Acessibilidade / Reportar erro

Como nasce um ponto de táxi

Resumos

Essa pesquisa fala sobre o uso dos espaços públicos que tomo para descrever a partir da criação de um Ponto de Táxi. Tendo como foco a análise etnográfica e a observação participante, meu objetivo será fazer uma reflexão crítica sobre como é criado um Ponto de Táxi e de que forma organizam essa categoria de profissionais da mobilidade urbana. A despeito das normas jurídicas de controle urbano a criação de um Ponto de Táxi ilustra a participação de agentes que contribui para alimentar práticas extraoficiais provocando uma regulação imprevisível lançando mão da violência e arbitrariedade na configuração espacial urbana.

Palavras-chave:
táxi; informalidade; conflitos; ilegalismos; mobilidade urbana


How a Cab Rank is Born talks about the use of public spaces that I take to describe from the creation of a Taxi Point. With a focus on ethnographic analysis and participant observation, my objective will be to make a critical reflection on how a Taxi Point is created and how they organize this category of urban mobility professionals. Despite the legal norms of urban control, the creation of a Taxi Point illustrates the participation agents that contributes to feeding unofficial practices causing unpredictable regulation by resorting to violence and arbitrariness in the urban spatial configuration.

Keywords:
taxi; informality; conflicts; illegalisms; urban mobility


Introdução

Este artigo é resultado de minha dissertação de mestrado1 1 A dissertação, intitulada A vida no táxi: Uma análise sócio-jurídica dos conflitos e das regulações no mercado da mobilidade urbana em São Gonçalo, foi defendida em 2020 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense (UFF). sobre o trabalho de taxistas em uma cidade da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), particularmente sobre os conflitos de ordem regulatória e os mercados informais que se desenvolvem entre agentes públicos e trabalhadores urbanos quando estes dependem da autorização municipal para exercer seus ofícios na cidade (VILLAR, 2020VILLAR, Mauro. A vida no táxi: Uma análise sócio-jurídica dos conflitos e das regulações no mercado da mobilidade urbana em São Gonçalo.Dissertação (Programa de Pós Graduação de Sociologia e Direito) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020.). A pesquisa nasceu na universidade, mas seu ponto de partida é anterior à vida acadêmica do autor, que também é taxista profissional e tomará seu trabalho e experiência para discutir práticas já bastante conhecidas por motoristas quando demandam dos órgãos locais um espaço para a criação de um ponto de táxi.

Ainda que aos olhos de muitos um ponto de táxi possa parecer trivial na geografia espacial urbana, especialmente se levarmos em conta o reduzido espaço que ocupam, esses locais agregam trabalhadores que compartilham um universo simbólico próprio e permitem conhecer a dinâmica agitada e violenta da cidade, que pode ser tomada para angariar vantagens ou se furtar dos riscos que ela oferece.

Um ponto de táxi é um local que contribui por excelência para uma formação sociativa (SIMMEL, 1983SIMMEL, George. “A natureza sociológica do conflito”. In: MORAES FILHO, Evaristo (org.). Simmel: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983, pp. 122 e 123., p. 123) entre motoristas, permitindo que a categoria forme grupos que podem evoluir para diversos tipos de organização, como empresas, cooperativas ou associações visando a um maior peso institucional, sobretudo aquelas que visam obter vantagens nas negociações com a unidade subnacional, como o título jurídico conhecido como autorização que garante o monopólio do espaço para a criação de um ponto de táxi.

Do ponto de vista jurídico, o ponto de táxi corresponde a um espaço oficializado pelo município em que taxistas, geralmente posicionados em um lugar específico da cidade, aguardam seus passageiros para transportá-los aos seus destinos. A dimensão geográfica informa a parte mais visível para a vasta maioria das pessoas. Embora essa descrição seja bastante simplista, ela não dá conta de responder pela história social desses ambientes, já que a criação de um ponto e seu posterior funcionamento envolve uma complexa rede humana que inclui agentes reguladores que controlam esses espaços como guardas municipais, fiscais de trânsito e sua conexão com redes privadas de empresários e comerciantes.

Dado o valor imobiliário da cidade, um ponto de táxi é regido por constantes disputas que abarcam não apenas aqueles que almejam uma autorização, mas outros segmentos comerciais sem relações institucionais aparentes, mas com profunda influência na organização desses espaços, produzindo uma regulação difusa que embasa decisões administrativas de controle que podem objetivar dar cabo a problemas e criar soluções ou simplesmente alimentar uma rede de preferências que podem ser lidas questionáveis.

O campo de observação em que esse trabalho se desenrola é a cidade, aqui definida como um lugar de trocas comerciais e movimentações de pessoas. Ainda que tradicionalmente os táxis também sejam representados como carros de praça— referência que reporta aos primeiros táxis que surgiram no perímetro urbano—, as mutações capitalistas permitiram dissipar sua posição mais difundida no imaginário popular para outros entornos, como beiras de ruas, calçadas, entradas de shopping, saída de boates, supermercados e até mesmo áreas residenciais.

O valor do ponto de táxi segue uma dinâmica especulativa ligada ao adensamento comercial urbano, principalmente do setor de serviços e de outros segmentos complementares, como o transporte de massa, facilmente percebidos em áreas de desembarque de aeroporto, terminais rodoviários, hidroviários, ferroviários e até mesmo vias comuns, todos ligados pelo movimento de pessoas e pelo volume de bens trocados que viabilizam a oferta desse segmento.

Sob essa perspectiva, um ponto de táxi oferece uma perspectiva favorável para se pensar a administração da cidade, não só porque depende de um título oficial para formalizar sua existência, mas também porque expõe a contraparte desses acordos que podem ser personificados pela cessão do espaço público entre aqueles que negociam esse bem, dando margem para o surgimento das mercadorias políticas das quais fala Michel Misse (2002MISSE, Michel. “O Rio como um bazar: A conversão da ilegalidade em mercadoria política”. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, vol. 5, n.18, pp. 68-79, 2002., p. 5).

Este artigo visa refletir sobre práticas e dilemas profissionais que serão tomadas como ponto de partida para descrever os usos feitos do espaço público. Esse percurso, construído ao longo de anos de trabalho, traz uma leitura refletida sobre a cidade que pode ser analisada a partir de muitas perspectivas. Contudo, a investigação se debruça sobre um espaço com dimensões específicas que pode ser lido genericamente não só como uma praça, mas também como um estacionamento, um recuo em uma via urbana ou até mesmo em uma calçada, cujo uso é garantido por meio de um título jurídico concedido, geralmente, pela unidade subnacional.

