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Entre o risco e o dano: Redução de danos, redução de riscos e prevenção no Brasil e na França

Resumos

A partir de uma pesquisa etnográfica e comparativa realizada em instituições que trabalham com redução de riscos (réduction des risques) e prevenção de condutas de risco (prévention des conduites à risques) na região de Paris, na França, e com redução de danos em São Paulo, no Brasil, este artigo visa discutir alguns aspectos dos desenvolvimentos diferenciais que tais abordagens preventivas de problemas sociais derivadas da harm reduction tiveram nos dois países. Para tanto, utiliza as traduções locais de harm como dano ou risco como suporte narrativo para refletir sobre as características que as estratégias, os discursos e as práticas baseadas nesse modelo assumiram no Brasil e na França.

Palavras-chave:
risco; prevenção; redução de danos; políticas públicas; problemas sociais


Based on an ethnographic and comparative research carried out in institutions that work with risk reduction (réduction des risques) and prevention of risky behavior (prévention des conduites à risques) in Paris, France, and with harm reduction (redução de danos) in Sao Paulo, Brazil, Between Risk and Harm: Harm Reduction, Risk Reduction and Prevention in Brazil and France aims to discuss some aspects of the differential developments that such preventive approaches to social problems, derived from harm reduction, have had in these countries. Therefore, it uses local translations of harm as “damage” or “risk” as a narrative support to reflect on the characteristics that the strategies, discourses and practices based on this model have assumed in Brazil and France.

Keywords:
risk; prevention; harm reduction; public policies; social problems


Amuse-bouche ou acepipe introdutório1 1 Agradeço a Maria Hermínia Tavares de Almeida, Juliana Caruso e Ronaldo de Almeida, às/aos colegas do Programa Internacional de Pós-Doutorado (IPP) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e às/aos pareceristas anônimos pelas generosas leituras, sugestões e comentários a versões anteriores do texto. Agradeço também à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que possibilitou a pesquisa por meio do processo no 2017/14862-5.

Minhas pesquisas têm como tema central a prevenção do envolvimento de crianças, adolescentes e jovens naquilo que popularmente se denomina crime, delinquência e drogas. Ao descrever as ações, intervenções, discursos e práticas das instituições, estruturas e agentes que atuam nesse(s) campo(s), procuro compreender as técnicas, metodologias e tecnologias sociais utilizadas por políticas públicas, ONGs, associações e outras formas de ação coletiva no combate preventivo a alguns dos mais prementes problemas de nossos dias. Fiz pesquisas em ONGs brasileiras instaladas nas periferias de grandes cidades, cujas ações buscam evitar a participação de seus atendidos na criminalidade e na chamada violência urbana (RODRIGUES, 2011RODRIGUES, Tiago Hyra. Tirando do crime e dando oportunidade: Estratégias educacionais de prevenção das violências em duas ONGs de Florianópolis, SC. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011., 2017RODRIGUES, Tiago Hyra. Entre faltas e oportunidades: ONGs e prevenção da violência. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 11, p. 130-146, 2017.). Entre 2014 e 2017, pesquisei em diversas instituições francesas que fazem um trabalho preventivo de problemas sociais e sanitários (RODRIGUES, 2018RODRIGUES, Tiago Hyra. Going Social: Risk Behavior Prevention in France. In: GROSSI, Miriam (Org.). Conference Proceedings: 18th IUAES Word Congress. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2018., 2019RODRIGUES, Tiago Hyra. Prevenção de condutas de risco: Antigos problemas sociais, novas respostas associativas no Brasil e na França. In: Journeés jeunes chercheurs en sciences humaines et sociales: Regards croisés France-Brésil. Brasília: Embaixada da França no Brasil; UnB; Fundação Alexandre de Gusmão, 2019. p. 497-510., 2022RODRIGUES, Tiago Hyra. Metamorfoses da prevenção: Prevenindo condutas de risco na França. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 37, n. 108, p. 1-18, 2022.). Também fiz trabalho etnográfico no Centro de Convivência É de Lei, ONG paulistana que atua no campo da redução de danos relativos ao uso de substâncias, especialmente (mas não apenas) junto à população em situação de rua.

Todas essas associações, ONGs e instituições de prevenção têm como denominador comum raízes no conceito e/ou a utilização de metodologias derivadas da harm reduction, uma abordagem destinada à minimização de impactos negativos do uso de substâncias. Surgida em países europeus para lidar com infecções transmissíveis entre usuários injetores, ela foi ampliada a um cuidado mais “holístico” com a saúde e as condições sociais dos usuários, inscrevendo-se no movimento mundial da “nova saúde pública” dos anos 1970 e 1980, que valoriza a responsabilidade individual dos sujeitos pelo cuidado de si e o imperativo de as políticas de saúde levarem em consideração as necessidades das pessoas atendidas, colocando os sujeitos no centro dos dispositivos, buscando reforçar sua autonomia e estimular sua participação no projeto terapêutico a eles destinado (INSERM, 2010INSERM. Réduction des risques infectieux chez les usagers de drogues. Paris: Les éditions Inserm, 2010.).

Apesar de ser uma denominação que hoje abrange uma grande diversidade de abordagens derivadas e complementares, é possível discernir algumas características comuns às intervenções baseadas na harm reduction, além das acima mencionadas. Suas ações de cuidado e tratamento são fundadas na estratégia de “baixa exigência”, em que não se requer a abstinência. Em geral, mantêm centros de convivência, e é comum realizarem busca ativa para estabelecer relações e vínculos com as populações atendidas, conhecer sua realidade e incluí-las na formatação das intervenções. Durante esse campo, distribuem insumos que variam de acordo com os contextos em que trabalham, como seringas, piteiras de silicone, preservativos, cachimbos etc. Também realizam ações informativas e educativas relativas ao consumo mais seguro das substâncias, como a elaboração de panfletos, sites, publicações, palestras etc. Além disso, cabe citar as diversas formas pelas quais intentam reestabelecer os “vínculos sociais”, que incluem tanto conseguir documentação, acesso aos serviços de saúde, assistência, emprego e moradia, como tentativas de incentivar a sociabilidade em grupos de apoio mútuo, atividades artísticas, reconciliação com familiares etc. Com essas (e outras) características (que, contudo, não a definem), a harm reduction alcançou projeção mundial e acabou se firmando como um dos principais modelos de prevenção, cuidado e tratamento não apenas dos problemas relacionados ao uso de substâncias, mas de uma miríade de problemas sociais, como tráfico, delinquência e prostituição (RODRIGUES, 2019RODRIGUES, Tiago Hyra. Prevenção de condutas de risco: Antigos problemas sociais, novas respostas associativas no Brasil e na França. In: Journeés jeunes chercheurs en sciences humaines et sociales: Regards croisés France-Brésil. Brasília: Embaixada da França no Brasil; UnB; Fundação Alexandre de Gusmão, 2019. p. 497-510., 2022RODRIGUES, Tiago Hyra. Metamorfoses da prevenção: Prevenindo condutas de risco na França. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 37, n. 108, p. 1-18, 2022.), compondo as políticas públicas no Brasil e na França.

Entretanto, durante o processo de tradução e “importação” aos respectivos contextos nacionais, o conceito sofreu uma inflexão semântica: no Brasil, harm foi traduzido como dano; na França, como risco2 2 Há outras traduções para o francês: na Suíça, na Bélgica e no Canadá não é raro encontrar prévention des méfaits e réduction des méfaits. . Para além do que já ficou bem estabelecido por um debate que não é novo - a saber, que dano se refere a um prejuízo concretizado, real e efetivado e risco a uma possibilidade, virtualidade ou eventualidade (CARLINI, 2003CARLINI, Elisaldo. Posicionamento da UNIFESP sobre redução de danos. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 52, n. 5, p. 363-370, 2003.) -, e sem pretender afirmar que tais traduções locais são determinantes do desenvolvimento diferencial da harm reduction nos dois países (pois há muitas variáveis envolvidas), a intenção aqui é mostrar que - pervertendo a frase de Lévi-Strauss - risco e dano podem não ser bons para comer, mas são bons para pensar algumas características que as estratégias preventivas baseadas nesse modelo assumiram no Brasil e na França.

Risco como entrada

Nos últimos decênios, o conceito de risco se tornou central nos debates sobre a prevenção dos problemas sociais. Segundo Bernstein (1996)BERNSTEIN, Peter. Against the Gods: The Remarkable Story of Risk. Nova York: Wiley, 1996., ele surgiu com a matemática renascentista, sendo utilizado para calcular as chances de ganhar ou perder em uma aposta. Essas chances seriam ponderadas não a partir do acaso ou da vontade divina, mas de uma razão probabilista e calculista. Ao longo do tempo, o conceito ganhou novos contornos e aplicações, por exemplo, no cálculo dos riscos sociais que fundamentavam as políticas do welfare state ou Estado-providência (EWALD, 1986EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Grasset, 1986.).

Os riscos sociais são interessantes para refletirmos sobre o arcabouço semântico que é colado ao conceito de risco quando aplicado à gestão e ao controle de problemas sociais, como aqueles combatidos pelas abordagens derivadas da harm reduction. Analisando por coincidência o caso francês, Ewald mostra como o desenvolvimento do Estado-providência e da seguridade social buscaria, por meio da aplicação do cálculo probabilístico ao governo das sociedades, gerenciar os riscos que acometem a população, em um modelo derivado dos seguros (EWALD, 1986EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Grasset, 1986., p. 143). Quando o Estado-providência assume o papel de “segurador geral” da sociedade, tratando os problemas sociais (desemprego, acidentes, doença, velhice etc.) como riscos, o risco torna-se social - no sentido de que todos estão a ele sujeitos e, portanto, as responsabilidades devem ser por todos repartidas - e são instauradas políticas para geri-lo. E, para Ewald, “essa política tem um nome: higiene social; uma forma privilegiada: a prevenção” (EWALD, 1986EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Grasset, 1986., p. 168)3 3 As citações cujo original não era em português foram traduzidas pelo autor. . Riscos sociais e prevenção estão indissociavelmente ligados:

As noções de risco social e de seguridade social (...) fundam as políticas modernas de segurança como políticas de prevenção. (...) Com isso, se dá à administração o direito, e o dever, de penetrar, controlar, modificar a vida de cada um. O alvo não é mais o delinquente ou o criminoso, mas todos e cada um em sua vida mais cotidiana (EWALD, 1986EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Grasset, 1986., p. 334).

