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A sociologia do conhecimento em ação: Do interacionismo realista à análise pragmática da ação coletiva Entrevista com Albert Ogien

Esta entrevista foi realizada com Albert Ogien, diretor de pesquisa do Centre national de la recherche scientifique (CNRS) e pesquisador emérito do Centre d’Études des Mouvements Sociaux (CEMS) da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS).

Ogien nos fala sobre sua formação e sua importante trajetória profissional. Seu trabalho hoje se concentra em três temas: 1) a extensão e os efeitos do fenômeno gerencial na organização da atividade governamental e na definição da ação pública, examinando a matematização do mundo social e a substituição de categorias de raciocínio gerencial por categorias de raciocínio político; 2) a análise dos movimentos extrainstitucionais de protesto político - ajuntamentos e ocupações de praças, contestações de poder, mobilizações transnacionais, insurreições civis, ativismo informático, desobediência civil, criação de novos partidos - que se desenvolvem atualmente; e 3) o desenvolvimento de uma abordagem de sociologia analítica que requer trabalho teórico - em torno da etnometodologia, do interacionismo realista, do pragmatismo e da filosofia da linguagem comum - e reflexão metodológica - em torno das ferramentas e dos objetos da etnografia de natureza sociológica.

Ogien defende o direito a uma sociologia crítica, mesmo que não se refira às instituições ou à história. Para ele, a etnometodologia - ao dar conta detalhadamente de procedimentos que constituem a ação em construção e ao apreender a ordem social não como uma entidade que domina os indivíduos de fora, mas como um “fenômeno comum, difuso e compartilhado coletivamente” - pode ser uma crítica radical da “relação de poder”, como ele procurou mostrar a partir do funcionamento do espírito gerencial nas instâncias do Estado. Nesse sentido, seu trabalho traz uma importante contribuição para a análise dos contextos políticos contemporâneos.

Neiva Vieira da Cunha: Caro Albert, você se apresenta como sociólogo, mas, depois de sua formação, você primeiro realizou pesquisas no campo da antropologia social. Gostaríamos que nos apresentasse sua formação profissional e a experiência que o levou do campo da antropologia para o da sociologia.

Meus anos de formação ocorreram na faculdade de Vincennes (atual Paris VIII), tanto em sociologia como em antropologia social, sob a direção de Pierre Philippe Rey, antropólogo marxista. Ao voltar de uma viagem à África Ocidental, decidi me tornar africanista. Dediquei minha dissertação de mestrado à organização política e militar do Império Zulu no final do século XIX na África do Sul. Então embarquei em uma tese de doutorado sobre o apartheid na África do Sul, passando dois anos em Londres (em 1978 e 1979). Foi lá que descobri os trabalhos de antropologia social da escola de Manchester (Gluckman, Falk-Moore) e sua proximidade com a sociologia interacionista americana (em particular Erving Goffman). Minha pesquisa se concentrou na maneira pela qual um sistema legal de segregação racial generalizada - o apartheid - poderia operar diariamente em um país desenvolvido e urbanizado como a África do Sul, onde as populações estão em constante interação nas cidades e nos negócios. Então eu fui para a África do Sul para fazer uma pequena pesquisa de campo. Observei a impossibilidade em que tal sistema se encontrava de concretizar seu projeto, que consistia em impor uma separação total das populações segundo uma classificação oficial entre brancos, pretos e mestiços.

Os caprichos da vida universitária obrigaram-me a abandonar esta tese e a iniciar uma investigação sobre um assunto completamente diferente: a psiquiatria e a gestão da doença mental. Durante dois anos, fiz pesquisa de campo em um hospital psiquiátrico na Bélgica. Foi durante este trabalho que li o trabalho de Garfinkel sobre psiquiatria e que a fusão dos métodos da antropologia social, sociologia interacionista e etnometodologia foi moldada para se tornar aquilo que chamei de sociologia analítica.