Destacar esse tópico para discuti-lo a partir de uma dimensão sociológica tem uma dupla finalidade. A primeira é fazer uma observação mais cuidadosa do controle das atividades burocráticas oficiais a partir de uma perspectiva crítica de um profissional que assume também uma postura engajada no campo da academia, sobretudo expondo questões que considero relevantes no delineamento, por gestores, da gestão pública. A segunda é evidenciar a fragilidade do direito a partir de práticas reais do seu uso, seja para o cumprimento da lei ou ao largo dela. Estrategicamente, isso permite escapar dos métodos de construção teórica que tomam práticas informais como corpo estranho de trabalhos científicos, deliberadamente subtraídos das análises por tradições de cunho jurídico. Essa opção não é um mero detalhe conceitual; é por ela que podemos expor a formação de uma dinâmica que opera no controle social quando se negocia esses títulos oficiais, para articulá-los com mercados ora políticos, ora econômicos (HIRATA, 2012HIRATA,Daniel. “Boa gestão urbana e transporte coletivo em São Paulo”.Áskesis, vol. 1, pp. 13-31, 2012., p. 15).

Os pontos de táxis estão dispostos conforme o arranjo da cidade para fazer circular mercadorias e pessoas, variando conforme o dia e a hora. Eles podem se estabelecer em um espaço fixo oficializado (ou não), mas também ser apropriado temporariamente ou apenas recriado em locais com demandas específicas e horários descontínuos, por conta do trato urbanístico e das transformações comerciais desenvolvidas. Um exemplo recente ocorreu depois da obra de revitalização da Grande Rio, quando a Prefeitura derrubou o elevado da Perimetral, atraindo vários empreendimentos comerciais, como prédios residenciais e obras que priorizavam a mobilidade, como o túnel Marcelo Alencar e o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), expandindo museus, rodoviárias e aeroportos na área que passou a ser oficialmente conhecida como Porto Maravilha2 2 Conferir (on-line): http://www.portomaravilha.com.br/conteudo/portomaravilha/2018_livreto_geral.pdf?_t=1532373289 e https://pt.wikipedia.org/wiki/Porto_Maravilha e expandindo, portanto, as áreas de lazer situado na orla, como o Aquário Marinho do Rio de Janeiro, além de ter construído calçadas em espaços antes monopolizado por automóveis e agora ocupados por bares, pubs e boates— conforme certa vez um passageiro escocês chamou o lugar que tem uma vida noturna (nightlife).

Por intuição ou pelo acaso, um taxista pode perceber que aquele espaço tem uma demanda específica para criar um ponto de táxi. Em casos assim, o motorista começa a frequentar e avalia se há possibilidade real de ser explorado. Essa avaliação pode levar algum tempo, dado que o local não é só viabilizado pela perspectiva econômica, mas a ingerência de agentes responsáveis pela fiscalização faz parte do cálculo considerado. Uma vez que ainda não possui status legal, expõe-se a vulnerabilidade do taxista que passa a correr por conta própria ou da tolerância dos agentes de trânsito, alguns deles usuários desse serviço.

Ainda que a prática possa ser tolerada e não seja necessariamente contrária ao direito, de certa forma pode até mesmo ser incentivada por pessoas já estabelecidas nesse circuito comercial, conforme certa vez um passageiro me disse, quando reclamou que o serviço de transporte era escasso depois de determinado horário, sugerindo a necessidade corrente de um ponto de táxi.

Como em um jogo de perde-e-ganha, o risco depende de um cálculo preciso que deve ser avaliado. Em outro exemplo, um taxista relatou os ganhos que sempre auferia quando “puxava fila” em um baile localizado em uma comunidade de grande afluência de traficantes de drogas, já que o serviço era cobrado no “tiro”3 3 Categoria nativa referente à cobrança do serviço sem o uso do taxímetro. É importante ressaltar que o valor dado no “tiro” não necessariamente corresponde à má-fé do taxista, conforme muitas pesquisas identificam, mas pode ocorrer a pedido do próprio passageiro que deseja ter uma estimativa do valor do serviço. . A despeito de o relato vir de um taxista conhecido por pares como bravateiro, trata-se de um caso real, já que a regularidade discursiva de outros motoristas deixa de fora qualquer controvérsia sobre o assunto.

Situadas naquilo que Foucault chama de ilegalismo (2014FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 83), essas fronteiras entre o legal e o ilegal, o formal e o tolerado, às quais se vinculam também outros segmentos, pode ser bastante vantajosa para o motorista, não só porque o afasta do aparato fiscalizatório oficial, mas também por poder contribuir para potencializar seus ganhos financeiros, já que o exemplo supracitado pode ser justificado pelos riscos inerente nesses ambientes.

O taxista ocupa um lugar muito específico nesse complexo sistema urbano. A proximidade social que tem com as pessoas e o seu conhecimento de lugares o leva a assumir uma perspectiva sensorial própria. Não se trata de tornar a percepção desses profissionais como verdadeiras e impassível a questionamentos, mas, diante das leituras que se pode extrair, ela pode ser útil quando sua análise é quase uma eterna avaliação dos riscos e das recompensas que a cidade oferece, baseada na capacidade do motorista de desvendar esses códigos não tão explícitos, mas que se mostram mais poderosos que a leitura teórica comumente propaga.

Este artigo está organizado em três seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira, faço uma breve descrição de como é criado um ponto de táxi, descrevendo elementos considerados por essa categoria da mobilidade urbana como ideais para que a formalização de um ponto seja alcançada, como o fluxo de pessoas, a segurança e a proximidade com agentes públicos. Na segunda seção, procuro integrar a compreensão de uma disputa pelo lugar do trabalho e a produção de condições sociais para o exercício nesse mercado. Aqui, identifico as regulações informais em torno das autorizações e a negociação desse bem imaterial que se resvala para outros comércios às margens do aparato institucional, mas, ao mesmo tempo, dependem dele para existir. Assim, identifico como o poder fiscalizatório do Estado é usado para punir aqueles que estão submetidos às suas normas e, ao mesmo tempo, alimenta esse mercado por meio de práticas informais produzidas pelos seus agentes e bancadas por motoristas de táxi e outros trabalhadores fiscalizados. Essa constatação é sequenciada na terceira e última seção, em que discuto um caso intitulado “Pátio Alcântara e pedido de ponto” e detalho como o taxista se relaciona com as unidades subnacionais que ajudarão a descrever o cenário tradicional desse setor da mobilidade.

Como nasce um ponto

Oficialmente, a criação de um ponto de táxi é um procedimento administrativo relativamente simples. O interessado protocola um pedido na prefeitura e não há um padrão para a redação do pedido— cada prefeitura tem procedimentos não muito diferentes entre si. Depois de preencher um documento informando o espaço pretendido e o número de vagas almejado, ele recebe um papel rotulado como protocolo com o número de registro e a data do pedido. Os agentes da prefeitura avaliam, por meio de um estudo de viabilidade para deferir ou não. Caso o pedido seja deferido, ele é qualificado precariamente e segue para publicação no Diário Oficial. Geralmente a administração faz uma consulta com agentes da Guarda Municipal para saber se o local poderá gerar óbice à movimentação de pessoas ou veículos, caso o pedido seja para instalar um ponto no leito viário ou em áreas destinadas a pedestres.