O risco seria, nessa perspectiva, uma categoria moral, a forma pela qual a sociedade prescreve a seus membros o que se deve ou não fazer, os “comportamentos proveitosos a todos e a cada um, assim como as condutas prejudiciais pois socialmente custosas” (EWALD, 1986EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Grasset, 1986., p. 384). Ou seja, para o autor o risco é onde a moral toma a forma de uma economia, em que a palavra-chave é prevenção, sempre com o objetivo de proteger a segurança dos cidadãos e da coletividade. Para atingir esse objetivo, um dos fundamentos seria a socialização: “Nós ‘socializaremos’ as crianças na escola; ‘socializaremos’ os adultos nos sindicatos e associações; ‘ressocializaremos’ os delinquentes” (EWALD, 1986EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Grasset, 1986., p. 366). Para Ewald, socializar significa ensinar a cada um que ninguém é um indivíduo isolado, mas sim membro de uma sociedade, pela qual também é responsável. O risco social, segundo o autor, implica o vínculo social (lien social), e caberia a essa socialização moralizadora inculcar e reforçar nos indivíduos e coletividades a percepção desse vínculo como manifestação de uma relação de solidariedade e interdependência (EWALD, 1986EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Grasset, 1986., p. 19) - o que, por si só, ajudaria a prevenir alguns dos riscos sociais aos quais essas populações estariam submetidas e a repartir os prejuízos, se não fosse possível evitá-los.

De outro lado, a noção de risco também encontrou importantes aplicações no campo da saúde, a princípio na epidemiologia e mais tarde na saúde mental e na psicologia. Na epidemiologia, tal como na esfera dos seguros, o risco é considerado um dado objetivo, podendo ser medido e calculado, e se torna inseparável da prevenção (JESSOR, 1991JESSOR, Richard. Risk Behavior in Adolescence: A Psychosocial Framework for Understanding and Action. Journal of Adolescent Health, n. 12, p. 597-605, 1991.). Para definir o risco de algo são criados indicadores que codificam incertezas como probabilidades, a partir das quais são definidos os sujeitos, coletividades e regiões com mais chances de serem acometidos, fundamentando, assim, a construção de propostas preventivas.

O termo “prevenção” indica um conjunto de ações e estratégias cujo objetivo é evitar algum fenômeno ou reduzir seus impactos, caso seja impossível impedi-lo. O que costumamos chamar de “a prevenção” na verdade engloba múltiplas esferas, âmbitos e modalidades de políticas públicas e sociais. Em relação ao uso de substâncias, por exemplo, é possível distinguir, grosso modo, duas grandes vertentes de políticas preventivas. Uma delas seria baseada na redução da oferta e a outra, na redução da demanda (CARLINI, 2003CARLINI, Elisaldo. Posicionamento da UNIFESP sobre redução de danos. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 52, n. 5, p. 363-370, 2003.; ROSA, 2014ROSA, Pablo. Drogas e a governamentalidade neoliberal: Uma genealogia da redução de danos. Florianópolis: Insular, 2014.)4 4 Alguns autores, como Rosa (2014), consideram a harm reduction uma terceira vertente preventiva, já que não teria como objetivo a redução da oferta nem da demanda, preocupando-se em reduzir as decorrências indesejadas do consumo. . A primeira se caracteriza por políticas públicas de repressão e sanção à fabricação, plantio, refino, distribuição e venda de substâncias. A segunda compreende medidas planejadas para evitar ou diminuir o seu uso, minimizando os agravos decorrentes do consumo e os fatores de risco para o indivíduo na família, escola, comunidade, trabalho etc. (CARLINI, 2003CARLINI, Elisaldo. Posicionamento da UNIFESP sobre redução de danos. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 52, n. 5, p. 363-370, 2003.).

Da década de 1970 para cá, o conceito de risco se tornou referência em domínios muito distintos: economia, ciências atuariais, epidemiologia, saúde pública, ambientalismo, trabalho social, lazer etc. (BECK, 1992BECK, Ulrich. Risk Society: Towards a New Modernity. Londres: Sage, 1992.; LE BRETON, 1991LE BRETON, David. Passions du risque. Paris: Métaillé, 1991.; 2002LE BRETON, David. Conduites à risque: Des jeux de mort au jeu de vivre. Paris: PUF; Quadrige, 2002.). Correntes da psicologia passaram a se dedicar ao estudo do risco, a profissão dos analistas de risco se consolidou e o conceito foi progressivamente incorporado na gestão financeira e produtiva, empregado nos cálculos de investimentos que avaliam as relações de custo-benefício amparadas na expectativa de lucro (ROSA e SOUZA, 2015ROSA, Pablo; SOUZA, Aknaton. Vulnerabilidade, risco, tratamento e prisão. Anais do XVII Congresso Brasileiro de Sociologia, Porto Alegre, 20 a 23 de julho, 2015.; DOUGLAS, 1992DOUGLAS, Mary. Risk and Blame. Londres: Routledge, 1992.).5 5 Participei, em 2018, do curso Gestão de Riscos no Setor Público, oferecido no âmbito da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), que me forneceu pistas inesperadas. No curso, o risco foi definido como “possibilidade de ocorrência de um evento que venha a ter impacto no cumprimento dos objetivos de um projeto”. Seria apenas mais uma definição técnica se o professor responsável, logo após apresentar a definição, não tivesse dito: “Risco, em nosso curso, é sempre negativo. Se quisermos nos referir a impactos positivos nos projetos, não falamos de risco, mas de oportunidades” (ênfase minha).

Como já discuti em outros trabalhos (RODRIGUES, 2019RODRIGUES, Tiago Hyra. Prevenção de condutas de risco: Antigos problemas sociais, novas respostas associativas no Brasil e na França. In: Journeés jeunes chercheurs en sciences humaines et sociales: Regards croisés France-Brésil. Brasília: Embaixada da França no Brasil; UnB; Fundação Alexandre de Gusmão, 2019. p. 497-510., 2022RODRIGUES, Tiago Hyra. Metamorfoses da prevenção: Prevenindo condutas de risco na França. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 37, n. 108, p. 1-18, 2022.), autores como Rabinow (2010)RABINOW, Paul. L’artifice et les Lumières: De la sociobiologie à la biosocialité. Politix, n. 90, p. 21-46, 2010., Bailleau (2011)BAILLEAU, François. Prévention de la délinquance ou gestion du risque?. Les Cahiers Dynamiques, n. 51, p. 6-15, 2011. e Castel (1981CASTEL, Robert. La gestion des risques: De l’antipsychiatrie à l’après psychanalyse. Paris: Éditions de Minuit, 1981., 1983CASTEL, Robert. De la dangerosité au risque. Actes de recherche em sciences sociales, n. 47-48, p. 119-127, 1983.) consideram que o que comumente chamamos de risco se tornou um compósito ou agregado de fatores que tornam um perigo provável. Para Rabinow (2010)RABINOW, Paul. L’artifice et les Lumières: De la sociobiologie à la biosocialité. Politix, n. 90, p. 21-46, 2010., saímos parcialmente da vigilância dos indivíduos e coletividades conhecidos por serem perigosos ou doentes (em uma ambição disciplinar ou terapêutica) para irmos em direção à projeção de fatores de risco que desconstroem e reconstroem os sujeitos individuais e coletivos, em um modelo que antecipa possíveis irrupções perigosas pela detecção estatística de sujeitos e grupos que apresentam certas características. Segundo Castel (1981)CASTEL, Robert. La gestion des risques: De l’antipsychiatrie à l’après psychanalyse. Paris: Éditions de Minuit, 1981., “prevenir é, antes de tudo, vigiar, ou seja, se colocar em posição de antecipar a emergência de eventos indesejáveis (doenças, anomalias, comportamentos desviantes, atos de delinquência etc.) no seio de populações estatisticamente assinaladas como portadoras de riscos” (p. 145).

Para “antecipar a emergência de eventos indesejáveis”, aplica-se aquilo que Ewald (1986)EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Grasset, 1986. denomina “tecnologia do risco”: técnicas de identificação que procedem pela diferenciação do grupo em relação a si mesmo em função da ideia de uma norma ou média estatística, qualquer distanciamento desta sendo identificado como “risco”. “Risco significa então ‘anormalidade’, ‘inadaptação’: o anormal sendo aquele que, se distanciando demais da norma, se separando da média o suficiente para que seu caso se singularize, se torna um risco para o grupo” (EWALD, 1986EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Grasset, 1986., pp. 405-406). Nessa perspectiva, os procedimentos de identificação devem se tornar, então, preventivos: o “anormal” deve ser detectado antes de se tornar “perigoso”, “incorrigível”, “irrecuperável”.

Bailleau (2011)BAILLEAU, François. Prévention de la délinquance ou gestion du risque?. Les Cahiers Dynamiques, n. 51, p. 6-15, 2011. observa na esfera da prevenção da delinquência uma passagem a um modelo de gestão de riscos. Nele, a designação do risco não é construída no nível individual, mas apoiando-se em fatores como condições de vida, educação, estrutura familiar, etnia, gênero, renda etc. Essa combinação de fatores que caracteriza uma pessoa como possivelmente delinquente - e a torna alvo das políticas de prevenção e controle - é realizada sem nenhum contato com ela, sem conhecer sua história. O risco se constrói de maneira técnica, a partir da combinação ou do cruzamento de fatores que são relacionados entre si por um gestor ou administrador. O indivíduo não existe, ele é um entroncamento, o ponto focal de uma série de fatores que o tornam mais “predisposto” a comportamentos “anormais”, “desviantes”, enfim, “de risco”. O educador ou trabalhador social vai intervir preventivamente apenas naquelas populações que correspondem ao perfil produzido pelo gestor a partir de modelos estatísticos: tal tipo de família, em tal tipo de ambiente, com tal nível de escolarização, com tal nível de renda, tem uma chance tal de desenvolver problemas - entra aqui a noção de preditividade, ou aquilo que Arouca (1975)AROUCA, Antônio. O dilema preventivista: Contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1975. denomina “preventivismo”.

