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Redes morais: Notas de um estudo sobre usufruidores-cultivadores do ‘verde’

Resumos

Este artigo objetiva apresentar a gramática moral de atores que cultivam maconha para uso próprio, bem como interpretar como emerge uma moralidade específica a partir de suas práticas. Para tanto, usou uma metodologia qualitativa, baseada em observação direta e entrevistas semiestruturadas e referenciada no interacionismo simbólico. Foi constatado que esses atores firmam uma moralidade sui generis por meio de suas práticas. O exercício do cultivo caseiro da própria maconha é analisado como um sentimento moral legítimo de libertação em relação às repressões formais e informais enfrentadas por esses atores.

Palavras-chave:
redes; moral; usufruidores; cultivadores; maconha


Moral Networks: Study Notes on Enjoyers-Growers of the ‘Green’ aims to present the moral grammar of actors who grow marijuana for their own use, as well as to interpret how a specific morality emerges from their practices. To do so, it used a qualitative research, based on direct observation and semi-structured interviews, and referenced in symbolic interactionism. It has been found that these actors establish a sui generis morality through their practices. The exercise of home cultivation of one’s own marijuana is analyzed as a legitimate moral feeling of liberation in relation to the formal and informal repressions faced by these actors.

Keywords:
networks; morality; enjoyers; growers; marijuana


Preâmbulo

Os usos de drogas psicoativas é uma prática social comumente observada em todas as sociedades. A progressiva proibição de determinadas substâncias com propriedades psicoativas, notadamente ao longo do século XX, acarretou em diversas estratégias por parte de atores que faziam usos de drogas proscritas, evitando punições legais e sanções sociais (BECKER, 2009BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.). Nos últimos anos, entretanto, vários países e alguns estados dos EUA reviram ou flexibilizaram suas leis de drogas, descriminalizando o uso de todas as drogas ou regulando o plantio e a venda de cannabis (FRAGA e CARVALHO, 2019FRAGA, Paulo; CARVALHO, Maria. Drogas e sociedade: Estudos comparados Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: Letra Capital Editora, 2019.). Contudo, a maioria dos países continua com leis restritivas ao plantio e à venda de drogas, inclusive a maconha. Em relação a essa substância, além da demanda pela legalização do uso social psicoativo, cresceu a reivindicação pela regulação de sua utilização para fins terapêuticos, mobilizando movimentos sociais e um ativismo importante (CARVALHO, BRITO e GANDRA, 2017CARVALHO, Virgínia; BRITO, Margarete; GANDRA, Mário. “Mães pela cannabis medicinal em um Brasil aterrorizado entre luzes e fantasmas”. Fórum Sociológico, n. 30 (II Série), pp. 57-66, 2017.).

A cannabis, ao longo do século XX, ganha destaque como substância psicoativa ilegal cujo consumo se dissemina com o padrão de consumo moderno e urbano (FRAGA, 2019FRAGA, Paulo. “A economia da plantio extensivo de cannabis no Brasil e as estratégias de repressão”. In: FRAGA, Paulo; CARVALHO, Maria (orgs). Drogas e Sociedade: Estudos comparados Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: Letra Capital Editora, 2019, pp. 140-154.). Em termos históricos, a disseminação de sua produção e consumo implicou mudanças no padrão de utilização, incorporando novas populações e grupos até então não consumidores (BOOTH, 2003BOOTH, Martin. Cannabis: A History. Nova York: Picador, 2003.). A internet e as redes sociais ajudaram a popularizar o conhecimento e acelerou o processo de aprendizagem para novos iniciados (BOUCHARD e DION, 2009BOUCHARD, Martin; DION, Claude. “Growers and Facilitators: Probing the Role of Entrepreneurs in the Development of the Cannabis Cultivation Industry”. Journal of Small Business & Entrepreneurship, vol. 22, n. 1, pp. 25-37, 2009.; POTTER et al., 2015POTTER, Gary et al. “Global patterns of domestic cannabis cultivation: Sample characteristics and patterns of growing across eleven countries”. International Journal of Drug Policy, vol. 26, n. 3, pp. 226-237, 2015.).

Fenômeno correspondente a novas concepções morais, práticas individuais e associativas conduziram a uma visível progressão do cultivo doméstico para consumo próprio em muitos países (DECORTE, POTTER e BOUCHART, 2011DECORTE, Tom; POTTER, Gary; BOUCHART, Martin. World Wide Weed: Global Trends in Cannabis Cultivation and its Control. Farnham: Ashgate Publishing, 2011.). Bouchard (2007)BOUCHARD, Martin. “A Capture-Recapture Model to Estimate the Size of Criminal Populations and the Risks of Detection in a Marijuana Cultivation Industry”. Journal of quantitative criminology, vol. 23, n. 3, pp. 221-241, 2007., em seu estudo sobre cultivos ilícitos de cannabis em Quebec, no Canadá, revelou que a erradicação de cultivo ao ar livre era mais frequente que o cultivo doméstico. Entretanto, a possibilidade de detenção legal dos cultivadores era maior entre aqueles que realizavam o cultivo indoor. Outro estudo comparativo sobre cultivadores domésticos de maconha para fins psicoativos e medicinais realizado na Bélgica, na Dinamarca e na Finlândia revelou que, apesar de diferenças legais e de políticas de drogas mais ou menos repressivas, além dos riscos da atividade ilegal em cada um dos países estudados, os cultivadores domésticos não pretendiam interromper suas práticas (ATHEY et al., 2013ATHEY, Nicholas et al. “Cannabis Cultivation and Detection: A Comparative Study of Belgium, Finland and Denmark”. Drugs: Education, Prevention and Policy, vol. 20, n. 3, pp. 203-215, 2013.).

Decorte (2010)DECORTE, Tom. “The Case for Small-Scale Domestic Cannabis Cultivation”. International Journal of Drug Policy, vol. 21, n. 4, pp. 271-275, 2010., em um estudo pioneiro com cultivadores domésticos, argumenta que o plantio em pequena escala ou cultivos de amadores domésticos já se constituíam um segmento relevante do mercado canábico, seja sob uma perspectiva quantitativa ou qualitativa, e apontava para as diferenças significativas dos objetivos de quem fazia esse tipo de cultivo. Os resultados de seu trabalho apontam que muitos atores foram motivados a iniciar suas práticas de jardinagem devido à insatisfação com a maconha que consumiam, considerada por eles forte e quimicamente reforçada, e desejavam um produto mais suave, saudável e orgânico.

Nos últimos anos, portanto, diversos estudos (HAKKARAINEN et al., 2015HAKKARAINEN, Pekka et al. “Growing Medicine: Small-Scale Cannabis Cultivation for Medical Purposes in Six Different Countries”. International Journal of Drug Policy, vol. 26, n. 3, pp. 250-256, 2015.; HOUGH et al., 2003HOUGH, Mike et al. A Growing Market: The Domestic Cultivation of Cannabis. York: Joseph Rowntree Foundation, 2003.; POTTER et al., 2015POTTER, Gary et al. “Global patterns of domestic cannabis cultivation: Sample characteristics and patterns of growing across eleven countries”. International Journal of Drug Policy, vol. 26, n. 3, pp. 226-237, 2015.; VERÍSSIMO, 2017VERÍSSIMO, Marcos. Maconheiros, fumons e growers: Um estudo comparativo dos consumos e cultivos caseiros de canábis no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. Rio de Janeiro: Autografia, 2017.), com distintas perspectivas analíticas e metodológicas e realizados em contextos sociais específicos, vêm analisando o incremento do cultivo caseiro de cannabis, seja para fins medicinais ou para uso psicoativo, ou para ambos os casos (HAKKARAINEN et al., 2017HAKKARAINEN, Pekka, et al. “Examining the Blurred Boundaries between Medical and Recreational Cannabis-Results from an International Study of Small-Scale Cannabis Cultivators.” Drugs: Education, Prevention and Policy, vol. 26, n. 3, pp. 250-258, 2017.). Assim, o conhecimento sobre redes de cultivadores, as motivações para o investimento na atividade e as relações que se estabelecem entre o legal e o ilícito se tornaram objeto de investigação.

A pesquisa que originou este artigo pretendeu, no bojo dos estudos sobre cultivadores domésticos, investigar os principais argumentos de quem cultiva maconha em casa para uso social psicoativo ou recreativo, como é comumente rotulado pelo senso comum. Objetivou-se analisar, a partir de observações diretas, interações com os atores e entrevistas semiestruturadas, como se constitui uma moralidade específica a partir dessa prática normalmente tomada no Brasil como ilegal, imoral e ilícita. A pesquisa mostrou como emerge uma moralidade específica em torno de uma fundamentação de sentidos comuns por meio da gramática moral desses atores enredados pela prática de cultivo do próprio verde.

Feitas as considerações iniciais, este trabalho terá por objetivo discutir três questões levantadas pela pesquisa: quais são as motivações morais que configuram a gramática dessa rede observada? Quais móbeis morais se assentam como princípios dessa associação de atores? Como sucedem as relações sociais que emergem da prática de cultivo caseiro da própria maconha para uso social psicoativo?

A partir deste preâmbulo, o artigo será dividido em quatro seções. A primeira traz algumas considerações metodológicas. A segunda aborda o modelo teórico-analítico utilizado no estudo e apresenta alguns conceitos-chave. Em seguida, a terceira seção apresenta as motivações e a gramática moral que os atores pesquisados mobilizam para justificar a prática de cultivo da própria maconha. Por fim, discute-se as relações sociais configuradas por essa rede moral. Este trabalho tentará esclarecer, a partir da ótica dos próprios atores, que eles consideram a prática de plantar o próprio verde uma atividade normal, assim como configuram uma moralidade específica mediante essa práxis.