De outra forma, o pedido pode ocorrer por solicitação de uma empresa. Nesse caso o procedimento é mais célere, pois não depende do estudo de viabilidade, uma vez que o ponto é estabelecido em uma área privada e, geralmente, é a própria empresa que providencia a sinalização e garante a exclusividade do grupo escolhido, minimizando a ingerência de agentes públicos e, portanto, contribuindo com que aquele ponto fique menos suscetível às mudanças que ocorrem na administração municipal, conhecidas como “troca de cadeiras”, que comumente ocorrem depois das eleições municipais, quando se escolhe novos funcionários comissionados para compor o quadro das secretarias municipais— ocasião que pode contribuir (ou não) para que o intento da categoria seja alcançado.

Como em uma área privada o ponto de táxi não está tão suscetível a esses embaraços, pode-se mostrar mais vantajosa também porque esses espaços geralmente contam com segurança privada e até mesmo oferecem banheiros e lavatórios. Esse é um elemento importante, pois a disponibilidade desse serviço é parca na cidade e na maioria das vezes o uso é cobrado pelos comerciantes ou disponibilizado apenas para o consumidor direto.

Imagem 1
Ponto de táxi na Rodoviária Novo Rio

Outro elemento relevante é se o local tem natureza comercial e fluxo de pessoas, como sugerem aquelas áreas com setores de serviços mais desenvolvidos, ou se há demanda elevada pelo transporte individual, já que esse modal também se caracteriza pela complementaridade com outros meios e se mostra necessário a um público que geralmente carrega malas, bagagens ou qualquer outro tipo de volume corriqueiro em rodoviárias, hotéis e aeroportos.

Na Imagem 1 é possível ver, no canto direito, em abóbora, um banheiro químico. Ele é administrado por um comerciante proprietário de um quiosque que controla o uso, deixado à disposição de seus clientes diretos que desembarcam naquela rodoviária, além de outros profissionais, funcionários públicos e taxistas. A organização desses espaços e os serviços disponibilizados contribuem para que esses locais também sejam utilizados por outros profissionais que indiretamente dependem desses serviços, contribuindo para o surgimento de um regime de fraternidade que pode incluir guardas municipais, seguranças patrimoniais e até policiais militares.

Uma característica bastante difundida sobre o trabalho do taxista versa sobre a autonomia geralmente associada à ausência de um patrão e à liberdade de estabelecer o próprio horário de trabalho. Ainda que essa sensação de liberdade possa ser ouvida do próprio motorista, a propensão coletiva da profissão, segmentada nas inúmeras associações ou cooperativas que são criadas, e a própria necessidade de estabelecer uma organização que distribua pesos e vantagens vinculam a categoria a acordos em seu cotidiano, mesmo entre aqueles que “rodam na pedra”4 4 Categoria nativa referente a taxistas não vinculados a nenhuma empresa, associação ou cooperativa. , mas que devem respeitar regras básicas de organização e outras normas extraoficiais, embaçando essa leitura comumente propagada sem ponderação.

Estando em contato com outros segmentos que compartilham o mesmo espaço, algumas garantias dependem da expertise do grupo de cooperar com outros setores, que podem ser de ordem legal, como nos casos em que a oficialização do ponto de táxi é necessária para evitar as multas aplicadas por agentes de trânsito, mas também para organizar o espaço com a colocação de sinalização, pintura, propaganda e o “rateio”, como é chamada a arrecadação de dinheiro feita por cooperativas e associações para bancar funcionários, contadores e, em alguns casos, advogados que prestam serviços eventuais para a manutenção e o funcionamento de uma central administrativa. Esses espaços não apenas oferecem oportunidades para a formação de amizades e parcerias, mas também envolvem promessas de apoio mútuo, estimulando a cooperação entre trabalhadores e agentes oficiais, principalmente aqueles aspirantes a cargos eletivos que contribuam para legitimar a ocupação do grupo naquele espaço.

Tomo aqui como exemplo o caso que ocorreu com a construção de um shopping que gerou grande interesse entre taxistas. Depois da inauguração, um taxista próximo ao secretário de Transporte conseguiu exclusividade para estabelecer um ponto de táxi no local e fundou uma associação, convidando outros motoristas a fazerem parte daquele grupo. Alguns anos depois os membros associados reclamavam porque eram excluídos das decisões da empresa, acusando o presidente-fundador de não gerir a associação conforme os procedimentos de organização coletiva inerente àquela pessoa jurídica. As denúncias apontavam que ele excluía a participação dos demais associados em cargos de diretoria, ocupados somente pelos parentes do fundador, não submetia a administração da organização aos procedimentos de votos e tampouco publicava as demonstrações contábeis aos demais associados. Os relatos, vindos de vários motoristas, sugerem que a associação, localizada em um espaço que ficava do lado de fora do shopping e que, portanto, era administrada pela Prefeitura, tinha sido tomada como propriedade privada por seu fundador e estava sendo gerida nos moldes de uma empresa privada, subtraindo o interesse dos seus associados.

Insatisfeitos por terem sido excluídos da direção, os membros se rebelaram contra o presidente, que só foi perder o posto de direção depois que o secretário de Transporte, que supostamente apoiava a liderança, foi substituído por outro que ofereceu apoio à reivindicação dos membros. O recém-empossado secretário, percebendo que aquela administração associativa tinha tomado um caminho estranho à sua formação original, ameaçou revogar a autorização daquele ponto de táxi, abrindo-o, então, para qualquer outro taxista que não pertencesse à associação. Apesar de a ameaça ter sido indireta, ela foi importante, pois deu fim a um conflito interno daquela associação que era garantida pelo antigo secretário de Transporte que tinha sido exonerado.

Esse caso mostra que, embora do ponto de vista oficial um ponto de táxi possa ser concedido por um documento bastante simples, há uma dimensão extraoficial que interage com a legalidade burocrática. O caso permite observar que a exclusividade do espaço pela associação foi viabilizada pelo acesso privilegiado que o motorista fundador tinha com agentes responsáveis pelo deferimento de um ponto de táxi. Além disso, sua destituição só foi possível pela ação contrária de outro agente público que assumiu a pasta.

Presume-se, a partir desse exemplo, que a criação de um ponto de táxi, longe de considerar apenas aspectos oficiais, envolveu práticas oriunda de uma negociação extraoficial, como sugere este outro caso de um comerciante que reclamava da posição de um ponto de táxi em frente a sua loja:

—O ponto de vocês está atrapalhando a visibilidade da minha loja. Se fosse só o seu carro [eu] não diria nada, mas tem cinco [táxis]. Se vocês não arrumarem outro local vou retirar vocês dali.

