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Ocorrências policiais: como os acontecimentos nos bairros tornam-se caso de polícia

Police reports: how events in neighborhoods become police cases

Resumo

O que se torna caso de polícia no cotidiano do trabalho policial? Ao percorrermos as práticas policiais do programa Ronda do Quarteirão, analisamos como esses casos ocorrem nos bairros. Além de procurarmos articular a produção das práticas policiais e as interações e relações mantidas entre eles e população de bairros considerados “problemáticos” - em alusão ao grande contingente de ocorrências no local. É dada especial atenção à tessitura conflituosa que permeia a produção da ocorrência policial enquanto fenômeno sociológico. Há, aqui, a abertura para pensar as formas como a Polícia Militar realiza seu trabalho, a partir das especificidades locais, e como os moradores, partindo de seus contextos, a acionam. A abordagem metodológica do estudo é qualitativa e teve como marca decisiva a participação a bordo da viatura.

Palavras-chave:
práticas policiais; ocorrências policiais; denúncias; conflito; policiamento comunitário

Abstract

What events become “police cases” in everyday policing? This question permeates the analytical approach of this paper. Covering police practices of the policing program Ronda do Quarteirão in Ceará, Brazil, we analyze how neighborhood-level events become police cases during patrols. Our aim is to articulate the production of police practices with the interactions and relations maintained between police and population in neighborhoods classified as “problematic”, due to the large number of police occurrences taking place in the area. Special attention is given to the conflicts that permeate the production of police occurrences as sociological phenomena. Here, we open up paths through which to relate police work to local specificities, and to how situated residents trigger Military Police action by calling on them in the everyday. Methodologically, this was a qualitative study, marked by the participation in car-based police patrols. Techniques used include direct observation and semi-structured, episodic interviews. The study lasted three years and took place between 2011 and 2013.

Keywords:
police practices; police occurrences; reports; conflict; community policing

Introdução

O que se torna caso de polícia no cotidiano do trabalho policial? A partir de materiais etnográficos reunidos entre os anos de 2011 e 2013, produzidos durante pesquisa de campo com policiais militares participantes do programa de policiamento Ronda do Quarteirão na cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará, analisaremos as circunstâncias em que o mandato policial é desempenhado, explorando a categoria de análise “ocorrência policial”. Entende-se como ocorrência policial os acontecimentos nos quais a polícia se engaja, desempenhando performances para sua possível resolução, com base nos recursos disponíveis.

O Ronda do Quarteirão, programa de policiamento comunitário implantado durante o primeiro mandato do Governo Cid Gomes (2006 a 2010) no estado do Ceará, chegou a Juazeiro do Norte (CE) em meados de 2008. Os policiais militares de farda azul apresentavam-se aos moradores da cidade sob o slogan de “polícia da boa vizinhança”. Os bairros da cidade foram agregados em áreas pelas operações da Polícia Militar (PM), como estratégia territorial da instituição para atendimento do programa. As áreas de operações eram os locais de trabalho desses policiais, nelas, se deslocavam em patrulhamento veicular, desempenhando seu trabalho entre limites espaciais e simbólicos. Esse processo agregou territorialidades, designando equipes de policiais para o patrulhamento ostensivo veicular 24 horas por dia e revezando equipes em três turnos.

O Brasil tem experimentado, nas últimas décadas, a expansão da violência urbana, cuja face mais visível são as altas taxas de homicídios por 100 mil habitantes, além das expressivas mortes por causa indeterminada, segundo dados do Atlas da Violência (IPEA, 2021). Entre suas múltiplas camadas, o tema da violência policial, especialmente os casos de abuso de poder e a letalidade das ações policiais, tem ocupado uma posição central no debate sobre o papel e os fundamentos da legitimidade das polícias militares em nossa sociedade. Chama atenção, além disso, as condições insalubres e precárias em que o trabalho policial é praticado, bem como seus altos índices de vitimização, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2019).

Nesse cenário, o estudo do trabalho policial torna-se fundamental para que se possa compreender o fenômeno da segurança pública. Questões como a falta de confiança da população nas instituições policiais - em especial a PM, que se faz presente diretamente no cotidiano das cidades brasileiras - e a desmotivação desses profissionais - muito reforçada pela insatisfação com as condições de trabalho, assim como o ambiente de risco e insalubridade a que estão submetidos - são dimensões que reforçam a relevância de pesquisas que adentrem esses contextos.

Num esforço de sintetizar a reconstituição de publicações científicas na literatura especializada sobre o tema, a crise de legitimidade das instituições policiais (ROLIM e HERMANN, 2020ROLIM, Marcos; HERMANN, Daiana. “Confiança nas polícias: percepção dos residentes e desafios para a gestão”. Sociologias, v. 20, n. 18, pp. 188-211, 2020.; SILVA e BEATO, 2013SILVA, Gélison; BEATO, Cláudio. “Confiança na polícia em Minas Gerais: o efeito da percepção de eficiência e do contato individual”. Opinião Púbica, v. 20, n. 18, pp. 118-153, 2013.; ZANETIC et al., 2016ZANETIC, Andre; et. al. “Legitimidade da polícia: segurança pública para além da dissuação”. Civitas, v. 16, n. 4, pp.148-173 2016.; BARREIRA, 2004BARREIRA, Cesar. “Em nome da lei e da ordem: a propósito da política de segurança pública”. São Paulo em Perspectiva, v. 18, n. 1, pp. 77-86, 2004.) e a falta de confiança por parte da população nessas organizações, é incorporada uma certa centralidade, em torno da qual orbitam ainda outros temas, como: corrupção, abuso de poder, racismo e a violência policial (ANUNCIAÇÃO, 2020ANUNCIAÇÃO, Diana; TRAD, Leny A. B.; FERREIRA, Tiago. “Mão na cabeça!: abordagem policial, racismo e violência estrutural entre jovens negros de três capitais do Nordeste”. Saúde e Sociedade, v. 29, n. 1, pp. 1-13, 2020.; MACHADO e NORONHA, 2002MACHADO, Eduadro P.; NORONHA, Ceci. “A polícia dos pobres: violência policial em classes populares urbanas”. Sociologias, v. 4, n. 7, pp. 188-221, 2002.; PINHEIRO, 2014PINHEIRO, Antonio dos S. Polícia comunitária e cidadã. Crato: RDS, 2014.; BRASIL, 2003BRASIL, Maria G. “As crises na segurança pública: mudanças e permanências”. Políticas Públicas e Sociedade, v. 6, n. 2, pp.282-296, pp. 89-106, 2003.); representações e discursos de policiais militares sobre seu trabalho e suas clientelas (AZEVEDO, 2017AZEVEDO, Erika. “A polícia e suas polícias: clientela, hierarquia, soldado e bandido”. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 37, n. 3, pp. 553-564, 2017.; RIBEIRO, 2017RIBEIRO, Ludmila. “Polícia Militar é lugar de mulher?”. Revista Estudos Feministas, v. 26, n. 1, pp. 1-15, 2017.; OLIVEIRA, OLIVEIRA e ADORNO, 2019OLIVEIRA, Thiago; OLIVEIRA, André; ADORNO, Sérgio. “Legitimidade policial: um modelo de mensuração”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 34, n. 100, pp. 1-25, 2019.; GISI e SILVESTRE, 2020GISI, Bruna; SILVESTRE, Giani. “Expectativas desencaixadas: o problema da construção da autolegitimidade entre policiais militares”. Revista Sociedade e Estado, v. 35, n. 3, pp. 885-908, 2020.; ZILLI e COUTO, 2017ZILLI, Luís., COUTO, Vinícius. “Servir e proteger: determinantes da avaliação pública sobre a qualidade o trabalho das Polícias Militares no Brasil”. Revista Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, pp. 681-700, 2017.; CRUZ e COSTA, 2021CRUZ, Fernanda; COSTA, Perla. “É tudo ganso? A (in)distinção entre usuários e traficantes de drogas e seus limites nas perspectivas de policiais militares no Rio de Janeiro”. Dilemas, v. 14, n. 1, pp. 243-261, 2021.; VILAROUCA, RIBEIRO e MENEZES, 2022VILAROUCA, Márcio; RIBEIRO, Ludmila; MENEZES, Palloma. “Os policiais das UPPs e a crise permanente da segurança pública no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 37, n. 108, pp. 1-23, 2022.); aspectos históricos da relação entre polícia e sociedade no Brasil (CAMPOS e SILVA, 2018); desempenho do trabalho policial, o medo da criminalidade e a sensação de segurança (COSTA e DURANTE, 2019); dinâmicas territoriais das relações sociais entre polícia e população, assim como os modos de ação da polícia (GARAU, 2017GARAU, Marilha. “Uma análise das relações da polícia militar com os moradores de uma favela ocupada por UPP”. Direito & Práxis, v. 8, n. 3, pp. 2106-2145, 2017.; KONZEN e GOLDANI, 2020; MENEZES, 2018; MUNIZ e MELLO, 2015MUNIZ, Jaqueline; MELLO, Katia. “Nem tão perto, nem tão longe: o dilema da construção da autoridade policial nas UPPs”. Civitas, v. 15, n. 1, pp. 44-65, 2015.; RIBEIRO, 2020; MACIEL, 2021MACIEL, Wellington. “Espaço Público e gestão da segurança urbana: um estudo sociológico da célula de proteção comunitária do bairro Jangurussu”. Civitas, v. 21, n. 3, pp. 479-488, 2021.).