Para Bailleau (2011)BAILLEAU, François. Prévention de la délinquance ou gestion du risque?. Les Cahiers Dynamiques, n. 51, p. 6-15, 2011., essa maneira de determinar estatisticamente indivíduos e coletividades como “em situação de risco” contribui para políticas de controle social e gestão populacional. Essa visão gerencial não visa ajudar essas pessoas ou anular os riscos que elas enfrentam, mas sim gerir as “anomalias” que representam, instaurando dispositivos de assistência que disfarçam mecanismos de controle social. O objetivo não é dar fim a esses comportamentos, mas gerir o perigo (ou risco) que representam para o conjunto da população (RODRIGUES, 2022RODRIGUES, Tiago Hyra. Metamorfoses da prevenção: Prevenindo condutas de risco na França. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 37, n. 108, p. 1-18, 2022.).

Assim, a literatura nos indica os possíveis perigos da utilização do conceito de risco nas políticas preventivas. As “tecnologias do risco” aparecem eliminando sujeitos e indivíduos, gerindo de maneira tecnocrática e dessubjetificante as populações identificadas estatisticamente como mais predispostas a tais comportamentos, aplicando formas de controle social mais sutis e sofisticadas que a repressão, mas ainda coercitivas, normativas e normalizadoras.

Para encontrar tais populações “predispostas”, compreender seu comportamento e os riscos que ele traz para sociedades e indivíduos, a busca epidemiológica por fatores de risco à saúde encontrou confluência com a psicologia social, expandindo-se para o ambiente social e relacional, indo além dos domínios em que tradicionalmente procurava tais fatores: a biologia e o ambiente físico (JESSOR, 1991JESSOR, Richard. Risk Behavior in Adolescence: A Psychosocial Framework for Understanding and Action. Journal of Adolescent Health, n. 12, p. 597-605, 1991.). Essa nova compreensão do comportamento como fator de risco - assim como o surgimento da epidemiologia comportamental - tornou aparente que muitas doenças (câncer, doenças do fígado, ISTs, doenças cardíacas) podiam ser ligadas a padrões de comportamento humano. Má alimentação, sedentarismo, tabagismo, sexo desprotegido etc. são fatores de risco à saúde, e a epidemiologia deveria ser capaz de prever seu impacto e propor soluções.

No início dos anos 1990, alguns autores6 6 Como Jessor (1991), Le Breton (1991, 2002), Peretti-Watel (2001), entre outros. começaram a empregar o conceito de “condutas de risco”, que ganhou bastante visibilidade nos EUA e na Europa - mas pouca no Brasil - para tentar mostrar os riscos que esses e outros comportamentos trazem à vida individual e coletiva, entender os fatores de risco que os produzem, construir indicadores e propor soluções e intervenções. Assim, consumo abusivo de substâncias, delinquência, tráfico, violência, adição a jogos, consumismo compulsivo, prostituição, suicídios, direção perigosa, transtornos alimentares, automutilações, entre muitos outros comportamentos que trazem riscos - sociais e sanitários - passaram a ser vistos como problemas sociais e objetos de políticas de prevenção. Apesar de ser um grande “guarda-chuva” conceitual que abriga comportamentos muito diferentes sob um mesmo rótulo, o conceito de condutas de risco ensejou correntes analíticas, clínicas e preventivas bastante influentes. O artigo de Jessor (1991)JESSOR, Richard. Risk Behavior in Adolescence: A Psychosocial Framework for Understanding and Action. Journal of Adolescent Health, n. 12, p. 597-605, 1991. tornou-se referência ao relacionar fatores de risco e de proteção às condutas de risco, recomendando que intervenções junto a adolescentes levassem em conta fatores biológicos/genéticos (como histórico de alcoolismo na família), fatores advindos do ambiente social mais amplo (pobreza, racismo, desigualdade) e mais próximo (modelos desviantes em casa ou entre os pares), fatores de personalidade (como baixa autoestima) e comportamentais (evasão escolar, isolamento de instituições).

Essa perspectiva, no entanto, apesar de seus méritos e de se opor às políticas repressivas usualmente associadas a tais comportamentos, guarda paradoxos e dilemas. Quando associada ao que foi discutido acima sobre a lógica de caracterização do público-alvo por meio de determinações estatísticas e tecnocráticas, ela geralmente implica intervenções direcionadas preferencialmente a jovens, homens, não brancos, minorias, pobres, imigrantes etc., negligenciando outras parcelas da população e, nesse processo, cristalizando identidades malogradas, justificando controle social, estigmatizando grupos e populações. Como afirma Mohammed (2015)MOHAMMED, Marwan. Prévention, conduites à risques, de quoi parle-t-on en 2015?. In: MMPCR. Face aux conduites à risques: Les chemins créatifs de la prévention. Saint Denis: MMPCR, 2015., são os grupos dominantes que determinam quais são os comportamentos problemáticos. Não por acaso, o comportamento dos dominados é frequentemente apontado como tal. Tudo isso parece bastante contraditório com os ideais da harm reduction, que prega a participação dos sujeitos nas intervenções, valoriza a autonomia e a responsabilidade dos usuários, defende direitos e busca estimular a cidadania.

Os dois pratos que se seguem a esta entrada pretendem refletir sobre os modos pelos quais as técnicas, metodologias e políticas de gestão dos riscos e danos trazidos pelos comportamentos considerados problemas sociais se desenvolveram, sob a égide da harm reduction, no Brasil e na França. O objetivo é tentar mostrar as proximidades e os afastamentos em relação à harm reduction “clássica”, assim como os paradoxos, tensões e ambiguidades que acompanharam o desenvolvimento histórico dessas abordagens. Entre o risco e o dano, como se combinam as políticas de controle social e as políticas de cuidado interpessoal?

Redução (e prevenção) de riscos à la française

Narrei em outro trabalho (RODRIGUES, 2022RODRIGUES, Tiago Hyra. Metamorfoses da prevenção: Prevenindo condutas de risco na França. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 37, n. 108, p. 1-18, 2022.) o histórico de institucionalização na França da harm reduction como política pública. Naquela ocasião, procurei detalhar como o conceito de risco adentrou as práticas, políticas e instituições preventivas (estatais e não governamentais). Tentando aqui avançar, discuto dois desenvolvimentos importantes das abordagens derivadas da harm reduction naquele país: de um lado, a progressiva “medicalização” da redução de riscos (RdR) que acompanhou sua institucionalização como política pública; de outro, sua incorporação pelo modelo denominado prevenção de condutas de risco (PCR) que propõe prevenir problemas sociais (e não somente sanitários) utilizando metodologias de estímulo às competências psicossociais e à autoestima.

O uso das estratégias da harm reduction na França remonta a meados da década de 1980 e à crise causada pelo espraiamento do HIV, que de início afetou principalmente os usuários injetores. Foi nesse contexto que profissionais e ativistas franceses foram buscar no conceito de harm reduction alternativas preventivas e terapêuticas. Segundo Anne Coppel (2002)COPPEL, Anne. Les politiques de lutte contre la drogue: Le tournant de la réduction des risques. Les Cahiers de l’Actif, n. 310-311, p. 11-22, 2002., pioneira da abordagem na França, os resultados obtidos pela harm reduction em outros países - menos contágios e menor mortalidade - estimularam sua adoção no país. De acordo com a autora, a abordagem chegou primeiramente como filosofia de trabalho e política de saúde embasada no reconhecimento de que o uso de drogas não desapareceria por mágica, de que apenas clamar pela abstinência jamais resolveria o problema e, assim, prevenção, tratamento e cuidado teriam de ser redefinidos para procurar minimizar os riscos progressivamente, dos mais “graves” aos mais “leves” (COPPEL, 2002COPPEL, Anne. Les politiques de lutte contre la drogue: Le tournant de la réduction des risques. Les Cahiers de l’Actif, n. 310-311, p. 11-22, 2002.).

Aderindo a tal filosofia de trabalho, os agentes de prevenção começaram a multiplicar as abordagens de rua, os centros de acolhimento, as ações sanitárias, culturais e assistenciais sem exigir abstinência para oferecer ajuda ou cuidado. Distribuíram insumos como seringas e preservativos e realizaram ações informativas sobre substâncias e riscos. Outro objetivo manifesto era o chamado “reestabelecimento do vínculo” (lien). Nesse sentido, pude notar no discurso dos trabalhadores de ponta e dos gestores franceses que entrevistei uma tendência a interpretar as pessoas que praticam condutas de risco posicionadas (ou se movendo) em um “gradiente de socialização”: aqueles que praticam as condutas mais extremas, como usuários de substâncias sem residência fixa, são vistos como indivíduos completamente “dessocializados”, cujos “vínculos” com a sociedade teriam sido esgarçados ou rompidos, enquanto aqueles com condutas de risco “mais leves” estariam “perdendo” ou “afrouxando” tais vínculos - o que nos faz pensar que, nos termos de Ewald discutidos na seção anterior, um dos papéis dessas intervenções preventivas ou de gestão de riscos sociais seria “ressocializar” essas pessoas, “trazê-las de volta” à sociedade. Para tanto, instituições e agentes da harm reduction se empenharam em auxiliar a reconstruir tanto os liens formais com a sociedade (conseguir documentação, obter acesso aos serviços de saúde e assistência social) como os liens relacionais com familiares, próximos e pares.

Apesar dessas iniciativas, a política de drogas francesa permanecia essencialmente repressiva, alicerçada no tripé da “guerra às drogas”, da abstinência e da prevenção primária. Nesse sentido, foi fundamental o papel de ativistas, militantes e profissionais da saúde, do trabalho social e da educação, assim como a atuação de instituições humanitárias, ONGs e associações (muitas das quais fundadas nessa época), que pressionaram o Estado por mudanças nas políticas públicas. Anne Coppel, em comunicação pessoal7 7 Entrevista com Anne Coppel, realizada em 19 de outubro de 2016. , me contou que foi nesse contexto que, em 1993, o termo “risco” começou a ser utilizado no campo preventivo francês, por “iniciativa” sua. Ela relata que, ao organizar um colóquio, lhe foi solicitado que traduzisse harm reduction para a língua francesa. Para soar melhor na comunicação e divulgação, ela escolheu traduzir o termo por “redução de riscos”, pois “dano não é bonito”8 8 Idem. . Ela admite ter traduzido harm mal, mas afirma que, do ponto de vista comunicacional, a tradução foi efetiva.

