Acessibilidade / Reportar erro

Pandemia, governança criminal e mecanismos de regulação social e econômica em três contextos latino-americanos

RESUMO

A pandemia de Covid-19 tem provocado uma série de adversidades não somente na vida das pessoas, mas também nas cidades e suas formas de organização territorial. Como ela tem interferido nos mecanismos de regulação social e econômica do crime na América Latina? Este artigo compara três contextos urbanos onde a regulação de atores armados se tornou relevante e a governança criminal atingiu certo grau de estabilidade ou sofisticação. Tomando a pandemia como ponto de inflexão, comparamos as possíveis transformações em torno dos mecanismos de regulação por parte de grupos armados ilegais nas periferias de grandes cidades ou centros de poder da Colômbia e do Brasil.

Palavras-chave:
governança criminal; atores armados; crime; América Latina; Covid-19

ABSTRACT

The Covid-19 pandemic has caused a series of adversities not only in people’s lives but also in cities and their forms of territorial organization. How has it interfered with the mechanisms of social and economic regulation of crime in Latin America? This article compares three urban contexts where the regulation of armed actors has become important and criminal governance has reached a certain degree of stability or sophistication. Taking the pandemic as a turning point, we compare possible transformations related to mechanisms of regulation used by illegal armed groups in the peripheries of large cities or centers of power in Colombia and Brazil.

Keywords:
criminal governance; armed actors; crime; Latin America; Covid-19

Introdução

Neste artigo, comparamos três contextos urbanos onde a regulação de atores armados se tornou relevante e a governança criminal atingiu certo grau de estabilidade ou sofisticação. Tomando a pandemia de Covid-19 como ponto de inflexão, analisamos comparativamente as possíveis transformações em torno dos mecanismos de regulação por parte de grupos armados ilegais nas periferias de grandes cidades ou centros de poder da Colômbia e do Brasil. Como veremos, o cotejamento permitiu ampliar o olhar sobre um fenômeno que parece caraterístico dos países de América Latina com histórico de violência urbana, como o Brasil, e de conflitos sociopolíticos, como a Colômbia, que enfatizam relações de coexistência ou paralelismo entre distintos poderes, como os estatais e outros ilegais, na regulação da vida social e econômica de populações inteiras, especialmente as mais vulneráveis. Há que se destacar as relações de mutualismo que se observarão entre esses poderes, sem que se apresentem necessariamente entre eles confrontos abertos ou bélicos. O poder da governança criminal se configura aqui menos na representação de um Estado paralelo ou na imagem de um “Estado” que ameaça a ordem legal e mais na capacidade que atores ditos legais e ilegais têm de planificar suas preferências e agir e controlar sua diversidade de possibilidades e projetos nos territórios de vulnerabilidade, fomentando o medo como elemento de controle para a promoção de mais vigilância, repressão e relativização de direitos e garantias.

O artigo está estruturado em quatro seções, além desta introdução e das conclusões finais. Na primeira seção, apresentamos uma noção expandida do conceito de governança criminal, apontando seus desdobramentos heurísticos. Na segunda seção, discutimos os critérios de escolha dos casos selecionados e as estratégias metodológicas adotadas para a realização do trabalho de campo. Em seguida, na terceira seção, apresentamos o contexto de cada caso, com destaque para a caracterização social e espacial dos territórios analisados e a identificação dos conflitos mais recorrentes e de seus atores chave. Na quarta seção, discutimos os parâmetros que guiaram nossa investigação comparada, apresentando um quadro sinótico de nossos achados, e analisamos as aproximações e distâncias em relação aos modelos de regulação e governança criminal que identificamos em cada situação. Finalmente, nas conclusões, discutimos os impactos da pandemia de Covid-19 na gestão do crime nos territórios, especialmente o controle social das populações e dos mercados lícitos e ilícitos.

Definindo a governança criminal

A ideia de governança criminal era, até pouco tempo atrás, vaga, sem grandes investimentos empíricos e sem uma conceituação precisa. Na maioria das vezes, ela é interpretada como um poder ou uma força antagônica ao poder legal-estatal, especialmente em função da convencional definição weberiana de Estado, que o caracteriza como a instituição definida pelo monopólio da força e de seu uso legítimo. Investimentos recentes na forma e nos moldes com que grupos criminosos operam têm inaugurado uma extensa agenda de pesquisa que aponta mais para relações de mutualismo e simbiose entre os poderes ilegais e legal do que para uma relação de concorrência e competição entre eles.

Sob essa perspectiva inaugural, sobretudo nos estudos de Benjamin Lessing (2019LESSING, Benjamin; WILLIS, Graham Denyer. “Legitimacy in Criminal Governance”. American Political Science Review, vol. 113, n. 2, pp. 584-606, 2019.), a governança criminal é entendida não como ator rival das forças estatais ou ocupando um espaço “vazio” deixado pela negligência ou ineficiência do poder público, mas como um ator coparticipante da gestão estatal. Nesse sentido, ela estende seu raio de atribuições sobre funções e atribuições antes ditas ou vistas como exclusivamente estatais, como atividades de policiamento e fiscalização (coibir violências sexuais e de outra natureza, regular a dinâmica dos homicídios e exercer controle espacial de territórios vulneráveis), de caráter judicial (resolver disputas e conflitos de outra natureza entre moradores de comunidades vulneráveis), fiscal (regulação do bem-estar da população civil que vive sob sua sombra ou influência, patrocínio da oferta ou do fluxo de microcréditos junto à população das periferias) e político (influência sobre o jogo político, especialmente por meio da cooptação de atores políticos e da interferências nos processos eleitorais).

Não se trata aqui de uma situação de Estado ausente. Moradores de áreas governadas pelo crime continuam votando para escolher seus representantes, pagando seus impostos; eles se beneficiam de políticas assistenciais e reconhecem as instituições de controle do Estado, mas entendem, desde muito cedo, os limites fronteiriços das competências de ambas as formas de governança, a legal e a criminal (LESSING, 2021). A governança criminal não é um segundo Estado, nem uma governança “rebelde” que rivaliza e compete com a ordem legal. Essa visão é incongruente com os resultados empíricos que têm afluído para a representação de poderes que se retroalimentam em um jogo de espelhos em que crime e Estado se interseccionam (LESSING e WILLIS, 2019). Não se trata de um poder que se coloca fora do Estado - ou pelo não mais se entende assim -, mas como uma força que se localiza a partir do próprio Estado, o que fica especialmente evidente, por exemplo, nas milícias cariocas, embaralhadas com o poder público.

Quem, o que e como essas organizações criminosas governam mundo afora varia enormemente, e identificar e categorizar essas dinâmicas têm sido parte substancial do investimento de pesquisas empíricas na área, sobretudo na América Latina, onde o modelo histórico de desenvolvimento do Estado seguiu caminhos sui generis. A despeito das diferenças que possam ser estabelecidas nos moldes de gestão e condução dessa governança criminal no continente, há em comum, entre esses casos, a reivindicação do argumento de que o Estado é o detentor do monopólio da violência. Na prática, para a maioria dos moradores dessas comunidades vulneráveis, do Brasil à Colômbia, passando por Honduras, Guatemala, México ou El Salvador, para a maioria das questões cotidianas é a organização criminosa local que se coloca como autoridade competente. Isso também não significa, como já dissemos, que a presença das organizações criminosas implique necessariamente a ausência do Estado, muito pelo contrário.

Não estamos falando aqui de um Estado que simplesmente abdica de suas atribuições e funções ou que é incapaz de contestar a autoridade criminal, mas de um Estado que ignora ou faz vistas grossas à presença dos grupos criminais, ou até mesmo colabora com eles. Seria esdrúxulo falar de um Estado que delega competências ao crime organizado, mas seria razoável pensar em uma relação de “duopólio” da violência - relação essa que não é estática ou imutável no tempo, visto que pode apresentar momentos de mútua conveniência ou de competitividade, turbulência ou estabilidade funcional. Com isso, não se quer ainda fazer tábula rasa da distinção entre a governança estatal e a dita governança criminal. É preciso, para remontar ainda à definição clássica weberiana, enfatizar que, embora ambas tecnicamente se imponham por sua capacidade coercitiva, se diferenciam sensivelmente quanto ao seu modus operandi. A governança criminal opera na sombra, fora da vista de todos, seja nas grandes ou nas pequenas cidades. Ela floresce em áreas de vulnerabilidade ou em bolsões de pobreza, cujos habitantes, desde muito cedo, são familiarizados tanto com a ingerência comunitária de grupos criminosos, quanto com a face mais repressiva do Estado penal (LESSING, 2017LESSING, Benjamin. “Counterproductive Punishment: How Prison Gangs Undermine State Authority”. Rationality and Society, vol. 29, n. 3, pp. 257-97, 2017.).