Testei essa abordagem aplicando a noção de afiliação - que usei para estudar as relações interétnicas na África do Sul, para escapar de uma concepção essencialista de identidade (a pessoa faz parte de uma comunidade porque possui a cultura) ou determinista (esse pertencimento molda os comportamentos individuais de forma inconsciente) - no contexto da intervenção psiquiátrica. A noção de afiliação permite pensar a questão da pertença a um grupo social de forma dinâmica e pluralista, isto é, considerando-a como um compromisso condicional por parte de quem a endossa durante o tempo de uma interação. Foi assim que analisei como as trocas quotidianas entre médicos, enfermeiros e doentes no âmbito do hospital psiquiátrico constituem o universo prático da intervenção em psiquiatria - esse quadro em que todos os participantes conhecem as regras de funcionamento e contribuem para a renovação da sua pertinência. Após cinco anos de pesquisa de campo nesse domínio, propus a Robert Castel - reconhecido especialista em sociologia da psiquiatria - que me orientasse no trabalho de tese de doutorado sobre esse assunto, o que ele aceitou imediatamente, embora minha abordagem fosse oposta à dele. Essa tese (Positivité de la pratique. L´intervention en psychiatrie comme argumentation) foi defendida em 1984 e publicada em 1989 sob o título: Le raisonnement psychitrique. Em 1991, fui nomeado pesquisador do CNRS no Centre d’Études des Mouvements Sociaux, dirigido por Robert Castel na EHESS. Fui então nomeado diretor de pesquisa em 2002 e, em 2010, assumi o lugar de Castel como chefe desse laboratório. Desse longo período de formação, desenhei uma obra de teoria e método sociológico: Sociologie de la dévianceOGIEN, Albert. Sociologie de la déviance. Paris: PUF, 2018. (que já está em sua quinta edição na França).

Neiva Vieira da Cunha: Sua pesquisa também se concentrou no campo da sociologia do conhecimento em ação, da sociologia da ação e da análise das políticas de saúde. Como foram essas experiências de pesquisa? E como elas contribuíram para o desenvolvimento de suas abordagens teóricas e analíticas?

Meus anos de formação e prática de pesquisa cruzando antropologia social, sociologia interacionista e etnometodologia me levaram a seguir uma recomendação: considerar o trabalho teórico como parte integrante do trabalho empírico. É assim que minhas pesquisas posteriores sobre “saída da toxicodependência”, depois sobre saúde e políticas sociais e, finalmente, sobre a introdução das regras de gestão pública na administração do Estado sempre tentaram dar conta do modo como uma atividade prática começa, se desenrola e termina a partir da análise de um fenômeno: a realização da coordenação da ação em comum tal como ela se realiza na própria temporalidade em que se realiza. O objetivo de tal análise é apreender empiricamente as “operações epistêmicas” (devemos a noção a Cicourel) que asseguram as sequências que permitem a continuidade da ação em andamento. Nessa perspectiva, a investigação empírica deve visar compreender a maneira como as formas de conhecimento prático são implementadas pelos parceiros de interação para garantir a fluidez da sucessão de trocas que os reúne ao longo da duração da interação de uma atividade conjunta. O material empírico em que se baseia a análise deve vir tanto do estudo das condições da situação, da observação das trocas entre os parceiros de interação, quanto de entrevistas relacionadas à maneira como certos momentos-chave da interação ocorreram de acordo com eles. Não se trata de restaurar o ponto de vista dos atores sobre sua ação, mas de extrair de suas descrições elementos que iluminem o uso que fazem de seus conhecimentos práticos. Essa abordagem é apresentada em um livro: L’esprit gestionnaire, publicado em 1995.

Neiva Vieira da Cunha: Um dos temas de sua pesquisa atual incide sobre os efeitos do fenômeno gerencial na organização da atividade governamental e na definição da ação pública. Você pode compartilhar sua análise sobre essas questões conosco?

De fato, trabalhei durante uma dezena de anos no estudo da transformação que a introdução de técnicas de quantificação na forma de conceber e implementar a atividade de governo provoca na concepção de política e democracia. Minha pesquisa se concentrou na implementação em escolas, hospitais, universidades e administrações de ferramentas de gestão pública destinadas a controlar os gastos relacionados com a manutenção dos serviços públicos. O interesse dessa pesquisa foi propor uma crítica ao neoliberalismo a partir da análise empírica de um fenômeno: a imposição de uma visão puramente contábil da atividade governamental baseada na ideia de que o Estado é uma empresa e deve passar de uma “prestação de meios” para uma “prestação de resultados”. Meu trabalho procurou demonstrar o caráter absurdo dessas proposições. Contentou-se, portanto, em examinar a aplicação, no trabalho das administrações, das receitas do que chamei de “espírito gerencial”. O adjetivo “gerencial” qualifica, para mim, um método de governo que consiste em justificar a decisão política apoiando-se exclusivamente na suposta objetividade dos dados de quantificação em nome dos quais o poder público estabelece objetivos quantificados cuja realização é medida por meio de indicadores de desempenho. Em outras palavras, exercer o poder no modo gerencial consiste em fazer com que as escolhas políticas passem por instruções técnicas e contábeis que tornam invisível sua natureza ideológica. Para realizar essa metamorfose, um elemento é essencial: o estabelecimento de um “sistema de informação” que coloque em números cada um dos elementos que compõem a “cadeia produtiva” de uma medida administrativa para obter “ganhos de produtividade”. Tal sistema é totalmente dependente da quantificação por uma razão simples: sem números, não é possível nem estabelecer objetivos precisos, nem definir indicadores de desempenho, nem medir o grau de sucesso de uma decisão, nem avaliar a eficácia (em termos econômicos) de uma política pública.