Considerações metodológicas

O estudo seguiu o desenho de uma pesquisa qualitativa para investigar como determinados atores produzem o mundo à sua volta (FLICK, 2009FLICK, Uwe. “Desenho da pesquisa qualitativa”. In: FLICK, Uwe (org). Coleção Pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Bookman, 2009a.). Foi empreendido um estudo exploratório (GIL, 1991GIL, Antônio. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 1991.) baseado na observação direta, centrada nas ações coletivas apreendidas por meio de interações diretas (JACCOUD e MAYER, 2014JACCOUD, Mylène; MAYER, Robert. “A observação direta e a pesquisa qualitativa”. In: POUPART, Jean et al. (orgs). A pesquisa qualitativa: Enfoques epistemológicos e metodológicos. Rio de Janeiro: Vozes, 2014, pp. 254-294.), com o intuito de fazer um relato honesto das informações levantadas no decorrer do trabalho de campo e balancear, de um lado, as argumentações e concepções nativas e, de outro, as inferências do pesquisador (MALINOWSKI, 1978MALINOWSKI, Bronisław. “Argonautas do Pacífico Ocidental”. In: Malinowski: Coleção Os Pensadores. Abril Cultural: São Paulo, 1978.). A observação foi centrada em atores específicos e suas particularidades, e não em suas generalidades (WHYTE, 2005WHYTE, William. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.). O estudo amparou-se, ainda, na perspectiva do interacionismo simbólico proposto por Blumer (1986)BLUMER, Herbert. Symbolic Interactionism: Perspective and Method. California: University of California Press, 1986. para examinar como atores que plantam a própria maconha atribuem sentido e significado ao que pensam e fazem.

O mapeamento se deu por meio de trabalhos de campo nos mundos real e virtual (ANGROSINO, 2009ANGROSINO, Michael. “Etnografia e observação participante”. In: FLICK, Uwe (org). Coleção pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Bookman, 2009.) realizados por cerca de dez meses, sendo seis meses em redes sociais como o Facebook e no aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp, se aproximando de uma netnografia (KOZINETS, 2014KOZINETS, Robert. Netnografia: Realizando pesquisa etnográfica online. Porto Alegre: Penso, 2014.), e em visitas pontuais a alguns atores para a inserção dos pesquisadores no campo de pesquisa. Após essa breve aproximação, um dos autores deste artigo residiu em Vila Verde1 1 Todos os nomes dos atores e de lugares serão nomes fictícios para tratar lugares e atores reais e, dessa forma, resguardar o sigilo e anonimato das identidades dos participantes diretos e indiretos dessa pesquisa. durante quatro meses para interações, observações diretas e realização de entrevistas qualitativas. Nessa cidade foram mapeados, inicialmente, cinco atores que cultivavam a própria maconha e, por meio deles, fomos levados a muitos outros pela técnica de amostragem em bola de neve, uma vez que ela facilita o estudo de atores difíceis de serem acessados, sobretudo quando a pesquisa trata de questões sensíveis e privadas e requer conhecimento de atores enredados uns nos outros por meio de cadeias de referências não probabilísticas (VINUTO, 2016). Todavia, apenas mais quatro atores da mesma rede se disponibilizaram a participar da pesquisa concedendo entrevista, totalizando um universo de nove entrevistados.

O número de entrevistados foi menor do que o previsto e não alcançou a exaustão da técnica da bola de neve. Isso se deu, primeiramente, por uma razão constatada por Veríssimo (2017)VERÍSSIMO, Marcos. Maconheiros, fumons e growers: Um estudo comparativo dos consumos e cultivos caseiros de canábis no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. Rio de Janeiro: Autografia, 2017.: a quantidade de atores que cultivam sua própria maconha é muito pequena dentro do grande universo dos que apenas consomem, uma vez que plantar, colher e consumir o próprio verde não é um trabalho fácil. Ademais, entre os muitos atores que tentam se inserir na prática, poucos têm sucesso. Outro motivo está relacionado ao fato de que um dos atores previamente contatado, que havia concordado em participar da pesquisa, foi autuado pela polícia. Essa ocorrência presumivelmente denotou constrangimentos e receios em outros atores que mostraram interesse em colaborar com a pesquisa. Depois disso, muitos atores diminuíram as interações quando era citado o tema da concessão de entrevistas. Outros, até então mais receptivos com a relativa interação on-line, visualizavam as mensagens em redes sociais e nem as respondiam quando era mencionado o tema das entrevistas. Por se tratar de uma prática passível de punições formais e informais (BECKER, 2009BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.), é compreensível a indisponibilidade e a redução do universo de entrevistados.

Não obstante essas dificuldades, o trabalho de campo por meio da observação direta permaneceu, as interações continuaram — em festas, lugares “legalize” (VERÍSSIMO, 2017VERÍSSIMO, Marcos. Maconheiros, fumons e growers: Um estudo comparativo dos consumos e cultivos caseiros de canábis no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. Rio de Janeiro: Autografia, 2017.), bares, entre outros espaços — e a confiança de alguns atores foi conquistada para a realização de entrevistas. Em relação a essas, buscamos fazer uma sociologia dos vocabulários de motivos (WRIGHT MILLS, 1940WRIGHT MILLS, Charles. “Situated Actions and Vocabularies of Motive”. American Sociological Review, v. 5, n. 6, pp. 904-913, 1940.), ou seja, analisar as razões alocadas para orientar o sentido das ações, examinando como um conjunto de formas de falar das ações intenta que elas possam ser consideradas aceitáveis (WERNECK, 2013WERNECK, Alexandre. “Sociologia da moral como sociologia da agência”. RBSE: Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, vol. 12, n. 36, pp. 704-718, 2013.). Ainda, busca-se a plurivocalidade por meio da polifonia de vozes; ou seja, foram enfatizadas as vozes dos atores entrevistados com o intuito de maximizar a representação de ideias e perspectivas e, assim, conferir um aspecto de autoria coletiva ao trabalho (CALDEIRA, 1988CALDEIRA, Teresa. “A presença do autor e a pós-modernidade na antropologia”. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 21, pp. 133-157, 1988.).

Dos nove atores entrevistados, oito eram homens e apenas uma era mulher. Eles estavam compreendidos na faixa etária entre 20 e 50 anos de idade. Todos eram estudantes universitários (tanto da graduação como da pós-graduação), pertencentes à classe média e habitavam em bairros com boa estrutura urbana e de transporte de Vila Verde. Desse pequeno universo de nove entrevistados, três eram experientes no cultivo, dois eram intermediários e quatro, iniciantes. As entrevistas intentaram atingir um critério de saturação satisfatório dos pontos de vistas dos atores, isto é, repetições fartas dos espectros de suas elocuções. Entretanto, como anteriormente referido, não atingiram essa saturação.

Em relação à ética na pesquisa, foi estabelecida uma relação com os colaboradores próxima o suficiente para interagir e conversar sobre temas delicados e, ao mesmo tempo, buscar evitar gerar falsas expectativas (FLICK, 2009bFLICK, Uwe. “Qualidade na pesquisa qualitativa”. In: FLICK, Uwe (org). Coleção Pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Bookman, 2009b.). Ainda, foram levados em consideração alguns princípios básicos para uma pesquisa eticamente sólida: 1) o consentimento informado; 2) evitar enganar os entrevistados; 3) o respeito, a garantia e a manutenção da privacidade e da confidencialidade dos participantes; 4) a precisão dos dados e sua interpretação foram princípios orientadores, não ocorrendo qualquer omissão ou fraude com a coleta e análise de dados; 5) em relação aos participantes, o respeito aos atores foi considerado essencial; 6) foi levado em consideração o bem-estar dos participantes; e 7) tratamos a relação de benefícios e ônus para os participantes da pesquisa (FLICK, 2009bFLICK, Uwe. “Qualidade na pesquisa qualitativa”. In: FLICK, Uwe (org). Coleção Pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Bookman, 2009b.).

Os consentimentos informados dos colaboradores foram dados verbalmente no início das gravações das entrevistas. Embora tenha sido solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), ninguém aceitou assinar para se preservar contra possíveis imputações de sanções formais e informais. Do ponto de vista institucional, esse aceite informal não é válido. Contudo, a solução foi fazer o aceite informal verbal no início da gravação das entrevistas. Outro aspecto interessante foi o uso do gravador nas entrevistas, que fomentou duas questões: será que é preciso gravar as entrevistas? O gravador limita ou ajuda a pesquisa em contextos ilegais? Sobre a primeira questão, na maioria dos casos a gravação é indispensável para evitar anotações excessivas, servir como auxílio memória, permitir o retorno ao material bruto e possibilitar que o pesquisador avalie e melhore suas práticas de entrevistas (BARBOT, 2015BARBOT, Janine. “Conduzir uma entrevista face a face”. In: PAUGAM, Serge (org). A pesquisa sociológica. Petrópolis: Vozes, 2015, pp. 102-123.). No entanto, o gravador pode mais limitar do que ajudar nas pesquisas em contextos ilegais, quando a confiança do entrevistado não é totalmente obtida. Em algumas entrevistas realizadas, revelações importantes sobre aspectos morais e de interações com outros cultivadores somente foram declaradas após desligar-se o gravador.