Nesse arranjo, as contribuições trazidas neste estudo dialogam com aspectos centrais do trabalho policial, adentrando as relações entre polícia e população com base em territórios que foram objetos de tentativa de aproximação entre a PM e suas clientelas. Focamos mais especificamente no contexto da execução do trabalho de policiamento nas ruas da cidade, abordando o fenômeno da sua ocorrência enquanto um produto de negociação moral entre policiais e moradores. Com base em registros etnográficos produzidos durante o desempenho do mandato policial, foram realizadas observações diretas do trabalho a bordo de viatura, junto a policiais militares do Ronda do Quarteirão. Do ponto de vista das nossas descrições e análises, aparecem fortemente os modos de ação da polícia e gestão dos conflitos e da criminalidade desses territórios durante a execução do policiamento.

Este artigo pretende contribuir com esse debate, analisando as ocorrências policiais como interface cotidiana das relações sociais entre população e polícia, apresentando as constantes tensões da produção da lei e da ordem em contextos de conflitos de moradores(as) e esmiuçando a conversão em casos de polícia dos acontecimentos nos bairros patrulhados. A intenção analítica é pensar como esses casos podem ser iniciados e como se desenrolam por meio dos “chamados” realizados pela população à polícia.

A produção dos dados da pesquisa deu-se a partir do trabalho de campo intensivo e extensivo desenvolvido na Zona de Policiamento Noir (ZPN) entre 2011 e 2013. Durante esse período, a pesquisa foi realizada a bordo da viatura responsável pelo patrulhamento da área, produzindo a interlocução com policiais e moradores do local. A abordagem qualitativa do estudo foi inspirada na concepção de “etnografia sociológica” (BEAUD e WEBER, 2007BEAUD, Simone; WEBER, Florence. Guia para pesquisa de campo: produzier e analisar dados etnográficos. Petrópolis: Vozes, 2007.), tomando como tarefa o desafio de descrever em profundidade um universo de relações sociais, sem perder de vista a análise teórica dos dados1 1 Para fins de preservação da identidade dos interlocutores da pesquisa, foram ocultados os nomes dos bairros e atribuídos nomes fictícios a todos os participantes que são mencionados no artigo. .

Por intermédio de autorização do comando local do referido programa de policiamento, foi permitida a presença física do pesquisador durante a realização do patrulhamento ostensivo diário. O trabalho de campo da pesquisa foi desenvolvido a bordo da viatura, junto a policiais militares em suas atividades profissionais. A abordagem do estudo, desse modo, concentrou-se em dados qualitativos, registrados com base na observação direta, nas conversações e nas gravações de entrevistas do tipo episódico. Foram produzidas mais de seiscentas páginas de diários de campo descrevendo os aspectos do trabalho policial observados e registrando as conversações durante a pesquisa. Além disso, foram realizadas seis entrevistas em profundidade, com mais de 4 horas de duração cada, com seis policiais experientes de uma das áreas da cidade onde o estudo foi desenvolvido, totalizando quase 30 horas de gravação. Paralelamente, realizou-se, em hemeroteca, a pesquisa em jornais locais e documentos oficiais sobre a instituição policial local e suas práticas.

Este artigo está estruturado da seguinte forma: iniciamos com uma discussão sobre a concepção e implementação do programa de policiamento Ronda do Quarteirão no estado do Ceará e seu contexto histórico, somado à reflexão sobre as implicações de importação de modelos de policiamento comunitário para o cenário cearense e as tensões com os setores mais tradicionais da polícia militar. Na sequência, temos um diálogo com categorias da sociologia das moralidades, que fornecem insights para a compreensão do fenômeno da ocorrência policial propriamente dito. Por fim, chegamos à apresentação dos dados etnográficos sobre as ocorrências policiais, quando essas relações ganham contornos, atores e situações concretas a partir dos materiais de pesquisa.

O Ronda do Quarteirão no histórico recente da política de segurança pública do Ceará

A concentração das políticas de segurança pública nas grandes capitais brasileiras, a exemplo de Fortaleza, dispersou-se, em certa medida, com o fenômeno da “interiorização da violência” (WAISELFISZ, 2008WAISELFISZ, Jacob. Mapa da violência 2008: os municípios brasileiros. Rio de Janeiro: Flacso, 2008.), diretamente relacionado com a escalada do número de homicídios observados nos municípios brasileiros com mais de dois mil habitantes, incluindo regiões metropolitanas. Os dados apresentados no mapa da violência de 2008 e complementados posteriormente (WAISELFISZ, 2011) demonstravam o crescimento das taxas de óbito no interior do Ceará, motivado, entre outras razões, por acidentes de trânsito e o uso de armas brancas e de fogo contra vítimas preferenciais - homens, com idade entre 15 e 24 anos, pobres, pretos e pardos. Essa configuração no cenário cearense gerou novas demandas por políticas de segurança no município Juazeiro do Norte, em razão da ascensão dos números de homicídios e, também, de crimes contra bens (PINHEIRO, BARBOSA e SOUSA, 2013PINHEIRO, Antonio dos S.; BARBOSA, Wendell de F. D.; SOUSA, Dennys H. Juventude, violência e drogas: Os desafios às políticas de segurança. Fortaleza: Funcap, 2013.).