Essa pesquisa foi ampliada por uma reflexão sobre as consequências políticas e sociais da dependência que os líderes modernos contraíram em relação à quantificação e suas ferramentas. O mais importante é a modificação das categorias de raciocínio usadas para descrever a ação política, ou seja, sua a-moralização, sua neutralização e sua padronização. Essa é a base empírica sobre a qual repousa a crítica ao raciocínio neoliberal que resumi em um livro intitulado Désacraliser le chiffre dans l’évaluation du secteur publicOGIEN, Albert. Désacraliser le chiffre dans l’évaluation du secteur public. Paris: Quae, 2013., publicado em 2013.

Neiva Vieira da Cunha: Outro tema importante de sua pesquisa trata da análise dos movimentos extrainstitucionais de protesto político que estão se desenvolvendo atualmente. Você pode nos apresentar as questões levantadas por meio de suas análises sobre esse tema?

Um movimento de protesto extrainstitucional é uma forma de ação política implementada por cidadãos sem filiação partidária que, por meios próprios e sem a supervisão de uma autoridade superior, se organizam para contestar a legitimidade de uma decisão (ou não decisão) tomada por um governo ou para contestar as políticas que ele segue. A observação da multiplicação desses movimentos pelo mundo (Túnis, Cairo, Madri, Nova York, Rio de Janeiro, Argel, Istambul, Beirute, Dar Es Salam, Chile etc.) nos força a admitir que os cidadãos se incomodam cada vez menos de ter que fazer irrupções na vida política de um país para impor, por iniciativa própria, uma nova orientação na forma como os assuntos públicos são tratados (ou não) pelo seu governo e pelos partidos que o apoiam. Ou seja, a “soberania do povo” ganha consistência quando as multidões saem às ruas para se opor a poderes desacreditados (às vezes conseguindo afugentá-los pacificamente); quando ONGs, coletivos ou associações obrigam os governos a negociar, os levam a tribunais ou os obrigam a reconsiderar medidas inaceitáveis; quando o uso de desobediência civil, ação direta não violenta ou ocupações ajudam a satisfazer uma reivindicação; quando “movimentos” fora do sistema partidário ganham assentos no parlamento ou decidem formar um executivo; ou quando noviços políticos são levados a liderar o Estado contra os candidatos do establishment.

Minha pesquisa sobre esse “ativismo político” dos cidadãos mostra que ele não é de forma alguma uma ameaça à estabilidade da sociedade ou da democracia, mas traz à tona um fenômeno: o espaço público em que a atividade política se desenvolve nos regimes democráticos contemporâneos mudou de uma ordem bipolar articulada em torno da interação entre uma “sociedade política” (o mundo da administração do Estado) e uma “sociedade partidária” (o mundo das operações e estratégias políticas organizadas para ganhar poder) para uma ordem tripolar em que o mundo das “práticas políticas autônomas” dos cidadãos entra em competição direta com os outros dois. Essa reconfiguração da ordem política não é efêmera nem auxiliar. Ela procede do fato de que as formas de socialização política foram transformadas. A transmissão das boas maneiras de cumprir a função de cidadão em uma democracia representativa como foi assegurada pela família, a escola, a religião, as organizações juvenis, os partidos e os sindicatos está viva. Surgiu uma nova relação entre cidadãos e política, que reflete o aumento de sua autonomia de julgamento e seu desejo de ver sua voz não mais ser confiscada por representantes que a traem. Hoje, atuam de forma independente para legitimar questões de interesse geral que consideram esquecidas pelos profissionais políticos - sem contar seus múltiplos engajamentos na economia solidária, nas redes de solidariedade, nas coordenações de cidades em transição, empresas em autogestão ou em círculos de discussão que constroem novas formas de se organizar politicamente fora das velhas estruturas partidárias. Tudo isso é analisado em meu livro Politique de l’activisme, publicado em 2021.