Realmente essa estratégia comunicativa deu resultados, pois em 1994 a “redução de riscos infecciosos entre usuários de drogas” se torna um dispositivo garantido em lei, tendo como metas prevenir a contaminação por HIV e hepatites e permitir aos usuários acessarem o sistema de saúde. Foi a primeira menção à RdR como política pública na França (RODRIGUES, 2022RODRIGUES, Tiago Hyra. Metamorfoses da prevenção: Prevenindo condutas de risco na França. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 37, n. 108, p. 1-18, 2022.).

Com o tempo, clivagens e dissensões apareceram. A utilização do termo “redução de riscos” no dispositivo de 1994 associou-o historicamente às intervenções realizadas com usuários injetores. Alguns trabalhadores e pesquisadores preferiram, por isso, adotar o termo “redução de danos” (réduction des dommages) (RdD) para ações preventivas relativas ao abuso de qualquer substância, incluindo as legais como álcool e tabaco. Por sua vez, os defensores do “risco” contra-atacavam afirmando a conotação negativa e estigmatizante de “dano”. Quando a Missão Interministerial de Luta contra a Droga e a Toxicomania (MILDT)9 9 Mission Interministérielle de lutte contre la drogue et la toxicomanie. A Missão alterou seu nome, em 2014, para Mission Interministérielle de lutte contre les drogues et les conduites addictives (Missão interministerial de luta contra as drogas e as condutas aditivas) (Mildeca), revelando uma ampliação de seu escopo que, para além das substâncias, passa a incluir também comportamentos como sexo, jogos e mesmo o trabalho. lançou um relatório intitulado Os danos ligados às adições e as estratégias válidas para reduzir esses danos, a Associação Francesa de Redução de Riscos (AFR) e o Autossuporte dos Usuários de Drogas (ASUD) publicaram uma carta em que denunciavam

o famoso deslize semântico de prevenção de riscos à redução de danos (...) Contrariamente ao dano, o risco remete a uma visão dinâmica da pessoa, que é apreendida como um sujeito apto a avaliar racionalmente um perigo potencial, e não como um objeto de cuidados. E é o usuário que escolhe se quer se apropriar do instrumento, do conhecimento, da informação (ASUD, 2013ASUD. Dommage pour les risques: Petite querelle sémantique autour d'un rapport gouvernemental sur les drogues. ASUD-Journal, n. 53, p. 4-6, 2013.).

De outro lado, certos agentes pregavam complementaridade. Lia Cavalcanti (2001)CAVALCANTI, Lia. De la nécessité de réinventer la prévention. Peddro, p. 110-115, 2001., psicóloga brasileira radicada na França e fundadora de uma das primeiras associações a empregar a harm reduction em Paris (Espoir Goutte d’Or - EGO), afirma que “[a] redução de riscos é o conjunto de ações sanitárias e sociais, individuais e coletivas, que visam reduzir os problemas ligados ao uso de drogas” (p. 110). Ela sugere que, para maior clareza, o conceito deveria ser ampliado para “prevenção de riscos e redução de danos”. A parte “prevenção de riscos” seria eminentemente social e integraria as medidas antecipadoras e de caráter social visando reduzir os agravos resultantes do uso de drogas, não agindo sobre uma pessoa, mas sobre um grupo social. A outra parte, “redução de danos”, diria respeito ao aspecto sanitário (distribuição de seringas, cuidado corporal, higiene etc.). No entanto, “redução de danos” nunca “pegou” realmente na França, tornando-se uma denominação bastante minoritária. Talvez pela cristalização como política pública nos dispositivos, a RdR tornou-se a denominação-padrão para as políticas preventivas baseadas na harm reduction no país.

Concomitantemente, para tentar se desvencilhar das denominações RdR (associada a usuários injetores) e RdD (associada apenas a substâncias), outros profissionais, militantes e pesquisadores passaram a empregar a “prevenção de condutas de risco” (PCR) - tanto para se diferenciar dos anteriores como para propor uma abordagem mais ampla, que abarcasse outros comportamentos “de risco”, além daqueles com viés exclusivamente sanitário, guiados pelas substâncias ou por sexo desprotegido, como era o caso das intervenções durante a crise do HIV. A primeira menção oficial ao modelo PCR apareceu em 1996, quando o Departamento de Seine-Saint-Denis cria a Missão de Prevenção de Condutas de Risco. Articulando ação social, cuidado sanitário, educação, lazer e prevenção, seu objetivo expresso era:

estimular a sinergia entre diferentes campos e registros de ação (redução de riscos, proteção da infância, prevenção especializada, saúde mental, habitação, assistência, emprego, políticas urbanas etc.). O objetivo é reduzir os riscos, apoiando-se na compreensão dos processos que os produzem e posicionando-se como um recurso em pesquisa e desenvolvimento10 10 Disponível (on-line) em: https://seinesaintdenis.fr/ArchivesDuSite/spip.php?page=article&id_article=5256 .

Muitas pistas para a presente discussão aparecem nesse trecho. Primeiramente, a separação entre o modelo de PCR (que dá nome à Missão) e a RdR, que aparece como um dos campos de ação - provavelmente o campo responsável por lidar com usuários de drogas - que a Missão deve articular. Além disso, ao afirmar que o objetivo é “reduzir riscos apoiando-se na compreensão dos processos que os produzem”, indica um entendimento dos riscos sociais como multideterminados, que podemos relacionar à discussão da seção anterior sobre a busca de fatores de risco.

Dois tipos principais de estruturas surgem em 2004 para executar o atendimento aos usuários de substâncias: os Centros de Cuidado, Acompanhamento e Prevenção em Adictologia (CSAPAs), que disponibilizam tratamento médico e psiquiátrico; e os Centros de Acolhimento e Acompanhamento à Redução de Riscos para Usuários de Drogas (CAARUDs), estabelecimentos de baixa exigência centrados no acolhimento dos usuários, ofertando informação, orientação personalizada, mediação social e insumos de prevenção de doenças transmissíveis. Alguns CAARUDs organizam intervenções de proximidade com o objetivo de estabelecer contato com usuários que não frequentam o centro. Os CAARUDs se aproximam da RdR “clássica”, enquanto os CSAPAs são estruturas mais “medicalizadas”.

Nessa mesma época, o número de usuários injetores diminuiu na França, enquanto o de pessoas que usam crack aumentou drasticamente. Para lidar com esse novo problema, a Missão de Prevenção de Condutas de Risco de Seine-Saint-Denis e a Missão de Prevenção de Toxicomanias de Paris se uniram para realizar um trabalho conjunto no nordeste parisiense. Essa intervenção ajudou a firmar a PCR como política governamental e a aumentar a abrangência das ações de prevenção (JAMOULLE e FOURNIER, 2007JAMOULLE, Pascale; FOURNIE, Jean. Plan crack Nord-Est parisien. Mairie de Paris, 2007.), além de mostrar a necessidade de integrá-las: percebeu-se que não era possível lidar com o “problema do crack” de forma isolada das condições existenciais dos sujeitos; era necessário entender os atendidos como sujeitos integrais, com complexidades que não podem ser fragmentadas em “fatores de risco” (RODRIGUES, 2018RODRIGUES, Tiago Hyra. Going Social: Risk Behavior Prevention in France. In: GROSSI, Miriam (Org.). Conference Proceedings: 18th IUAES Word Congress. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2018., 2022RODRIGUES, Tiago Hyra. Metamorfoses da prevenção: Prevenindo condutas de risco na França. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 37, n. 108, p. 1-18, 2022.). Esse trabalho aproximou as missões, que em 2013 se fundiram na Missão Metropolitana de Prevenção de Condutas de Risco (MMPCR). Segundo Marie Gaudier, gerente de projetos da MMPCR, a escolha de uni-las sob o rótulo da PCR foi justamente para ampliar o objetivo preventivo e propiciar uma abordagem mais global:

- (...) o consenso foi que valia mais alargar o campo de ação do que restringi-lo, e dessa forma nos interessarmos verdadeiramente pelo conjunto. Nós dizemos aqui “pelo ecossistema”: a família, o bairro, a escola, o ambiente social e cultural que envolve essas condutas. Assim, podemos nos interessar pela prevenção de outras coisas (...) a partir dos ensinamentos da redução de riscos. (Entrevista com M. Gaudier, 20/11/2016)

Além do alargamento do direcionamento preventivo a outras condutas que não aquelas caracterizadas pela ingestão de substâncias, a fala de Gaudier ressalta a percepção das condutas de risco como relacionadas ao “ecossistema”, ou seja, revela uma compreensão (que não é só dela, mas da Missão como instituição) de que não adianta atuar sobre as condutas individuais sem se interessar pelo quadro social, comunitário e relacional mais amplo - relembrando a seção anterior, podemos perceber aqui reflexos daquela prevenção dirigida a populações, não a indivíduos, e aos fatores que produzem os riscos. Também é interessante notar que Gaudier afirma que a MMPCR aproveita “os ensinamentos da redução de riscos”. Devemos separar, portanto, o modelo de RdR do modelo de PCR e tentar entender os seus desenvolvimentos diferenciais: a RdR seria o modelo mais próximo da harm reduction “histórica”, ligada aos usuários de substâncias e ao enfrentamento do HIV, enquanto a PCR pode ser considerada uma ampliação ou um desenvolvimento da primeira, com um objetivo preventivo mais inclusivo.