Entre 2006 e 2010, as agendas das políticas de segurança pública dos estados brasileiros pautaram e implantaram programas de policiamento pretendidos e divulgados como sendo de proximidade e/ou comunitários. Não obstante, essa empreitada deu-se nos termos de uma importação de modelos de polícia de proximidade e comunitária para outros estados da federação. Essas políticas, entretanto, ocorreram de forma concomitante com as crenças dos agentes da ótica do trabalho policial, como combate e enfrentamento à criminalidade violenta de forma ostensiva. Esse cenário paradoxal trouxe novas questões sobre os desdobramentos da permanência da polícia em territórios que até então estiveram esquecidos pelas políticas de segurança e sociais.

O programa Ronda do Quarteirão foi implantado, em 2007, na capital do Ceará, Fortaleza. Naquele momento, se inseria num processo político de mudanças repletas de um passado de “máculas e transparência” no campo de segurança pública, cujo passado e presente ainda reconstituem práticas de violação de direitos humanos e de violência policial no contexto do Ceará (BARREIRA, 2004BARREIRA, Cesar. “Em nome da lei e da ordem: a propósito da política de segurança pública”. São Paulo em Perspectiva, v. 18, n. 1, pp. 77-86, 2004.). Em termos de avanços nesse campo, Pinheiro (2014PINHEIRO, Antonio dos S. Polícia comunitária e cidadã. Crato: RDS, 2014.) observa, na transição do estado de exceção para o estado democrático de direito no Brasil, a criação de mecanismos de controle da atividade policial, por intermédio das corregedorias de polícia, avanços na formação intelectual das academias de polícia e mecanismos de participação da população na produção da segurança pública no contexto cearense.

No Ceará, a profunda crise que afetou a segurança pública na década de 1990, como discutida por Barreira (2004BARREIRA, Cesar. “Em nome da lei e da ordem: a propósito da política de segurança pública”. São Paulo em Perspectiva, v. 18, n. 1, pp. 77-86, 2004.), teve início após o período do estado de exceção (1964 - 1985) e, ainda que com algumas transformações esboçadas a partir de 1997, construiu um processo de mudanças e resistências. De acordo com Brasil (2003BRASIL, Maria G. “As crises na segurança pública: mudanças e permanências”. Políticas Públicas e Sociedade, v. 6, n. 2, pp.282-296, pp. 89-106, 2003., p. 90), “as crises foram geradas por um aparelho policial submerso em denúncias de crime de corrupção, extorsão, prostituição infantil, tráfico de drogas, torturas e até homicídios que diariamente estão estampados nas manchetes e nos noticiários da mídia em geral.”

Pinheiro (2014PINHEIRO, Antonio dos S. Polícia comunitária e cidadã. Crato: RDS, 2014.) observa que a implantação dos Conselhos Comunitários de Defesa Social (CCDS), em 1996, acompanhada, posteriormente, pela criação dos distritos-modelo em Fortaleza no ano de 1997, foi uma tentativa de melhorar o quadro da segurança pública no Ceará, objetivando resgatar a imagem das forças policiais e buscando construir canais de comunicação com as comunidades. Tais tentativas, entretanto, esbarraram em resistências de setores tradicionais das forças policiais e da continuidade de práticas de corrupção, violência policial e desvio de finalidade nas ações de policiamento.

As sucessivas crises políticas, cujos temas centrais eram as instituições responsáveis pela segurança pública, justificaram uma série de mudanças nesse campo. Como tentativa de dar respostas às crises contínuas, nas eleições de 2006, o então candidato Cid Gomes apresentou o projeto de policiamento comunitário Ronda do Quarteirão. Com sua vitória nas urnas, o programa foi implementado durante o primeiro ano de seu mandato. A proposta prometia investimentos progressivos na área de segurança e mudanças na formação e atuação da polícia, direcionando as equipes de policiais para um trabalho preventivo que objetivava aproximá-la das comunidades.

Apesar de ser pensado inicialmente para o desempenho do trabalho policial preventivo, o programa acabou por assumir um caráter de atividade ostensiva após sua implementação, principalmente no atendimento às ocorrências policiais. Brasil e Sousa (2010BRASIL, Maria. G.; SOUSA, Emanuel. B. “Resistências às mudanças na corporação policial: a experiência do programa Ronda do Quarteirão no Ceará”. O público e o privado, v. 8, n. 15, pp.97-109, 2010.) observam as resistências enfrentadas pelo programa na PM, sobretudo as crenças entre os agentes policiais sobre seus modos de agir. Parte significativa do efetivo defendia o estilo de policiamento mais repressivo e reativo, em detrimento da abordagem preventiva preconizada pelo estilo de policiamento comunitário.

Barreira e Russo (2012BARREIRA, Cesar, RUSSO, Mauricio M. B. “O Ronda do Quarteirão: Relatos de uma experiência”. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 6, n. 2, pp.282-296, 2012.) discutiram a recepção do programa pela mídia local e população de Fortaleza, analisando, por um lado, a dimensão publicitária produzida por sua implantação e, por outro, o impacto da implantação do Ronda nas taxas de criminalidade e violência de Fortaleza, entre 2007 e 2010. Os autores pontuam que, nesse período, ocorreu certo grau de “melhoramento na confiança nas instituições de segurança pública” (BARREIRA e RUSSO, 2021, p. 293), fruto de uma maior presença física da polícia nos bairros.

A polícia da Boa Vizinhança, em Juazeiro do Norte, apresentou-se, inicialmente, como um marco diferencial em relação à “velha polícia” tradicional. Essas mudanças sinalizavam para a possibilidade de novas práticas policiais, contextualizadas na formação dos profissionais de segurança com a introdução de disciplinas de direitos humanos, mediação de conflitos, polícia comunitária, repressão qualificada ao crime, entre outras. As primeiras turmas formadas para atuarem no programa foram instruídas a prestar um serviço mais personalizado nos bairros, por meio de uma aproximação com os moradores, objetivando conhecer seus problemas e dificuldades. Foram adquiridos veículos e equipamentos novos para o programa, incluindo armamentos. As viaturas passaram a ter câmeras internas e externas, com o propósito de registrar, em imagens, o trabalho policial.

De acordo com Kapperler e Gaines (2011), a concepção da polícia comunitária vai muito além da presença da polícia enfocada na aplicação da lei e manutenção da ordem pública em um dado território. Há uma remodelação da própria concepção do que é o trabalho policial, por meio da ampliação do foco da prática centrada no controle da criminalidade para um mandato que se oriente com base na produção colaborativa de soluções para as preocupações da comunidade (medo do crime, percepções de desordem, qualidade de vida e vizinhança etc.). Na perspectiva do policiamento comunitário, há um envolvimento progressivo da comunidade com as ações da polícia, dessa forma, os policiais precisariam desenvolver uma relação o mais próxima possível com a população para o fortalecimento de relações de confiança e cooperação.