No entanto, não se deve esquecer que esse ativismo permanece ambíguo. Se ele se desenvolveu sobretudo no campo da “esquerda” a partir da reivindicação da democracia, o campo da direita recuperou-o, adotando a mesma forma de ação para se opor às políticas que concedem direitos demais aos cidadãos (aborto, homossexualidade, ajuda financeira do Estado, acesso à educação, liberdade de expressão etc.) e vêm a trair a tradição, a lei natural ou a hierarquia social. Isso foi visto no Brasil - resultando na destituição de Dilma Rousseff e na eleição de Jair Bolsonaro - e nos EUA, com o assalto ao Capitólio liderado por Donald Trump. Devemos estar atentos a essa modalidade de ativismo, que se realiza não por iniciativa dos cidadãos reivindicando sua autonomia, mas sob a direção de “líderes” cuja única motivação parece ser o desejo de exercer o poder absoluto a serviço dos poderosos e esmagando os direitos dos cidadãos.

Neiva Vieira da Cunha: Você também desenvolveu uma importante abordagem da sociologia analítica em torno da etnometodologia, do interacionismo realista e do pragmatismo. Você pode nos apresentar as questões teóricas e as reflexões metodológicas que abordou a partir desses temas?

Como disse acima, minha pesquisa de campo me levou a enfatizar o uso que as pessoas fazem de seus conhecimentos práticos para atuar com os outros no desdobramento temporal - ou na “sequencialidade” - de uma interação. Esse uso se inscreve e se expressa em uma “situação”, ou seja, um quadro que indica aos parceiros envolvidos em uma atividade prática os modos adequados de fazer, pensar e falar. Nessa perspectiva, que é a do que chamo de “interacionismo realista”, o que garante a regulação do comportamento individual é essa “materialidade do social” que é carregada diretamente pelas obrigações impostas pelo contexto físico, institucional e conceitual específico para uma situação. As pesquisas realizadas de acordo com essa perspectiva são, portanto, baseadas em um modelo dinâmico e pluralista de ação conjunta baseado em três proposições:

  1. Todo indivíduo tem conhecimento prévio do significado geral que deve ser atribuído aos objetos, papéis e eventos específicos de uma situação;

  2. O indivíduo regula sua ação em uma ordem de racionalidades próprias dessa situação que o orienta a identificar o que se passa, compreender o comportamento dos outros, retificar os desvios das expectativas, preencher as lacunas da comunicação e rever interpretações julgadas inadequadas; e

  3. Ele supõe que esse conhecimento prático é também o de seus parceiros e que eles o utilizam da mesma forma que ele próprio.

Nesse modelo, a relação com os outros se baseia mais na antecipação do que no acordo explícito que se estabeleceria na comunicação (segundo a tese de Habermas). Isso porque, quando prestamos atenção ao fluxo temporal da interação, descobrimos que os indivíduos raramente têm a oportunidade de reservar um tempo para obter a confirmação da correção do que estão fazendo. Portanto, eles devem inferir o assentimento de seus interlocutores observando suas reações e interpretando-as. Isso desloca o objeto da análise sociológica para o que chamei de “práticas inferenciais diretas” que os indivíduos expressam na realização da coordenação da ação em comum. Essas práticas não ficam armazenadas na mente de quem age (não são cognitivas no sentido de abordagens “mentalistas”), mas são constituídas a partir da ideia familiar que todos têm da conduta “normal” que o outro deveria seguir durante a interação em curso. Isso leva a pensar a normalidade como um elemento inerente a cada forma de atividade prática (“o que é conveniente de ser feito, em que circunstâncias, com quem”), não como uma causa externa, objetiva e inacessível ao conhecimento da pessoa que se inclina à sua restrição, como a sociologia estrutural-funcionalista diria.