A RdR francesa dirigida aos usuários de drogas, tal como idealizada em seus primórdios e descrita no início desta seção, sofreu grandes transformações e algumas derivas, de acordo com Fabrice Olivet, da ASUD. Entre elas, foi decisiva a chegada, nos anos 1990, dos tratamentos de substituição de opiáceos à base de metadona e Subutex. Como o tratamento e as prescrições deviam ser realizadas sob a supervisão de um médico, isso teve como consequência a gradual “colonização” do campo da RdR “clássica” (formada por militantes, usuários e ex-usuários) por profissionais da saúde e por um saber “medicalizado e medicalizante”11 11 Entrevista com Fabrice Olivet, realizada em 13 de setembro de 2016. . A institucionalização, em 2004, veio acompanhada da profissionalização, da expulsão dos antigos redutores sem formação universitária e de uma crescente autoridade biomédica. É sintomático o desenvolvimento no país da especialidade médica da “adictologia”, ramo da medicina que estuda a adição e a dependência tanto a substâncias como a comportamentos, como internet, jogos, sexo etc. Segundo Olivet, isso representa uma mudança no campo conceitual: a adictologia se torna o “centro de gravitação” da RdR, com uma perspectiva biomédica, que passa a se interessar por genética, neurobiologia e neuroimagens, inclusive com a hipótese de que o comportamento seria hereditário. Ele critica o fato de a lei que oficializa a RdR coexistir com a lei que penaliza criminalmente o usuário. Assim, a única redução de riscos autorizada é aquela com função médica, como a distribuição de insumos “cujo propósito exclusivo seja evitar doenças”12 12 Idem. , sob a autoridade de médicos, que continuam a “patologizar” o uso. Segundo Olivet, é verdade que há menos repressão, mas o usuário de drogas precário parou de sofrer com o bastão do policial e agora sofre com o bastão do médico. Continua sendo vigiado e controlado. Segundo o relatório do Instituto Nacional da Saúde e Pesquisa Médica (Inserm)13 13 Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale. :

Contrariamente à Suíça, ao Canadá ou aos Países Baixos, a França se centrou na questão do risco infeccioso e promoveu uma visão sanitária e medicalizada da RdR que deixa pouco espaço para a questão dos outros riscos ligados ao uso de drogas, que são os riscos legais, sociais e relacionais, assim como a dimensão do ambiente urbano (...). A aplicação dessa versão medicalizada da redução de riscos teve igualmente como consequência a escolha de uma estratégia centrada no tratamento da dependência por meio de medicamentos de substituição de opiáceos e dominada, há alguns anos, pelo paradigma da adictologia (INSERM, 2010INSERM. Réduction des risques infectieux chez les usagers de drogues. Paris: Les éditions Inserm, 2010., p. 8).

Por outro lado, enquanto a RdR manteve esse direcionamento biomédico dirigido ao uso de substâncias e aos riscos sanitários, o modelo PCR é mais inclusivo, abrigando a vasta série de condutas que recaem nesse rótulo e alargando o alcance das ações preventivas para além das drogas e dos problemas de saúde. Em outro texto (RODRIGUES, 2022RODRIGUES, Tiago Hyra. Metamorfoses da prevenção: Prevenindo condutas de risco na França. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 37, n. 108, p. 1-18, 2022.), procurei descrever como esse modelo combina a abordagem da harm reduction com metodologias psicopedagógicas para propor uma abordagem preventiva mais ampla e integrada.

A MMPCR é um dos principais dispositivos propagadores desse modelo: realiza pesquisas, oferece cursos, debates, palestras e grupos de trabalho sobre diferentes temas relativos às condutas de risco; além disso, oferece oficinas e disponibiliza recursos didático-pedagógicos de prevenção (livros, revistas, jogos cooperativos, dinâmicas de grupo etc.) para profissionais que queiram desenvolver ações preventivas junto a seus atendidos.

A MMPCR disponibiliza dois tipos principais de recursos didático-pedagógicos, um mais específico e outro mais geral. O específico inclui jogos, dinâmicas e brincadeiras relacionadas a questões como sexo, uso de substâncias e violência. O geral, segundo os profissionais da Missão, é mais amplo e projetado para utilização en amont14 14 En amont significa literalmente “rio acima”. Nesse contexto, indica algo como “pré-prevenção” ou prevenção antecipada. , para “reforçar as competências psicossociais do público”. Tais competências (CPS) foram caracterizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (1993OMS. Life Skills Education in Schools. Division of Mental Health, 1993.) como “a capacidade de uma pessoa de lidar efetivamente com exigências e desafios da vida cotidiana. É a aptidão a manter um estado de bem-estar mental, adotando um comportamento apropriado e positivo nas relações com os outros, sua cultura e seu ambiente” (p. 1)15 15 As CPS identificadas pela OMS são: tomada de decisões, resolução de problemas, pensamento criativo, pensamento crítico, comunicação efetiva, habilidades relacionais interpessoais, autoconsciência, empatia, gerenciamento de emoções e gerenciamento do stress (OMS, 1993). .

Diversos estudos, principalmente na psicopedagogia (ROSCöAT, 2014ROSCÖAT, Enguerrand. Quelles sont les interventions efficaces chez les jeunes pour prévenir les consommations? La santé en action, n. 429, p. 26-26, 2014.; LUIS e LAMBOY, 2015LUIS, Élisabeth; LAMBOY, Béatrice. Les compétences psychosociales: Définition et état des connaissances. La Santé en Action, n. 431, p. 12-16, 2015.) afirmam a necessidade de estimulá-las como uma alavanca necessária para a prevenção de problemas sociais e de saúde mental, relatando que a frequência das condutas de risco é menor quando as CPS dos sujeitos são mais desenvolvidas. Para os agentes da MMPCR, essas CPS não devem ser concebidas independentemente de sua colocação em prática (ou se tornam apenas palavras), nem independentemente umas das outras (uma autoestima hipertrofiada pode se tornar falta de empatia).

Conforme descrevi em outro trabalho (RODRIGUES, 2022RODRIGUES, Tiago Hyra. Metamorfoses da prevenção: Prevenindo condutas de risco na França. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 37, n. 108, p. 1-18, 2022.), a MMPCR disponibiliza diversos jogos, atividades dramatúrgicas e cooperativas cujo objetivo é desenvolver ou reforçar as CPS, dirigidas a públicos que vão da pequena infância (a partir de dois anos de idade) a adultos encarcerados. Mas o que deve ser frisado é o fato de essas dinâmicas serem consideradas formas de “pré-prevenção”, prevenção antecipada ou, como dizem, en amont, a serem aplicadas antes mesmo da identificação de comportamentos de risco, como forma de construir “bases pessoais sólidas” capazes de resistir e enfrentar as condutas de risco, como me explicou um redutor. No quadro que a MMPCR procura difundir, esse modelo preventivo fundado no estímulo das CPS seria passível de utilização com todos os públicos e preveniria todas as condutas de risco. No entanto, é notável que tal modelo não seja aplicado ao conjunto da população francesa, mas preferencialmente às populações identificadas pelas “tecnologias do risco” que Ewald (1986)EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Grasset, 1986. descreve: aquelas tecnocraticamente caracterizadas como “em risco”, localizadas nas regiões rotuladas pelo governo francês como “zonas sensíveis” ou “de segurança prioritária”, nas quais proliferam questões de preconceito, racismo, desemprego estrutural, desigualdade, pobreza etc. (RODRIGUES, 2022RODRIGUES, Tiago Hyra. Metamorfoses da prevenção: Prevenindo condutas de risco na França. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 37, n. 108, p. 1-18, 2022.).

Assim, apesar de algumas instituições ainda valorizarem o cuidado, o contato direto, a negociação com os usuários, o acolhimento e a construção de vínculos (como os CAARUDs, por exemplo), mantendo vivos os ideais iniciais da harm reduction, a RdR francesa parece ter se bifurcado em dois caminhos bastante distintos. De um lado, segue atuando de uma forma mais medicalizada, exemplificada pelos CSAPAs, pela distribuição de insumos que visam prevenir doenças infecciosas e pelos tratamentos de substituição; de outro, foi gradativamente incorporada como parte do modelo PCR. Esse modelo, que se mostra mais abrangente abarcando uma diversidade de condutas em seu escopo, é muito mais centrado na prevenção e na gestão de possíveis consequências negativas de determinados comportamentos para o conjunto da população do que no cuidado com os sujeitos que apresentam tais comportamentos. Dedicando-se a estimular as CPS em populações identificadas tecnocraticamente como “em situação de risco”, tal modelo demonstra uma característica deveras “antecipadora” (ou en amont), intervindo exageradamente cedo (a partir de dois anos de idade), revelando um “preventivismo” exacerbado em suas tentativas de controlar e gerir as populações consideradas mais propensas a tais condutas, antes mesmo de elas se manifestarem. Nesse sentido, apesar de promover formas humanizadas de acolhimento e pregar a importância da “socialização” e do (re)estabelecimento dos vínculos sociais (lembrando de Ewald), esse modelo se afasta dos ideais da redução de riscos “clássica”, ao idealizar e implementar intervenções preventivas sem a participação dos atendidos, aplicando metodologias geradas (e geridas) por instâncias técnicas e tecnocráticas.

Redução de danos à moda brasileira

Como em outros países, a harm reduction se desenvolveu no Brasil, sob a denominação de redução de danos (RD), como um recurso para lidar com o alastramento do HIV nos anos 1980, centrado nos usuários injetores. A história da implantação das estratégias de RD no Brasil é bem conhecida e estudada16 16 Petuco (2016), Rosa (2014), Machado e Boarini (2013), entre outros. . Desde o primeiro projeto na cidade de Santos (que encontrou enormes dificuldades, inclusive jurídicas), passando pelo programa pioneiro de troca de seringas de Salvador, pela consolidação da política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral ao Usuário de Álcool e Outras Drogas em 2004, até as mudanças ocorridas nas práticas quando o crack substituiu a cocaína injetável, a RD brasileira atravessou dificuldades e transformações. A seguir, concentro a discussão em três dessas mudanças: 1) substituição do conceito de risco pelos de dano (como denominação) e vulnerabilidade (como categoria operatória); 2) aproximação da reforma psiquiátrica, da Luta Antimanicomial e do antiproibicionismo; e 3) redefinição como uma “ética do cuidado”.

Apesar de se ter assumido desde o início a tradução de harm como dano, o conceito de risco rondou a prática preventiva do HIV no Brasil. Como lembra Petuco (2016PETUCO, Denis. O Pomo da discórdia? Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2016., p. 117), as primeiras estratégias para o enfrentamento da epidemia foram calcadas na noção de “grupos de risco”, que produzia estigma e preconceito ao considerar determinadas populações como culpadas pela doença. Segundo Machado e Boarini (2013)MACHADO, Leticia; BOARINI, Maria. Políticas sobre drogas no Brasil: A estratégia de redução de danos. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 33, n. 3, p. 580-595, 2013., devido à mobilização das populações estigmatizadas, como o movimento gay, a classificação de grupos de risco foi primeiramente realocada no conceito de comportamentos de risco - criticado por reafirmar a culpabilização individual dos sujeitos - e, posteriormente, no conceito de vulnerabilidade.