A entrevista semiestruturada é uma técnica conveniente na pesquisa social, pois as falas dos colaboradores se referem a pensamentos, sentimentos, memórias, planos e discussões. A análise de conteúdo das entrevistas permitiu reconstruir indicadores permeados de cosmovisões, valores, atitudes, opiniões, entre outros, e compará-los (BAUER, 2015BAUER, Martin. “Análise de conteúdo clássica: uma revisão”. In: BAUER, Martin; GASKELL, George (orgs). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: Um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2015, pp. 189-217.). Os dados, tanto das entrevistas como das observações diretas, interações e leituras de teóricas, foram analisados a partir do material levantado no decorrer da pesquisa, de modo que teoria e problema foram articulados na seleção e categorização dos materiais em texto, implícita e explicitamente.

Modelo teórico-analítico e conceitos-chave

A ideia de rede atualmente desfruta de uma popularidade auspiciosa e é amplamente utilizada na linguagem comum, acadêmica e política, servindo para caracterizar uma grande variedade de fenômenos e objetos (MERCKLÉ, 2004MERCKLÉ, Pierre. Sociologie des réseaux sociaux. Paris: La Découverte, 2004.). Para compreender os atores que cultivam a própria maconha para uso psicoativo, a noção central é a de redes morais. Partindo da concepção de rede de Strathern (2014STRATHERN, Marilyn. “Cortando a rede”. In: O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014, pp. 295-319., p.304): “A rede é uma imagem adequada para descrever a maneira pela qual se pode ligar ou enumerar entidades díspares sem fazer suposições sobre níveis ou hierarquias” . Uma rede aqui é pensada como um plano cartesiano em que o mapa das associações entre certos atores compõe um mundo social, e eles devem ser seguidos para descrever suas marcas e trilhas produzidas nesse plano por meio do mapa de suas associações (LATOUR, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: Uma introdução à teoria ator-rede. Salvador: EDUFBA, 2012.). Indivíduos que têm em comum ideias, interesses, sentimentos ou ocupações não compartilhados com o restante da população podem se atrair graças às suas semelhanças, criar relações entre si e formar associações restritas no seio da sociedade, desprendendo dessas associações vidas morais específicas (DURKHEIM, 1983aDURKHEIM, Émile. “Prefácio da segunda edição da divisão do trabalho social”. In: Durkheim: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983a, pp. 3-21.).

É notório que as concepções de muitos autores aqui citados são demasiadamente divergentes. Latour (2012)LATOUR, Bruno. Reagregando o social: Uma introdução à teoria ator-rede. Salvador: EDUFBA, 2012. propõe como alternativa pensar o social como a busca de novas associações entre coisas que não são em si mesmas sociais, como pode ser o caso da interação entre humano e a planta cannabis. Durkheim (1983a)DURKHEIM, Émile. “Prefácio da segunda edição da divisão do trabalho social”. In: Durkheim: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983a, pp. 3-21., por sua vez, postula um campo referido apenas aos humanos e às sociedades modernas, mas traz a ideia central do caráter agregativo da moral. Strathern (2014)STRATHERN, Marilyn. “Cortando a rede”. In: O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014, pp. 295-319. permite pensar as redes sem suposições de níveis ou hierarquias. Ignorando conscientemente as diferenças entre esses autores, pensamos as associações em vários e ilimitados agregados em redes morais, bem como o movimento peculiar de reassociação e reagregação que perpassa a relação entre as regras formais e informais, entre atores morais cultivadores e a planta cannabis.

Uma moralidade pode ser apreendida por meio da associação direta ou indireta com aqueles que já praticam alguma ação, por um processo definido como associação diferencial (SUTHERLAND, 1940SUTHERLAND, Edwin. “White-Collar Criminality”. American Sociological Review, vol. 5, n. 1, pp. 1-12, 1940.). Atores distintos podem se associar e, a partir de associações morais particulares, desenvolver moralidades distintas. As moralidades dessas associações não perpassam apenas o interesse individual: o interesse associativo desenvolve ações morais capazes de absolver atos censuráveis pelo sucesso, pois os limites entre proibido e permitido, justo e injusto, não são mais fixos, tornando a autoridade de determinada regra inutilmente discordante (DURKHEIM, 1983aDURKHEIM, Émile. “Prefácio da segunda edição da divisão do trabalho social”. In: Durkheim: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983a, pp. 3-21.). Associações de atores dedicados a um mesmo ofício, mesmo que suas ações sejam consideradas irregulares ou extralegais, configuram moralidades específicas, dado as relações que constituem uns com os outros, pois se aproximam pela comunhão estreita de ideias, sentimentos e interesses, unindo-se para fazer jus a esses sentimentos, seja em contraposição às moralidades de outras associações ou àquelas institucionalizadas pelo Estado (Ibid.).

Nessa perspectiva, uma associação não é apenas uma autoridade moral que rege a vida de seus membros, mas uma fonte de vida sui generis, uma vez que o efeito moral que produz suscita sentimentos de similitude entre dois ou mais indivíduos que formam associações morais entre si (Ibid.). Logo, redes morais são entendidas como conexões sociais que interligam atores envolvidos em relações de similitudes morais, e dessas associações se desprendem vidas morais específicas e heterogêneas pelas sociedades afora — ou seja, moralidades plurais e distintas (CASTRO, 2019CASTRO, Marco. Redes morais: Um estudo exploratório sobre a solidariedade inerente ao cultivo caseiro de maconha para o uso social recreativo. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2019.). Nessas redes as relações são flexíveis e discretas, e os diferentes atores podem se conhecer ou não, interagir entre si ou não. Entretanto, as relações que estabelecem influenciam diretamente essas redes (BARNES, 1954). Nesse sentido, a ideia de relação caracteriza configurações específicas entre dois ou mais atores que mantêm ligações marcadas por uma mesma razão, lógica, interesse ou sentimento.

Uma rede moral, ou melhor, uma moralidade específica, pode ser entendida como uma espécie de ação social, ou seja, uma ação cujo sentido é imputado pelo comportamento de outros indivíduos e por ele se orienta (WEBER, 2009WEBER, Max. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 2009.). A diferenciação individual é um elemento central da atividade humana, e os impulsos mais diversos dos indivíduos os levam a se associar uns com os outros. A associação é a forma pela qual esses atores, em razão de seus interesses, se desenvolvem conjuntamente em direção às suas realizações (SIMMEL apud MORAES FILHHO, 1983). Dessas associações surgem agregações restritas no seio das sociedades e delas desprendem-se vidas morais específicas (DURKHEIM, 1983aDURKHEIM, Émile. “Prefácio da segunda edição da divisão do trabalho social”. In: Durkheim: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983a, pp. 3-21.). Embora essas três conceituações citadas sejam agonistas, dado que Weber (2009)WEBER, Max. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 2009., Simmel (apudMORAES FILHO, 1983MORAES FILHO, Evaristo (org). Simmel: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.) e Durkheim (1983a)DURKHEIM, Émile. “Prefácio da segunda edição da divisão do trabalho social”. In: Durkheim: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983a, pp. 3-21. as pensaram de diferentes maneiras, é possível desconsiderar suas controvérsias e pensar as redes morais como aquilo que acontece na interseção entre ação, interação/associação e agregação, não se restringindo a nenhum desses polos específicos, mas centrando nas relações morais configuradas no cômpito dessas três instâncias, pois consideramos que na realidade essas instâncias coexistem e são indissociáveis.

Todavia, a autoridade de uma regra também é fruto de uma regulamentação moral e jurídica (DURKHEIM, 1983aDURKHEIM, Émile. “Prefácio da segunda edição da divisão do trabalho social”. In: Durkheim: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983a, pp. 3-21.). O crime, ao se tornar um problema a ser resolvido, ganhou um aparato para combatê-lo, que veio a se chamar sistema de justiça criminal, composto pela polícia, por tribunais e prisões, que recebeu a tarefa de extirpá-lo ou contê-lo (BECKER, 2009BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.). Como exemplo-limite de acusação de um crime, a lei tem a pretensão de universalidade, e a crítica feita a alguém que praticou um ato criminalizado está no horizonte da negatividade moral do ato (WERNECK, 2013WERNECK, Alexandre. “Sociologia da moral como sociologia da agência”. RBSE: Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, vol. 12, n. 36, pp. 704-718, 2013.). Não é novidade que plantar a própria maconha no Brasil é considerado crime, além de ser considerado imoral, ilegal e ilícito, e atos considerados crimes invocam contra seus autores uma reação punitiva por parte da sociedade, sejam essas reações formais ou informais (BECKER, 2009BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.).

As reações formais no Brasil, ao tratar dos crimes e suas penalidades no que tange à produção de drogas ilícitas, sobretudo quando o crime se associa ao que é rotulado como “tráfico de drogas”, pode ser aplicável em alguns casos do cultivo caseiro da própria maconha. A lei no 11.343, em seu art. 33, expõe que quem preparar, produzir, fabricar, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, pode ser penalizado em reclusão de cinco a 15 anos, além do pagamento de R$ 500 a R$ 1.500 dias-multa, enfatizando que as mesmas penas se aplicam a quem semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas que se constituam matéria-prima para a preparação de drogas (BRASIL, 2006BRASIL. Lei ordinária nº 11.343, de 23 de agosto de 2006: Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Brasília, DF: Presidência da República, 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
)2 2 Vale salientar que o Brasil (2019) alterou a lei nº 11.343, de 2006, para a lei nº 13.840 de 05 de Junho de 2019, mas a alteração não trouxe mudanças significativas na lei anterior e apenas definiu as condições de atenção e tratamento aos usuários ou dependentes de drogas e, ainda, trata do financiamento dessas políticas. .