O policiamento comunitário não tem passos bem definidos; é um conjunto de atividades que reconfigura as táticas e estratégias de operação policial do passado, vinculando o público à produção da manutenção da lei e da ordem. Skolnick e Bayley (2006SKOLNICK, Jerome; BAYLEY, David. Policiamento comunitário: questões e práticas através do mundo. São Paulo: Edusp, 2006.) observam, nas experiências mundiais, as diferentes formas de assimilação cultural das práticas policiais em seus contextos sociais e históricos específicos. No contexto brasileiro, a exemplo do Ronda do Quarteirão, a importação dos modelos de polícia de proximidade orientada para o patrulhamento de bairro não foi articulada a políticas efetivas de engajamento das populações locais na participação da segurança pública. O Ronda, apesar de um impacto inicial promissor, a médio prazo tornou-se um programa de policiamento com operações de patrulhamento mais direcionado para o atendimento de ocorrências e menos para a prevenção, como havia sido idealizado.

Não é objetivo deste artigo discorrer sobre as correspondências ou incongruências do Ronda do Quarteirão com a perspectiva conceitual e técnica do policiamento comunitário. O argumento central do texto é pensar como as relações de polícia e população moldam a produção de práticas policiais, bem como compreender os usos sociais de mobilização da polícia nesse cenário. Consideramos que não é produtiva uma reflexão sobre as modalidades de policiamento desconsiderando os contextos locais de sua produção, como também observaram Bittner (2003BITTNER, Egon. Aspectos do trabalho policial. São Paulo: Edusp, 2003.) e Fielding (2002FIELDING, Nigel. “Theorizing Community Policing”. The British Journal of Criminology, v. 42, n. 1, pp. 147-163, 2002.). Longe de precipitar qualquer enquadramento teórico descolado das relações concretas entre polícia e população observadas durante o trabalho de campo, o mandato policial está aqui detalhado e analisado com base na tessitura conflituosa e intersubjetiva dessas relações, percorrendo diferentes e imponderáveis dimensões que permeiam a ocorrência policial no cotidiano de trabalho dos seus agentes. A experiência do programa de policiamento Ronda do Quarteirão apresentada é abordada enquanto um caso possível de análise, evitando reducionismos e demarcações teóricas que associem as relações descritas e analisadas numa modalidade de policiamento comunitário ou tradicional, embora dialogue com esses referenciais.

Insights teóricos da sociologia das moralidades para compreensão do fenômeno das ocorrências policiais

Para compreendermos o fenômeno da ocorrência policial enquanto dado etnográfico, precisamos adentrar o sentido das negociações e moralidades que envolvem processos simbólicos da conversão de acontecimentos em casos de polícia. Do ponto de vista da sua constituição, apareceram de forma muito instigante nos materiais de campo, na centralidade das denúncias e processos simbólicos de acusação negociados durante as atividades de policiamento. Essas denúncias se materializam tanto por rituais da instituição - como nos chamados do 190 com a mediação da Central de Informações -, quanto no curso cotidiano das interações simbólicas entre polícia e população durante o translado das viaturas pelos bairros.

Em seu estudo sobre as denúncias públicas Boltanski, Darré e Schiltz (1984BOLTANSKI, Luc; DARRÉ, Yann; SCHILTZ, Mari-Ange. “La dénonciation”. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 51, n. 1, pp.3-40, 1984.) propõem um modelo actancial, dividido em quatro actantes, para que se possa compreender o fenômeno sociológico da denúncia: 1) aquele que denuncia; 2) a pessoa a favor de quem é feita a denúncia; 3) a pessoa contra quem ela é feita; 4) aquele a quem a denúncia se dirige, uma vez que pode se referir a coletividades e indivíduos, além de perseguidores desconhecidos ou grupos (empresas privadas, o Estado etc.). O modelo antevê - afora o denunciador, a vítima e o perseguidor - aquele que recebe e julga a denúncia.

A produção de uma ocorrência policial articula um processo semelhante ao descrito no modelo actancial proposto. Os disparadores morais das ocorrências são processos de acusação que adentram justamente esses meandros. Eles envolvem um denunciado (perseguidor), um denunciante (que realiza o chamado), o responsável por receber e atender a denúncia (a polícia e seus canais institucionais ou os policiais) e assim por diante. Há casos em que os processos de acusação ocorrem sem a mediação direta de um “denunciador” vindo da comunidade, mas a partir da própria iniciativa de policiais, ao identificarem características ou situações consideradas suspeitas, conforme veremos nos registros etnográficos.

O modo de acessar as ocorrências policiais oriundas de chamados ou de ocorrências de campo, a partir da interface etnográfica da observação e das falas nativas, é difícil de ser operacionalizado por meio da análise estatística, como fizeram Boltanski, Darré e Schiltz (1984BOLTANSKI, Luc; DARRÉ, Yann; SCHILTZ, Mari-Ange. “La dénonciation”. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 51, n. 1, pp.3-40, 1984.). A denúncia à polícia, sinônimo de “ligar pra polícia”; “chamar a polícia” ou “chamar a ronda” durante o trabalho de campo foi acessada de formas diferentes, não se compondo, apenas, de um registro formal do CIOPS (Centro Integrado de Operações de Segurança) - órgão responsável por atender denúncias realizadas por meio do 190 pela população-, com propriedades que não podem se desvencilhar do cotidiano dos policiais, da observação direta e de registros informais.

As formas de acusação encarnam-se de forma peculiar nas interações de policiais e moradores, as circunstâncias e os motivos para acusar alguém denotam, como observa Werneck (2009WERNECK, Alexandre. “Moralidade de bolso: a manualização do ato de dar uma desculpa como índice da negociação da noção de ‘bem’ nas relações sociais”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 2, n. 3, pp.107-141, 2009.), uma recomposição de regras rompidas no plano das circunstâncias particulares das relações sociais. Essa condição é reveladora da produção social da acusação e é trazida aqui como acontecimento mediador dos usos sociais da polícia e suas consequências.

A denúncia de um morador, todavia, pode ser tanto um convite ao acordo como uma acusação disruptiva das relações sociais no território.

Consideremos, por exemplo, um típico caso de “perturbação do sossego”, quando um morador aciona a polícia para mediar o uso abusivo de aparelhos sonoros. Essa denúncia pode gerar um impacto extremamente considerável nas relações de vizinhança, sendo possível tanto o desfecho conciliatório quanto o estremecimento dos laços sociais e o agravamento dos conflitos. De outro modo, criminosos responsáveis pelo tráfico de drogas ilícitas no território podem realizar denúncias à polícia com objetivo de eliminar um concorrente nesse mercado, para agir de acordo com seus interesses. As justificativas para cada denúncia podem ser múltiplas e criar impactos de difícil mensuração.

As formas de acusação, nesse sentido, são disparadoras de uma probabilidade complexa, pois cada evento poderá resultar em diferentes desfechos possíveis e alimentar um conjunto de interações e relações de poder no território, algo que se torna visível mediante a ocorrência policial. Entende-se “conflito” como a condição de que nos falava George Simmel (1983SIMMEL, Georg. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983., p. 154), que “aproxima os membros tão estritamente e os sujeita ao impulso tão uniforme que eles precisam concordar ou se repelir completamente” . Trata-se se uma estratégia teórico-metodológica para considerar as diferentes nuances na construção de laços de confiança e desconfiança nas relações entre polícia e população. Ao analisar a forma dessas relações, eventos, ações e relações sociais tornam-se acontecimentos policiais, revelando elementos importantes ainda não abordados de forma mais aprofundada nos estudos brasileiros sobre a polícia.

