com muito sangue, vísceras e restos mortais de humanos ou animais. Para ilustrar, o gênero terror gore pode ser representado pelo filme italiano Holocausto Canibal, do diretor Ruggero Deodato, de 1980.
  • 2
    Nesse sentido, coaduna-se com a crítica de Paiva quanto aos limites da categoria nativa facção, mas parte-se dela para trabalhar a ideia um “coletivo constituído por associações, relacionamentos, aproximações, conflitos e distâncias necessárias entre pessoas comprometidas em fazer o crime, desenvolvendo relações afetivas profundas, laços sociais elaborados como os de família, e um sentimento de pertença desenvolvido pela crença em determinadas orientações políticas e éticas que a sustentam” (PAIVA, 2019PAIVA, Luiz Fábio S. “‘Aqui não tem gangue, tem facção’: As transformações sociais do crime em Fortaleza, Brasil”. Cadernos CRH, vol. 32, n. 85, pp. 165-184, 2019., p. 170).
  • 3
    Cipriani (2019CIPRIANI, Marcelli. Os coletivos criminais de Porto Alegre entre a “paz” na prisão e a guerra na rua. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019., p. 20) entende os embolamentos como “frente de alianças” ou ainda como “termo utilizado para se referir às relações internas a um grupo ou à aliança entre diferentes grupos (p. 98)”.
  • 4
    O levantamento foi feito no Centro de Documentação do Grupo RBS, conglomerado midiático que publica e comercializa os periódicos. A busca foi feita utilizando-se as palavras-chave “facções” e “violência” e, após a filtragem das notícias que não se relacionavam com o tema da pesquisa, chegou-se a um total de 127 páginas em formato PDF com notícias sobre as facções criminosas que operam na capital.
  • 5
    A pesquisa observou os procedimentos internos para a realização de pesquisas na instituição, tendo sido aprovada em observância da resolução no 004/2017 da Fase e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) (CEP-UFRGS). Ela está registrada na Plataforma Brasil sob parecer no 14306719.0.0000.5347. Além disso, outros procedimentos foram utilizados visando à garantia ética da pesquisa, como a troca dos nomes dos interlocutores para garantir o anonimato e a obtenção de assinaturas de Termos de Consentimento Livre e Esclarecido e Termos de Assentimento pelos adolescentes e seus responsáveis.
  • 6
    Para designar a unidade de análise sujeito, optamos por respeitar a forma como os próprios jovens se identificavam. Todos eles, ao se referirem às suas práticas no “mundo do crime”, o fizeram pela autodesignação como envolvidos. Nessa mesma linha, Cecchetto, Muniz e Monteiro (2018CECCHETTO, Fátima Regina; MUNIZ, Jacqueline de Oliveira; MONTEIRO, Rodrigo de Araujo. “‘Basta tá do lado’: A construção social do envolvido com o crime”. Caderno CRH, vol. 31, n. 82, pp. 99-116, 2018., p. 108) apresentam a ideia de uma “economia do envolvimento”, estabelecendo uma nova gramática para falar sobre os sujeitos do “mundo do crime” que abdica das noções mais difundidas de “bandido” (ZALUAR, 2010ZALUAR, Alba. “Do dinheiro e dos homens no tráfico de drogas”. In: WESTPHAL, Márcia Faria; BYDLOWSKI, Cynthia Rachid (orgs). Violência e juventude. São Paulo: Hucitec, 2010, pp. 162-194.) e “vagabundo” (MISSE, 1999MISSE, Michel. Malandros, Marginais e Vagabundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.) em nome da ideia de envolvido, um adjetivo com maior grau de ambiguidade e abrangência.