A noção de governança criminal, portanto, exige e justifica a necessária superação da dimensão dos discursos públicos oficiais e do entendimento coloquial de que o crime e a governança criminal são moldados em oposição ao Estado. O conceito explora, exatamente, como essas instituições se complementam de modos sutis. Estamos tratando aqui das duas faces de uma mesma moeda. Não se pode esquecer que é o próprio Estado que cria e define o que é o crime, assim como constrói a imagem, a representação do criminoso e a tipologia da sua periculosidade. Nesse sentido, todas as ações do Estado - desde o investimento em policiamento até a previsão de bem-estar para as forças policiais -, todas as medidas do Estado em relação à segurança pública têm efeitos substanciais sobre os incentivos e a capacidade de grupos criminosos governarem parcelas expressivas da população, sobretudo a mais pobre.

Essa visão ampliada da relação entre Estado e grupos criminosos nos permite pensar e explorar resultados inesperados ou efeitos paradoxais de políticas públicas de segurança, mostrando como o recrudescimento penal ou a ampliação do poder punitivo do Estado podem, em parte, ser úteis ao crime organizado. Esse entendimento lança luz sobre a possibilidade de configurações simbióticas entre Estado e crime, mostrando, por exemplo, que a governança criminal também pode ser um eficiente regulador social da violência urbana, transformando-se em um mecanismo de manutenção da ordem social nos espaços urbanos, principalmente os periféricos, e até mesmo dentro do próprio sistema prisional - tradicionalmente um território de difícil gestão para os Estados latino-americanos. Nesse sentido, a governança criminal, como peça integrante da estabilidade social de territórios e populações, pode também contribuir, ainda que perversamente, para a constituição e manutenção do próprio Estado (Idem, 2018).

Mas como se constitui na prática essa governança criminal? Como ela pode ser percebida? Em geral, a governança criminal se dá pela imposição de regras ou restrições de comportamento por parte de uma organização criminosa. Isso inclui a governança sobre membros criminosos e não criminosos. A tônica dessa definição ou compreensão de governança criminal se afasta das discussões estéreis sobre o que seria ou não crime organizado e volta sua atenção para as suas práticas imanentes. Dessa forma, entendemos que a governança criminal pode ser exercida por grupos de diferentes naturezas, desde gangues até organizações criminosas mais estruturadas e oriundas do próprio sistema prisional. Do ponto de vista das consequências, pode-se dizer que falamos de governança criminal quando as vidas, rotinas e atividades dos indivíduos são afetadas por regras e códigos impostos por grupos criminosos.

A imagem crescente da violência estatal contra grupos criminosos e seus discursos triunfalistas, verbalizados por gestores públicos e pela mídia, reforçam a ideia de que o Estado segue em “luta” contra os grupos criminosos. Para a definição de governança criminal, esse entendimento é limitado ou até mesmo enganador, pois omite ou oblitera que essa repressão legal é, na maioria das vezes, a força propulsora que estrutura os próprios espaços do crime, entre os quais os exemplos mais ricos são a dinâmica dos mercados ilícitos e das prisões. Trata-se, finalmente, de uma definição que não pode ser entendida separadamente do Estado, de suas políticas públicas, de seu aparato coercitivo e de sua relação com as comunidades e os cidadãos.

Critérios de seleção dos casos e metodologia

Para esta pesquisa, comparamos a cidade brasileira Maceió, capital do estado de Alagoas, e as cidades colombianas Medellín, capital de Antioquia, e Caucasia, cidade intermediária do mesmo departamento. De formas particulares, nesses territórios a governança criminal tem variado em termos de intensidade e estilo. Nesse sentido, o estudo comparado de realidades tão distintas pode se mostrar uma ferramenta poderosa para compreender os mecanismos que ensejam as dinâmicas regulatórias dos atores criminais em contextos urbanos, cuja dinâmica da economia política criminal guarda maior ou menor complexidade.

A principal dimensão comparada nesses casos é o controle territorial que atores armados ilegais exercem em comunidades atravessadas por relações sociais conflitivas. Nesse sentido, nossa primeira questão é: quais são as diferenças e semelhanças entre os processos de regulação social e econômica da governança criminal nas periferias de Maceió, Medellín e Caucasia? Depois, tomando por base as transformações advindas do impacto da pandemia de Covid-19, especialmente sobre as sociedades latino-americanas, perguntamos: em que medida as adversidades instauradas pela crise sanitária têm impactado a governança criminal nesses territórios? A escolha dos casos indicados justifica-se ainda por evidenciarem processos de controle espacial que envolvem períodos distintos de domínio sobre territórios onde o controle do Estado tem sido visto como limitado, restrito e conflituoso.

No caso de Maceió, a cidade compreende um território de ocupação remota que passou por um conjunto expressivo de transformações urbanas, especialmente a partir da segunda metade do século XX, quando a capital apresentou uma das maiores taxas de crescimento demográfico da região, dando início a um processo progressivo de periferização, sobretudo a partir da migração de trabalhadores do campo para a cidade e da falência da economia sucroalcooleira. Na ausência de programas de recepção dessa população, o crescimento horizontal e periférico da capital tem se dado nos últimos 30 anos a partir da negligência do poder público e paralelo em relação ao crescimento do crime organizado e do tráfico de drogas.

Em Medellín, no bairro de Moravia as atuações armadas se incorporaram historicamente ao corpo social. Desde então a violência tem sido usada como mecanismo de resolução de conflitos e como forma de ordenação social do espaço. O controle territorial se caracteriza pela incidência de grupos armados ligados ao cartel de drogas Oficina de Envigado, cujas principais atividades têm relação com o narcotráfico, o microtráfico e a extorsão. Por sua vez, a instalação dos grupos armados se dá especialmente pelos serviços de segurança ofertados e pelo controle das atividades de produção e distribuição de bens e serviços, alimentos e outros elementos que fazem parte da cadeia econômica local. Hoje Moravia é um dos setores onde a dinâmica comercial é uma das mais altas da cidade, conjugando economias legais (formais e informais) e economias da ordem criminal.

No caso de Caucasia, a transição de um conflito armado com a guerrilha marcou as dinâmicas regulatórias do território. Sua desmobilização, sobretudo nos territórios onde há importantes fontes de riquezas minerais ou de cultivos ilícitos, deixou interstícios que foram progressivamente ocupados por atores com objetivos distintos e que não buscam a suplantação total do Estado, seja por meio da extensão de formas de regulação e controle social, econômico e político, seja por meio de outras atividades ilegais, como o extrativismo ilícito de minérios, a invasão de espaços para habitação, o uso de espaços públicos ou coletivos para usos privados etc.

Tanto no primeiro caso como nos demais, destacamos o papel que o micro e o narcotráfico têm tido na gestão do território e de seus habitantes, com o exercício do controle e o monopólio de serviços de segurança e de atividades de natureza econômica. Por meio dos grupos armados, consegue-se imprimir um modelo de regulação dos territórios que acaba por interferir diretamente sobre as atividades cotidianas, laborais, de lazer e de interação social. Essa realidade, com ressalva para as especificidades que discutiremos mais adiante, tem feito, de maneira geral, com que o uso da força seja cada vez mais aceito e reconhecido pela população. A gestão dos territórios pelo crime organizado tem inserido a violência armada na regulação das relações sociais como forma de satisfazer interesses individuais, coletivos e redes de poder.

Levando em consideração as limitações de realização da pesquisa empírica neste momento, em função da pandemia, que restringe as atividades de campo, o presente estudo faz uso tanto de resultados de pesquisas desenvolvidas previamente pelos pesquisadores (entre 2017 e 2020), quanto de fontes recentes de natureza variada - desde entrevistas semiestruturadas e informais com moradores, militares, lideranças políticas e atores armados (realizada por meios virtuais de interação) e surveys com moradores de áreas de informalidade (feitos entre 2020 e 2021) até relatos jornalísticos e conteúdos compartilhados em redes sociais.