Do modo como está pensada neste artigo, a “força pública” enquanto instituição legítima para centralizar o uso da força na coletividade social, segundo Monjardet (2012MONJARDET, Dominique. O que faz a polícia: sociologia da força pública. São Paulo: Edusp, 2012.), é redefinida em seus usos locais pela população, processo ainda mais efetivo em contextos de proximidade comunicacional e interacional com a instituição policial, como no caso da experiência do Ronda do Quarteirão.

A conversão moral de um acontecimento considerado caso de polícia no bairro revela dimensões importantes para compreender os meandros da atividade policial, bem como os sentidos pragmáticos em que se desempenha a manutenção da lei e da ordem enquanto fenômenos situacionais. Com base nas características dos dados produzidos pela pesquisa, a análise situacional assumiu uma perspectiva muito instigante para abordagem metodológica dessas relações. Como observa Vielsen (1987VIELSEN, Van. “A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado”. In: FELDMAN-BIANCO, Bella (org.). Antropologia das sociedades contemporâneas São Paulo: Global, 1987, pp. 345-374., p. 364):

A meu ver, a análise situacional pode ser muito útil para se lidar com esse processo de opção, isto é, a seleção feita pelo indivíduo, em qualquer situação, de uma variedade de relações possíveis que podem ser, elas mesmas, governadas por diferentes normas daqueles comportamentos que consideram que, melhor servirão a seus objetivos. As relações e normas selecionadas podem, provavelmente, variar com referência a situações similares de um indivíduo e outro.

Pode-se dizer que, no conjunto dos materiais produzidos pela pesquisa, existe a correspondência entre o tipo do dado produzido e o modo como se deu a forma de sua obtenção. Como descrito, os relatos em torno do fenômeno da ocorrência policial revelam diferentes repertórios e manobras morais praticadas pela polícia e pela população, com base no que demanda cada situação. Nesse aspecto, o modo como as práticas policiais e seus significados envolvem um contexto situacional de sua produção torna-se um elemento importante da análise.

As denúncias realizadas à polícia são mediadas por disparadores morais dos atores ao “chamarem a polícia”. Após o disparo, a informação do acontecimento denunciado, por um mosaico combinatório de diferentes motivos, pode tornar-se caso de polícia. Além de ser uma manobra, a denúncia não está desconectada de códigos de condutas e regras a serem seguidas, ou, de outra forma, de uma circunstância desencadeadora.

Cada caso denunciado pode expandir um actante em detrimento de outro, alcançando menor ou maior grau de singularidade e/ou generalidade, como um problema de ordem privada que pode alcançar um apelo coletivo mais significativo. No que se refere às denúncias, a construção de um modelo actancial deve considerar que denunciar alguém para a polícia pode envolver a exposição de um lugar, bairro, endereço, objeto e, além disso, do próprio ator social denunciado. A denúncia feita à polícia nem sempre precisa ser identificada ou, de outra forma, a identidade do denunciador, que pode também ser a vítima, nem sempre se efetiva na conversão dos acontecimentos em casos de polícia.

Outro ponto relevante a ser considerado é que a propensão à denúncia é alimentada por um tipo de socialidade móvel da viatura durante o patrulhamento motorizado. Trata-se de um estímulo à interação física e simbólica com a presença da instituição policial no cotidiano da cidade. As possibilidades de denúncia, de acordo com os dados etnográficos, parecem ser ampliadas pela circulação do veículo, de acordo com as percepções dos policiais. Como veremos, na constituição da ocorrência policial há uma análise combinatória entre quase ações, quase pessoas e quase objetos.

O elemento surpresa: as modalidades de ocorrência e a atividade policial

A execução do policiamento de rua pode ser considerada uma das instâncias da linha de frente de uma política de segurança pública. Essa visão está centrada no funcionamento do trabalho policial como forma de evitar e punir o crime, bem como mediar conflitos da população no território. Nesta seção, nos concentraremos em detalhar e descrever as dinâmicas relacionais da atuação da PM, pensando, sobretudo, em como as práticas da polícia estão implicadas e interferem na produção de interações com as populações atendidas, baseando-se no fenômeno das ocorrências policiais.

As falas e percepções sociais daqueles que estão na linha de frente da execução do serviço de rua permitem uma imersão inicial nas dimensões materiais e simbólicas que recortam o tema. O soldado Dário, policial do programa Ronda do Quarteirão, foi um importante interlocutor da pesquisa e nos ajudou a entender as percepções sociais desses operadores sobre o seu trabalho e o território, nos fornecendo elementos de como ocorre o atendimento dos chamados da população e o desempenho do policiamento na gestão dos conflitos e da criminalidade na ZPN.

O tipo de ocorrência policial varia de área para área, tem área que não tem ocorrência, por exemplo, o Bairro Verde (...), a ocorrência que tem lá é “som alto” [perturbação do sossego], mesmo assim, tem dias e lugares específicos, furto em residência, mesmo assim, não é muito. Tem áreas que costumam ter assalto. O lugar que tem mais ocorrência, sem dúvida nenhuma, é a parte do Bairro 2, do Bairro 3 e do Bairro 1. A ocorrência de todo tipo que você imaginar existe, até os tipos que você não imagina existem. (Soldado Dário, entrevista oral realizada em 2012)

Esse caráter surpreendente das ocorrências policiais pode ser ilustrado, de acordo com a fala de Dário, por meio de casos que escapam, até mesmo, às tipificações de ocorrências enquanto regularidades estatísticas. A área etnografada é narrada, por um dos seus policiais mais “antigos”2 2 A expressão “antigo” é utilizada frequentemente por policiais militares para se referir ao acúmulo de experiência profissional e a progressão temporal profissional na instituição. , como local “de onde podem emergir ocorrências até mesmo inimagináveis”. Outro fator importante destacado é a dimensão probatória de cada chamado, ou seja, as maneiras diferentes como as coisas podem se dar no mesmo tipo de ocorrência. Essa pluralidade é remetida ao “elemento surpresa”.

É que muitos, desde quando eu comecei o trabalho trabalho na polícia , define como uma ocorrência nunca é igual a outra. (...) Então, se nós estamos com uma ocorrência de perturbação do sossego alheio, não quer dizer que a gente vai ser chamado, e outra, com a mesma definição desta ocorrência vai ser a mesma coisa. (...) Por exemplo, abordagem de um indivíduo suspeito, a gente recebe, o CIOPS modula via rádio para irmos a determinado local e define como abordagem de indivíduo suspeito. Então, até aí se chamarem dez ocorrências para essa mesma tipificação, (...) nós vamos ter dez tipos de ocorrências diferentes. Como? A primeira poderia ser trote; a segunda poderia ter um indivíduo, mas não em situação suspeita, não é verdade? Vamos identificá-lo, mas não era em situação suspeita, (...)? Ou, de repente, a gente pode chegar e era um indivíduo em situação suspeita, e pode ter passado a arma para outra pessoa e a pessoa ter saído do local. De repente, esse indivíduo estava armado ou escondeu a arma em algum local. (SD Ben, entrevista realizada em 2012)

As formas de recepção da PM, nos acontecimentos dos bairros, são centrais. São várias as maneiras como isso pode se dar: existem as chamadas “ocorrências de campo”, aquelas com as quais os policiais se deparam no transcorrer do patrulhamento, seja por intermédio de chamado do morador ou da identificação do acontecimento em sua plena ocorrência. Existem ainda outras formas oriundas das ligações para o número 190, realizadas pela população. Por meio dessas, são feitas chamadas telefônicas para a central de informações locais da PM. Os acontecimentos descritos são registrados e localizados, sendo repassados para as viaturas através do rádio transmissor, com o intervalo de tempo da transição da informação até o local de patrulhamento. Quando o telefone móvel da viatura estava em pleno funcionamento, era também um meio pelo qual se recebia os chamados da população, entretanto, com o sucateamento progressivo das viaturas, essa última modalidade ficou cada vez mais em desuso. As recepções podem envolver outras dimensões: alguns policiais, como o soldado Dário, por exemplo, distribuíam seus contatos telefônicos pessoais para moradores no interior dos bairros. Em alguns casos, portanto, os chamados eram realizados diretamente aos policiais. Eles, por sua vez, repassavam a ocorrência para a central de informações, passando a se engajar nos acontecimentos.