Agripa Faria Alexandre: Caro Albert, depois de ter lido, pela segunda vez, Le Principe démocratieOGIEN, Albert; LAUGIER, Sandra. Le Principe démocratie: Enquête sur les nouvelles formes du politique. Paris: La Découverte, 2014., esse livro tão sensível a respeito do cenário político contemporâneo que você e Sandra Laugier publicaram em 2014 (exatamente quando eu estava na EHESS como pesquisador de pós-doutorado com sua colaboração), percebi que vocês dois insistiram que por “princípio da democracia” vocês não se referem a um sentido primeiro ou de fundamento (página 22), mas a uma vontade de agir na democracia. Você pode explicar ao público brasileiro a ideia central desse livro - que você chama de “pluralismo radical”, “democracia como forma de vida”, “democracia real” - e qual é a hipótese sociologicamente existente nesse seu trabalho? Qual a importância de uma política de “cuidado” (care, capítulo 6) também?

Em Le Principe démocratie,OGIEN, Albert; LAUGIER, Sandra. Le Principe démocratie: Enquête sur les nouvelles formes du politique. Paris: La Découverte, 2014. Sandra Laugier e eu partimos de uma constatação: a democracia é um conceito ambivalente. Por um lado, refere-se a um tipo de regime político, baseado na eleição, na alternância e separação de poderes e em uma ampla gama de direitos e liberdades individuais. Mas, por outro lado, esse conceito refere-se a uma “forma de vida”, ou seja, a uma ordem das relações sociais livre de todos os traços de dominação, seja de classe, de competência, de origem, de gênero, e está baseada em um princípio: respeito incondicional à igualdade de todos em todas as esferas da atividade social (na política, nos negócios, na família, nas cidades e na vida privada). Sandra e eu mostramos que é no vaivém incessante entre a democracia como forma de vida e a democracia como regime que a lei de um Estado se ajusta à evolução dos costumes à medida que ela ocorre, por sua própria iniciativa, na sociedade. E que, nesse ir e vir, é a democracia como forma de vida que fornece a regra pela qual a democracia como regime se organiza e se transforma para atender às demandas de igualdade que vão surgindo ao longo do tempo. Aprendemos três lições com essa análise:

  1. Se a democracia como regime é o domínio reservado a um pequeno grupo de pessoas que fazem da administração do Estado sua profissão, a democracia como forma de vida é uma conquista contínua da qual todos os cidadãos participam;

  2. A existência e a renovação de uma sociedade se configuram nas práticas que constituem o vaivém entre a democracia como regime e como forma de vida; e

  3. Não basta que um ato político esteja em conformidade com a expressão da maioria dos votos para ser qualificado como “democrático”, mas também deve estar de acordo com um fim que não atente contra nem à igualdade, nem à liberdade e nem à dignidade das pessoas. O compromisso de manter esse acordo é essencial: rejeitar a necessidade dele e decretar que o campo mais votado tem todo o direito de fazer o que bem entender reduz a democracia a um indigno equilíbrio de poder. Fazer desse acordo o critério da atividade política e esforçar-se para alcançá-lo apesar das dificuldades e objeções da maioria é o que mantém vivo o espírito da democracia.

É com base nessas lições que propusemos definir a democracia como um pluralismo radical, ou seja, um tipo de organização social e política que, por considerar que sua tarefa é garantir a igualdade absoluta dos cidadãos, admite a legitimidade de todas as concepções do bem exibidas no espaço público, de todas as identidades sociais reivindicadas, de todos os modos de vida adotados por um determinado grupo social. O pluralismo radical aceita a existência de “desacordos razoáveis” (como John Rawls os chama) entre os cidadãos enquanto procura eliminá-los por meio de deliberação coletiva e consenso. Essa é a diretriz de uma política de “cuidado”, composta de benevolência e tolerância para com todos os nacionais de um país considerado de direitos iguais.

Agripa Faria Alexandre: Estou bastante curioso para ouvir você falar um pouco mais também sobre a noção de “político” que é entendida como o princípio da democracia. Quando você e Sandra se referem a Hannah Arendt (p. 70), eu me pergunto se essa noção designa, em relação a Aristóteles, a vida na pólis que não pode ser reduzida à fala, mesmo se considerarmos, ainda segundo Aristóteles, o homem como zoon logon ekhon (um ser vivo que fala)?