Descrição dos casos: territórios, conflitos, modelos de regulação e o impacto da pandemia de Covid-19

Caso 1: Maceió

Na percepção da mídia e mesmo dos policiais de Maceió, desde 2009 estaria em curso um fenômeno crescente de faccionamento das atividades criminais na capital de Alagoas. Desde então, pouco a pouco, as facções têm ocupado o centro do debate público e redefinido a gestão do crime por parte do Estado, interferindo nas dinâmicas de socialização da juventude periférica e aprofundando mecanismos de seletividade criminal, especialmente entre a população preta e vulnerável - que, a exemplo do que já foi fartamente apontado ou denunciado, configura-se como o alvo por excelência do poder repressivo estatal (FBSP, 2020). Nesse ínterim, as facções têm sido reconhecidas como o inimigo número um do aparato da segurança pública, especialmente das instituições policiais, que se entendem em guerra contra os sujeitos e grupos faccionados (RODRIGUES, 2020RODRIGUES, Fernando. “‘Corro com o PCC’, ‘Corro com o CV’, ‘Sou do crime’: Facções, sistema socioeducativo e os governos do ilícito em Alagoas”. Rev. bras. Ci. Soc., vol. 35, n. 102, pp. 1-21, 2020.).

A ideia de um cinturão sanitário que preserva, por meio do monitoramento e do policiamento ostensivo, o contágio dos bairros ditos violentos e faccionados aos demais bairros de Maceió, destaca a centralidade do tema e o quanto o fenômeno das facções vem tomando uma dimensão estruturante na política estadual de segurança executada nos últimos dez anos. A imagem da cidade dividida, fraturada, tem se tornado desde então o código, a linguagem pela qual têm se orientado as instituições da segurança pública, determinando os processos e meios pelos quais o governo estadual tem entendido e tratado o problema da violência nesses territórios (MAJELLA, 2019MAJELLA, Geraldo de. “Maceió em guerra: Exclusão social, segregação e crise da segurança pública”. Cada Minuto, Notícia, 11 dez. 2019. Disponível em: https://www.cadaminuto.com.br/noticia/2019/12/11/maceio-em-guerra-exclusao-social-segregacao-e-crise-da-seguranca-publica
https://www.cadaminuto.com.br/noticia/20...
). Paralelamente à ideia do enfrentamento das facções e da guerra contra o tráfico de drogas, as diretrizes da política de segurança do estado têm empreendido um modelo de contingenciamento do crime que estabelece, pela dinâmica do georreferenciamento da violência, uma lógica dual e criminalizadora que garante a legalidade e a dignidade da pessoa humana para as áreas ditas “nobres” e transforma a violência e a violação de direitos em uma tônica cotidiana e normalizadora para as periferias, sobretudo entre jovens pretos e pardos (SANTOS, 2020SANTOS, Sérgio. Facções criminosas em alagoas: Violência urbana, racismo, sociabilidades juvenis e territorialidades. Maceió: Sérgio Santos/Independente, 2020.).

O faccionamento também tem sido a senha pela qual a maioria dos cidadãos vive a cidade. A noção da ameaça dos grupos faccionados é a baliza que a polícia e a cidade têm tomado para elaborar a representação dos bairros onde governam o crime ou as ditas facções. Estamos falando, em geral, de territórios que se encontram fora do raio de visão do centro turístico da capital, distantes da imagem paradisíaca da Maceió turística e comercial. São territórios marcados por intensos e desordenados processos de urbanização, pela precariedade das condições de moradia e saneamento e pela ausência ou ineficiência de aparelhos públicos suficientes de lazer, saúde, educação e segurança. Resultados de um crescimento horizontal desenfreado nos últimos 50 anos, esses espaços periféricos são o território privilegiado do microtráfico na capital, e por isso atraem tanto a atenção seletiva da inteligência e da vigilância das instituições policiais (RODRIGUES, 2017RODRIGUES, Fernando. “Tradições de agressividade, disciplina e sistema de internação de jovens em Alagoas (1980-2015)”. Interseções, vol. 19, n. 2, pp. 483-513, 2017.). Eles têm sido os territórios prioritários dos programas experimentais de segurança do país desde 2007, quando o governo federal escolheu Maceió como piloto para a implementação de programas experimentais de segurança pública (NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, Emerson Oliveira do. “Transformações em torno do fenômeno da violência homicida no estado de Alagoas”. Sociedade e Cultura, vol. 19, n. 1, pp. 37-49, 2016.). De maneira geral, pode-se dizer que desde então esses programas têm reforçado o argumento da associação entre violência homicida e tráfico de drogas em Maceió, refletida especialmente no crescimento expressivo do poder punitivo de Alagoas.

Embora seja tentador imaginar que tratamos aqui de um “mini Estado” que se implanta pela falta ou falência do Estado legal, é fundamental destacar que essa população que vive sob a gestão dos grupos criminosos faccionados é também aquela que conhece e reconhece a dimensão mais repressiva do poder estatal (Idem, 2017), pois é nesses territórios que grassam os maiores índices de violência letal, especialmente da violência patrocinada pelos aparelhos de segurança, e que o sistema prisional “seleciona” a maior parte da sua população. Nas entrevistas e no acompanhamento cotidiano de moradores de bairros populares da capital, ficou flagrante a coexistência e o reconhecimento da competência pública e da autoridade do crime para prover ou gerenciar dimensões ou problemas distintos da vida dos seus moradores. De um modo complexo, mas tangível àqueles que residem e vivem nesses territórios, é possível, em uma conversa informal, nas falas comunitárias, identificar e escalar competências distintas para cada um desses atores sem que essa coexistência signifique para os moradores uma incongruência.

Dos 50 bairros de Maceió, somente seis, quase todos localizados às margens da cidade, concentram 42,7% dos habitantes da capital e registraram em 2019 uma margem de 49,2% dos homicídios ocorridos na cidade. Estamos falando de bairros que concentram as principais manchas criminais da cidade. São territórios de ocupação antiga, mas hoje em condições degradadas, e bairros mais jovens, que se integram a áreas de habitação ainda mais recentes, caracterizadas pela ocupação irregular de vales, grotas e barrocas (LINDOSO, 2000LINDOSO, Dirceu A. Formação de Alagoas Boreal. Maceió: Cata­Vento, 2000.; CARVALHO, 2012CARVALHO, Cícero Péricles de. Economia popular: Uma via de modernização para Alagoas. Maceió: Edufal, 2012.). São áreas de extrema vulnerabilidade nas quais os aspectos geográficos e urbanos têm contribuído significativamente para a promoção e ocorrência de crimes, especialmente aqueles contra a vida, e para a expansão do comércio de drogas ilícitas, sobretudo entre a população mais jovem.

Não por acaso o assédio das facções e sua popularidade têm se mostrado como a medida do mundo do crime na capital. Nesse sentido, as estratégias e intervenções do poder público têm reforçado essa imagem do crime como algo antes desordenado e ingovernável, mas que agora tem uma cadeia e uma representação de poder. Esses jovens encontram na dinâmica da representação coletiva da facção uma expressão de visibilidade, status e poder - ela celebra o consumo ostensivo, amplia as possibilidades de interação social e as conexões de pertencimento a um grupo, exploram as vantagens da sexualidade precoce, a misoginia e a promoção de valores morais hedonistas, relacionados à satisfação dos instintos (RODRIGUES, 2020RODRIGUES, Fernando. “‘Corro com o PCC’, ‘Corro com o CV’, ‘Sou do crime’: Facções, sistema socioeducativo e os governos do ilícito em Alagoas”. Rev. bras. Ci. Soc., vol. 35, n. 102, pp. 1-21, 2020.).

Durante a primeira e a segunda onda da pandemia de Covid-19, em um dos territórios mais vulneráveis da capital, a comunidade do Vergel1 1 A comunidade do Vergel localiza-se a cerca de 4km do centro de Maceió, às margens da Lagoa Mundaú, um dos sistemas estuarinos mais importantes do país, hoje em acelerado processo de degradação, intensificado pelo crescimento desordenado da área urbana e pela presença de um polo cloroquímico. O território é caracterizado ainda pelo registro expressivos de homicídios e pela presença flagrante de facções criminosas. Tradicionalmente, é um território antigo, marcado pela economia da pesca do sururu e pela presença marcante de famílias de pescadores que habitam as margens da lagoa. O baixo preço no mercado do comércio do sururu e a sazonalidade da sua extração, além da insalubridade da sua produção, têm transformado o tráfico de drogas em uma alternativa viável, especialmente para os mais jovens. A urbanização insólita e precária do local promove condições sub-humanas de sobrevivência que se misturam hoje ao controle do varejo de drogas ilícitas e à filantropia de organizações do terceiro setor que, junto ao Estado e aos grupos faccionados, compartilham a gestão do território e dos principais problemas que se apresentam no cotidiano dos seus moradores. , embora à primeira vista as medidas de isolamento social tenham contribuído para o fortalecimento do crime, o que se evidenciou foi a exacerbação das desigualdades econômicas e sociais sistêmicas nesses espaços. A despeito da representação de poder que esses grupos têm junto a suas comunidades de origem, a pandemia colocou-os, por diversas vezes, em pé de igualdade aos demais moradores em termos de vulnerabilidade. Não foi observado, durante o período, a promoção de ações especiais de controle ou assistência social por parte dos grupos armados e faccionados. Pelo contrário, seus membros e famílias deles foram por diversas vezes integrados à rede de benefícios patrocinada especialmente por ONGs. Todavia, há que se destacar aqui um aprofundamento da simbiose entre os grupos armados e tais organizações, uma vez que as facções foram muitas vezes instrumentalizadas pelas ONGs para gerenciar e cooperar com as medidas de controle social na distribuição de cestas básicas, refeições ou mesmo doação de kits sanitários.