Uma vez produzida a ocorrência policial, com a adesão discricionária a uma situação de campo ou uma determinação superior, no patrulhamento motorizado em viatura, os policiais deslocam-se em equipes para o local indicado. Essas equipes designadas são nomeadas nativamente de “composição”, e podem ter dois ou mais policiais.

Esse fator, o fator composição, como é que a gente vai chegar com dois policiais na viatura em três homens [está se referindo à desvantagem numérica em relação aos suspeitos]? Então, nunca uma ocorrência ele vai ser igual, ela vai ter. A gente tem que se anteceder, anteceder, é... anteceder os fatos. Como ele poderia acontecer, isso e uma série de fatores, né? Que é a questão da perspicácia mesmo policial, a atenção, a segurança. Porque a gente se depara com homens que estão... Que pode acontecer algo fatal e um “elemento” pode reagir contra uma composição. (SD Ben, entrevista realizada em 2012, grifos e comentários do autor).

O soldado Ben deixa implícito em seus relatos que nos modos de pensamento, percepção e ação dos policiais, uma ou mais pessoas envolvidas numa ocorrência policial como acusados ou suspeitos podem colocar em risco a vida da equipe. Nesse sentido, o caráter surpreendente e iminente das “ocorrências” diz respeito ao caráter agonístico, previamente suposto enquanto possibilidade real. Na percepção dos policiais, o desfecho da ocorrência pode ser trágico, e uma possível reação dos suspeitos pode significar a morte de um ou mais agentes. Embora haja risco pressuposto à população nesse raciocínio, o elemento central compartilhado entre os policiais é sempre a segurança da equipe envolvida na operação. Existem inúmeras narrativas que mantêm essa sensação, como uma que nos conta Ben em entrevista:

Recentemente, a gente se deparou com alguns em situação suspeita e conseguimos abordar um, fizemos uma segunda abordagem, descobrindo que esse elemento estava armado a revólver e, antes de empreender fuga, dispensou a arma e a bicicleta. Eu consegui dominá-lo, né? E quando eu peguei a arma dele, estava com a munição picotada, entendeu? Ou seja, já poderia ter reagido.

Tal dimensão acirra a hostilidade contra o morador, alvo da abordagem, por ser acusado ou estar em suspeição de ter cometido algo inadequado ou, quando não, um ato criminoso. Durante as ocorrências, esse indivíduo pode ser um potencial algoz, encurralado nesse papel pelos policiais durante a abordagem até que se possa concluir que não se trata de uma ameaça potencial à integridade dos agentes.

Existem elementos cruzados nessas interações: a composição, os moradores, as motivações e as circunstâncias. Esses fatores tornam-se elementos considerados, em seus vários sentidos e possibilidades, durante a constituição da ocorrência e as ações da polícia para avaliá-la e tentar resolvê-la3 3 Goffman (2011) pensa situações comuns aos processos descritos, com base na ideia de “máquinas decisórias”. Mediante tais rituais de interação, estão envolvidas as possibilidades de arriscar chances consequenciais, percebidas na situação em que faces se engajam. Ocorre como numa aposta em que estão postas as possibilidades de ganhar e perder, dar certo e dar errado. . Essa pluralidade assume, de certa maneira, a centralidade das expectativas em torno do trabalho policial nas relações entre polícia e população. Neste ponto, nossa análise, de algum modo, recai sobre os modos de ver, fazer e dizer antes, durante e depois das ocorrências policiais do ponto de vista da polícia. Não se trata apenas das relacionadas ao crime, mas também emergidas a partir de conflitos classificados, muitas vezes, como “banais”, nos quais a polícia se entremete e participa decisivamente.

A fundada suspeita. Ela principia pela denúncia, né? Mas tirando o..., mas tirando a suspeita, sem vir a denúncia com apenas o trabalho de patrulhamento, quando a gente identifica o indivíduo, ela vem de várias formas, por exemplo, a expressão de “quase noventa por cento” do ser humano é a expressão corporal, né? Então, a partir do momento que você nota alguém, apressa o passo, entendeu? Ela tenta se evadir do local ou, de repente, joga algo, tenta esconder algo que pode ser uma droga. Então, assim, é fundamentada uma suspeita. Outro exemplo, também, de indivíduo na moto, né? Utilização de viseiras, né? A questão de placas de motos alteradas, tudo é uma soma. Só que a gente tem uma coisa, tem que pensar rápido, porque de repente um elemento desse, que está fundamentada a suspeita [reúne indícios de ser um criminoso na percepção do policial], ele tenta ludibriar a composição, ele só vai culminar a fundamentar a suspeita [Está se referindo a possibilidade do suspeito fugir ou reagir à abordagem policial] quando ele percebe que ele vai ser abordado. (SD Ben, entrevista realizada em 2012, grifos e comentários do autor.)

Com base na construção do índice acusativo dos moradores, pode-se instaurar uma ocorrência policial. Tal jogo perpassa uma série de eixos analíticos nos métodos dos policiais. As interações cotidianas são mediadas pelo deslocamento da viatura e os encontros face-to-face são mediados decisivamente pela circulação da viatura durante o patrulhamento motorizado.

O deslocamento da viatura constrói um engajamento especial entre faces, nas relações entre polícia e população. Nessa condição, o espaço público da área de operações da polícia pode ser pensado como palco de interações entre pessoas conhecidas e desconhecidas, classificadas por uma matriz de moralidades e informações em que a percepção dos policiais está alicerçada. Neste ponto, é interessante destacar como a agência humana e não humana do veículo constrói socialidades veiculares, nas quais o carro funciona como a rua às avessas, revelando interações instantâneas com inúmeras possibilidades de desentendimento e não correspondência, justamente pela condição móvel da polícia. A rua, na compreensão dos policiais, é o local do patrulhamento ostensivo, é estática, um lugar. A viatura, ao contrário, move-se, é um vetor de mobilidades relacionais, visuais e comunicacionais. Seu movimento pode ser controlado pelo motorista, em interação com a equipe de policiais, e redirecionado pelos usos locais da polícia dos moradores. Essas possibilidades ilustram socialidades veiculares implicadas, também, nas dinâmicas relacionais de policiais e moradores na promoção do patrulhamento ostensivo, como aspectos decisivos de conflitualidades marcadas pela presença não humana do veículo-viatura.