Esse empresário, que também é passageiro regular de táxi, admitia que tinha proximidade com políticos e fiscais responsáveis pelo ordenamento urbano e usava essa influência para mobilizar os agentes a fim de tornar o espaço livre de pessoas que circulavam em frente ao seu estabelecimento. Ainda segundo esse comerciante passageiro, os vendedores ambulantes tomavam toda a calçada em frente à sua loja, impossibilitando a passagem de pedestres e, consequentemente, o movimento de vendas de sua loja.

Aqui, a criação de um ponto de táxi dependia de uma “dupla” autorização, sendo uma concedida pelo comerciante e outra pela Prefeitura. Nesse contexto, o conflito estruturava níveis de hierarquias distribuídos em função da capacidade de mobilização dos capitais sociais pelos trabalhadores. Esse conjunto de instâncias organiza o espaço e age sobre mercadorias, trabalhadores e até mesmo sobre a criação de um ponto de táxi, em função de múltiplos interesses que tensionam a gestão. Nesse contexto, Kant de Lima (2009KANT DE LIMA, Roberto; MISSE, Michel (orgs). Ensaios de antropologia e direito: Acesso à justiça e processos institucionais de Administração de conflitos e produção de verdade jurídica em uma perspectiva comparada.(Conflitos, Direitos e Culturas). Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009., p. 166) faz uma abordagem sobre o domínio público no Brasil:

O domínio público, assim, é o lugar apropriado particularizadamente, seja pelo Estado, seja por outros membros da sociedade autorizados, ou não, por ele, e, por isso, sempre, aparentemente, caótico e imprevisível ao olhar coletivo, onde tudo pode acontecer e de onde “quero tudo o que tenho direito” significando não só que reivindico aquilo que sei merecer, mas que desejo ter, substantivamente, tudo que o outro tem e cujo conteúdo e significação, eventualmente, posso até mesmo desconhecer.

Essa negociação assume uma dimensão importante e pode, por outro lado, ser conflituosa, tomando formas violentas como discussão, ameaça ou até mesmo agressões, como ocorreu em outra ocasião que envolvia esse mesmo empresário e vendedores ambulantes, quando agentes da Prefeitura foram no local remover as mercadorias dos camelôs que trabalhavam em frente à sua loja. Sabendo antecipadamente que aquela incursão específica poderia ter sido provocada por esse empresário, os camelôs formaram um pequeno grupo para impedir que a mercadoria fosse apreendida pelos fiscais da Secretaria de Urbanismo. Quando os agentes chegaram ao local, os camelôs alegaram que aquele comerciante também usava a parte de fora da loja para colocar uma máquina de sorvete e que se fosse para levar a mercadoria dos camelôs, os agentes também deveriam levar a máquina que ocupava o lado de fora do espaço físico da loja.

Embora essa situação confirme a influência do comerciante entre agentes da Prefeitura, a mobilização dos vendedores contribuiu para neutralizar uma situação que costumeiramente terminaria com a apreensão das mercadorias dos camelôs carentes desses laços extraoficiais. No fim, foi estabelecido um acordo entre os fiscais, o dono da loja e os vendedores: estes deixariam parte da passagem livre e o lojista permaneceria com sua máquina de sorvete na calçada.

Outro exemplo é o caso de um vendedor de comida nordestina e líder de uma associação de feirantes local. Ele relatou que seus associados (cerca de 13 pessoas) estavam temerosos porque poderiam ser removidos do espaço que ocupavam há mais de 15 anos, já que tinham apoiado um candidato a prefeito que, naquela eleição, tinha sido vencido por um adversário político.

Aqui fica claro que o apoio dos feirantes a um grupo político adversário tornou as relações dos trabalhadores mais instáveis no local. Por outro lado, a criação da organização contribuiu não só para estabelecer relações mais duradouras com o espaço, afastando também o grupo dos procedimentos de controle e fiscalização do município, como os fiscais de postura, agentes da vigilância sanitária, seguranças particulares das lojas entre outros —a ocasião contribuiu para que aqueles trabalhadores ocupassem um espaço por mais de 15 anos. No fim, os feirantes conseguiram mobilizar a chapa política adversária e reestabeleceram novos acordos que garantiram a continuidade do grupo naquele local. Esses são apenas alguns exemplos tomados para contextualizar as tensões que ocorrem nesses ambientes que, devido ao número de trabalhadores envolvidos diretamente nesses conflitos, pode ampliar a participação de trabalhadores indiretamente afetados nesse tipo de organização.

Ainda que seja nas áreas comerciais que os pontos de táxi se concentram, eventualmente áreas residenciais podem comportar um ponto. Esse contraste pode ser mais bem visualizado no bairro do Joá, localizado em uma área nobre do Rio de Janeiro onde havia um ponto de táxi que parecia ficar à disposição dos residentes naquele espaço nobre de condomínios de luxo. Soube que ali residiam artistas, banqueiros, médicos empresários, entre outros pertencentes à elite econômica do país. Diferentemente dos grandes centros, a prestação do serviço era sensivelmente diferente. Por exemplo, “sair na maçaneta”, como são chamados aqueles passageiros que vão até ao ponto a procura de um táxi, não era tão comum, pois se tratava de uma área predominantemente residencial onde os taxistas pareciam próximos aos residentes e aguardavam serem chamados pelo telefone como se fossem motoristas particulares.

Aquele local específico, que aparentemente parecia não ter movimento de pessoas, era caracterizado por estar fora dos grandes movimentos da cidade e por ser local de residência de uma elite econômica que contava com um posto policial e segurança privada, permitindo que os carros ficassem abertos e com as chaves na ignição— situação imaginável em outros bairros do Grande Rio e Baixada Fluminense. Os taxistas eram homens que aparentemente tinham mais de 50 anos, e o ponto de táxi ficava debaixo de uma árvore que projetava sombra nos carros, elemento fundamental se considerarmos o calor habitual que faz no Rio de Janeiro. Esse espaço parecia distante da alucinante movimentação nos centros comerciais. Em uma breve conversa que tive com um taxista, ele tinha mencionado a violência que ouvira dizer que havia na cidade de São Gonçalo, embora as comunidades da Rocinha e do Vidigal, conhecidas pelo regular confronto entre traficantes e policiais, ficasse a poucos quilômetros dali.

Dessa forma, fica claro que o tipo de ocupação espacial pode se desdobrar no ofício de um taxista. A prestação do serviço não está necessariamente restrita aos locais de grande movimentação de pessoas, embora aquela clientela possa sugerir a viabilidade de um modal que poderia ser explicado pelo alto poder aquisitivo dos residentes (VASCONCELLOS, 2002VASCONCELLOS, Eduardo Alcântara. “Sociedade, mobilidade e equidade na RMSP”. Revista dos Transportes Públicos, ano 24, 2002.. p. 11), e pode expressar outras dinâmicas, como a proximidade do motorista com a comunidade e, portanto, a confiança de que gozam dos seus passageiros.