Interessante salientar que o art. 28 da mesma lei estabelece que:

Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (Ibid.).

Mais adiante, no mesmo caput, especificamente nos parágrafos 1º e 2º, essas regras formais estabelecem que o mesmo se aplica a quem semeia, cultiva ou colhe plantas para consumo próprio, principalmente em pequenas quantidades. Porém, determinar se a quantidade é destinada ao consumo próprio muitas vezes acaba por ficar a critério dos policiais, quando abordados, assim como dos delegados, quando autuados, e dos juízes, quando julgados. Os julgamentos destes últimos podem ser feitos a partir das condições sociais e pessoais dos atores processados. Entretanto, nos últimos anos têm surgido casos de juízes que concedem habeas corpus (HC) preventivos para atores que provocam a justiça nesse sentido, visando usufruir dos benefícios medicinais da planta. Essas demandas que partem dos próprios pacientes de determinadas doenças visam assegurar o direito à saúde utilizando os efeitos benéficos de uma planta cujo cultivo é proscrito. No entanto, os HC, quando expedidos por juízes, restringem-se ao uso medicinal e documentado com prescrição médica.

O que é considerado transgressão de princípios formais e informais hoje pode ser a antecipação de uma moral que está por vir amanhã, pois tais atos têm relação direta com as mudanças na moralidade e no direito das mais distintas sociedades (DURKHEIM, 2007DURKHEIM, Émile. “Regras relativas à distinção entre o normal e o patológico”. In: As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 49-76.). Prostitutas, viciados em drogas, delinquentes, criminosos, ciganos, vagabundos, gigolôs, homossexuais, mendigos, entre outros, são tipos de indivíduos considerados engajados em uma espécie de negação coletiva da ordem social, pois se considera que lhes falta moralidade (GOFFMAN, 1970GOFFMAN, Erving. Estigma: La identidad deteriorada. Buenos Aires: Amorrortu, 1970.). Mas há de se considerar que o agir no social, especialmente ao se lidar com desafios situacionais, promove competentemente ações em determinadas situações para contornar certos obstáculos (WERNECK, 2013WERNECK, Alexandre. “Sociologia da moral como sociologia da agência”. RBSE: Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, vol. 12, n. 36, pp. 704-718, 2013.). Considerando novamente a coexistência e a interseção entre agregação, interação e ação, atores que praticam transgressões morais, como usufruidores-cultivadores de maconha, têm um papel social especial, pois suas práticas e ações são fonte de novas moralidades, ao fornecerem modelos de vidas morais para os ditos normais, podendo obter não só a simpatia de alguns destes, mas também a adeptos de suas moralidades.

Portanto, pode-se considerar que ações reflexivas e interações surgem em contraposição às reações formais e informais sem perder suas determinações essenciais, e os pontos de vista dos atores que se encontram subjugados são emergências de suas subordinações experimentadas, uma vez que esses atores estabelecem novos valores (MISSE, 2010MISSE, Michel. “Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria bandido”. Lua Nova, n. 79, pp. 15-38, 2010.). Atores considerados desviantes por infringir determinações formais e informais geralmente não aceitam a imposição da regra pela qual são julgados, pois podem compreender que seus julgadores não são competentes ou legitimamente autorizados para fazê-lo (BECKER, 2009BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.). Quando se trata da ordem moral e de sua antítese, atores podem agir antiteticamente porque acreditam dogmaticamente que podem contornar uma ordem para estabelecer uma “boa” ordem (MAGALHÃES, 1994MAGALHÃES, Raul. Crítica da razão ébria: Reflexões sobre drogas e a ação imoral. São Paulo: Annablume, 1994.). Isso foi observado no caso dos atores que plantam a própria maconha.

Nessa perspectiva, é importante salientar a simetria entre as características do que é considerado moral e imoral, principalmente sobre a mesma natureza de ambos (DURKHEIM, 1983bDURKHEIM, Émile. “Décima lição: Deveres gerais, independentes de todo grupo social. O homicídio”. In: Lições de Sociologia: A Moral, o Direito e o Estado. São Paulo: Editora EduUsp, 1983b, pp. 99-108.). Logo, pode-se considerar que os atos punidos como imorais não têm nada em sua natureza que os diferencie dos atos considerados morais, pois se tratam de atos da mesma espécie. Sendo assim, atos considerados imorais não produzem desagregação, mas reagregação, isto é, formam uma nova agregação moral em torno dos atos punidos como imorais. Além disso, uma acusação de imoralidade é resultado de um conflito, geralmente desigual e assimétrico, entre moralidades distintas (MAGALHÃES, 1994MAGALHÃES, Raul. Crítica da razão ébria: Reflexões sobre drogas e a ação imoral. São Paulo: Annablume, 1994.). Então, aplicar o rótulo de desviantes, anormais ou criminosos a atores que plantam maconha para o próprio consumo, nessa perspectiva de simetria, seria aceitar os valores das moralidades que formularam tais julgamentos.

Como aponta Werneck (2012WERNECK, Alexandre. A desculpa: As circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 35), “[o] conflito sempre será centralmente uma questão da moral”. Ademais, é uma das mais vívidas formas de interação, podendo servir para resolver dualismos divergentes e conseguir algum tipo de unidade, seja pacificamente ou por meio da aniquilação de uma das partes conflitantes, sendo este último o resultado violento do conflito (SIMMEL apudMORAES FILHO, 1983MORAES FILHO, Evaristo (org). Simmel: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.). A moral é o mundo do conflito dogmático, e quando o conflito coloca limites entre opressão e autonomia, estabelece agregações endógenas e exógenas nos dois polos conflituosos (MAGALHÃES, 1994MAGALHÃES, Raul. Crítica da razão ébria: Reflexões sobre drogas e a ação imoral. São Paulo: Annablume, 1994.).

Os conflitos configurados pelos transgressores de regras, quando se trata da ordem social e de sua antítese, suscitam conflitos políticos, considerando-se que a política está relacionada a qualquer ação intencional e estratégica que envolve o poder, formal ou informal, tornando as altercações de certos atores com seus eventuais acusadores em um conflito político (Ibid.). Logo, há um aspecto político intrínseco ao fenômeno de plantar a própria maconha para uso social psicoativo, e tal aspecto emerge dos conflitos que se estabelecem nessa relação entre imposição, sujeição e transgressão de códigos formais e informais. A partir dessas dissidências morais, os atores enfrentam as coerções formais e informais que vivenciam para configurar uma vida moral sui generis, isto é, uma moralidade específica, inclusive diferente de quem apenas consome maconha e não cultiva o próprio verde.

Nesse sentido, a questão dos usufruidores-cultivadores de maconha destaca um problema de atenção pública (BRANDÃO, 2014BRANDÃO, Marcílio. “O ‘problema público’ da maconha no Brasil: Anotações sobre quatro ciclos de atores, interesses e controvérsias”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 7, n. 4, pp. 703-740, 2014.), sobretudo do reconhecimento de um novo direito, pois se trata de uma nova força moral. Nessa perspectiva, novas forças morais demandam reconhecimentos de novos direitos para a abertura do horizonte valorativo de uma sociedade às variadas formas de autorrealização pessoal, dado que o atual direito corresponde a uma forma de desrespeito que perpassa a privação de direitos (HONNETH, 2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.). Como exemplo de demanda de um novo direito, a Marcha da Maconha no Brasil pode ser vista como uma ação coletiva moralmente empreendida para a reversão do estigma associado aos usos da planta, e destaca os argumentos que os marchadores mobilizam para reverter o estigma que os assolam e normalizar suas práticas (BRANDÃO, 2017BRANDÃO, Marcílio. “Em Marcha: Maconha e a reversão de um estigma”. Praça: Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, vol. 1, n. 1, pp. 47-69, 2017.). Todavia, a regulamentação do porte, cultivo e distribuição comercial e não comercial de maconha ainda se apresenta como um paradigma legal de redução de danos (VIDAL, 2009VIDAL, Sérgio. “A regulamentação do cultivo de maconha para consumo próprio: uma proposta de redução de danos”. In: NERY FILHO, Antônio et al. (orgs.). Toxicomanias: Incidências clínicas e socioantropológicas. Salvador: EDUFBA, 2009, pp. 61-96.).

As justificações e a gramática moral dos usufruidores-cultivadores do ‘verde’

Como anteriormente dito, um dos autores desse artigo residiu quatro meses em Vila Verde, interagindo e contatando cultivadores domésticos de cannabis. As entrevistas foram as fontes mais importantes de informações. O primeiro a ser entrevistado foi João, que, após diversas interações, tanto face a face como via redes sociais, foi contatado e marcamos de jantar juntos. Em seguida, um dos autores deste artigo foi à sua casa para a primeira entrevista. Quando perguntado sobre o início de suas atividades, João disse:

— Vai fazer um ano que comecei a plantar. Colhi poucas plantas, porque plantar maconha não é ter sempre. Por a gente ser usuário diário, tem que ter um cultivo muito grande e muito espaço para poder colher uma quantidade suficiente para o próprio sustento. E não faz sentido comprar, porque têm dois polos de ilegalidade. Se eu estou comprando, estou participando do tráfico. Então, entre ficar nessa ou ficar na outra ilegalidade, que é plantar, e sair dessa ilegalidade, que é o tráfico, eu prefiro plantar.