Essa pergunta é muito importante. No entanto, obriga-me a detalhar a fabricação da posição de método que adotei para analisar o conhecimento prático e sua relação com a noção de política. Tenho medo de ser um pouco pomposo, mas você me traz de volta às origens do meu trabalho. Peço desculpas antecipadamente. A questão sociológica geral que tenho procurado responder é: como explicar, em detalhes empíricos, como os indivíduos usam os princípios de coerência, reciprocidade, responsabilidade e credibilidade para alcançar a coordenação de sua ação conjunta? E essa pergunta se aplica a qualquer engajamento prático, tanto na vida cotidiana como na ação política.

A resposta que dei a essa pergunta está construída sobre uma concepção da natureza integralmente social da atividade mental que se baseia em dois postulados: o externalismo da mente - as condições determinantes do pensamento encontram-se fora do indivíduo (na linguagem, no ambiente, na ordem das relações sociais, nas instituições, nas circunstâncias) - e o holismo de significados - o significado não existe em si mesmo, mas confunde-se completamente com o uso que fazemos dele na ação em contexto. A tese do holismo dos significados rompe radicalmente com as teorias da comunicação que aceitam a ideia de que haveria uma separação entre as palavras, o pensamento, o mundo e a ação. Para essa tese, tudo isso está indissociavelmente ligado: ao aprender a falar, aprende-se a fazer uso do mundo e a dar conta de eventos que ocorrem em um conjunto de circunstâncias familiares. Quanto à tese do externalismo da mente, ela rejeita a ideia de que as ações e palavras que produzimos são nossas e que expressam nossa identidade ou nossas disposições. Admite que os significados são depositados ou distribuídos no mundo e que apenas os coletamos e combinamos para tornar nossas ações inteligíveis para nós mesmos e para os outros. Para ser um pouco pedante, podemos dizer que esses dois postulados reabilitam o senso comum e a distinção entre conhecimento científico e conhecimento prático tal como foram pensados tanto pelos neokantianos (Cassirer, Mannheim), pelos filósofos analíticos (Wittgenstein), fenomenólogos (Schütz) e pragmatistas (Dewey). Essa convergência de modos de ver pode ser resumida em três proposições: o conhecimento prático é uma forma de conhecimento tão relevante quanto o conhecimento científico; essa forma de conhecimento se exerce total e exclusivamente na ação; pressupõe a existência de uma relação direta que um indivíduo mantém com as coisas do mundo e seus usos, no sentido de que o conhecimento prático se atualiza em comportamentos e afirmações ajustadas a situações e circunstâncias, sem exigir raciocínio ou computação, nem cálculo nem verificação.

As obras do interacionismo realista (Becker, Garfinkel, Goffman, Cicourel) deram um caráter empírico a essas três proposições. Eles partem do princípio de que, quando agimos juntos, muitas vezes confiamos (mesmo que muitas vezes passe despercebido) em um conhecimento prático que nos dá a certeza de que uma sequência de eventos inevitavelmente ocorrerá e nos leva a ordenar nossa ação presente por causa destes prováveis desenvolvimentos. Esse tipo de conhecimento é organizado socialmente tanto pela situação, que circunscreve o que é possível conceber sobre o que tem uma chance razoável de ocorrer em determinado curso de ação, quanto pelas circunstâncias, que emergem e mudam contingentemente no próprio curso desse desdobramento. Podemos, portanto, supor que todos adquirem, por meio da familiarização, conhecimento direto do fato de que cada um de seus compromissos em uma situação é regido por uma série de prescrições, tácitas ou explícitas, que organizam o tipo de relações sociais que normalmente deveriam prevalecer ali.

Desse ponto de vista, o que os dados coletados na pesquisa de campo tornam observável é o uso de critérios de identificação (coisas, eventos e intenções) na e para a ação conjunta. A análise empírica desse uso abre então um campo de investigação original: o do conhecimento em ação. Inscrever o trabalho sociológico nesta perspectiva tem um duplo interesse: por um lado, oferece uma alternativa às abordagens intelectualistas que pretendem explicar a ação por meio de teorias formais, desvinculadas de qualquer ancoragem nas questões práticas que surgem no fluxo da vida e na incompletude que dele procede e o caracteriza. Por outro lado, isso recoloca a sociologia no debate desencadeado pelo surgimento das ciências cognitivas e lhe confere a tarefa de relembrar a natureza social da atividade do conhecimento, por meio da descrição empírica das operações epistêmicas engajadas nas práticas inferenciais diretas (identificar, generalizar, abstrair, antecipar, tipificar, relacionar) que ordenam o ambiente de ação em conjunto com os outros.