Certamente minha breve passagem ali não me permitiu conhecer profundamente o funcionamento daquele ambiente, que considero privilegiado não só pela tranquilidade e segurança, mas também porque é característico dos pontos em áreas residenciais que a prestação de serviços ocorra entre pessoas já conhecidas. Isso pode ser uma variável importante, se considerarmos que a maior exposição do motorista ocorre entre estranhos, como aponta Rocha (2004)ROCHA, Eduardo C. Estranhos encontros: Aproximação etnográfica do táxi, sistema de transporte individual de passageiros. Monografia (Bacharelado em Antropologia) -Universidade Nacional de Brasília, Brasília, 2004.. Ainda que aquele ponto seja diferente daqueles localizados em centros comerciais, a segurança pode ser o diferencial, se levarmos em conta a violência dirigida a taxistas no estado do Rio de Janeiro (RJTV e O GLOBO, 16/06/2011RJTV; O GLOBO. “Polícia analisa imagens da câmera de segurança para conseguir pistas do homem que matou taxista a pedradas”. O Globo, Rio, 16 jun. 2011. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/policia-analisa-imagens-da-camera-de-seguranca-para-conseguir-pistas-do-homem-que-matou-taxista-pedradas-2874541
https://oglobo.globo.com/rio/policia-ana...
; O SÃO GONÇALO, 15/12/2018O SÃO GONÇALO. “Taxista é espancado e atropelado durante assalto em São Gonçalo: Caso aconteceu próximo à Praia das Pedrinhas”. O São Gonçalo, Segurança Pública, 15 dez. 2018. Disponível em: https://www.osaogoncalo.com.br/seguranca-publica/56112/taxista-e-espancado-e-atropelado-durante-assalto-em-sao-goncalo
https://www.osaogoncalo.com.br/seguranca...
).

O que pode ser visto apenas como um centro comercial no seu aspecto mais visível subsiste por meios de organizações veladas que contribuem para a manutenção do espaço público em função dos seus ocupantes, que interagem com agentes oficiais em posição de garantir a ordem local, seja mobilizando dispositivos de ordem legal ou por meio de ações informais como ameaças, extorsão e da segurança e dos avisos antecipados em função daqueles que podem pagar pelo serviço.

No presente contexto, essa descrição expõe uma ação oficial provocada para garantir um interesse extraoficial. Aqui, o interesse pode ser justificado como público, embora as ações dos agentes oficiais se deem de acordo com os interesses locais, alimentado na medida em que segmentos firmam acordos de apoio que podem ser comerciais ou não.

Essa lógica reconhece a posição dessas instâncias na organização do espaço e é a partir dela que segmentos conseguem potencializar sua capacidade de barganha. Esse aspecto de persuasão manifesta-se de diversas formas, podendo ser velados, diretos ou simbólicos (BOURDIEU, 2009, p. 111), e se organizam a partir de um quadro de reciprocidade que permite aos membros se sobressaírem sobre aqueles que estão fora dessa lógica, delineando uma perspectiva de organização “entre pares”, ou seja, entre aqueles que têm acesso, deixando, às margens, a maioria destituída. O efeito dessa distribuição informal de poder acentua tensões e animosidades e tende ao exercício de um controle difuso e imprevisível para a grande maioria; seu resultado dissimula regras igualitárias de controle do espaço.

Os eventos apresentados nesta seção permitem entender como um local público sofre inflexão dos seus usuários, principalmente de quem tem influência para mobilizar agentes públicos ou outros canais, se comparados com aqueles despossuídos desses meios. Esses casos, observados no município de São Gonçalo, nos levarão para a próxima seção, em que será descrito o ápice dessas relações por conta do aumento valorativo do espaço em um local escolhido para a construção de um shopping.

Pátio Alcântara: um estudo de caso

A fim de estabelecer um recorte mais preciso, tomarei como partida a construção de um shopping que ocupou uma praça no centro comercial do bairro do Alcântara, em São Gonçalo, antes ocupado por taxistas, ambulantes e vendedores em geral. A escolha desse local deve-se ao fato de que o espaço é central para o desenvolvimento comercial da cidade (ARAÚJO, 2019ARAÚJO, Jefferson Thomáz. “A centralidade de Alcântara e a história urbana de São Gonçalo: A atuação dos agentes sociais na consolidação de um núcleo urbano e na transformação de um espaço público”. Anais XVIII Enanpur, Natal, 27 a 31 de maio, 2019., p. 3). O empreendimento provocou a mobilização dos trabalhadores que foram removidos, desarrumando arranjos informais de ocupação, e evidenciou novos acertos que foram estabelecidos conforme o empreendimento foi sendo construído.

O Centro Comercial de Alcântara é o local com maior densidade comercial em São Gonçalo, além de estar geograficamente posicionado ao lado do Jardim Catarina, bairro com a maior concentração residencial do país. Esses dois bairros parecem assumir uma complementaridade na região, não só pela quantidade de residentes do Jardim Catarina e outros bairros que frequentam o centro de Alcântara e faz pulsar toda a atividade comercial, mas também pelos terminais rodoviários que garantem o movimento pendular de pessoas que trabalham na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), como Niterói e a capital, ligando grandes áreas residenciais do município.

No Alcântara, o comércio de mercadorias de baixo valor ocupa a maior parcela da cidade; produtos como roupas, frutas e legumes, calçados, eletrônicos e papelarias convivem ao lado de empresas de grande porte, como redes de mercado, farmácias e bancos, além de motéis e outros setores menos expressivos. Embora essa descrição faça sugerir que o município tenha um grau de autonomia em relação aos seus vizinhos como Niterói, Maricá e Itaboraí, a cidade ainda é lida conceitualmente como dormitório, o que expressa o número de residentes que trabalham nas cidades vizinhas, principalmente na capital do estado.

Uma marca da história econômica do município relata que ele vem perdendo suas indústrias nos últimos 50 anos. Em seus tempos áureos, São Gonçalo era conhecido como a Manchester Fluminense, em referência à cidade industrial inglesa que concentrava complexos industriais de grande porte e bairros operários. Ainda que essa comparação seja bastante difundida, na contramão dessa desindustrialização o setor de comércio e serviços foi sendo ampliado e diversificado em direção a bairros antes predominantemente residenciais, a exemplo da Rua Albino Imparato, avenida que corta o todo o bairro do Jardim Catarina.

Imagem 2
Praça Carlos Gianelli (durante as obras)

Em perspectiva histórica, a construção de shopping é um fenômeno recente. Ainda que atualmente tenha três empreendimentos, a construção do Pátio Alcântara não contava com o mesmo entusiasmo que as outras obras. Em grande parte, essa insatisfação era atribuída ao espaço que o shopping ocuparia, mas também havia acusações de ilegalidade no processo de licitação da Prefeitura, que havia concedido uma praça para uma empreiteira construir um shopping e um terminal rodoviário (CAMPAGNANI, 19/05/2011CAMPAGNANI, Mario. “Uma praça cercada de polêmica em Alcântara”. Extra, Rio, 19 maio 2011. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/uma-praca-cercada-de-polemica-em-alcantara-1843154.html
https://extra.globo.com/noticias/rio/uma...
).