Referindo-se originalmente, no campo dos direitos humanos, a “grupos ou indivíduos fragilizados, jurídica ou politicamente, na promoção, proteção ou garantia de seus direitos de cidadania” (Ayres et al., 2003AYRES, José Ricardo; FRANCA JR., Ivan; CALAZANS, Gabriela. O conceito de vulnerabilidade e as práticas em saúde: Novas perspectivas e desafios. In: CZERESNIA, Dina; FREITAS, Carlos Machado de (Orgs). Promoção da saúde: Conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 117-139., p. 118), o conceito de vulnerabilidade foi aplicado à saúde diante da epidemia de aids e posteriormente ao campo do trabalho social. Nesse percurso, sofreu algumas inflexões, passando a ser conceituado como o conjunto de aspectos individuais e coletivos relacionados à maior suscetibilidade de indivíduos e comunidades a um adoecimento ou agravo e, de modo inseparável, à menor disponibilidade de recursos para sua proteção (CARMO e GUIZARDI, 2018CARMO, Michelly; GUIZARDI, Francini. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cadernos de Saúde Pública, v. 34, n. 3, p. 1 -14, 2018.). Para Ayres et al. (2003)AYRES, José Ricardo; FRANCA JR., Ivan; CALAZANS, Gabriela. O conceito de vulnerabilidade e as práticas em saúde: Novas perspectivas e desafios. In: CZERESNIA, Dina; FREITAS, Carlos Machado de (Orgs). Promoção da saúde: Conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 117-139., a importância do conceito de vulnerabilidade está em incluir os aspectos sociais, culturais, econômicos, políticos, comportamentais e ambientais ao tentar determinar a susceptibilidade de um indivíduo ou população a determinada doença/problema. Podemos ver aqui, sem muito esforço, reflexos dos “fatores de risco” discutidos anteriormente.

Machado e Boarini (2013)MACHADO, Leticia; BOARINI, Maria. Políticas sobre drogas no Brasil: A estratégia de redução de danos. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 33, n. 3, p. 580-595, 2013. ressaltam que, no que se refere às drogas, a transição do conceito de “comportamento de risco” à “situação de vulnerabilidade” permitiu o reconhecimento de que, além da perspectiva individual/biológica, as drogas perpassam outras esferas, como a social, a econômica e a política, que influenciam o comportamento individual. Assim, abria-se espaço para a reflexão sobre o uso de drogas como um fenômeno multideterminado. As autoras afirmam que o conceito de vulnerabilidade favoreceu a ampliação da estratégia de redução de danos, passando da prevenção exclusiva da aids a uma concepção de redução de danos sociais e à saúde. Passou-se a perceber que as ações de RD deveriam ser planejadas de acordo com o contexto sociocultural em que seriam aplicadas. Sem desconsiderar a importância das experiências internacionais com essa estratégia, compreendeu-se que nenhum modelo de atenção deveria ser importado sem que se procedesse à sua adequação às especificidades locais. Além disso, o conceito de vulnerabilidade priorizaria, como estratégia de cuidado, a informação e os recursos que transcendem o campo da saúde para que os usuários de drogas possam agir com autonomia, estratégia que se coaduna com os ideais da harm reduction.

Por outro lado, como mencionado, a RD no Brasil se aproximou do campo da saúde mental, da Reforma Psiquiátrica e do movimento da Luta Antimanicomial, assim como do antiproibicionismo. Segundo Silva (2015)SILVA, Rosimeire. Reforma psiquiátrica e redução de danos: Um encontro intempestivo e decidido na construção política da clínica para sujeitos que se drogam. Dissertação (Mestrado em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015., o decréscimo da epidemia de aids entre usuários injetores e o aumento do consumo de crack impuseram mudanças na atuação dos redutores, a adoção de novas estratégias e o deslocamento das ações de redução de danos de DSTs/aids para o campo da saúde mental. A autora, citando Taniele Rui17 17 Essa autora, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também realizou pesquisa de campo junto ao Centro de Convivência É de Lei. , assinala que a migração do lócus institucional da RD da aids para a saúde mental implicou um deslocamento simbólico:

os ideais da redução de danos foram deixando de estar restritos às políticas mais pragmáticas de combate a doenças específicas (como no caso da AIDS) e passaram a ganhar e pleitear no debate público o estatuto e a fala oficial da política sanitária sobre drogas, bem como a compor, inclusive em termos institucionais, um conjunto de ações que, no atual momento, estão a cargo das pastas de saúde mental (RUI, 2014RUI, Taniele. Nas tramas do crack: Etnografia da abjeção. São Paulo: Terceiro Nome, 2014., p. 88, apudSILVA, 2015SILVA, Rosimeire. Reforma psiquiátrica e redução de danos: Um encontro intempestivo e decidido na construção política da clínica para sujeitos que se drogam. Dissertação (Mestrado em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015., p. 122).

Nesse campo da saúde mental, foi fundamental a Reforma Psiquiátrica brasileira, um movimento de crítica dos tratamentos e das instituições psiquiátricas. Denunciando as condições dos manicômios e propondo em seu lugar a criação de uma rede de serviços e estratégias territoriais e comunitárias, tendo a internação como último recurso, o movimento procurava dar autonomia e liberdade àqueles vivendo com transtornos mentais (BRASIL, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Brasília: Opas, 2005.). Não seria possível reproduzir aqui sua história, mas importa saber que depois de muita mobilização entre os trabalhadores da saúde mental (em especial nas Conferências Nacionais de Saúde Mental) e após diversas tentativas de influenciar a legislação, em 2001 é aprovada a lei federal no 10.216, ou Lei Paulo Delgado, que redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Dessa lei origina-se a Política de Saúde Mental, que, resumidamente, visa garantir o cuidado ao paciente com transtorno mental em serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos - evitando internações de longa permanência que isolam o paciente do convívio familiar e social - por meio da constituição de uma rede de dispositivos que permitam a atenção no território. Um destes dispositivos seria o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), com sua subdivisão Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas (CAPSad), que correspondiam a alguns dos anseios dos proponentes da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial.

Os CAPS começaram a surgir nas cidades brasileiras na década de 1980 e passaram a receber uma linha específica de financiamento do Ministério da Saúde a partir de 2002, quando experimentaram grande expansão. São estruturas territorializadas (municipais) abertas que fazem parte da rede substitutiva aos manicômios no país. Prestam atendimento clínico em regime de atenção diária, evitando as internações, promovem a inserção social das pessoas com transtornos mentais por meio de ações intersetoriais e regulam a “porta de entrada” da rede de assistência em saúde mental em seu território. Segundo o Ministério da Saúde, o CAPS é o “núcleo de uma nova clínica, produtora de autonomia, que convida o usuário à responsabilização e ao protagonismo em toda a trajetória do seu tratamento” (BRASIL, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Brasília: Opas, 2005., p. 27). Apesar da aparência idílica, esses serviços sofrem com magros financiamentos, instalações sucateadas, profissionais mal remunerados e estruturas insuficientes.

Em concordância com as recomendações da III Conferência Nacional de Saúde Mental de 2002, o Ministério da Saúde implementou o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e Outras Drogas, reconhecendo o problema do uso de substâncias como sendo de saúde pública e construindo uma política específica para a atenção às pessoas que as usam, situada no campo da saúde mental - e não, por exemplo, da prevenção ou da promoção da saúde - e tendo como estratégia a ampliação do acesso ao tratamento, a compreensão integral e dinâmica do problema, a promoção dos direitos e a redução de danos. Segundo Silva (2015)SILVA, Rosimeire. Reforma psiquiátrica e redução de danos: Um encontro intempestivo e decidido na construção política da clínica para sujeitos que se drogam. Dissertação (Mestrado em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015., esse reconhecimento foi especialmente importante para as políticas no campo das drogas, que durante muito tempo eram consideradas apenas questão de segurança pública, associando o uso de drogas à criminalidade, o que culminava em abordagens terapêuticas baseadas na exclusão/separação dos usuários do convívio social, em contradição com os ideais da Reforma Psiquiátrica, da Luta Antimanicomial e da RD. Por outro lado, tal como na França, o consumo de drogas nunca deixou de ser criminalizado no Brasil. Como me confidenciou um redutor de danos, nessa transição para o campo da saúde mental o usuário de substâncias “ajunta à sua carteira de criminoso aquela de doente mental”: ele é patologizado e criminalizado.

Segundo diversos interlocutores, a portaria no 2.197/2004, que ampliou a atenção integral para usuários de álcool e outras drogas, principalmente por meio dos CAPS (em especial em sua modalidade CAPSad), ao trazer a RD para a política pública e os redutores de danos para dentro dos CAPS aproximou definitivamente a RD da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. Para Petuco (2016PETUCO, Denis. O Pomo da discórdia? Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2016., p. 162), o “bom encontro” entre a RD e a luta antimanicomial ampliou a potência dos dois movimentos, contribuindo para superar o que o autor chama de “preventivismo herdeiro do higienismo social” (do lado da RD) e a falta de reflexão sobre o cuidado em relação a pessoas que usam álcool e drogas (do lado da saúde mental). Essa aproximação também tornou mais clara a crítica e a oposição dos redutores de danos às modalidades de tratamento tradicionais, baseadas na internação, em qualquer uma de suas modalidades (voluntária, involuntária ou compulsória), dos usuários. Na época em que fiz campo com trabalhadores e trabalhadoras do É de Lei, eles, sem exceção, criticavam veementemente o modelo das comunidades terapêuticas, promovido pelo então ministro da Cidadania Osmar Terra.

Petuco (2016)PETUCO, Denis. O Pomo da discórdia? Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2016. afirma que, no encontro com o campo da reforma psiquiátrica, a RD se tornou, mais do que um simples conjunto de estratégias de intervenção em saúde, uma “ética do cuidado” que orienta a prática dos trabalhadores. O autor afirma que foi durante o 5º Encontro Nacional de Redutores de Danos, em 2004, que essa visão do cuidado como ética, e não como um conjunto de procedimentos, foi firmada (PETUCO, 2014PETUCO, Denis. Redução de danos: Das técnicas à ética do cuidado. In: RAMMINGER, Tatiana; SILVA, Martinho (Orgs). Mais substâncias para o trabalho em saúde com usuários de drogas. Porto Alegre: Rede Unida, 2014. p. 133-148.). O diferencial residiria na capacidade de operar de modo não prescritivo e, principalmente, na construção conjunta, entre usuário e redutor de danos, das estratégias de cuidado. Para ele, cuidar é muito diferente de tratar: cuidar tem relação com a ética, a promoção da vida e a humanização do atendimento, enquanto tratar ancora-se no modelo biomédico, em que a fragmentação do sujeito em partes privilegia a atenção à doença e resulta em uma intervenção que não leva em conta a integralidade dos sujeitos (PETUCO, 2016PETUCO, Denis. O Pomo da discórdia? Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2016.), decompondo-os em problemas ou “fatores”.