Outro elemento interessante destacado pelos policiais é a “fundada suspeita”, esta ferramenta enumera, uma a uma, in situ, as potencialidades de suspeição do morador, avaliando o local onde se encontra, suas características físicas, o veículo em que se desloca, suas expressões corporais diante da passagem da polícia, entre outros aspectos. Alguns casos culminam em abordagens policiais ou perseguições veiculares. Pode ocorrer dos PMs não identificarem atitudes fora da lei dos moradores suspeitos, avaliando os casos nos quais devem ser enquadrados ou se pode “deixar passar” seus delitos e infrações, aqui fica fortemente evidenciado o filtro moral das manobras discricionárias do patrulhamento policial.

Do ponto de vista dos operadores policiais, as ocorrências são classificadas com base em níveis de complexidade. Entretanto, estas codificações são enumeradas num momento posterior ao seu desenrolar. Por isso, agregou-se a centralidade da análise nas maneiras, os acontecimentos são informados aos PMs, produzindo os casos de polícia no bairro.

Os chamados para a polícia: denunciar e acusar algo ou alguém

É curioso entender como as ocorrências podem começar em um “chamado”, procedendo à descrição de pessoas, lugares, problemas, situações etc., podendo ser trotes, descrever percepções exageradas propositalmente, ou mesmo apenas especulações. Exagerar uma situação para criar uma passagem de um problema individual para uma abrangência coletiva é uma manobra similar às discutidas por Boltanski, Darré e Schiltz (1984BOLTANSKI, Luc; DARRÉ, Yann; SCHILTZ, Mari-Ange. “La dénonciation”. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 51, n. 1, pp.3-40, 1984.) de “engrandecimento do actante”. Entretanto, tais manobras revelam negociações de sentido particulares, ocorridas cotidianamente, e com forte caráter circunstancial quando adentramos o fenômeno das ocorrências policiais.

Durante o trabalho de campo, existiam formas específicas pelas quais os chamados da população chegavam até os policiais durante as atividades de patrulhamento. Transcorrido o tempo desde a implantação do programa Ronda do Quarteirão, em 2008, houve um contínuo sucateamento dos equipamentos de comunicação da viatura, o que alterou o fluxo desse processo, como relata o soldado Dário:

No começo do nosso trabalho, os chamados eram divididos entre CIOPS e as ligações no telefone da viatura, só que esse telefone é muito problemático, porque é um chip de celular, num aparelho de celular comum, só que os aparelhos já eram pra quando o telefone fixo da viatura apresentasse problemas, e já faz bastante tempo que eles não estão funcionando bem, esses celulares eram mais ou menos top de linha, mas de 2008, mais ou menos quando começou o projeto, e, mesmo assim, já estavam ultrapassados, só que agora a gente já tá em 2012, eles, também, já não funcionam bem e não houve renovação, não chegaram celulares, então o chip no celular quebra um galho aqui outro acolá, a própria “Oi” [operadora de telefonia] também não colabora, você liga, às vezes, não dá certo e tudo, então, a quantidade de ligações diminuiu bastante. (Soldado Dário, entrevista realizada em 2012.)

Do ponto de vista normativo e legal, as etapas de um chamado realizado à polícia constituem-se, duramente, por atribuições selecionadas sob um determinismo estrito. Necessariamente, envolveriam infrações, crimes e delitos previamente supostos. De forma a haver a conexão irremediável com a polícia civil, os acusados seriam conduzidos à delegacia, onde se realizaria “o procedimento legal”, que abrange colher os depoimentos e instaurar o inquérito policial, acionar o termo circunstanciado ou a realização de boletim de ocorrência com a participação da vítima e testemunhas. As etapas seguintes seriam realizadas pela polícia civil, enviando o caso à justiça. Os chamados pressuporiam, desse modo, a existência da vítima, do perseguidor, do denunciante e das testemunhas implicitamente.

Trata-se da caracterização geral dos chamados pela natureza suposta do crime ou do delito, em tese, relacionados à manutenção da ordem - atividade constitucional da polícia militar, responsável pelo policiamento ostensivo e preventivo. Neste esquema, está sintetizada, de certo modo, a forma normativa prescrita às etapas da ocorrência policial. Cada uma delas pode ser segmentada em microescalas, marcadas, ao contrário do que a lei prevê, de jogos incertos. Durante a realização do procedimento, os policiais fazem o relatório da ocorrência e se envolvem na futura audiência judicial, no julgamento dos infratores. Esta, no entanto, é apenas uma das possibilidades de desfecho. Antes da identificação da infração, há a possibilidade de se resolver ou “desenrolar” a ocorrência no local.

Misse (2010MISSE, Michel. “Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria ‘bandido’”. Lua Nova, v. 79, n. 1, pp. 15-38, 2010.) chama atenção para as dimensões morais dos usos dos códigos normativos. Tal entendimento agrega elementos importantes a serem considerados do ponto de vista das acusações, que incriminam em diferentes níveis os atores sociais, contextualizados por uma frágil noção jurídica de igualdade perante a lei. No cotidiano de práticas policiais, as dinâmicas acusatórias assumem significados situacionais quase instantâneos, permeados por tensões semelhantes. Corroborando para esse entendimento, Lima (2011), ao tratar discrepâncias entre o normativo e as práticas efetivas, sugere a noção de “sensibilidade jurídica”, marcada, em alguns casos, pelas posições e interesses específicos defendidos pelos operadores, instituindo disjunções entre a lei e a prática, como uma chave de análise para compreender esse tipo de situação, também manifestada na gestão da ocorrência policial enquanto um fenômeno interacional, além de normativo. Como nos relata o soldado Dário:

A maioria, a grande maioria das ocorrências, a gente consegue resolver no local, até por que não haveria condições, se a gente fosse levar tudo ao pé da letra, nós entraríamos em serviço às 6 horas da manhã, quando fosse 6 horas e 2 minutos, já na primeira ocorrência, a gente já estava na delegacia. Ia passar o resto do serviço na delegacia, e aconteceria o mesmo com todas as viaturas, porque não há viatura que não atenda ocorrências. (Soldado Dário, entrevista realizada em 2012).

Na fala do policial, subentende-se que se pode “deixar passar” algumas infrações, caso contrário, o policiamento seria inviabilizado diariamente. É um contraponto interessante: caso a instituição cumprisse a lei de forma cega não haveria policiamento ostensivo e preventivo.

Esse paradoxo aparece na fala do policial como justificativa moral para as flexibilizações da lei na execução do policiamento. Cada uma dessas ações discricionárias implica em diversos interesses sociais, mediados pelas interações e situações de cada ocorrência. É na dinâmica da interação social desencadeada pela ocorrência policial que os agentes desempenham avaliações morais dos acontecimentos nos territórios patrulhados, em que a atuação da polícia é mais ou menos relevante, assim como definem quais linhas de interação e agência irão adotar.