Após a entrevista, cerca de uma hora depois, João mostrou-se preocupado com suas declarações e a expressou ao pesquisador via WhatsApp, relatando: “Cuidado com esse material, mano. Na moral, você tem material para me colocar na cadeia por pelo menos um ano, estou confiando em você”. Entretanto, foi tranquilizado com informações sobre o compromisso ético assumido em manter anonimato quanto às declarações prestadas.

Considerando dois operadores clássicos da accountability social, a justificação e a desculpa, aqui a justificação se apresenta como dispositivo linguageiro de resposta aos julgamentos, críticas e acusações morais que esse ator enfrenta (WERNECK, 2013WERNECK, Alexandre. “Sociologia da moral como sociologia da agência”. RBSE: Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, vol. 12, n. 36, pp. 704-718, 2013.), uma vez que João sabe exatamente o que está fazendo e apresenta em sua narrativa as motivações de cultivar a própria maconha, que basicamente consiste em não recorrer ao comércio ilegal para suprir sua demanda de consumo diário de cannabis. Mas ele evidencia que sua produção não é suficiente para suprir seu consumo diário, relatando que ainda recorre ao comércio ilegal e sua maconha, vista como extraordinária, fica resguardada para uso em ocasiões especiais. É interessante observar que, por um lado, seu constructo trabalha na gramática moral de seu ato e, por outro, reforça a condenação do comércio ilegal e alia sua narrativa aos preceitos legais que critica.

Os próximos entrevistados foram Ronaldo e Gilberto, que dividiam uma chácara onde moravam juntos e cultivavam e dividiam sua própria maconha. No momento oportuno um de nós foi convidado para almoçar na casa deles. O clima era de tensão, pois estavam preocupados com a entrevista. A presença do gravador de áudio era um elemento que causava um grande desconforto, como se a entrevista fosse a confissão de uma atividade ilegal, segundo nossa percepção. Gilberto argumentou:

— Acho que depois de um tempo fumando você percebe, por causa das experiências e morando em um lugar propício, que você quer experimentar uma coisa natural, uma coisa que é uma maconha de verdade, não é misturada com nada, não é prensada3 3 “Prensado” é como esses atores intitulam a modalidade maconha comprimida em prensa, que geralmente vem do Paraguai, e é comercializada ilegalmente. , não adicionam coisas nela.

Ronaldo complementou:

— Eu acho que quando a gente teve o primeiro contato com um bud4 4 Green, bud, verde ou verdinho são as formas mais usuais dos interlocutores nomearem a maconha que cultivam. de verdade é que a gente teve interesse de plantar. Aí você percebe que é uma coisa pura, uma onda completamente diferente. Aí pensei: “Quero plantar isso aí e não precisar comprar no morro ou favela”. Só que eu tenho muito medo, porque depende muito da ocasião. Eu nunca vendi droga [disse batendo na mesa], eu nunca vou vender droga [continuou batendo na mesa], e isso é uma questão minha [batendo no peito], isso é uma questão pessoal minha [batendo na mesa mais algumas vezes]. Eu não tenho o que mostra que eu vendi, então não tem como provar nada que eu já vendi. Só que eu acho que se chegassem aqui e se eu tivesse com minhas plantas, com certeza eu seria oprimido, iam levar minhas plantas, me levar para delegacia, fazer boletim. Depois que conhecessem minha história provavelmente eu seria liberado, mas e o transtorno que eu ia passar apenas por estar plantando dentro de minha casa e fumando minha maconha? Eu acho isso muito pesado.

“Agir no social, dessa maneira, passa a ser se deparar com os desafios situacionais e lançar mão competentemente de coisas do mundo para dar conta das ações/situações” (WERNECK, 2013WERNECK, Alexandre. “Sociologia da moral como sociologia da agência”. RBSE: Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, vol. 12, n. 36, pp. 704-718, 2013., p. 707). Usuários de substâncias psicoativas tendem a ocultar o uso para não darem bandeira, ou seja, não demonstrarem que fizeram uso de psicoativos (VELHO, 2008VELHO, Gilberto. Nobres & Anjos: Um estudo sobre tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: FGV, 2008.). Analogamente, Ronaldo e Gilberto tentaram não dar bandeira sobre plantar a própria maconha, e suas argumentações foram demasiadamente desconfiadas, tomaram muito cuidado para não ser registrado na gravação da entrevista que eles estavam cultivando. Eles só admitiram a prática de cultivo quando o gravador foi desligado. Quase dois meses depois, quando um de nós foi convidado para a festa de aniversário de Gilberto, eles disseram que não havia problemas em colocar na pesquisa que eles estavam plantando, pois já tinha passado um tempo e eles tinham confiança de que não seriam identificados. Ocultar o cultivo da própria cannabis apareceu em todas as entrevistas como uma estratégia de autopreservação, pois esses atores se colocam moralmente em conflito com as diretrizes formais e informais (BECKER, 2009BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.).

Ademais, nas exposições desses dois entrevistados foi possível observar que iniciar o cultivo do próprio verde é algo motivado pela experiência de conhecer essa modalidade de maconha cultivada em casa pela primeira vez por meio de interações que estabeleceram em suas redes de sociabilidade, o que é correlato à proposição de Becker (2009)BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. em seu estudo sobre como pessoas se tornam usuárias de maconha. Esses atores são alguns dos poucos no universo dos nove entrevistados que relataram conseguir suprir a fruição diária da própria maconha plantada, não recorrendo ao comércio ilegal para consumir a planta diariamente. Eles também fizeram um esforço para desassociar suas imagens da personagem traficante de drogas. Isso foi notório quando Ronaldo bateu na mesa e no peito, afirmando que planta apenas para seu consumo e não para o comércio ilícito — sua prática decorre do intuito de evitar adquirir maconha do comércio ilegal.

A entrevista Joaquim seria em sua casa, mas por conveniência a entrevista foi realizada na Universidade de Vila Verde, pois a aula que ele teria naquele dia foi cancelada e teria tempo livre. Procuramos então uma área com pouco movimento de pessoas, pois não queríamos ser interrompidos. Ele relatou:

— Eu comecei a plantar quando eu vim para Vila Verde, em 2015, e estava osso [ruim] depender do tráfico. E o mal que isso traz para outras pessoas. E isso [plantar] é uma coisa que é ligada somente a mim, ao meu uso, e talvez às pessoas que estão ao meu redor, que fazem o uso também, mas eu não preciso envolver terceiros nesse processo. Aí eu resolvi fazer o plantio por causa disso. Hoje eu não tenho uma produção que me atende totalmente, então eu acabo tendo que recorrer ao prensado para usar diariamente.

Na justificação há uma tentativa de renegar a qualificação pejorativa de um ato, pois no caso o criticado/acusado considera que a crítica/acusação foi feita de forma injusta e baseada em algum princípio que não corresponde àquele usado por ele para tornar efetiva sua ação (WERNECK, 2013WERNECK, Alexandre. “Sociologia da moral como sociologia da agência”. RBSE: Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, vol. 12, n. 36, pp. 704-718, 2013.). Isso pôde ser observado em todas as narrativas. Ademais, na fala de Joaquim evidenciam-se as motivações que o levaram a plantar a própria maconha, que perpassa o mesmo espectro de não se envolver com o comércio ilegal, sobretudo com a figura do traficante — enfim, os mesmos argumentos anteriores, e que não por coincidência também foram os argumentos dos outros entrevistados, pois essa argumentação se revela como a principal gramática moral de cultivar o próprio verde. A gramática moral dessa rede vai se constituindo por meio de um processo de aprendizagem moral que conduz, por meio de diversos níveis de lutas e conflitos, relações que exigem tanto o reconhecimento recíproco como a formação do eu prático (HONNETH, 2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.).

Após a entrevista um de nós ficou conversando com Joaquin e ele contou que tinha comprado pela internet umas sementes “automáticas” — plantas de uma genética específica que podem ser colhidas entre três e quatro meses após o plantio —, mas que havia ouvido um relato que o deixou preocupado com a possibilidade da polícia chegar à sua casa, encontrar as plantas e o incriminar. A narrativa foi sobre alguns moradores de uma república de estudantes que haviam comprado sementes pela internet duas vezes. Na primeira vez as sementes chegaram, mas na segunda não. Após alguns meses, quem comprou as sementes em seu cartão de crédito recebeu uma intimação da Polícia Federal (PF) para depor em uma unidade da Justiça federal de uma cidade próxima. Embora o intimado estivesse com algumas plantas de maconha em sua casa, ele não se atinou que a PF estaria intimando-o para depor sobre as sementes, pois ele tinha sofrido um acidente de carro em uma rodovia federal e pensou que a intimação fosse sobre isso. Joaquim estava muito preocupado, visto que tinha três plantas em sua casa e estava com receio de a polícia chegar à sua residência, mesmo solicitando para a entrega ser feita no endereço de sua namorada, pois a encomenda foi feita em seu cartão de crédito e ele tinha diversas contas em seu nome, como internet e luz, que chegavam nesse endereço.