Caso 2: Medellín, bairro de Moravia

Medellín é dividia político-administrativamente em comunas e bairros. Atualmente a cidade tem 16 comunas e quatro distritos. O bairro Morávia está localizado em uma dessas comunas, em uma área totalmente urbanizada e comercial na periferia do centro da cidade. Desde a sua formação como bairro, no final dos anos 1960, tem ocorrido uma evolução urbana de forte consideração, marcada por mudanças aceleradas na dinâmica de ocupação, em suas estruturas sociais e econômicas e no processo de apropriação cultural do território. Em 2018 Morávia tinha uma população de pouco mais de 40 mil habitantes, distribuídos em uma área de 45,18 hectares (451.810m²); sua estrutura populacional é uma das mais altas da Comuna 4, Aranjuez, que abriga um total de 161.491 habitantes - a população da Morávia representa 25% do total da comuna.

O bairro tem sido uma das áreas periféricas de Medellín que convive desde o seu surgimento com expressões de violência, acompanhadas pela negação de direitos econômicos e sociais, por elevados índices de exclusão social e pela precariedade nas formas de moradia. Foi o epicentro da ação de diversos grupos armados em diferentes momentos de sua configuração histórica. Na década de 1980, foi marcado pela presença de grupos armados a serviço do cartel de drogas, o que lhe deu uma taxa de homicídios de mais de 100% no período. Na década de 1990, foi a vez dos grupos de milícias urbanas, em meio à escalada do conflito armado na Colômbia e à intenção dos guerrilheiros de adentrar e dominar as cidades. Esses grupos contribuíram para um confronto armado de alta intensidade entre o Estado, os grupos do cartel de Medellín e as mesmas milícias, principalmente do Exército de Libertação Nacional (ELN).

O domínio das milícias de alguma forma permitiu que as taxas de homicídio caíssem quase pela metade até 1998, quando se iniciou a entrada de grupos paramilitares na cidade, cujos objetivos primordiais eram o extermínio das milícias, a luta pelo controle territorial e as disputas pelas redes do microtráfico. Assim, as taxas de homicídios não subiram ao mesmo patamar que chegaram em 1991, mas passaram a oscilar entre 150 e 180 por 100 mil habitantes durante entre 1998 e 2002 - período de consolidação dos paramilitares na cidade. Nos anos seguintes as taxas de homicídio sofreram uma queda significativa, chegando a 35 por 100 mil habitantes; porém, entre 2008 e 2011 a taxa cresceu novamente, chegando a quase 100 por 100 mil habitantes. Atualmente as organizações armadas apresentam uma recomposição dos grupos armados na cidade; há o protagonismo de novas organizações criminais associadas a atividades voltadas para o controle territorial para fins econômicos, como o mercado de drogas ilícitas, a extorsão e o comércio de serviços, especialmente de segurança.

Em 2020 a taxa de homicídios em Medellín chegou a 26 por 100 mil habitantes (LÓPEZ, 01/01/2021LÓPEZ, Stephen Arboleda. “Diciembre de 2020 fue el menos violento de los últimos 42 años en Medellín”. Alcaldía de Medellín, Seguridad y Convivencia, 1 jan. 2021. Disponível em: https://www.medellin.gov.co/irj/portal/medellin?NavigationTarget=contenido/8767-Diciembre-de-2020-fue-el-menos-violento--de-los-%C3%BAltimos-42-a%C3%B1os-en-Medell%C3%ADn
https://www.medellin.gov.co/irj/portal/m...
), a mais baixa dos últimos 30 anos. Diversos autores analisam o processo de reconfiguração dos atores armados na cidade, sua natureza e formas de atuação, que passam da relação com o narcotráfico até outras formas de incidência e exercício do poder armado nas práticas cotidianas, como o controle da extorsão e dos preços dos alimentos e de sua distribuição, a oferta de serviços de segurança, o empréstimo de dinheiro, a exploração da mendicância, entre outras (PATIÑO, 2015PATIÑO, Carlos. Medellín: Territorio, conflicto y Estado. Planeta. 2015; GIRALDO, RENDÓN e DUNCAN, 2014; ÁVILA MARTINÉZ, 2010ÁVILA MARTINÉZ, Ariel Fernando. Grupos armados ilegales, violencia urbana y mafias coercitivas: Gobernabilidad y crisis democráticas. San José, C.R.: Flacso, 2010.; ALDANA, 10/01/2019ALDANA, Andrea. “La tenebrosa radiografía de las oficinas de cobro en Medellín”. Pares: Fundación Paz & Reconciliación, Línea paz, posconflicto y derechos humanos, 10 jan. 2019. Disponível em: https://pares.com.co/wp-content/uploads/2018/10/INFORME-MEDELLIN-FINAL.pdf
https://pares.com.co/wp-content/uploads/...
).

Um relatório de 2018 da Fundación Paz y Reconciliación (Pares) mostrou que até 2015 cerca de 146 estruturas criminosas operavam em diferentes bairros de Medellín (FUNDACIÓN PARES, 2018). Na Comuna 4 de Aranjuez havia aproximadamente nove, operando com incidência direta no bairro da Morávia (Ibid., p. 11). Entre os principais atores chaves desse conflito, podemos citar: El Cristo, Palermo, El Pueblo ou Pueblito, Los Calvos (reduto), La Oficina de Campo Valdés, Moravia, Los Gomelos, Plan de la Virgen ou Miranda e Los del Alto.

A regulação da vida social pelos atores armados em Morávia faz parte da história social do bairro. Alguns fatores merecem destaque: em primeiro lugar, sua relação de distância com o Estado, sua baixa institucionalidade e sua baixa incidência sobre a regulação dos conflitos; em segundo lugar, o domínio territorial sustentado pelos atores armados no bairro e sobre a vizinhança que configuram uma forma de ordem social no território; finalmente, em terceiro lugar, as transações e as formas de negociação com outros atores sociais organizados para a defesa do território, como é o caso das organizações sociais e comunitárias. A Morávia está inserida nessa complexa rede de relações entre o legal e o ilegal, o formal e o informal, no controle territorial por parte dos atores armados ilegais. A dinâmica em torno do controle dos atores armados pouco se difere daquilo que ocorreu nos demais bairros e comunas de Medellín, principalmente no que diz respeito à descrição das práticas ilegais.

Na aplicação de um questionário entre 70 habitantes de Moravia, aplicado em julho de 2021, sobre a relação entre a gestão dos conflitos e a pandemia de Covid-19, as respostas expressaram que os conflitos que mais se apresentaram no confinamento foram aqueles considerados de convivência entre vizinhos (30%), seguidos pela violência familiar (24%), por furtos (20%) e por outros tipos de conflitos (23%). O homicídio apareceu com 3% do total.

Ao serem perguntadas sobre o nível de cumprimento das medidas instauradas pelas instituições do Estado durante o confinamento, as pessoas manifestaram que as medidas não cumpridas foram: encontros sociais como festas e reuniões de lazer (46%), o estado de recolhimento e a lei seca (26% cada), o uso de máscaras (23%), o distanciamento físico (25%) e, em menor medida, as viagens (20%).

Os dados mostram a relação entre o nível de cumprimento das normas no confinamento e os atores de controle. Perguntou-se sobre os atores que mais controlaram as situações apresentadas. 53% dos respondentes identificaram que foi a polícia quem mais controlou as situações no confinamento; 32% disseram que nenhum ator fez o controle; e 14% informaram que atores armados ilegais tiveram um controle sobre as medidas. A polícia sempre apareceu nas respostas como o principal ator no controle das medidas da pandemia, mas as pessoas identificaram os atores armados ilegais como importantes no controle do confinamento, mesmo com as medidas impostas pelo Estado.

Na pergunta sobre a percepção de segurança em Moravia durante a pandemia, as respostas foram bem variadas: 37% dos respondentes expressaram se sentir mais ou menos seguros; 27%, seguros; 16%, pouco seguros; 13%, muito seguros; e 7% responderam não se sentirem seguros em nenhum caso.