Agripa Faria Alexandre: O livro é um retrato do mundo que “entrou, nos últimos anos, num período de efervescência política”, como você diz! Para nomear as mudanças, você adota a perspectiva do feminismo de Miranda Fricker, com a noção de “injustiça epistêmica”. Você pode nos explicar a importância de seu uso em referência aos tipos de injustiça “testemunho” e injustiça “hermenêutica”? Essa perspectiva é uma resposta ao ponto de vista “nostálgico” de Alain Badiou, Pierre Bourdieu e Toni Negri e Michael Hardt sobre os movimentos de protesto contemporâneos?

Um dos grandes temas em torno dos quais se articulou a análise política no final do século XX foi o da justiça - redistribuição, equalização de condições, legitimidade da intervenção estatal. Miranda Fricker introduziu outra dimensão do fenômeno da justiça: aquela que diz respeito à relação com o conhecimento. Colocando-se na encruzilhada de três tradições - a perspectiva feminista, a ética das virtudes e a epistemologia social -, ela forjou a noção de “injustiça epistêmica”, ou seja, o fato de que a palavra de membros de certos grupos sociais colocados em situação minoritária (mulheres, homossexuais, povos colonizados, afro-americanos etc.) é destituída a priori de qualquer legitimidade, o que os impede de obter, como Nancy Fraser coloca, “participação paritária” na vida política e social. Essa forma de injustiça é, portanto, uma violação da igualdade que se conjuga com uma negação da cidadania. Fricker distingue dois tipos de injustiça epistêmica: uma é “testemunho” e a outra, “hermenêutica”. Na primeira, o que está em jogo é o preconceito que um ouvinte manifesta em relação às propostas formuladas por um interlocutor a cuja palavra não dá crédito por ser imediatamente colocado em situação de minoridade. Na segunda, a questão não é a credibilidade, mas a inteligibilidade das descrições e interpretações das experiências sociais. Essas duas modalidades de injustiça epistêmica diferem em um sentido preciso: quando uma pessoa sofre uma injustiça testemunhal, é porque alguém a faz sofrer; mas quando ela sofre de injustiça hermenêutica, é como membro de um grupo social que é excluído dos processos sociais que produzem os conceitos comuns e os modos compartilhados de interpretação que permitem a todos os membros de uma mesma comunidade informar sobre assuntos que lhe dizem respeito de forma mutuamente aceitável. Os membros de grupos colocados em situação de minoria sabem, portanto, que sua voz será desqualificada, desvalorizada ou ignorada. Isso os leva a passar do silêncio e da humilhação à revolta e à luta - seja pensando nas causas do sufrágio feminino, nos direitos civis, no direito ao aborto ou na descriminalização da homossexualidade.

Devemos entender a noção de injustiça epistêmica em um contexto mais amplo: o da evolução das condições para o exercício da cidadania em regimes democráticos. Inicialmente, o da época das Revoluções, o estabelecimento do sistema de governo representativo respondeu a uma exigência: acabar com o absolutismo substituindo-o por um sistema político baseado no princípio da igualdade e no qual os líderes são escolhidos pelo “povo soberano” após uma eleição, primeiro com base em uma base tributária e depois estendida a toda a população. Esse período é o do estabelecimento das condições legais para o exercício da cidadania. Em uma segunda fase, a do Estado social, o princípio da igualdade é enriquecido ao integrar a obrigação de assegurar a todos os nacionais de uma entidade política um modo de vida suficientemente homogéneo (em termos de formação, saúde, trabalho, cultura e lazer). O que está então no cerne das práticas democráticas é a concretização das condições materiais para o exercício da cidadania fundadas em bases de políticas redistributivas que asseguram o financiamento dos serviços públicos. Vivemos, sem dúvida, uma terceira fase do princípio da igualdade, que visa dar expressão institucional à ideia de que cada cidadão tem o direito, independentemente do seu estatuto social, de contribuir ativamente para a definição do que diz respeito ao interesse geral e participar da atividade de governo que a traduz em políticas públicas. Essa terceira etapa é a do estabelecimento das condições epistêmicas para o exercício da cidadania - aquelas que buscam impor os desfiles mundiais em torno do #MeToo, Black Lives Matter ou Youth for Climate, ou as mobilizações pela manutenção do direito ao aborto na Europa e Argentina, ou ainda os direitos dos povos indígenas em vários países da América Latina e Canadá. Analiso esse fenômeno em meu último livro, a ser publicado em 2023: Émancipations. Luttes minoritaires, luttes universelles ?