  • 7
    Valencia é pioneira ao retomar o conceito teórico de Achille Mbembe (2014MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014., 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.) de necropolítica para explicar a realidade específica do tráfico de drogas na América Latina. Ainda que ultrapasse os limites deste trabalho desenvolver os pormenores da teoria como gostaríamos, relembramos que a construção do conceito é uma subversão pós-colonial da célebre biopolítica foucaultiana e, em suma, prevê que a manifestação do necropoder tem três principais características: a fragmentação territorial, o acesso proibido a certas zonas e a expansão dos assentamentos (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 43). Trata-se, portanto, de uma ocupação fragmentada produzida pelo encadeamento dos poderes disciplinar, biopolítico e necropolítico. Para Valencia, o fenômeno do narcotráfico no México é uma realidade que poderia ser lida por meio dessa lente teórica.
  • 8
    O bairro Bom Jesus, local de surgimento dos Balas, localiza-se na Zona Lesta de Porto Alegre e conta com quase 30 mil moradores, dos quais 35% são adolescentes e jovens. A renda média dos seus habitantes, segundo o Censo de 2010, é de apenas R$705,50 mensais. Seu território é delimitado por uma grande avenida ao norte, mas o espaço é relativamente plano, sem que barreiras geográficas auxiliem na determinação dos limites que o distinguem dos bairros vizinhos (OBSERVAPOA, 2019OBSERVAPOA. “Observando o Bairro: Breve análise sobre os bairros de Porto Alegre: Bom Jesus”. Observa POA: Observatório da Cidade de Porto Alegre, s/d. Disponível em: http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/observatorio/usu_doc/bairro_bom_jesus.pdf
    http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/pref...
    ).
  • 9
    O atentado — também chamado de “bondes da morte” ou “tiros a esmo” — é um tipo de ação em que grupos de jovens fortemente armados se deslocam em veículos a territórios dominados pela facção contrária para executar alguns integrantes, disparando muitos tiros a uma boca ou à residência de um sujeito em específico, sem necessariamente se preocuparem em mirar os disparos em uma única direção. Por vezes a ação é gravada e veiculada em sites de compartilhamento de vídeos em que se observa a rota planejada, as execuções de inimigos específicos e a entoação do nome da facção da qual se faz parte. Os vídeos também podem ser enviados àqueles que ordenaram a ação, de modo a produzir uma prova de que o fato foi realizado.
  • 10
    O uso da representação de um “monstro” para designar a qualidade e o comprometimento dos adolescentes com o embolamento pressupõe a ideia de alguém que precisa produzir medo para ser valorizado.
  • 11
    Afu é uma expressão linguageira regional que significa “muito”.
  • 12
    Seriam as pesquisas etnográficas que buscam compreender o crime como categoria positivadora das práticas sociais, em que essa positivação é tida não como um conceito moral, “mas analítico, que aponta para uma atenção aos aspectos produtivos das práticas etnográficas” (HIRATA e AQUINO, 2018HIRATA, Daniel; AQUINO, Jânia Perla Diógenes de. “Inserções etnográficas ao universo do crime: algumas considerações sobre pesquisas realizadas no Brasil entre 2000 e 2017”. Rev. BIB, São Paulo, n. 84, 2018, pp. 107-147, 2018., p. 107).
  • 13
    Esse aspecto da teoria foi tratado apenas de modo lateral no presente artigo. Para um maior detalhamento ver Barros (2020)BARROS, Betina Warmling. A coerência da crueldade: os significados da violência extrema para os envolvidos no tráfico de drogas no Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020..

Referências

  • BARREIRA, César. “Crueldade: A face inesperada da violência difusa”. Sociedade e Estado, vol. 30, n. 1, pp. 55-74, 2015.
  • BARROS, Betina Warmling. A coerência da crueldade: os significados da violência extrema para os envolvidos no tráfico de drogas no Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020.
  • BIONDI, Karina. Etnografia no movimento: Território, hierarquia e lei no PCC. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade de São Carlos, São Carlos, 2014.
  • CECCHETTO, Fátima Regina; MUNIZ, Jacqueline de Oliveira; MONTEIRO, Rodrigo de Araujo. “‘Basta tá do lado’: A construção social do envolvido com o crime”. Caderno CRH, vol. 31, n. 82, pp. 99-116, 2018.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2021
  • Aceito
    08 Nov 2021
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