Certo dia um de nós recebeu uma mensagem via Facebook de Ramos, que morava com Maria Joana: “Bom dia, vai arrumar o que à tarde?”. Respondi: “Nada, por enquanto”. Ele enviou outra mensagem: “Se quiser pode vir aqui pra gente fazer a entrevista”. Chegando à casa deles, assim que entrei me deparei com uma garagem sem carro e cheia de plantas. Ali estavam três plantas de maconha camufladas entre outras; era preciso prestar muita atenção para observar as plantas de maconha ali no meio. Maria Joana fez um café e fomos para a sala gravar nossa entrevista. Eles dois também não conseguem sustentar o uso diário de maconha com o próprio cultivo e, por isso, ainda recorrem ao comércio ilegal, ficando evidente quando Maria Joana relata:

— Plantamos para fumar de vez em quando, porque a gente não tem um cultivo programado para fazer todas as etapas da planta e o tempo todo colher, a gente não consegue fazer isso. Igual hoje, a gente tem três vasos e quando for colher elas serão colhidas ao mesmo tempo. E até ter outras demora um tempo e a gente acaba consumindo do prensado.

Outro entrevistado foi Emanuel, que convidou um de nós para ir à sua casa. Chegando lá ele mostrou o seu quarto, onde havia várias plantas de maconha colhidas e penduradas de cabeça para baixo em fase de secagem. Embaixo das plantas em secagem havia duas cuias cheias de “camarões” — forma como a maconha também é denominada —, também em fase de secagem, mas já tirados do caule principal. Havia também muitos potes de vidro com “camarões” de diferentes espécies em fase de cura. Em seguida, Emanuel mostrou seu quinta, onde havia uma horta. Atrás de umas plantas com flores tinha uma espécie de estufa outdoor, com as laterais feitas de um plástico branco e o teto de telhas transparentes. Para chegar nessa estufa era preciso passar por uma espécie de trilha no meio de um mato grande no canto. Ele passou e quando um de nós ia passar ele disse: “Cuidado com meus guardiões”, apontando para uma enorme caixa de marimbondos que estava camuflada no meio daquele mato. Foi preciso passar com cuidado para não esbarrar naquilo e ter de lidar com um enxame de marimbondos antes de chegar à sua estufa, onde havia umas dez ou mais plantas, algumas pequenas, mas a maioria já em fase de floração. Emanuel indagou: “Que mal estou fazendo para a sociedade com isso?”. Ele é um dos poucos entrevistados que consegue consumir apenas a maconha cultivada por ele:

— Muitas vezes você tem de subir em um morro para buscar, se envolver com coisas que transformam a coisa. Eu te mostrei ali o tamanho do espaço que eu uso para cultivar minhas plantas. O que isso tira aqui no meu quintal? O que isso está oferecendo de risco para a sociedade em volta de mim? Isso não é nada, cara! Não tem nada ali. Se tem ali uns vasos com plantas, para mim facilita a vida. Já têm uns oito anos que eu não me envolvo com o tráfico de drogas. Subir o morro ou ir ali buscar com o fulano, ligar para o outro ciclano, sabe? Eu tenho aqui na minha casa o processo inteiro. E quando eles falam que você que financia o tráfico, é ridículo uma pessoa falar isso. O que financia o tráfico são leis que proíbem e criam essa brecha para existir um mercado paralelo de um produto que você poderia estar produzindo em sua horta. Então a culpa é sua? Porque a maconha vem sendo usada pela humanidade há milênios, e a culpa é nossa porque a gente continua fumando maconha? A gente vai sempre fumar maconha e a questão é a hipocrisia por trás disso.

Aqui, a agência competente aparece como uma agência moral que adquire a forma de um operador lógico, a competência, e a partir dessa agência-prática pode-se perceber que há várias linguagens de justificação (WERNECK, 2013WERNECK, Alexandre. “Sociologia da moral como sociologia da agência”. RBSE: Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, vol. 12, n. 36, pp. 704-718, 2013.). Essas linguagens constituem uma gramática por meio de um processo de aprendizagem moral que perpassa diversos níveis de lutas e conflitos morais (HONNETH, 2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.). Nessa perspectiva, pode-se conjeturar que essa rede de atores que cultiva o próprio verde configura uma gramática moral específica por meio do dispositivo linguageiro que mobilizam como resposta aos julgamentos, críticas e acusações morais que enfrentam, sejam formais e informais. Ainda, embora apareça em todas as entrevistas a argumentação de esses atores pretenderem consumir uma maconha de melhor qualidade e menos insalubre, referindo-se à maconha prensada oriunda do comércio ilícito — aquela comprimida em prensa e que geralmente vem do Paraguai —, a justificação comumente mobilizada é a que perpassa pelos argumentos de não adquirir maconha proveniente do comércio ilegal e, consequentemente, não o financiar. Percebe-se essa gramática comum em todas as falas dessa rede moral de atores que cultivam a própria maconha: a tentativa desses atores morais de desvincular suas imagens daquela de atores rotulados como traficantes de drogas.

A pragmática que visa separar a imagem dos usufruidores-cultivadores da própria maconha dos traficantes pode ser análoga à tentativa de limpeza simbólica proposta por Machado da Silva (2008)MACHADO DA SILVA, Luiz. Vida sob cerco: Violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008., que postula a separação moral e simbólica que os moradores das favelas fazem de si mesmos com os atores rotulados como traficantes, pois as desaprovações morais dos primeiros em relação aos segundos se constituem como fronteiras morais e simbólicas, embora as fronteiras entre o que é considerado moral e imoral sejam porosas, tênues e permeáveis (TELLES e HIRATA, 2007TELLES, Vera; HIRATA, Daniel. “Cidade e práticas urbanas: Nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito”. Estudos avançados, vol. 21, n. 61, pp. 173-191, 2007.).

Fraga (2012)FRAGA, Paulo. “Les actions d’éradication des plantations considérées illicites en Amérique Latine et au Brésil”. Déviance et Société, vol. 36, n. 2, pp. 115-135, 2012., em pesquisa desenvolvida com trabalhadores rurais envolvidos com plantios extensivos de cannabis, também analisou as narrativas de cultivadores que buscavam diferenciar suas atividades daquelas que classificavam como bandidos, alegando estarem trabalhando e não lesando alguém, embora reconhecessem a ação como ilegal. Logo, a tentativa de limpeza simbólica e moral que perpassa a gramática dessa rede busca separar suas imagens dos atores rotulados como traficantes. Entretanto, a maioria não consegue suprir seus consumos diários a partir de suas plantas, e o discurso que alia o próprio cultivo à prática de não alimentar o comércio ilegal e de buscar uma maconha de melhor qualidade esbarra no limite da produção dos usufruidores-cultivadores que não conseguem se abastecer, haja vista a baixa produção, e recorrem ao que condenam: o comércio ilegal e a maconha prensada.

Solidariedade, reciprocidade e cooperação entre growers

Tal qual uma matriz de vida moral sui generis, as associações morais configuram relações de assistência mútua, uma vez que caracterizam no seio das sociedades sentimentos, interesses e ideias comuns para se agregarem em torno de uma vida moral e constituir uma moralidade específica (DURKHEIM, 1983aDURKHEIM, Émile. “Prefácio da segunda edição da divisão do trabalho social”. In: Durkheim: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983a, pp. 3-21.). A reciprocidade das práticas situadas pode gerar solidariedade e a coerência da ação social dos atores envolvidos carece de consenso entre eles (GARFINKEL, 2018GARFINKEL, Harold. Estudos de etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 2018.). Dessa maneira, as moralidades que se desprendem pelas sociedades configuram entre determinados atores conexões de interesses, originando entre eles redes de assistência mútua, o que constitui uma organização entre os atores envolvidos, visto que essa é uma característica normal da vida comum entre indivíduos envolvidos em relações de similitudes morais. Portanto, será analisado nesta seção como se constituem as relações de cooperação, reciprocidade e solidariedade nas redes morais de usufruidores-cultivadores de maconha.

João cultiva sua cannabis dentro do guarda-roupa com iluminação artificial, em um sistema chamado indoor, e relatou:

— Quando chega num estado vegetativo eu levo para o outdoor [fora de casa], mas sempre semi-in e semi-out, tá ligado? Aí no caso dos outdoors são terceiros que fazem a fase de florescência para mim. Então acaba que meu ganho da planta é sempre menor que se eu tivesse colocado para florir aqui no guarda-roupa [indoor]. Eu sempre divido minhas plantas pela metade, eu nunca colhi uma planta inteira para mim. Às vezes uma planta dá 30 gramas e eu só fico com 15 dela, porque a metade fica com a pessoa que floriu para mim, porque ele também corre os mesmos riscos.

Sobre as relações de assistência mútua, foi possível constatar que existe um sistema meeiro diferente do identificado na pesquisa de Fraga (2006)FRAGA, Paulo. “Plantios ilícitos no Brasil: notas sobre a violência e o cultivo de cannabis no polígono da maconha”. Cadernos de Ciências Humanas-Especiaria, vol. 9, n. 15, pp. 95-118, 2006., em que o agricultor plantava a cannabis, o patrão a vendia e então dividiam o dinheiro entre eles. No relato de João foi possível constatar como se configura um sistema meeiro de divisão da maconha para consumo próprio entre esses usufruidores-cultivadores. Algumas dessas práticas também foram observadas diretamente, sobretudo entre ele, Ronaldo, Gilberto e Joaquim. Quando João foi inquirido se conhecia mais atores que cultivam e como ele se relacionava com eles, explicou:

— É por isso que a gente conhece pessoas e growers. Se a gente não se conhecesse e não se identificasse, a gente não aumentaria a rede. E a gente não troca necessariamente só informação, mas às vezes trocamos plantas, porque muitos têm que começar, tem muitas pessoas querendo começar, e eu acho que essas pessoas precisam de um norte se elas estão levando a mesma conduta que estou levando.