Cesar Pinheiro Teixeira: A sociologia parece ter se beneficiado muito das discussões de Wittgenstein sobre regras e jogos de linguagem. Menos comum é o uso da ideia de forma de vida. Esta é uma categoria raramente mencionada pelo próprio Wittgenstein, mas que, ao mesmo tempo, ocupa um lugar muito importante em toda a sua obra. Você sugeriu pensar na democracia como uma forma de vida. Dito isso, eu perguntaria: 1) Você poderia nos contar um pouco sobre o que significa pensar a democracia como uma forma de vida?; 2) Como os sociólogos podem se apropriar da ideia de forma de vida? Na sua opinião, quais são os limites e as possibilidades da noção de forma de vida para as análises sociológicas?

Devo, mais uma vez, me envolver no campo da explicação teórica. Para a sociologia interacionista, a vida social é uma série ininterrupta de “situações” (ou universos de atividade prática) em que as pessoas constantemente fazem ajustes permanentes ao que cada uma dessas situações parece lhes recomendar. Desse ponto de vista, nenhuma orientação de ação é individual, mas cada um dos gestos e palavras que um indivíduo produz devem necessariamente ser expressos nos quadros sociais que cada uma das situações que compõem a vida cotidiana estabelece. Tentei mostrar a semelhança da noção sociológica de situação com a filosófica de “forma de vida” introduzida por Wittgenstein. Para ele, as “formas de vida” são o dado do interior do qual a compreensão do que está acontecendo ao redor se constitui, não uma realidade externa da qual é possível se desprender para dar conta de modo teórico, para então usar essa abstração para explicar a natureza dos comportamentos sociais que ela informa. Então, o que é uma “forma de vida” para Wittgenstein? Seu raciocínio parte de uma ideia: “a significação é o uso”. Depois, acrescenta que qualquer uso se inscreve necessariamente em um “jogo de linguagem” que também se inscreve em uma “forma de vida”. E tudo isso, por sua vez, se encaixa em um fenômeno que o engloba e cuja natureza Wittgenstein resumiu: “É o que os homens dizem que é verdadeiro e falso; e é na linguagem que os homens concordam. Esse acordo não é um consenso de opinião, mas de forma de vida”. Dito de outra forma, Wittgenstein admite que uma lógica ordinária de inteligibilidade (essa montagem inextricável entre uso/jogo de linguagem/forma de vida/acordo de linguagem) se atualiza no quadro particular da organização social de um tipo de atividade prática em que toda a ação comum ocorre de forma coordenada. O que torna a noção de forma de vida semelhante à de situação é, portanto, a natureza constrangedora do quadro que ambas impõem. O sociólogo pode, portanto, relacionar a noção de “forma de vida” à de “ordem normativa”, mas uma ordem normativa que é específica de uma situação e informa o que deve ser feito e dito ali para não derrogar o que é aceitável fazer e dizer ali para permanecer inteligível para os outros.

Essa posição leva à consideração de que o mesmo indivíduo inscreve sua ação em uma multiplicidade de ordens normativas com as quais está familiarizado. Isso abre um novo horizonte para a descrição sociológica: em vez de considerar as regras que as pessoas seguem para agir como explicação ou como justificação, podemos concebê-las como instruções incorporadas aos atos e enunciados que são produzidos no próprio curso de uma atividade prática. É a partir da tese da “pluralidade de ordens normativas” (explicada em meu livro Sociologie de la dévianceOGIEN, Albert. Sociologie de la déviance. Paris: PUF, 2012,) que propus uma concepção dinâmica da relação entre conhecimento e ação que convida a dar conta das “práticas inferenciais diretas” que asseguram a coordenação de ação em comum - isto é, a atividade desenvolvida para dar inteligibilidade mútua ao que está acontecendo em uma situação de ação e constantemente revisá-la de acordo com as circunstâncias mutáveis da situação.

Referências

  • OGIEN, Albert. Sociologie de la déviance Paris: PUF, 2018.
  • OGIEN, Albert; LAUGIER, Sandra. Das Prinzip Demokratie: Über die neuen Formen des Politischen. Konstanz: Konstanz University Press, 2018.
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Editado por

Editor responsável: Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2022
  • Aceito
    29 Nov 2022
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