Para compreender a “integralidade dos sujeitos” e realizar uma “construção conjunta do cuidado”, o caminho que os redutores de danos que entrevistei apontam é corporificado em uma das palavras mais recorrentes nesse campo: vínculo. O estabelecimento de vínculos é uma das principais motivações para o trabalho de proximidade realizado pelo É de Lei. Durante suas ações de campo em cenas de uso de drogas na região central da capital paulista, especialmente na região conhecida como Cracolândia, os redutores de danos distribuem água, panfletos informativos sobre o uso mais seguro de substâncias e insumos diversos (preservativos, manteiga de cacau, piteiras de silicone para cachimbos de crack) e se empenham em estabelecer contatos, entabular conversas e sustentá-las o máximo possível (respeitando a vontade do interlocutor), com o objetivo de “criar vínculo”, ou seja, construir relações de confiança e respeito mútuos, que muitas vezes acabam se tornando verdadeiras amizades. Segundo os redutores de danos do É de Lei, o estabelecimento desse vínculo pessoal entre usuário - ou “convivente”, como denominam - e redutor é essencial e pré-condição para a realização do “cuidado”.

Em uma publicação da entidade intitulada Cuidado na rua, os redutores afirmam que “predominam como principais estratégias de vinculação com as pessoas do local a distribuição de insumos, o respeito pelo tempo do outro, a escuta qualificada e sensível às necessidades do outro e a exploração curiosa pelo novo território e pelas pessoas que ali habitam” (PUPO, MACIEL e CALIL, 2018PUPO, Julia; MACIEL, Mariana; CALIL, Thiago (Orgs.). Cuidado na rua: Ações de redução de danos em contexto do uso de drogas no centro da cidade de São Paulo. São Paulo: Centro de Convivência É de Lei, 2018., p. 5). Segundo os redutores que entrevistei, a principal preocupação é oferecer diferentes formas de cuidado: com o corpo, a saúde física e mental, as relações interpessoais e a sociabilidade, os direitos frequentemente violados, as condições de moradia etc. A “ética do cuidado” seria a atitude não prescritiva que deve estar presente nessas interações. Assim, essa lógica do cuidado teria como uma de suas técnicas, como afirma um dos redutores de danos do É de Lei, o “estar disponível”, que segundo ele é mais importante que se imagina:

- Eu gosto da palavra cuidado. Entendo que ela aproxima de um olhar mais médico (...), mas eu gosto de cuidado, para mim cuidado não é “vou cuidar de você porque você precisa”, mas acho que entendo cuidado como... se você sentir que, nesse momento da sua vida, você tem algum desejo, alguma coisa que aquela relação pode somar, para mim isso é cuidado. E às vezes o cara fala: “Ah, não preciso de nada”. Mas estamos ali, disponíveis... Estar disponível é mais importante do que parece. Estou disponível, tenho atenção, trago outra referência, de outra bagagem de vida, de técnica, acadêmica, enfim. Se a nossa troca fizer bem para nós, para mim isso é cuidado, é bom trato, é dignidade, é respeito... Eu acho que a RD pauta isso, e não só o cuidado em si, num olhar mais médico (...). Acho que a função da RD - e o que eu tento fazer - é abrir as possibilidades, trocar referências, oferecer oportunidades (...). Acho que abrir possibilidades é fazer prevenção. Abrir possibilidades e dar acesso à informação. Se ele tiver acesso à informação e às possibilidades e mesmo assim quiser continuar usando porque acha que assim é bom, firmeza. Mas é ele que vai escolher o caminho dele. Eu entendo que a RD pauta a informação sobre o uso, a informação sobre as possíveis consequências e a informação de algumas estratégias de cuidado. Se a pessoa quiser absorver ou não, é a critério dela. Eu não tenho essa pretensão de dizer o que é menos pior para o outro. Entendo que a RD pauta a informação sobre riscos, consequências, formas de cuidado e que, junto com isso, em relação ao uso, a gente busca abrir possibilidades de estar no mundo, aí a pessoa faz o que ela quer. (Entrevista com Thiago Calil, 19/09/2018)

Assim, a “ética do cuidado” implica um contato pessoal, o estabelecimento de vínculos e relações, o acompanhamento personalizado e o oferecimento de “oportunidades”18 18 Lembremos aqui das definições do curso Gestão de Riscos no Setor Público, mencionadas na nota 5 deste texto: o contrário de risco, no âmbito do curso, era oportunidade. Já discuti as relações entre a prevenção de problemas sociais e o discurso das oportunidades em Rodrigues (2011, 2017). e a abertura de “possibilidades”, mas operando também em uma lógica de autonomia, autorresponsabilização e autocuidado. Nesse sentido, as estratégias utilizadas pelos redutores de danos parecem se coadunar com as características principais das novas políticas sociais a partir dos anos 1980, descritas por Cefaï (2010)CEFAÏ, Daniel. Provações corporais: Uma etnografia fenomenológica entre moradores de rua de Paris. Lua Nova, São Paulo, n. 79, p. 71-110, 2010.:

acompanhamento personalizado ao invés de burocrático; injunção à autonomia e apelo à responsabilização dentro de um projeto biográfico; gestão dos riscos da precariedade mais do que reintegração ao corpo social; atendimento a pessoas vulneráveis em vez de usuários anônimos; dispositivos flexíveis e territorializados no lugar de instituições sociais anônimas e centralizadas (CEFAï, 2010CEFAÏ, Daniel. Provações corporais: Uma etnografia fenomenológica entre moradores de rua de Paris. Lua Nova, São Paulo, n. 79, p. 71-110, 2010., p. 72).

Na confluência do conceito de vulnerabilidade - que apontava para causas sociais, econômicas, políticas etc., para os problemas - com o de superação do “preventivismo” ou do higienismo social oferecido pela aliança com a reforma psiquiátrica e com esta ética do cuidado, a RD brasileira foi se articulando em um ideário de defesa dos direitos dos mais “vulneráveis” - principalmente porque no Brasil, ao contrário da França, o usuário precário ainda sofre muito com o bastão do policial e, também, porque nunca houve Estado-providência. Assim, o entendimento é de que os problemas que as populações vulneráveis usuárias de drogas enfrentam não residem exatamente no uso de drogas, mas são consequências de um fracasso social mais amplo (RODRIGUES, 2018RODRIGUES, Tiago Hyra. Going Social: Risk Behavior Prevention in France. In: GROSSI, Miriam (Org.). Conference Proceedings: 18th IUAES Word Congress. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2018.), sintomas de uma sociedade que não garante direitos básicos; portanto, o caminho para transformação dessa realidade deveria se basear não em intervenções individuais, centradas nos problemas de cada sujeito, mas em respostas estruturais no campo das políticas sociais e de drogas, promovendo moradia, educação, saúde, emprego, espaços de sociabilização, condições razoáveis de existência, sentido de vida etc. (COSTA, 2017COSTA, Roberta. Mil fitas na Cracolândia: Amanhã é domingo e a Craco Resiste. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 203). Nessa chave, e a partir da compreensão de que a principal causa de sofrimento dos usuários de drogas não é a substância, os redutores de danos brasileiros, em geral, são firmes opositores da “guerra às drogas”, muitos deles atuando em movimentos antiproibicionistas como a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), o Coletivo Desentorpecendo a Razão (DAR) e a organização das Marchas da Maconha. A ONG É de Lei tem um setor destinado à articulação institucional com outros movimentos e também um setor de advocacy, responsável por tentar influenciar as políticas públicas que teriam impacto nas questões estruturais mencionadas por Costa (2017)COSTA, Roberta. Mil fitas na Cracolândia: Amanhã é domingo e a Craco Resiste. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017..

Assim, e ao contrário do que denunciam Machado e Boarini (2013)MACHADO, Leticia; BOARINI, Maria. Políticas sobre drogas no Brasil: A estratégia de redução de danos. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 33, n. 3, p. 580-595, 2013. - a saber, que as experiências práticas de RD no Brasil concentram-se mais na prevenção de doenças infecciosas, deixando de fora questões sociais como violência, exclusão e preconceito em relação ao usuário de drogas -, podemos perceber que a RD “à moda brasileira”, apesar de depender em larga medida das linhas de financiamento de projetos ligadas às doenças transmissíveis, se articula com um projeto de transformação social, de mudanças estruturais e, principalmente, de mudança nas políticas de drogas, distanciando-se tanto de uma abordagem securitária como de uma abordagem “medicalizada”. Nesse processo, contudo, os profissionais vivem a difícil situação de depender de financiamentos estatais e ser contra as políticas governamentais, como no caso do É de Lei: uma de suas principais pautas de advocacy é o combate às práticas repressivas estatais direcionadas às pessoas que usam drogas.

Aproximações e distanciamentos (ou: entre le dessert e a sobremesa)

Os modelos de redução de riscos, redução de danos e prevenção de condutas de risco apresentam proximidades e distanciamentos. O objetivo deste texto foi discutir alguns dos desenvolvimentos diferenciais que essas abordagens preventivas dos problemas sociais derivadas da harm reduction tiveram no Brasil e na França.

Pode uma simples tradução ou mudança semântica ter consequências impactantes nas políticas e tecnologias preventivas? É impossível saber se a harm reduction francesa teria outro formato ou desenvolvimento se fosse denominada réduction des dommages (redução de danos) ou prévention des méfaits (prevenção de efeitos nocivos). Se no Brasil a noção de comportamento de risco foi criticada por culpabilizar os indivíduos, na França o conceito de risco é visto como portando menor estigma do que o de dano. Entre outras consequências, sua utilização ajudou a tornar as políticas preventivas dos problemas sociais francesas mais abrangentes e diversificadas, enquanto a RD brasileira manteve-se direcionada às pessoas que usam drogas.