O espaço de 4.000 m2 2 Conferir (on-line): http://www.portomaravilha.com.br/conteudo/portomaravilha/2018_livreto_geral.pdf?_t=1532373289 e https://pt.wikipedia.org/wiki/Porto_Maravilha era conhecido por moradores antigos como um marco que deu início ao comércio no município, pois abrigou um terminal de bondes na década de 1970 e também uma das primeiras igrejas da cidade, a Igreja Católica São Pedro de Alcântara— o nome é um homenagem ao imperador brasileiro Dom Pedro de Alcântara—, que deu nome ao bairro. Segundo esses moradores, foi a partir dessa praça que o comércio se dispersou por outras ruas da cidade, junto com a valorização do espaço, atualmente ocupado por comerciantes em geral (ambulantes, artesãos, donos de banca de jornal, quiosques, pipoqueiros e motoristas de táxi).

Antes de iniciarem as obras, lojistas comerciantes e vendedores mostravam-se insatisfeitos e formaram um grupo para recolher assinaturas de transeuntes contrários a construção. Outros comerciantes favoráveis ao empreendimento diziam que o movimento não era para preservar a história da praça, mas que havia segmentos comerciais receosos com a concorrência que o shopping poderia gerar.

Como mostra a Imagem 2, a área foi sendo isolada por chapas de aço galvanizado e os representantes da obra iam tomando o espaço sem nenhum aviso prévio àqueles antigos ocupantes. As placas eram colocadas por operários a fim de forçar a saída dos vendedores; ora saíam quando notavam o movimento das máquinas que iam chegando, ora ofereciam resistência aos operários da obra. Nesse último caso, os fiscais da Prefeitura se prontificavam para retirá-los à força ou, como me confidenciou um vendedor, faziam ameaças veladas, alegando, por exemplo, que não renovariam a licença de ambulantes que tinham essa autorização, provocando receio e desmobilizando trabalhadores e ocupantes do perímetro.

Uma discussão que presenciei ocorreu com o jornaleiro dono da banca demonstrada na Imagem 2. Ele disse para um funcionário do empreendimento que não admitiria ser expulso da praça sem lhe oferecerem outro local para colocar a sua banca de jornal. Certa vez o vi ameaçando outro operário para que “não colocasse a mão na sua banca”. O vendedor notou que teria poucas chances de permanecer no local e contratou um advogado que entrou com uma ação na justiça pelos danos financeiros que tinha suportado. Depois de muitas tentativas negociadas pelos fiscais da Prefeitura, seu empreendimento foi isolado pelos operários da obra, obrigando-o a fechar.

Depois dessa negociação, entraram em cena os pequenos e médios comerciantes locais que diziam que a praça não poderia ser privatizada. Apontavam impedimentos legais que, segundo esses vendedores que se manifestaram criticamente pelo empreendimento, vedaria a concessão de um bem de uso comum à iniciativa privada. Diziam que políticos locais eram acionistas da obra: “A praça foi vendida a R$ 150 mil por um período de trinta anos”. Também alegavam que os lojistas que arcavam com o aluguel pagavam em média de R$ 8 mil a R$ 12 mil mensais por um pequeno espaço, concluindo que: “R$ 150 mil por uma área de aproximadamente 3.000 m2 2 Conferir (on-line): http://www.portomaravilha.com.br/conteudo/portomaravilha/2018_livreto_geral.pdf?_t=1532373289 e https://pt.wikipedia.org/wiki/Porto_Maravilha e por um período de 30 anos estava dado”. A totalidade dos comerciantes criticava não só o empreendimento, mas o valor da concessão, muito abaixo das cifras paga por outros comerciantes.

Os pequenos empresários empenhados em questionar a construção desse empreendimento alegavam irregularidades na lei de concessão do espaço, afirmavam também que ela havia sido manipulada para favorecer uma empresa de ônibus. Diziam que o empresário que estavam bancando o empreendimento seria “um dos caras mais ricos e poderoso do Estado”, “dono de empresas de linha de ônibus, [o] maior financiador das obras de prefeitura”. “Por isso”, continuavam, “a parte de baixo do shopping terá um terminal rodoviário”.

Imagem 3
Pátio Alcântara Shopping (Lateral e Frente)

De fato, o relato confirma a versão da Prefeitura, divulgado na época da campanha da candidata a prefeita vencedora, Aparecida Panisset, que almejava construir uma parceria público-privada com empresários, visando ampliar a urbanização da cidade, a modernização de terminais rodoviários e a reforma de praças públicas. As campanhas veiculadas durante as eleições confirmam o relato dos comerciantes, pois a administração havia optado por esse tipo de gestão e foi responsável pela criação de vários canteiros de obra na cidade, assim como ocorreu com um terminal rodoviário que foi construído debaixo do viaduto no centro do Alcântara, mas que, nesse caso, não contou com a quantidade de críticas e acusações de irregularidades do caso anterior.

O evento ganhou repercussão regional e a 2ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de São Gonçalo apontou irregularidades no processo licitatório e no contrato de concessão. Já o Ministério Público, depois de ter recebido inúmeras reclamações e a formalização de um abaixo-assinado, constatou que o processo licitatório contrariava a Lei de Parcelamento do Solo, as normas de urbanização do estado e o regulamento jurisprudencial sobre o tema, suspendendo a construção do shopping. Embora os citados tribunais tivessem deferido o recurso que impedia a construção e obrigasse a derrubada do empreendimento, as obras foram concluídas em 2011 e hoje o empreendimento se encontra em funcionamento, sob o nome Pátio Alcântara.

Pedido de ponto

Diretamente afetado pela construção do Pátio Alcântara, recorri à administração do empreendimento e à Secretaria Municipal de Transporte para pedir a regulamentação de um ponto de táxi. Na primeira tentativa, uma atendente, que dizia ser a secretária do secretário, alegou que ele era muito ocupado e não tinha tempo para resolver esse caso específico. Outras tentativas foram feitas. Certa vez combinamos de formar um grupo de motoristas para comparecer na Secretaria de Trânsito no final do expediente. Quando um taxista chamou o secretário pela patente “Coronel, por favor, precisamos conversar com o senhor!” —, ele disse: “Não tenho tempo pra resolver problemas de taxistas”. Sua colocação, perceptivelmente hostil, serviu pra desmobilizar o grupo. Passei então a fazer os pedidos sozinho. Puxava assunto com funcionários mais antigos da Secretaria de Transporte para conhecer o procedimento burocrático de pedido de ponto.