Os atores armados ilegais no bairro de Moravia mantêm uma dinâmica de controle e regulação dos conflitos e do território, e no confinamento incidiram no controle do cotidiano da pandemia sem apresentarem confrontos com as instituições do Estado ou outros grupos armados ilegais. Porém, o confinamento fortaleceu o seu poder sobre as rendas do solo, com a venda forçosa de terrenos dentro do bairro, as extorsões e a segurança.

Caso 3: Caucasia

Caucasia é a terceira cidade mais importante fora da área metropolitana de Medellín. Fica a cerca de 300km de Medellín - aproximadamente seis horas de viagem por uma das principais estradas do país, que conecta o centro aos principais portos do Caribe. Tem pouco menos de 100 mil habitantes em todo o seu território, que se dedicam à agricultura, pecuária, comércio, mineração e outras atividades do setor primário, e localiza-se em uma das regiões mais conflituosas da Colômbia, o Baixo Cauca Antioquenho. Seu nome alude ao Rio Cauca, a divisa natural da área urbana da cidade e que marca boa parte de sua atividade econômica. Sua riqueza aurífera, a fertilidade de suas terras, propícias ao cultivo de plantações ilícitas, a pecuária e outros fatores fizeram da região uma zona de retaguarda para grupos guerrilheiros e paramilitares e um dos epicentros do conflito colombiano.

Desde a década de 1970, a extinta guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército do Povo (Farc-EP) marcou presença no território de Caucasia, especialmente em sua área rural, onde as atividades pecuárias e de mineração eram predominantes e constituíam rendas importantes, suscetíveis a serem consideradas fontes de financiamento da causa. Assim, configurava-se uma ordem social em que o apoio às causas sociais e agrárias era uma das principais estratégias de acomodação (ARJONA, 2016ARJONA, Ana. Rebelocracy: Social Order in the Colombian Civil War. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.; RAMÍREZ et al., 03/2013RAMÍREZ, José Giraldo (org.); MISSE, Michel; THOUMI, Francisco; RENO, William; DUNCAN, Gustavo; TOBÓN, Santiago; ARÉVALO, Julián; ORTEGA, Juan Ricardo. Economía criminal y poder político. Medellín: Universidad EAFIT, mar. 2013. Disponível em: https://repository.eafit.edu.co/bitstream/handle/10784/9654/economia_criminal_poder_politico.pdf
https://repository.eafit.edu.co/bitstrea...
). Na década de 1980, as lavouras de maconha e coca começaram a marcar presença na região, e com isso a demanda dos proprietários de terras por proteção contra os rebeldes incentivou a instalação de grupos de autodefesa. Portanto, as então recém-formadas Forças de Autodefesa de Urabá consolidaram forças e criaram o Bloco Mineros e o Bloco Central Bolívar, que rapidamente começaram a reivindicar o controle do território, não apenas das áreas rurais, mas também dos centros urbanos, que serviram como centros de coleta e abastecimento (FALS BORDA, 2016FALS BORDA, Orlando. “La Violencia en Colombia”. Entornos, vol. 29, n. 2, pp. 27-32, 2016.; VERDAD ABIERTA, 07/09/2011).

Essa dinâmica gerou uma rápida expansão populacional e a cidade passou de 19.500 habitantes em 1965 para 88.400 em 20072 2 Ver (on-line): https://www.dane.gov.co/index.php/estadisticas-por-tema/demografia-y-poblacion/proyecciones-de-poblacion . Suas atividades econômicas se expandiram e o boom da coca e do ouro marcaram seu desenvolvimento econômico e urbano. Ciclo após ciclo, a circulação do capital derivado desses mercados moldou as estruturas econômicas e políticas do município. Essas dinâmicas geraram maior mobilidade social, traduzida na nova elite regional que chegou e cooptou as instituições. Prova disso é o histórico criminal dos prefeitos eleitos desde a década de 1990, sistematicamente investigados por vínculos com grupos paramilitares, mineração ilegal, tráfico de drogas e crimes relacionados à corrupção (FUNDACIÓN PARES, 09/08/2019; TRIBUNAL DE JUSTICIA Y PAZ, 2018; VERDAD ABIERTA, 2012).

A esse fenômeno, os governos local e nacional reagem marcando presença militar e posteriormente investindo na infraestrutura rodoviária e em serviços como educação e saúde. No entanto, essa presença do Estado não foi suficiente para contrariar a influência dos já posicionados paramilitares, que de uma forma ou outra asseguraram certa governança criminal do município e com ela certa paz tensa que se estendeu por determinados períodos, quando os índices de criminalidade não eram tão alarmantes como hoje.

Somente em 2019 a taxa de homicídios foi de 147 mortes por 100 mil habitantes, oito vezes maior que a média de todo o país, que era de 25. Estamos falando de cifras muito superiores às de grandes cidades como Medellín e Cali, com 23 e 51, respectivamente. Para 2020, observa-se uma redução para 87 por 100 mil habitantes, ainda acima de 24, a média nacional, e das referências, que foram reduzidas para 14 e 48, respectivamente3 3 Ver (on-line): https://www.policia.gov.co/grupo-informacion-criminalidad/estadistica-delictiva .

Esses números fazem de Caucasia um dos municípios mais violentos do mundo, se compararmos com os dados da ONG Seguridad Justicia y Paz, que coloca as cidades mexicanas de Tijuana e Juárez no topo do ranking, com estatísticas de 134 e 104 mortes por 100 mil habitantes, respectivamente (CCSPJP, 2020). Essas estatísticas são atribuíveis a uma reacomodação das forças, derivadas do processo de paz e que incluem as dissidências das Farc-EP e das Forças de Autodefesa Gaitanista da Colômbia (AGC), grupo predominante na região (DALBY, 2019DALBY, Chris. “Crecen Los Caparrapos en Colombia por alianzas con ELN y ex-FARC mafia”. InSight Crime, Análisis, 30 jan. 2019. Disponível em: https://es.insightcrime.org/noticias/analisis/crecen-caparrapos-colombia-alianzas-eln-exfarc-mafia/
https://es.insightcrime.org/noticias/ana...
).

Antes de mencionar a presença de grupos guerrilheiros, os atrativos dessa região que ajudam a explicar sua alta conflitividade são: a falta da presença estatal e militar, traduzida na infraestrutura deficiente e precária de serviços e na baixa eficácia institucional para acompanhar a população na consecução de suas necessidades; a presença de plantações ilícitas, principalmente de coca, e sua riqueza em mina de ouro; e a luta pelo controle econômico e político desses recursos e territórios, que têm desencadeado graves confrontos, resultando em um círculo vicioso de ineficiência estatal e violência com graves repercussões para os moradores.

Em um relatório publicado recentemente pela Fundación Ideas para la Paz (Indepaz, 2020), encontra-se uma definição da AGC atribuída a si mesma: “somos uma Organização Político-Militar de resistência civil armada, de origem social, temporariamente na ilegalidade, defensora da população vulnerável vítima do conflito social armado produto do abandono e da corrupção político-administrativa das elites que nos governaram” (p. 39). Essa declaração revela um grupo com finalidades políticas específicas, muito diferente dos grupos paramilitares e de autodefesa que têm controlado o território nas últimas décadas.

O AGC é um grupo residual das Autodefensas Unidas de Colombia (AUC) que reúne alguns dos homens mais poderosos do grupo paramilitar. Entre eles, aqueles que, uma vez desmobilizados graças ao processo de paz de 2006, continuaram a cometer crimes na prisão ou que não aderiram ao Pacto de Ralito - como é conhecido o acordo firmado entre os grupos de autodefesas e o Estado colombiano - e aqueles que cumpriram suas penas e voltaram às armas. Desde então, seus objetivos estavam bastante concentrados no controle do tráfico de drogas e das extorsões. Sua consolidação ocorre após acirradas disputas entre facções conhecidas como Los Paisas, Clan Úsuga, Los Rastrojos, Oficina de Envigado, cartéis dos departamentos do Valle, células dissidentes de grupos guerrilheiros e grupos criminosos comuns (INDEPAZ, 2018; DALBY, 29/07/2019DALBY, Chris. “Crecen Los Caparrapos en Colombia por alianzas con ELN y ex-FARC mafia”. InSight Crime, Análisis, 30 jan. 2019. Disponível em: https://es.insightcrime.org/noticias/analisis/crecen-caparrapos-colombia-alianzas-eln-exfarc-mafia/
https://es.insightcrime.org/noticias/ana...
).