É possível notar como as relações pessoais e a reciprocidade configuram muitas interações, assim como trocas recíprocas a partir dos diferentes padrões de atividades e lógicas de pertencimento em que certos atores se envolvem (WHYTE, 2005WHYTE, William. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.). João expõe como estabelece relações de assistência mútua com outros atores que aspiram começar a cultivar a própria maconha, argumentando que outras pessoas que se dispõem a levar a mesma conduta, considerada ilícita, ilegal e imoral, precisam de um norte para começar. Ademais, ele relata que nesse processo de assistência mútua eles trocam não apenas informações e conhecimento, mas também plantas, sementes e até mesmo a maconha pronta para fruição.

Consoante Durkheim (1983a)DURKHEIM, Émile. “Prefácio da segunda edição da divisão do trabalho social”. In: Durkheim: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983a, pp. 3-21., desde a sociedade romana e a Idade Média os artesãos, para satisfazer seus interesses, tiverem que recorrer a procedimentos extralegais ou irregulares, pois a sociedade não lhes estava aberta, e por meio de suas funções de assistência recíproca formaram redes de solidariedade e cooperação. No decorrer das entrevistas e das observações diretas foi possível constatar como essa rede de assistência mútua ficava cada vez mais evidente no universo dos nove entrevistados. Além disso, com o tempo o consumo de maconha faz com que desapareçam nos desfrutadores as possíveis resistências iniciais que compunham a associação do uso de maconha às coisas marginais, e o uso passa a assumir uma conotação habitual de algo prazeroso, pacífico e inócuo (MACRAE e SIMÕES, 2000MACRAE, Edward; SIMÕES, Júlio. Rodas de fumo: O uso da maconha entre camadas médias. Salvador: EDUFBA, 2000.). Analogamente, com o tempo de cultivo da própria maconha e a assistência recíproca a prática de cultivo também se apresenta para esses atores como algo prazeroso, pacífico e inócuo.

Sobre esse aspecto, Ronaldo explanou: “Conheço alguns amigos e a gente troca informações de como fazer, manipular melhor a planta. Com certeza o conhecimento tem de ser passado adiante”. E Gilberto, que mora com Ronaldo, complementou: “A gente troca informações para poder plantar e ter um rendimento um pouco melhor”. Esses dois colaboradores mostraram, no decorrer de toda a entrevista, certo temor em relatar os detalhes de suas relações com outros atores que também cultivam o próprio verde, mas relataram que conhecem e se relacionam com eles. Foram observadas diretamente muitas das relações de assistência mútua e cooperação entre eles, João e Joaquim, pois esses quatro atores eram amigos muito próximos e sempre estavam conversando sobre técnicas de plantio e trocando sementes, clones e até bud entre eles. Percebe-se em suas falas que partilhar conhecimentos sobre o cultivo é relevante para o sucesso na prática e, nesse sentido, pode-se observar que a cooperação está presente em suas relações com outros atores com a mesma conduta moral.

Sobre esse sistema de assistência mútua, Joaquim expôs o seguinte:

— Sim, sim! Conheço! Eu até brinco com a galera que a gente está começando uma coisa que tem no Uruguai, que são os clubes de cannabis, que a galera se reúne para poder plantar para o consumo comunitário e coletivo. E aqui a gente tem meio isso, eu e mais uns amigos plantamos, a gente sabe que todos plantam. Então a gente troca informações, uma coisa que dá errado com um e dá certo com outro, a gente cruza essas informações de utilização do grow indoor, tempo de luz, ventilação, troca de mudas de plantas etc. Então a gente faz um sistema bem coletivo de troca de informações, sementes, mudas, para poder ajudar a quem se disponha a correr o mesmo risco. Porque a gente pensa: “Eu estou fazendo isso”. E o outro: “Eu também estou fazendo isso”. Então nós estamos juntos! E quando vi tem cinco ou seis que fazem, às vezes moram juntos, às vezes não. Então a gente começa meio que [a] fazer uma sociedade ali de pessoas com o mesmo fim, não é? Todo mundo correndo o mesmo risco, mas com o mesmo intuito de sair dessa ideia do tráfico e poder ter esse sustento próprio através do próprio plantio.

Condições de confiança surgem de um compromisso moral subjacente para que a ação social colaborativa seja possível. Ou seja, para a aceitação de atores em um círculo de reciprocidade moral o requisito de confiança é relevante e indispensável (GARFINKEL, 2018GARFINKEL, Harold. Estudos de etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 2018.). Joaquim segue a mesma linha de respostas, isto é, também interage e se relaciona com outros atores que plantam a própria maconha. Além disso, é relevante salientar que o risco intrínseco à prática de cultivo também aparece como uma característica que pode ser vista como uma das fontes de coesão entre esses atores (DURKHEIM, 1983aDURKHEIM, Émile. “Prefácio da segunda edição da divisão do trabalho social”. In: Durkheim: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983a, pp. 3-21.).

Antônio declarou:

— Sim, nós trocamos informações. Que nem esse amigo meu que eu falei mais cedo que é da minha cidade, que plantava e tal. Ele plantava num esquema muito bruto, até fazia uns materiais pra gente ler e ver tudo que ele fez. Então a gente compartilhava bastante informação. Daí ele parou de plantar, parou de fumar, aí não troco informação mais, mas se for o caso de eu perguntar, ele vai saber me ajudar e responder. E aqui em Vila Verde tem a galera que planta também, mas eu acho que não ficam falando por aí que plantam. Mas uma ou outra pessoa que eu sei que planta, nós compartilhamos informações. Mas é uma coisa bem restrita ainda, porque ninguém fica falando que planta e tal. Aí você vê como é que a ilegalidade reflete nisso, e se não fosse ilegal todo mundo ia falar, compartilhar informações, compartilhar espécies de plantas, variedades etc.

A reciprocidade faz-se momento a momento, movimento a movimento, e precisa de constante cooperação e confiança mútua entre os atores envolvidos (GARFINKEL, 2018GARFINKEL, Harold. Estudos de etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 2018.). Nas falas de Antônio também é possível identificar como se dão essas relações. Embora essa rede de solidariedade se constitua entre um grupo reservado de atores, ela é caracterizada pela confiança mútua e pelo compartilhamento de princípios morais comuns. Nesse sentido, é possível constatar uma configuração de tipo voluntarista, ou seja, uma moral associativa que estabelece laços de participação moral eletiva entre determinados atores sociais (PAUGAM, 2018). Sendo assim, essas associações em redes configuram de forma eletiva relações de assistência recíproca, que ocorrem entre atores com o objetivo de satisfazer seus sentimentos e interesses para com o cultivo da própria maconha. Como se trata de uma prática ilegal, o compartilhamento de princípios morais comuns em relação à prática exige também a configuração de relações de confiança mútua entre eles.

Em entrevista realizada simultaneamente com Ramos e Maria Joana, ela expôs:

— Eu costumo trocar informações, até mesmo porque eu não tenho muito conhecimento sobre plantio. Então eu pergunto mais a um pessoal que eu conheço, principalmente aos que têm mais tempo que plantam, e tenho muitos amigos da agronomia que entendem um pouco mais da composição de solos e tal e eles dão umas dicas. Mas eu tenho pouco conhecimento sobre [o assunto] e estou sempre trocando ideias, qualquer coisa que acontece a gente sai perguntando para quem tem conhecimento a mais pra gente se orientar.

Ramos complementou:

— Eu acho que é isso, troca de experiências e espécies, genética. Eu lembro que isso foi maior, principalmente na época que eu morava em uma chácara, que a gente tinha o sistema indoor lá, dava para utilizar bastante as questões de clones, e aí rolava bastante troca, porque se você consegue fazer um clone você nem sabe qual vai vingar, mas se você faz dez e dá cinco da mesma espécie você não precisa de cinco plantas da mesma espécie. Às vezes você vai e troca com outras pessoas os clones, ou em sementes mesmo. Então é legal ver essa questão, não só com a gente, mas a gente vê que isso acontece bastante, porque quando eu estava na Holanda eu tinha experimentado uma genética lá que eu acho muito boa, que chama Hawaiian Snow. É uma genética muito boa e não tinha dela aqui na época que eu plantava com esse pessoal na chácara, e eu voltei para cá e aí já tinha, e eu fumei com uma pessoa, deu um tempo e todo mundo tinha na cidade uma planta que não tinha. Isso acontece porque uma pessoa planta, a outra vai e clona e passa para a outra, que passa para a outra, e quando você vai ver já tem uma genética rodando na cidade toda.