Nas primeiras tentativas fiz os pedidos fazendo um croqui da área almejada; escrevia sobre a necessidade de um ponto de táxi e entregava no setor de protocolos. Voltava 15 dias depois e os funcionários alegavam erros no pedido, que poderiam ser o cabeçalho, a ausência de algum documento, a falta de assinatura do grupo, cópias de editais antigos etc. Com maior frequência, afirmavam que o pedido havia sumido do setor. Repeti o gesto outras vezes, intercalando os pedidos, já que não adiantaria fazer o mesmo pedido ao mesmo secretário e aos mesmos fiscais responsáveis por conceder o espaço.

Certa vez consegui marcar uma reunião com um secretário de Transporte recém-empossado. Naquele dia nenhum dos meus colegas compareceu. Logo no início o secretário perguntou: “Uma reunião só com você?”. Respondi que meus colegas não estavam disponíveis, mas que eu representaria o grupo. Na sala, em uma grande mesa estavam, além do secretário, um fiscal de trânsito, o subsecretário e a secretária do secretário. No início da reunião o secretário mostrou-se bastante solícito à minha reivindicação. A recalcitrância ao pedido era contínua, vindo em grande parte do subsecretário, que era o funcionário mais antigo daquela secretaria e parecia assessorar o secretário.

Logo no começo da reunião fui apresentado pelo subsecretário, que disse: “Esse é aquele menino que está querendo botar o carro lá. Já disse que ali vai atrapalhar o trânsito”. Apresentei-me e disse estranhar a colocação do subsecretário, já que o mesmo, em outra ocasião, disse que colocaria uma empresa de táxi concorrente. Apesar do silêncio provocado logo no início de nossa conversa, o secretário perguntou se eu tinha formalizado um pedido. Respondi que foram formalizados três e que estava com os comprovantes em mãos. Falei da resistência que tinha enfrentado para protocolar o pedido e que agora tínhamos um concorrente, as empresas de aplicativos, que não precisariam seguir essa mesma burocracia, mas disputavam o mesmo mercado que os taxistas.

Novamente o subsecretário interrompeu e disse que não éramos uma categoria organizada, já que tinha visto um motorista de táxi “trabalhando de chinelo e que no Uber tinha até motorista de gravata”. Lembro-me de ter brincado com ele com o objetivo de contornar a situação de frágil equilíbrio, a fim de não tornar meu questionamento uma provocação que poderia evoluir para desavenças e perseguições pelos próprios fiscais daquela secretaria— como ocorrera em outras situações. De forma a tornar aquela reunião menos tensa, respondi em poucas palavras: “Se vocês me isentassem do documento pago anualmente pelo motorista e das vistorias, eu pagaria até um chope para meus passageiros”, provocando risos no secretário e no fiscal.

Novamente argumentei que teríamos que trabalhar concorrendo não só com os táxis clandestinos, mas também com os motoristas de aplicativos. Novamente o subsecretário reagiu ao meu questionamento alegando que a Secretaria tinha feito um convênio com o Batalhão de Polícia Rodoviária (BPRv) para fiscalizar a cidade e reprimir esse tipo de transporte. Respondi que desconhecia esse convênio, pois tinha há pouco tempo realizado uma etnografia nesse mesmo batalhão para o trabalho de conclusão de curso da pós-graduação (VILLAR, 2013) e ouvia com frequência dos policiais militares de que o BPRv não tinha nem viaturas para fiscalizar as rodovias estaduais. Expliquei ao secretário que estava escrevendo um artigo sobre esse mesmo batalhão e que lá a deficiência logística era constantemente reclamada pelos policiais entrevistados.

A reunião terminou sem nenhuma definição. O secretário tinha pedido para a secretária procurar os pedidos protocolados. No mesmo dia, quando tive que me ausentar, o subsecretário compareceu no ponto de táxi e disse para meus colegas que eu “dei uma de sabichão da reunião” e que “da forma como fui não conseguiria nada”. Posteriormente, fui chamado pelos taxistas, que disseram que esse subsecretário gostaria de resolver o caso “de forma mais tranquila”. Argumentei que “não pagaria aluguel para trabalhar na rua”.

Como não foi possível conseguir um ponto, passei a trabalhar em pontos não oficiais, perambulando pela cidade, principalmente nos horários em que haveria maior tolerância da Guarda Municipal. Ou seja, eu poderia parar em qualquer local da cidade depois das 20h, já que a fiscalização seria mais branda e o efetivo da Guarda diminuiria consideravelmente. Embora estivesse receoso em trabalhar durante a noite, passei a parar o carro em frente ao Pronto Socorro Central. Chegava às 19h30 e ficava até as 3h da madrugada. Dessa forma, acreditava que poderia minimizar os riscos da violência, já que os passageiros viriam, em grande parte, do hospital. Fiquei aproximadamente três meses trabalhando perto de outro ponto de táxi, a cerca de 50m. Notava que os outros taxistas que ocupavam um ponto oficial ficavam me olhando quando eu saía com passageiros. Essa situação me incomodava, não só por ser novato naquele espaço, mas porque eu não puxava fila com aquele grupo mais antigo. Além disso, meus concorrentes pertenciam a uma cooperativa, e isso lhes garantia uma posição de destaque, já que contavam com um ponto fixo mais próximo da saída do hospital e de um pequeno terminal rodoviário, além de estarem uniformizados e de terem um registro oficial.

Sem ter onde parar passei a vagar pela cidade para tentar compensar minhas receitas, que tinham caído brutalmente. Saí daquela localidade e parei próximo à Prefeitura, onde havia bares e restaurantes e uma casa shows. Assim que cheguei, fui abordado por três motoristas que disseram que naquele local já havia um “grupo fechado” e, entre os integrantes do grupo, tinha um que não queria conversar comigo e “iria chegar dando pauladas”. Outro taxista alertou que o ponto havia sido registrado por um vereador e que isso poderia me oferecer ainda mais problemas, já que eu supostamente sofreria represarias de agentes da fiscalização próximos àqueles taxistas.

Por ocasião do ocorrido, um taxista que era um colega antigo soube do caso e disse que eu poderia trabalhar no ponto de táxi onde ele ficava, na frente do supermercado, no centro de Alcântara. Embora o ponto não tivesse registro na Prefeitura, eu poderia trabalhar à noite com um grupo sem correr os riscos de ser agredido e ameaçado. Ainda que a mediação desse taxista não tenha sido aceita por outros integrantes daquele grupo, passei a trabalhar naquele espaço contrariando a vontade dos demais, alguns deles antigos colegas de ponto. A objeção à minha presença vinha dos próprios taxistas, alguns integrantes do antigo ponto onde trabalhei. Um tanto surpreso e bastante constrangido por minha parcial aceitação, já que mediei a entrada de alguns que eram contrários à minha presença no antigo ponto ocupado pelo empreendimento, esse taxista tinha garantido que eu poderia trabalhar ali e que “se arrumassem problemas comigo, [ele] iria comprar a briga”.