Se a RdR francesa, ancorada nos ideais da harm reduction, privilegiava a responsabilidade, a autonomia e a participação dos atendidos, vimos que ela gradualmente “derivou”, como disse Olivet. De um lado, pela proximidade com a medicina ocasionada pelo HIV e pelos tratamentos de substituição de opiáceos, derivou em direção à “medicalização” representada pelos CSAPAs e pela adictologia (em sua busca biológica das origens das condutas); de outro, por sua aproximação com o trabalho social, a psicologia e a psicopedagogia, viu várias de suas técnicas, metodologias e tecnologias serem absorvidas e transformadas em outro modelo, o de prevenção de condutas de risco, derivando assim na direção de um “preventivismo” exacerbado, representado pela ênfase na “prevenção en amont”, baseada em tentativas de desenvolvimento das CPS.

Podemos pensar também se a ênfase que as “tecnologias do risco” francesas - muito provavelmente inspiradas no modelo de determinação dos riscos sociais do Estado-providência que Ewald (1986)EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Grasset, 1986. discute - conferem à identificação da multiplicidade de fatores de risco não levou à tentação de uma “prevenção prévia” que pudesse constituir “bases pessoais sólidas” capazes de resistir às diferentes condutas de risco, centrando-se no indivíduo e em suas competências. Do outro lado do Atlântico, a compreensão da multideterminação, baseada por sua vez no conceito de vulnerabilidade, em vez de se dirigir às “bases pessoais”, favoreceu a compreensão de que os problemas sociais que a redução de danos deve atacar não se restringem à droga ou a um comportamento, mas a questões estruturais - por exemplo, ao fato de que no Brasil nunca houve um Estado-providência - que deixam populações desprotegidas e “desfiliadas”, como dizia Castel (1981CASTEL, Robert. La gestion des risques: De l’antipsychiatrie à l’après psychanalyse. Paris: Éditions de Minuit, 1981., 1983CASTEL, Robert. De la dangerosité au risque. Actes de recherche em sciences sociales, n. 47-48, p. 119-127, 1983.): falência social, falta de educação e qualificação profissional, racismo, desemprego, questões habitacionais, proibicionismo etc.

Talvez as diferenças no grau de institucionalização das políticas baseadas na harm reduction nos serviços estatais dos dois países tenham contribuído para seus desenvolvimentos diferenciais. No caso francês, possivelmente o “preço a pagar” pela forte ancoragem e institucionalização da RdR nos serviços públicos tenha sido a profissionalização e “medicalização” de seus quadros. No Brasil, conforme mencionado, as instituições públicas que deveriam efetivar as políticas de RD (como o CAPSad) sofrem com o sucateamento e abandono governamental, legando as responsabilidades a instâncias não governamentais, associações e ONGs (como a É de Lei). Essa baixa institucionalização pode ter levado a uma maior ênfase na militância e no ativismo, favorecendo a aproximação com os movimentos sociais. A aliança da RD brasileira com os movimentos da Reforma Psiquiátrica, da Luta Antimanicomial e do antiproibicionismo contribuiu para manter acesa na redução de danos a perspectiva de participação dos usuários, permitindo desenvolver - e se redefinindo a partir de - uma “ética do cuidado”, em oposição tanto ao “preventivismo” como à “medicalização” e, principalmente, às terapias e tratamentos que passam pela internação ou pela privação de liberdade. Essa ética do cuidado, como vimos, está fundada em metodologias contextuais e não prescritivas, na construção conjunta das estratégias de cuidado e no estabelecimento do “vínculo”.

Vale notar a diferença entre a concepção de vínculo dos redutores de danos brasileiros e aquela que mencionei no início da terceira seção deste texto, que embasa o trabalho dos redutores de riscos franceses. A noção de vínculo (ou lien) francesa diz respeito a vínculos sociais que deviam ser “reestabelecidos”, como aqueles com a família, os pares ou instâncias burocráticas/estatais (assistência social, serviços de saúde etc.). Ou seja, refere-se a vínculos propriamente sociais, entre o sujeito e o restante da sociedade - o que remete, novamente, à discussão de Ewald (1986)EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Grasset, 1986.. No caso brasileiro, o vínculo é uma relação pessoal, entre sujeitos, entre redutor de danos e o “convivente”, em que o objetivo é contrapor, como na formulação da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), riscos a oportunidades19 19 Conferir nota 5 deste artigo. .

Finalmente, se as práticas dos profissionais da RD e da RdR aparentemente se distanciam daquela visão do risco contra a qual nos advertem Rabinow, Bailleau e Castel, as estratégias do modelo de PCR nos levam a uma deriva possivelmente tecnocrática e dessubjetivadora, que parecem encaminhar a uma gestão securitária e medicalizada dos problemas sociais, em que as tecnologias sociais fundamentadas no desenvolvimento das CPS representam claramente uma política orientada “de cima para baixo”, já que têm origem na instância máxima da saúde mundial, a OMS. Além disso, tais metodologias, de acordo com o relatório do Inserm, podem favorecer uma “visão neoliberal que tende a remeter a responsabilidade unicamente aos indivíduos” (INSERM, 2010INSERM. Réduction des risques infectieux chez les usagers de drogues. Paris: Les éditions Inserm, 2010., p. 10), que agem sobre as pessoas e coletividades sujeitas aos fatores de risco, mas não atacam suas causas. Assim, negligencia-se objetivos essenciais para intervir sobre a dimensão coletiva e sistêmica do risco, como a redução das desigualdades no acesso à moradia, alimentação, educação, saúde e emprego, e deixa-se de investir em ações que integrem os aspectos legais, sociais e econômicos em políticas públicas mais centradas em oportunidades do que em riscos.

  • 1
    Agradeço a Maria Hermínia Tavares de Almeida, Juliana Caruso e Ronaldo de Almeida, às/aos colegas do Programa Internacional de Pós-Doutorado (IPP) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e às/aos pareceristas anônimos pelas generosas leituras, sugestões e comentários a versões anteriores do texto. Agradeço também à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que possibilitou a pesquisa por meio do processo no 2017/14862-5.
  • 2
    Há outras traduções para o francês: na Suíça, na Bélgica e no Canadá não é raro encontrar prévention des méfaits e réduction des méfaits.
  • 3
    As citações cujo original não era em português foram traduzidas pelo autor.
  • 4
    Alguns autores, como Rosa (2014)ROSA, Pablo. Drogas e a governamentalidade neoliberal: Uma genealogia da redução de danos. Florianópolis: Insular, 2014., consideram a harm reduction uma terceira vertente preventiva, já que não teria como objetivo a redução da oferta nem da demanda, preocupando-se em reduzir as decorrências indesejadas do consumo.
  • 5
    Participei, em 2018, do curso Gestão de Riscos no Setor Público, oferecido no âmbito da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), que me forneceu pistas inesperadas. No curso, o risco foi definido como “possibilidade de ocorrência de um evento que venha a ter impacto no cumprimento dos objetivos de um projeto”. Seria apenas mais uma definição técnica se o professor responsável, logo após apresentar a definição, não tivesse dito: “Risco, em nosso curso, é sempre negativo. Se quisermos nos referir a impactos positivos nos projetos, não falamos de risco, mas de oportunidades” (ênfase minha).
  • 6
    Como Jessor (1991)JESSOR, Richard. Risk Behavior in Adolescence: A Psychosocial Framework for Understanding and Action. Journal of Adolescent Health, n. 12, p. 597-605, 1991., Le Breton (1991LE BRETON, David. Passions du risque. Paris: Métaillé, 1991., 2002LE BRETON, David. Conduites à risque: Des jeux de mort au jeu de vivre. Paris: PUF; Quadrige, 2002.), Peretti-Watel (2001)PERETTI-WATEL, Patrick. La société du risque. Paris: La Découverte, 2001., entre outros.
  • 7
    Entrevista com Anne Coppel, realizada em 19 de outubro de 2016.
  • 8
    Idem.
  • 9
    Mission Interministérielle de lutte contre la drogue et la toxicomanie. A Missão alterou seu nome, em 2014, para Mission Interministérielle de lutte contre les drogues et les conduites addictives (Missão interministerial de luta contra as drogas e as condutas aditivas) (Mildeca), revelando uma ampliação de seu escopo que, para além das substâncias, passa a incluir também comportamentos como sexo, jogos e mesmo o trabalho.
  • 10
  • 11
    Entrevista com Fabrice Olivet, realizada em 13 de setembro de 2016.
  • 12
    Idem.
  • 13
    Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale.
  • 14
    En amont significa literalmente “rio acima”. Nesse contexto, indica algo como “pré-prevenção” ou prevenção antecipada.
  • 15
    As CPS identificadas pela OMS são: tomada de decisões, resolução de problemas, pensamento criativo, pensamento crítico, comunicação efetiva, habilidades relacionais interpessoais, autoconsciência, empatia, gerenciamento de emoções e gerenciamento do stress (OMS, 1993OMS. Life Skills Education in Schools. Division of Mental Health, 1993.).
  • 16
    Petuco (2016)PETUCO, Denis. O Pomo da discórdia? Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2016., Rosa (2014)ROSA, Pablo. Drogas e a governamentalidade neoliberal: Uma genealogia da redução de danos. Florianópolis: Insular, 2014., Machado e Boarini (2013)MACHADO, Leticia; BOARINI, Maria. Políticas sobre drogas no Brasil: A estratégia de redução de danos. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 33, n. 3, p. 580-595, 2013., entre outros.
  • 17
    Essa autora, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também realizou pesquisa de campo junto ao Centro de Convivência É de Lei.
  • 18
    Lembremos aqui das definições do curso Gestão de Riscos no Setor Público, mencionadas na nota 5 deste texto: o contrário de risco, no âmbito do curso, era oportunidade. Já discuti as relações entre a prevenção de problemas sociais e o discurso das oportunidades em Rodrigues (2011RODRIGUES, Tiago Hyra. Tirando do crime e dando oportunidade: Estratégias educacionais de prevenção das violências em duas ONGs de Florianópolis, SC. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011., 2017RODRIGUES, Tiago Hyra. Entre faltas e oportunidades: ONGs e prevenção da violência. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 11, p. 130-146, 2017.).
  • 19
    Conferir nota 5 deste artigo.

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Editado por

Editor responsável: Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2022
  • Aceito
    08 Abr 2022
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