Atores em relações e situações comuns, que estão fazendo coisas juntos ou levam uma mesma prática em comum, têm de coordenar suas ações ao perceber que há alguma coisa errada e ela tem que mudar, expressando o descontentamento e desempenhando uma ação conjunta para isso (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1999BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. “The Sociology of Critical Capacity”. European journal of social theory, vol. 2, n. 3, pp. 359-377, 1999.). Nesse sentido, Maria Joana relata como firma suas relações de reciprocidade e cooperação com outros atores conectados nas redes morais de cultivo da própria maconha, pois ela tem pouco conhecimento sobre o assunto, então quando tem dificuldades recorre a alguns conhecidos e eles sanam suas dúvidas. Maria Joana, Ramos, Antônio e José eram vizinhos, moravam em um prédio de dois andares; os dois primeiros no andar de baixo e os dois últimos no andar de cima. Durante o campo observamos várias vezes eles usufruindo em conjunto a maconha plantada. Além disso, é importante destacar que o cultivo da própria maconha, nesta pesquisa, aparece como uma atividade predominantemente masculina. Emanuel apontou o seguinte:

— Eu acho que hoje em dia isso se popularizou bem, existem muitas pessoas fazendo isso, muito mais do que na época que eu comecei. E é legal hoje em dia porque as pessoas trocam informações, trocam genéticas de plantas, trocam as experiências e tal. Está muito mais fácil hoje em dia para ter acesso a esse tipo de coisa, não é? Se a pessoa quiser começar hoje em dia, ela sempre tem um amigo aí que já conhece, faz ou que já fez, então hoje em dia está bem mais fácil.

Em seus apontamentos, Emanuel evidencia as relações de colaboração e assistência mútua por meio das trocas de informações, genética de plantas e outras experiências de cultivo. Além disso, ele relata ser mais fácil hoje em dia devido às redes sociais e isso realmente foi observado nos grupos de Facebook acompanhados na pesquisa. Neste artigo, optamos por não relatar as experiências mapeadas via Facebook. De fato, a difusão pela internet se configura como um dos loci disseminadores das práticas de cultivo doméstico de maconha, conforme foi bem detalhado por Lang (2015)LANG, Marina. Fumaça na nuvem: A busca por “maconha” no Google e no Facebook. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.. Logo, pode-se presumir que as relações de solidariedade, reciprocidade e cooperação existem tanto nas relações e interações face a face como nas virtuais.

Após a entrevista, Emanuel disse que tinha dois vizinhos que também cultivavam a própria maconha. Então ele saiu para ver se eles estavam em casa. Um não estava, mas o outro estava almoçando e ficou de ir lá depois para conversar. Nesse meio tempo começou a passar o jogo entre Uruguai e Portugal na Copa do Mundo e ele enrolou mais um verde para fumar. Um de nós, que estava fazendo a entrevista naquele dia, começou a assistir ao jogo enquanto esperava o vizinho. De repente alguém o chamou. Quando atendeu, disse: “Puta que pariu, é o Leo, um amigo meu que faz jiu-jitsu comigo na academia, ele é policial e acho melhor apagar o baseado por respeito, porque ele não fuma”. Ele apagou o baseado e recebeu Leo, que entrou aos risos e disse: “É Emanuel, qualquer hora vou ter que te prender”. Emanuel, aos risos, respondeu: “Acho difícil, Leo! Muito difícil”. E todos riram, pois foi uma situação demasiadamente inusitada. Ainda durante a partida chegou Martos, vizinho de Emanuel, mas se falou sobre a entrevista, pois havia um policial ali. Ao término do jogo já era tarde e não foi possível entrevistar Martos.

A conversa com José foi a mais intrincada. Quando começamos a gravar a entrevista, em menos de dois minutos ele começou a gaguejar, praticamente travou e não conseguiu discorrer sobre a primeira pergunta. Ele disse: “Cara, que medo de gravar essa entrevista e a polícia vir aqui em casa por causa disso”. Mas depois de dialogarmos e inclusive salientar que ele não precisava participar da entrevista caso preferisse, ele se tranquilizou e resolveu continuar a conversa. Sobre suas relações com outros atores que também plantam, salientou:

— Cara, eu conheço vários amigos íntimos, eu tenho um ciclo de amigos que plantam também. E a gente troca algumas informações vez ou outra, e de repente um fala que produziu um que tá bonito. “Me dá um green ali pra eu fumar”. A relação é troca de informações, de camarões, e é isso. Tipo, alguns são amigos mais íntimos, mas eu também sei que tem outras pessoas.

Por meio dessas narrativas foi possível constatar como as relações de assistência mútua nessa rede moral de atores que cultivam a própria maconha são configuradas pelas ações, interações, associações e agregações morais entre eles. Dessa maneira, as relações de reciprocidade e cooperação entre esses atores morais configuram uma espécie de solidariedade específica dessa rede. O principal objetivo dessa colaboração é oferecer assistência uns aos outros e, principalmente, oferecer um norte aos iniciantes, isto é, um caminho para quem se dispõe a iniciar nessa mesma conduta considerada ilegal e imoral. Logo, esses atores formam relações solidárias e despertam sociedades de amigos por meio de suas redes morais, sobretudo no entusiasmo de ajudar a quem se dispõe a correr o mesmo risco ao se inserir na prática de cultivar o próprio verde.

Considerações finais

As transgressões das regras formais e informais caracterizam todas as sociedades, pois ao mesmo tempo que formam sentimentos coletivos para prevenir quaisquer dissidências morais, são relevantes para propor novas moralidades e condições de mudanças sociais, bem como demandar mudanças normais das morais e dos direitos institucionalizados. O cultivo caseiro da própria maconha, ou do verde, como é categorizado pelos interlocutores da pesquisa, se apresentou como uma fonte de moralidade de gênero único.

Nas redes morais firmadas por esses atores, por meio da prática de plantar a própria maconha, os interesses e os sentimentos morais são despertados pela confluência das ações, interações, associações e agregações que eles configuram. Nessa perspectiva, o sentido atribuído a essa prática é imputado pelos atos de outros atores que já plantam o próprio verde. Ao entrarem em contato pela primeira vez com o bud, a partir de suas ações, interações e associações, é despertada a volição de se inserir na prática de cultivar a própria maconha. Ademais, essa prática se apresentou como um sentimento moral não só de conflito, mas também de libertação em relação às repressões formais e informais que esses atores enfrentam, e isso faz com que eles estabeleçam relações, como de assistência mútua, reciprocidade, cooperação e solidariedade, a partir de suas associações em redes morais.

Suas motivações, que perpassam uma gramática moral específica, se apresentam como fundamentos para essas outras relações sociais, como as relações de assistência mútua e cooperação, visto que todos os entrevistados trocam conhecimentos, experiências e informações sobre como lidar com as plantas, inclusive experiências não exitosas, com o intuito de colaborar uns com os outros. Além disso, em Vila Verde esses atores morais trocam também sementes, mudas, clones, adubos, genéticas de plantas e até mesmo o verde pronto para fruição. Isso ficou evidente nas falas sobre a proliferação de genéticas de plantas em Vila Verde entre os cultivadores, principalmente sobre como isso se popularizou e está cada vez mais acessível, pois há cada vez mais atores aderindo à prática de cultivar a própria maconha para não recorrer ao comércio ilegal.

Esses atores consideram a maconha uma planta normal, ou melhor, a consideram uma planta como qualquer outra. Como se trata, para eles, de uma prática inócua, firmam uma moralidade peculiar ao cultivar o próprio verde, inclusive diferentemente de quem apenas consome maconha. Há um entendimento de que o conhecimento sobre o plantio da maconha para consumo próprio deve ser passado adiante e proliferado para outros atores com os mesmos interesses, sentimentos e ideias, sobretudo os inexperientes, para que eles tenham um norte para se iniciar na prática e obtenham sucesso. Portanto, quando esses atores conhecem outros que também cultivam a própria maconha, assim como amigos que querem iniciar o cultivo, eles se identificam, adquirem confiança mútua e se dispõem a ajudar uns aos outros.

Destarte, tais atores enredados configuram relações morais sui generis, assim como relações de solidariedade, reciprocidade e cooperação com os atores que se associam às suas redes morais, suscitando sociedades de amigos a partir de suas associações diferenciais, incidências e dissidências morais. As dissenções morais com as regras formais e informais apontam para uma demanda por mudanças no direito institucionalizado. Logo, na medida em que ocorrem mudanças significativas nas regras estruturadas em leis, sobretudo quando se trata da aceitação de novas moralidades, como nas mudanças das leis sobre o uso psicoativo de cannabis de alguns entes federados dos EUA e em outros países, como Uruguai, Canadá e Israel, também ocorrem mudanças nas redes morais de atores que se encontram sob essas coações, pois suas moralidades passam a ser aceitas e reconhecidas pelas novas legislações instituídas, bem como suas práticas com o tempo podem passar a ser consideradas como normais pela sociedade que estão inseridos.

Notas

  • 1
    Todos os nomes dos atores e de lugares serão nomes fictícios para tratar lugares e atores reais e, dessa forma, resguardar o sigilo e anonimato das identidades dos participantes diretos e indiretos dessa pesquisa.
  • 2
    Vale salientar que o Brasil (2019)BRASIL. Lei ordinária nº 13.840, de 05 de Junho de 2019: Altera a Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-13.840-de-5-de-junho-de-2019-155977997#:~:text=Art.,drogas%20e%20dá%20outras%20providências.
    https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-13...
    alterou a lei nº 11.343, de 2006, para a lei nº 13.840 de 05 de Junho de 2019, mas a alteração não trouxe mudanças significativas na lei anterior e apenas definiu as condições de atenção e tratamento aos usuários ou dependentes de drogas e, ainda, trata do financiamento dessas políticas.
  • 3
    “Prensado” é como esses atores intitulam a modalidade maconha comprimida em prensa, que geralmente vem do Paraguai, e é comercializada ilegalmente.
  • 4
    Green, bud, verde ou verdinho são as formas mais usuais dos interlocutores nomearem a maconha que cultivam.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2021
  • Aceito
    17 Jun 2021
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