Hoje eles são o grupo criminoso mais poderoso de toda a Colômbia, com presença em 17 dos 32 departamentos e fortes conexões transnacionais, principalmente com cartéis mexicanos (SAAVEDRA, 10/06/2020SAAVEDRA, Sergio. Radriografía de la ominosa presencia de los carteles mexicanos”. Pares: Fundación Paz & Reconciliación, Post, 10 jun. 2020. Disponível em: https://pares.com.co/2020/06/10/efecto-de-los-carteles-mexicanos-en-grupos-armados-colombianos/
https://pares.com.co/2020/06/10/efecto-d...
). Na verdade, para o governo nacional, sua condição é o cartel de drogas, conhecido como Clan del Golfo (EL TIEMPO, 18/07/2018). Muitas de suas frações estão vinculadas ao comando central e outras operam sob o modelo de franquias, uma inovação que tem lhe permitido ganhar relevância em todo o território, aumentar sua influência junto à classe política e controlar grande parte das receitas ilegais da mineração, do tráfico de drogas e de outras fontes que dependem da dinâmica de cada região (ÁVILA MARTINÉZ, 2019ÁVILA MARTINÉZ, Ariel Fernando. Detrás de la Guerra en Colombia. Bogotá: Planeta, 2019.; SEMANA, 2020).

Não há registros específicos sobre o número de membros, mas estima-se em mais de 2 mil combatentes (INDEPAZ, 2020), que atuam sob uma estrutura híbrida, embora seja piramidal para fluxos de dinheiro e horizontal para a tomada de decisões operacionais. Ou seja, há certa autonomia para cada uma das frentes, o que garante que a unidade de atuação e a integridade de suas fileiras sejam preservadas. São bastante organizados na gestão dos recursos e eficazes no controle social e econômico que exercem nos territórios. Para isso, contam com duas figuras chaves em suas estruturas e que se replicam em cada uma de suas frentes e unidades: o líder político e o financista. O primeiro é responsável por todo o controle social que possa afetar a paz ou a estabilidade nas regiões, como brigas, conflitos trabalhistas e familiares (de casos de maus tratos a casos de infidelidade), problemas entre vizinhos e conflitos por dívidas não pagas - ou seja, tudo o que é passível de ser regulamentado e resolvido de forma rápida sem a intervenção de entidades estatais. O segundo, por sua vez, tem a função de controlar e regular todas as transações econômicas realizadas nos mercados ilegais e de administrar as “vacinas” ou extorsões impostas sobre a economia legal e/ou sobre os residentes, quando assim julgarem. Essas duas engrenagens permitem um controle vertical sobre todos os demais integrantes da organização, evitando operações não autorizadas pelos comandos centrais ou pelo esquadrão - que constitui crime gravíssimo, com consequências como a pena de morte (RE/170120/01; ARNE/140320/01).

Os objetivos desse agrupamento não são apenas políticos ou econômicos, como sugere Collier (2002COLLIER, Paul. “On economic causes of civil war”. Oxford Economic Papers, vol. 50, n. 4, pp. 563-573, 2002.) para a classificação dos conflitos armados e de seus atores (COLLIER e HOEFFLER, 2005COLLIER, Paul.; HOEFFLER, Anke. “Resource Rents, Governance, and Conflict”. Journal of Conflict Resolution, vol. 49, n. 4, pp. 625-633, 2005.; COLLIER, 2002). Nesse caso, seus objetivos são o resultado de uma história de luta contrainsurgente e de controle sobre o narcotráfico e outras receitas atrativas em grande parte do país. O controle social, econômico e de recursos se torna imperativo para seus fins e um fim em si mesmo. Para isso, podem dispor de estruturas armadas, mas também se entranham na estrutura do Estado, tornando-se um dos seus despojos mais lucrativos (GARAY SALAMANCA et al., 09/2008GARAY SALAMANCA, Luis Jorge (dir); SALCEDO-ALBARÁN, Eduardo; LEÓN-BELTRÁN, Isaac de; GUERRERO, Bernardo. La captura y reconfiguración cooptada del Estado en Colombia. Bogotá: Fundación Método, Fundación Avina y Transparencia por Colombi, set. 2008.).

Análise comparada dos casos

Para cumprir nosso propósito de traçar uma comparação entre os contextos urbanos analisados em relação à regulação dos atores armados e do seu modelo de governança criminal a partir da pandemia de Covid-19, começamos por estabelecer alguns eixos comparativos. Nossa atenção recaiu especialmente sobre a identificação de mecanismos sociais de regulação da vida cotidiana dos habitantes dos diferentes bairros e territórios em análise. De maneira geral, escalamos duas dimensões principais da governança criminal para nossos registros e observações: o controle social e a regulação do mercado.

Para o primeiro eixo, destacamos como os grupos armados de cada um desses territórios interferem diretamente sobre o cotidiano dessas populações, assumindo, sobretudo, um papel de arbitragem sobre comportamentos sociais, desvios, circulação de pessoas, porte de arma e proteção da propriedade privada. Para o segundo eixo, destacamos os mecanismos de controle e regulação dos mercados lícitos e ilícitos, a gerência do cumprimento dos pactos e contratos e a gestão do transporte formal e informal. A Tabela 1 apresenta uma síntese comparativa dessas dimensões e mecanismos para cada um dos territórios:

Tabela 1:
distâncias e aproximações da governança criminal: dimensões e mecanismos

Nos três contextos analisados, a despeito das características organizacionais mais ou menos fragmentadas, observa-se em comum uma espécie de naturalização da violência como meio aceitável de resolução dos conflitos, não apenas por parte dos grupos armados, mas também das próprias comunidades. A governança criminal, nos casos analisados, limita o monopólio da violência por parte do Estado, mas não está necessariamente na contramão dos interesses deste. No caso da violência urbana, de maneira geral, e da resolução de conflitos interpessoais e da preservação e manutenção da propriedade privada, os grupos armados impõem em todos os territórios uma gramática própria e a gestão dessas atividades. A propósito dos eixos comparados, a dimensão do controle social foi aquela em que se pôde identificar maiores afinidades entre os grupos, ainda que eles se caracterizem por práticas distintas de repressão e coerção.

Observamos que na Colômbia podemos pensar que a violência pode ser um meio para atingir variados objetivos, como projetos de poder que podem incluir desde a constituição de uma ordem ou o combate a ideologias de esquerda até a regulação da violência como forma de garantir os banhos de mercado legal. Já em Maceió a violência pode ser entendida como um fim em si, constituindo-se em um ciclo que se autoperpetua pelas suas próprias práticas. Se no caso colombiano, muitas vezes, a presença de diversos atores políticas (dos grupos armados à sociedade civil desarmada) institui determinadas formas de regulação da violência, em Maceió essas disputas, quando se dão, são de caráter restritamente endógenos, como as disputas entre facções pelo controle dos territórios e do microtráfico.

Há que se destacar a estreita relação entre os mercados legais e os atores armados e a necessidade da conivência e/ou da cooperação do Estado para manter a sobrevivência desses mercados. Com ressaltas contextuais, em alguma medida, essa é uma característica que se pode observar a todos os casos, desde as redes fragmentárias do tráfico em Maceió até os modelos mais hierarquizados ou horizontais de gestão da criminalidade em Medelín e Caucasia. Para alguns, esses arranjos, Estado e grupos criminosos, em alguma medida se misturam; para outros, Estado e grupos criminosos se mantêm independentes, embora estabeleçam por natureza uma relação de coparticipação, em que o crime passa a ser tolerado a favor do desfrute de certos benefícios, alguns inclusive de caráter coletivo, como a regulação social das taxas de homicídios nas periferias e dentro das prisões.

O fenômeno do controle territorial e das comunidades, levando em conta o grau de fragmentação ou não das atividades criminais nos casos observados, parece apontar para uma relação de correspondência entre o controle das comunidades e a extensão de suas atividades econômicas, no sentido de que quanto maiores forem as redes de atividades, maiores serão as demandas por controle do território e da comunidade. Nesse sentido, a experiência comparada dos três contextos urbanos parece apontar para uma dimensão ainda pouco explorada pela literatura especializada: a relação entre capilaridade, extensão e dimensão dos grupos criminosos e a influência do seu raio de atuação sobre as periferias urbanas. No caso de Maceió, por exemplo, passados mais de um ano do início da pandemia de Covid-19, foi perceptível o quanto a fragilidade dos fatores organizacionais dos grupos armados foi sobressaltada pela precarização das condições de sobrevivência.