Em outra ocasião, presenciei o mesmo taxista dizendo para o grupo contrário à minha presença no ponto que eu “estava sozinho correndo atrás de ponto e que se conseguisse, todos se beneficiariam. “Ele vai rodar [trabalhar] aqui e acabou”, reforçou. Aos poucos fui interagindo com o grupo que foram aos pouco aceitando minha presença. Todos sabiam que, além de ter sido responsável pela entrada no setor de protocolo para conseguir um ponto, eu dominava a burocracia colocada para o motorista de táxi, o que certamente sopesou para minha aceitação naquele espaço.

Considerações finais

Este artigo abordou o trabalho de taxistas em uma cidade da RMRJ. Busquei descrever como taxistas recorrem a instituições que regulam pontos de táxi, bem como as situações de risco que envolve esse segmento e as abordagens de grupos quando o transporte de estranhos é parte desse ofício, seja com passageiros convencionais que querem apenas ser transportados ou com pessoas que oferecem riscos a esses trabalhadores.

O assunto examinado é um fenômeno que expõem facetas importantes que operam no cotidiano de um motorista de táxi. Dessa forma, descrever como nasce um ponto de táxi foi uma estratégia para explicar como esses profissionais lidam com uma coleção de normas oficiais que regulam a vida social, e que também estão abertas a um espaço de negociação informal. Essa opção também tinha o propósito de apresentar a pesquisa a um público não familiarizado com a profissão e a cidade de São Gonçalo, pelo menos da mesma forma que um profissional taxista.

Como nasce um ponto de táxi levanta um questionamento sobre o direito como prática racional de organização burocrática. Embora apareça como norte privilegiado, ele por si só não explicava como se dão as práticas de agentes públicos nas decisões administrativas, já que há uma dimensão extraoficial que se desdobra no campo, estranha ao mito da coerência e imparcialidade.

A abordagem descritiva e profundamente questionadora do texto traz elementos com profundas implicações na individualidade do motorista ao enxergar como seu trabalho se organiza. Se, por um lado, destaco que essa disputa que também ocorre entre taxistas, acredito que ela é agravada e potencializada pela administração local que, em tese, deveria assegurar um controle mais efetivo nas distribuições de títulos como autorizações, concessões, alvarás, licenças ou qualquer documento oficial nomeado pelo direito, mas que, na prática, são usualmente cambiadas como mercadorias, cuja formalidade burocrática, longe de efetivamente produzir regulação, é mera tinta legitimadora.

Notas

  • 1
    A dissertação, intitulada A vida no táxi: Uma análise sócio-jurídica dos conflitos e das regulações no mercado da mobilidade urbana em São Gonçalo, foi defendida em 2020 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense (UFF).
  • 2
  • 3
    Categoria nativa referente à cobrança do serviço sem o uso do taxímetro. É importante ressaltar que o valor dado no “tiro” não necessariamente corresponde à má-fé do taxista, conforme muitas pesquisas identificam, mas pode ocorrer a pedido do próprio passageiro que deseja ter uma estimativa do valor do serviço.
  • 4
    Categoria nativa referente a taxistas não vinculados a nenhuma empresa, associação ou cooperativa.

Referências

  • ARAÚJO, Jefferson Thomáz. “A centralidade de Alcântara e a história urbana de São Gonçalo: A atuação dos agentes sociais na consolidação de um núcleo urbano e na transformação de um espaço público”. Anais XVIII Enanpur, Natal, 27 a 31 de maio, 2019.
  • BOURDIEU, Pierre. O pode simbólico Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
  • CAMPAGNANI, Mario. “Uma praça cercada de polêmica em Alcântara”. Extra, Rio, 19 maio 2011. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/uma-praca-cercada-de-polemica-em-alcantara-1843154.html
    » https://extra.globo.com/noticias/rio/uma-praca-cercada-de-polemica-em-alcantara-1843154.html
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.
  • HIRATA,Daniel. “Boa gestão urbana e transporte coletivo em São Paulo”.Áskesis, vol. 1, pp. 13-31, 2012.
  • KANT DE LIMA, Roberto; MISSE, Michel (orgs). Ensaios de antropologia e direito: Acesso à justiça e processos institucionais de Administração de conflitos e produção de verdade jurídica em uma perspectiva comparada.(Conflitos, Direitos e Culturas). Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009.
  • MISSE, Michel. “O Rio como um bazar: A conversão da ilegalidade em mercadoria política”. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, vol. 5, n.18, pp. 68-79, 2002.
  • O SÃO GONÇALO. “Taxista é espancado e atropelado durante assalto em São Gonçalo: Caso aconteceu próximo à Praia das Pedrinhas”. O São Gonçalo, Segurança Pública, 15 dez. 2018. Disponível em: https://www.osaogoncalo.com.br/seguranca-publica/56112/taxista-e-espancado-e-atropelado-durante-assalto-em-sao-goncalo
    » https://www.osaogoncalo.com.br/seguranca-publica/56112/taxista-e-espancado-e-atropelado-durante-assalto-em-sao-goncalo
  • RJTV; O GLOBO. “Polícia analisa imagens da câmera de segurança para conseguir pistas do homem que matou taxista a pedradas”. O Globo, Rio, 16 jun. 2011. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/policia-analisa-imagens-da-camera-de-seguranca-para-conseguir-pistas-do-homem-que-matou-taxista-pedradas-2874541
    » https://oglobo.globo.com/rio/policia-analisa-imagens-da-camera-de-seguranca-para-conseguir-pistas-do-homem-que-matou-taxista-pedradas-2874541
  • ROCHA, Eduardo C. Estranhos encontros: Aproximação etnográfica do táxi, sistema de transporte individual de passageiros. Monografia (Bacharelado em Antropologia) -Universidade Nacional de Brasília, Brasília, 2004.
  • SIMMEL, George. “A natureza sociológica do conflito”. In: MORAES FILHO, Evaristo (org.). Simmel: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983, pp. 122 e 123.
  • VASCONCELLOS, Eduardo Alcântara. “Sociedade, mobilidade e equidade na RMSP”. Revista dos Transportes Públicos, ano 24, 2002.
  • VILLAR, Mauro. Para além dos Registros de Ocorrência: Efeitos da discricionariedade nas ações de um Batalhão de Polícia Rodoviária Militar (BPRv). Monografia (Especialização em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.
  • VILLAR, Mauro. A vida no táxi: Uma análise sócio-jurídica dos conflitos e das regulações no mercado da mobilidade urbana em São Gonçalo.Dissertação (Programa de Pós Graduação de Sociologia e Direito) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2021
  • Aceito
    16 Jun 2021
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco de Paula, 1, Sala 109, Cep: 20051-070, Rio de Janeiro - RJ / Brasil , (+55) (21) 3559.1926 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: coordenacao.dilemas@gmail.com