Nas três cidades foram encontrados altos níveis de pobreza e baixos níveis de emprego e educação, que facilitam o recrutamento de jovens sem muitas oportunidades e que entram em círculos repetitivos de violência. No caso de Maceió, esse registro é fundamental para identificar e compreender onde o microtráfico se instalou, bem como as dinâmicas de recrutamento e o modelo de atração que o mercado das drogas ilícitas exerce sobre a juventude periférica. No caso de Medellín e Caucasia, a relação com a pobreza é importante, mas não parece ser definidora dessas relações, uma vez que a presença de outros atores em disputa pela legitimidade da população coloca o tráfico como mais um ator entre outros.

Em todos os casos, o Estado goza de pouca legitimidade em relação à segurança, especialmente para as classes sociais mais baixas, mas os demais serviços estatais ficam e figuram à sua disposição. É curioso observar que a imagem do Estado ausente é tão irreal, na prática, quanto a imagem do tráfico como um ator com total controle do território e de sua população. A bem da verdade, nenhum desses modelos de dominação ideal existem. O que se pode observar é uma espécie de “divisão social” do trabalho entre atores armados e o próprio Estado. Mesmo nos contextos mais vulneráveis não há absoluta ausência do Estado, visto que de alguma maneira ele se faz presente, seja na imagem e representação das escolas, dos postos de saúde familiar ou na figura das forças de segurança. O que se observa é uma lógica e uma racionalidade próprias de atribuição de funções e competências a um ator ou ao outro.

É imprescindível, em se tratando da forma com que se instituem as relações de força e poder entre os casos de Maceió, Medellín e Caucasia, levar em conta que temos em jogo dois modelos distintos de Estado, visto que no Brasil temos um modelo de gestão federativa, enquanto na Colômbia há o Estado centralizado. Essa distinção é importante, especialmente para se pensar o caso de Caucasia, onde a gestão do crime se aproxima em alguma medida de uma tentativa de usurpação do poder e função do Estado - algo mais próximo do modelo de uma espécie de governança rebelde. Essa questão também é importante para se pensar o desenvolvimento do tipo de ação que um Estado e o outro têm entendido como eficientes para combater a criminalidade - por exemplo, o papel das polícias num e noutro contexto.

A cooptação do Estado pelas Autodefesas Gaitanistas da Colômbia em Bajo Cauca é muito maior do que nos casos de Medellín e Maceió, o que destaca a dimensão política de suas funções de governança. Essas particularidades se sobressaem em comparação aos demais casos. Não por acaso, em se tratando comparativamente de Maceió, a dimensão da regulação dos mercados é insuficiente ou incipiente. No máximo, os grupos armados da capital alagoana estabelecem regras de proibição de roubos e furtos nos territórios controlados. No caso de Bajo Cauca, podemos observar que os mecanismos de regulação dos mercados são os mais especialmente desenvolvidos, com a instituição de comissões de arbitragem de contratos e a constituição de redes complexas de extorsão e segurança, com previsão, inclusive, de percentuais de juros comensais e a regulação do transporte informal.

Podemos pensar as relações de poder em Medellín a partir da imagem de poderes que se cruzam e se interseccionam. No caso de Bajo Cauca, seria mais apropriado descrever essas relações a partir da imagem do cooptação do crime pelo próprio Estado. Já para Maceió, a melhor descrição seria uma espécie de sobreposição de funções entre Estado e grupos armados, sobretudo no que compete às dimensões social e econômica. Todas essas situações são em alguma medida situações de convivência e mutualismo entre os grupos armados e o Estado. Assim como não há poder criminoso que controle tudo, é ilusório pensar que o Estado esteja completamente ausente nesses casos. Para além dos discursos que enfatizam o confronto entre mocinhos e bandidos, a realidade empírica borra esses limites, embaralhando esse entendimento binário e problematizando a sintaxe da relação entre repressão e cooperação.

Conclusões

Durante a pandemia não se evidenciaram mudanças significativas nas funções convencionais da governança criminal nos contextos analisados. No caso de Bajo Cauca, houve a necessidade de evitar chamar atenção das autoridades e da imprensa. No caso de Medellín e Maceió, houve tão somente ações pontuais e residuais, sem propósito de intervenção ou resposta aos desafios impostos pela pandemia. Em todo caso, continuaram as práticas regulatórias já em curso, não havendo mudanças significativas em seus modos de regulação. Não se evidenciou também o fortalecimento ou aumento do número de combatentes ou ainda o aprofundamento das ações de violência ou contra a comunidade e as forças de segurança.

A análise que se tem realizado com o estudo das cidades de Medellín e Caucásia, na Colômbia, e Maceió, no Brasil, ajudaram a confirmar as similitudes nas atuações dos grupos ilegais na América Latina, especialmente quando seu interesse é regular a vida social e econômica nas zonas urbanas vulneráveis. Quer dizer, não há grandes fontes de capital disponíveis no entorno imediato; aliás, trata-se de lograr um objetivo de controle territorial apesar da dificuldade de encontrar fontes de renda significativas. Por exemplo, no caso do bairro de Moravia, em Medellín, a dinâmica e a organização dos grupos, caracterizada pela atuação em pequenos grupos e redes, não precisa de maiores capitais para manter grandes exércitos, como os grupos de guerrilha ou paramilitares.

Isso contribui para que os mercados ilegais se sustentem, em grande parte, graças à conivência entre os atores armados ilegais e os estatais, representados nos territórios pela polícia e outros funcionários de controle. Devido às características sociais e econômicas desses territórios, onde as necessidades básicas da população são pouco atendidas e não há muitas oportunidades para seus habitantes, as estruturas de outros tipos de governança não estatal são facilmente instaladas. Não se trata de ausência do Estado. Melhor seria falar em uma presença diferenciada que abre interstícios para outros agentes que oferecem serviços complementares em contraprestação às extorsões traduzidas em dinheiro ou encobrimento das atuações ilegais.

A oferta de serviços, principalmente de segurança, parece beneficiar tanto os atores estatais como os atores armados ilegais. Ambos se nutrem do benefício da população silenciada e controlada, privada de reclamar, inclusive, de suas necessidades econômicas e sociais. As reclamações traduzidas em protestos ou denúncias diante de abusos da repressão do Estado ou de sua negligência não são possíveis. Os grupos criminais reprimem violentamente também qualquer tentativa de visibilidade dos grupos vulneráveis. Essa relação mutuamente benéfica, porém, não tem ainda evidências de uma estratégia orquestrada com as agencias estatais. Todavia, seus agentes são beneficiados, o que pode ser constatado ou observado pelo avanço de denúncias e acusações crescentes da participação de atores públicos em redes de corrupção e extorsão, não sua grande maioria, vinculadas ao tráfico de produtos legais e ilegais.

Durante o período analisado não se evidenciou o surgimento de novos mecanismos de regulação por parte dos atores armados em nenhuma das três cidades. As medidas decretadas pelas autoridades locais foram em alguma medida benéficas para eles, que aprofundaram o controle sobre a circulação de pessoas e atividades sociais. Esse contexto facilitou suas ações ilegais e reduziu a necessidade de ações coercitivas e violentas. Prova disso é a diminuição das taxas de criminalidade nos três casos. Há que se destacar aqui, especialmente, as medidas de isolamento social durante a pandemia, que parecem ter impactado diretamente a redução da taxa de crimes letais violentos intencionais nos territórios em questão.

Por outro lado, não se evidenciaram novos mecanismos de governança sobre aspectos diretamente vinculados à pandemia. Sua gestão, por parte dos governos ou dos atores armados ilegais, não gerou dinâmicas econômicas e sociais distintas daquelas que já existiam. Aliás, sendo Maceió, Medellín e Caucasia três contextos com grupos armados com características distintas quanto ao número de integrantes, tipo de estrutura e alcance de suas ações, as práticas regulatórias estabelecidas parecem conservar certa estabilidade no tempo. Essa característica demostra a efetividade das atuações desenvolvidas e seu controle territorial através do tempo, bem como a estabilidade dessa relação de simbiose com o poder do Estado.

Referências

  • ARIAS, Enrique Desmond; GOLDSTEIN, Daniel M. Violent Democracies in Latin America. Durham, NC: Duke University Press, 2010.
  • ARIAS, Enrique Desmond. Criminal Enterprises and Governance in Latin America and the Caribbean. Nova York: Cambridge University Press, 2017.
  • ARJONA, Ana. Rebelocracy: Social Order in the Colombian Civil War. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.
  • ARNE. Actor Criminal. Entrevista semisestructurada. Caucasia: Grupo de Autodefensa. 2020.
  • ÁVILA MARTINÉZ, Ariel Fernando. Detrás de la Guerra en Colombia. Bogotá: Planeta, 2019.
  • ÁVILA MARTINÉZ, Ariel Fernando. Grupos armados ilegales, violencia urbana y mafias coercitivas: Gobernabilidad y crisis democráticas. San José, C.R.: Flacso, 2010.
  • CARVALHO, Cícero Péricles de. Economia popular: Uma via de modernização para Alagoas. Maceió: Edufal, 2012.
  • COLLIER, Paul.; HOEFFLER, Anke. “Resource Rents, Governance, and Conflict”. Journal of Conflict Resolution, vol. 49, n. 4, pp. 625-633, 2005.
  • COLLIER, Paul. “On economic causes of civil war”. Oxford Economic Papers, vol. 50, n. 4, pp. 563-573, 2002.
  • FALS BORDA, Orlando. “La Violencia en Colombia”. Entornos, vol. 29, n. 2, pp. 27-32, 2016.
  • FBSP. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/
    » https://forumseguranca.org.br
  • GARAY SALAMANCA, Luis Jorge (dir); SALCEDO-ALBARÁN, Eduardo; LEÓN-BELTRÁN, Isaac de; GUERRERO, Bernardo. La captura y reconfiguración cooptada del Estado en Colombia. Bogotá: Fundación Método, Fundación Avina y Transparencia por Colombi, set. 2008.
  • INDEPAZ. Trayectorias y dinámicas territoriales de las disidencias de las FARC. Fundación Ideas para la Paz (Indepaz): Bogotá, 2018. Disponível em: http://ideaspaz.org/media/website/FIP_Disidencias_Final.pdf
    » http://ideaspaz.org/media/website/FIP_Disidencias_Final.pdf
  • INDEPAZ. Informe sobre presencia de grupos armados en Colombia. Bogotá: Fundación Ideas para la Paz (Indepaz), 2020. Disponível em: http://www.indepaz.org.co/wp-content/uploads/2020/11/INFORME-GRUPOS-ARMADOS-2020-OCTUBRE.pdf
    » http://www.indepaz.org.co/wp-content/uploads/2020/11/INFORME-GRUPOS-ARMADOS-2020-OCTUBRE.pdf
  • LEAL, Leonado Prates; CORÀ, Maria Amélia Jundurian; SANTANA, Luciana; NASCIMENTO, Emerson Oliveira; MALTA, Renata Amorim. Sociedade civil em Maceió, AL: Respostas solidárias à crise da pandemia de Covid-19. Brasília: Iabs, 2020.
  • LESSING, Benjamin. Making Peace in Drug Wars. Nova York: Cambridge University Press, 2018.
  • LESSING, Benjamin. “Conceptualizing Criminal Governance”. Perspectives on Politics, vol. 19, n. 3, pp. 854-873, 2020.
  • LESSING, Benjamin. “Counterproductive Punishment: How Prison Gangs Undermine State Authority”. Rationality and Society, vol. 29, n. 3, pp. 257-97, 2017.
  • LESSING, Benjamin; WILLIS, Graham Denyer. “Legitimacy in Criminal Governance”. American Political Science Review, vol. 113, n. 2, pp. 584-606, 2019.
  • LINDOSO, Dirceu A. Formação de Alagoas Boreal. Maceió: Cata­Vento, 2000.
  • MEDELLÍN CÓMO VAMOS. Seguridade ciudadana. Informe de calidade de vida de Medellín 2016-2019. Medellín: Medellín Cómo Vamos, 2019.
  • NASCIMENTO, Emerson Oliveira do. “Acumulação social da violência e sujeição criminal em Alagoas”. Sociedade e Estado, vol. 32, n. 2, pp. 465-485, 2017.
  • NASCIMENTO, Emerson Oliveira do. “Transformações em torno do fenômeno da violência homicida no estado de Alagoas”. Sociedade e Cultura, vol. 19, n. 1, pp. 37-49, 2016.
  • PATIÑO, Carlos. Medellín: Territorio, conflicto y Estado. Planeta. 2015
  • POLICÍA NACIONAL. Estadística delictiva. Retrieved May 31, 2021, from https://www.policia.gov.co/grupo-informacion-criminalidad/estadistica-delictiva 2021, April 22
    » https://www.policia.gov.co/grupo-informacion-criminalidad/estadistica-delictiva
  • RAMÍREZ, Jorge Giraldo; RENDÓN CARDONA, Andrés Julián; DUNCAN CRUZ, Gustavo. Nuevas modalidades de captación de rentas ilegales en Medellín. Medellín: Universidad EAFIT, 2014.
  • RAMÍREZ, José Giraldo (org.); MISSE, Michel; THOUMI, Francisco; RENO, William; DUNCAN, Gustavo; TOBÓN, Santiago; ARÉVALO, Julián; ORTEGA, Juan Ricardo. Economía criminal y poder político. Medellín: Universidad EAFIT, mar. 2013. Disponível em: https://repository.eafit.edu.co/bitstream/handle/10784/9654/economia_criminal_poder_politico.pdf
    » https://repository.eafit.edu.co/bitstream/handle/10784/9654/economia_criminal_poder_politico.pdf
  • RODRIGUES, Fernando. “‘Corro com o PCC’, ‘Corro com o CV’, ‘Sou do crime’: Facções, sistema socioeducativo e os governos do ilícito em Alagoas”. Rev. bras. Ci. Soc., vol. 35, n. 102, pp. 1-21, 2020.
  • RODRIGUES, Fernando. “Tradições de agressividade, disciplina e sistema de internação de jovens em Alagoas (1980-2015)”. Interseções, vol. 19, n. 2, pp. 483-513, 2017.
  • SANTOS, Sérgio. Facções criminosas em alagoas: Violência urbana, racismo, sociabilidades juvenis e territorialidades. Maceió: Sérgio Santos/Independente, 2020.
  • TRIBUNAL DE JUSTICIA Y PAZ. “Lectura de Sentencia en proceso priorizado contra RAMIRO VANOY MURILLO alias “Cuco Vanoy” - Bloque Mineros”. Rama Judicial, Salas de Justicia y Paz, Sala Penal de Justicia y Paz del Tribunal Superior de Medellín, Medellín, 24 jun. 2018. Disponível em: https://www.ramajudicial.gov.co/web/sala-de-justicia-y-paz-tribunal-superior-de-medellin/-/lectura-de-sentencia-en-proceso-priorizado-contra-ramiro-vanoy-murillo-alias-“cuco-vanoy”---bloque-miner-1
    » https://www.ramajudicial.gov.co/web/sala-de-justicia-y-paz-tribunal-superior-de-medellin/-/lectura-de-sentencia-en-proceso-priorizado-contra-ramiro-vanoy-murillo-alias-“cuco-vanoy”---bloque-miner-1
  • ZALUAR, Alba. Integração perversa: Pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
  • WALDMANN, Peter. El Estado anómico: Derecho, seguridad pública y vida cotidiana en América Latina. Caracas: Nueva Sociedad, 2003.

Fontes da imprensa

  • 1
    A comunidade do Vergel localiza-se a cerca de 4km do centro de Maceió, às margens da Lagoa Mundaú, um dos sistemas estuarinos mais importantes do país, hoje em acelerado processo de degradação, intensificado pelo crescimento desordenado da área urbana e pela presença de um polo cloroquímico. O território é caracterizado ainda pelo registro expressivos de homicídios e pela presença flagrante de facções criminosas. Tradicionalmente, é um território antigo, marcado pela economia da pesca do sururu e pela presença marcante de famílias de pescadores que habitam as margens da lagoa. O baixo preço no mercado do comércio do sururu e a sazonalidade da sua extração, além da insalubridade da sua produção, têm transformado o tráfico de drogas em uma alternativa viável, especialmente para os mais jovens. A urbanização insólita e precária do local promove condições sub-humanas de sobrevivência que se misturam hoje ao controle do varejo de drogas ilícitas e à filantropia de organizações do terceiro setor que, junto ao Estado e aos grupos faccionados, compartilham a gestão do território e dos principais problemas que se apresentam no cotidiano dos seus moradores.
  • 2
    Ver (on-line): https://www.dane.gov.co/index.php/estadisticas-por-tema/demografia-y-poblacion/proyecciones-de-poblacion
  • 3
    Ver (on-line): https://www.policia.gov.co/grupo-informacion-criminalidad/estadistica-delictiva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2021
  • Aceito
    14 Mar 2022
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco de Paula, 1, Sala 109, Cep: 20051-070, Rio de Janeiro - RJ / Brasil , (+55) (21) 3559.1926 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: coordenacao.dilemas@gmail.com