Num dos casos relatados, Dário remonta que a primeira apreensão de arma de fogo da área ocorreu sob uma disputa inusitada. As viaturas do programa dispunham do telefone em perfeito estado. Uma equipe obteve vantagem, ao receber a informação primeiro, pelo chamado de moradores descrevendo e localizando um “homem armado”. Numa ação calculada, a composição de policiais informada não repassou a informação à central, convertendo a vantagem de tempo na apreensão da arma de fogo, autuando o acusado em flagrante. Como gratificação, os policiais receberam um prêmio em dinheiro no valor de 600 reais, previamente designado na Instituição4 4 O sistema de premiações, instaurado nas forças policiais do estado do Ceará durante esse período, não envolve as dinâmicas abordadas por Skol Nick e Bayley (2006) quanto ao sistema de recompensas adaptado ao “policiamento comunitário”. A definição da eficiência das ações policiais está, sobretudo, codificada no “combate ao crime”. Duarte (2013) tematiza, em seu estudo, “o policiamento comunitário do Ceará” como a ferramenta de governabilidade, imputando no seio da cultura policial local a dimensão empreendedora organizacional. Disto, desdobra-se a produção de um sistema de recompensas financeiras para premiar os policiais militares. Estas recompensas, entretanto, limitam-se ao “combate ao crime”. Os policiais são premiados com folgas por efetuarem prisões, recebem recompensas financeiras por apreender armas de fogo, mas não há premiações mensuradas pelo “aumento da confiança na polícia”, por exemplo. .

Em um mesmo tipo de ocorrência poderia acontecer desfechos diferentes. Contudo, a recompensa financeira estipulada como uma estratégia institucional para melhorar a produtividade dos policiais na apreensão de armas de fogo estimulou a falta de cooperação no funcionamento cotidiano dessa operação. Caso se tratasse de uma ordem de complexidade maior, em que houvesse grande número de pessoas armadas, a logística da operação poderia significar risco à população e aos próprios policiais. Em outra probabilidade, caso a denúncia fosse ignorada e não repassada para a central de informações, se, tragicamente, a arma fosse utilizada para um homicídio ou lesão corporal, a composição estaria em apuros e sofreria graves punições, justamente por sua omissão.

Ao contrário do que pode parecer, as denúncias feitas à polícia são invenções surpreendentes, não se compõem de um quadro geral espelhando, meramente, regularidades estatísticas de uma forma determinista. Os policiais são muito precisos ao afirmarem que “nenhuma ocorrência policial é igual a outra”. Apesar de poderem ser tipificadas como “violência doméstica”, “arma de fogo”, “atitude suspeita”, cada caso, quando atendido, sempre está previamente dotado do “fator surpresa”. Alguns sendo bastante exemplares.

Num inusitado caso de ocorrência, os policiais receberam um chamado descrevendo a precipitação de um conflito interpessoal em um campo de futebol pelo telefone móvel da viatura. Ao chegarem no endereço descrito, se engajaram na situação e descobriram que se tratava de um impasse decorrido de uma jogada anterior de uma partida de futebol, travada num campo de várzea do bairro 2. Um dos times alegava que a bola havia ultrapassado a linha do gol enquanto o outro negava prontamente. A desavença produziu o estremecimento do conflito, beirando o confronto físico, entre os membros das equipes. Um dos policiais assumiu a mediação, o soldado Fagner, que sugeriu a decisão do impasse pela cobrança de uma “penalidade máxima”, o que culminou na cobrança desperdiçada e a continuidade da partida entre os times, aliviando as tensões.

O que a princípio não seria um caso de polícia tornou-se uma forma de dissolver a precipitação de um confronto numa disputa de futebol por meio da agência policial. Negociar a solução do chamado remonta a inúmeras outras possibilidades de conflitos: entre familiares, entre vizinhos ou até mediação em situação de violência doméstica. Nesse acontecimento, desencadeado pelo chamado realizado à polícia, a conexão comunicacional dos policiais com a população permitiu tornar algo banal, mas ao mesmo tempo potencialmente conflituoso, numa situação de atividade policial, exigindo a performance criativa na mediação do “desentendimento”. A dimensão do “acontecimento único” expande o que a denúncia pode acionar como “elemento relacional” entre os agentes e os moradores vinculados ao território comum da “área de operações”.

Outro caso curioso, desta vez no bairro 3, foi o de Rosana. A moradora identificou-se após ligação efetuada para o telefone móvel da viatura, comunicando aos policiais o endereço de determinada residência, no interior da localidade, denunciando uma “boca de fumo” - expressão comumente associada a pontos de tráfico de drogas ilícitas em residências. Ao chegarem ao local, os policiais descobriram, no entanto, que se tratava da casa da nora da denunciante, com quem apresentava relacionamento familiar muito difícil. Ela havia feito a denúncia para causar-lhe constrangimento aos olhos de toda vizinhança com a inesperada visita da polícia. Os usos sociais da PM revelam conflitos e os envolvem em uma complexa teia de relações.

Chamar a polícia para denunciar alguém, além de engajar os PMs na tessitura conflituosa da vida social, indexa estigmas morais sob a figura de moradores. Tramar uma visita inesperada da polícia tornou o acontecimento “fofoca” nos círculos de sociabilidade, produzindo a imputação do atributo negativo à moradora denunciada, que teve sua casa vasculhada e foi acusada pela própria sogra de ser uma “traficante”. Os usos locais da polícia revelam não apenas a proposição da “solução de problemas da comunidade”, mas uma caixa de ressonância e aprofundamento dos conflitos preexistentes nas populações, acionando a produção social do estigma local reforçado pela agência da polícia.

A esses casos, somam-se muitos outros nos quais há possibilidades de mediação dos conflitos dos moradores, ou sua inauguração e manutenção. Desse modo, ocorrem redimensionamentos da economia das conflitualidades locais, conectadas às práticas da polícia e implicadas em suas relações com os moradores.

É importante sublinhar, em meio às ações da polícia, as situações nas quais ocorrem reviravoltas das acusações produzidas pelos moradores. Conforme os policiais deslocam-se para as ocorrências, engajam-se em situações locais e interagem com seus partícipes, alterando a definição da situação na performance da ocorrência policial. Quando, em um outro caso, a viatura se aproximava de um bar, aproximadamente às 19 horas, uma senhora, saindo do estabelecimento, chamou-os com um gesto. Ao aproximar-se da viatura, a moradora denunciou sua vizinha aos PMs, descrevendo as pedras atiradas por ela na porta de sua residência. Indicou, também, seu endereço, relativamente distante do ponto onde a viatura encontrava-se. Por meio de uma conversa de troca de observações entre a composição na viatura, um dos policiais questionou a denúncia realizada, entendendo ser apenas uma forma de despistá-los daquele local. Por fim, conjuntamente, os PMs decidiram adentrar o estabelecimento, encontrando lá dentro cinco jovens que se tornaram alvos de abordagem. Após o procedimento de revista, nada foi encontrado.

O contexto, criado e narrado pela denúncia, foi questionado com base na situação em que a vítima denunciadora se encontrava. Após a escuta, o acontecimento e seus elementos situacionais foram redefinidos, convertendo a denúncia da moradora numa “atitude suspeita”. Desse processo sucederam instâncias de avaliação e tomadas de decisão, culminando na reviravolta inesperada da situação. A produção de “vocabulários de motivos” (MILLS, 1940MILLS, Wrigth. “Situated Actions and Vocabularies of Motive”. American Sociological Review, v. 5, n. 6, pp. 904-913, 1940., p. 904) nas denúncias para a polícia revela como o trabalho policial lida justamente com as características fatuais de uma situação em específico, assim como o seu grau de confiabilidade, ou seja, os motivos das ações das pessoas guardam um caráter situacional e expectativas referentes àquele tipo de situação. A denúncia trazida via interação face a face revela formas de ação situada e ocorre originada de um motivo razoável, baseando-se em padrões sociais de resposta.

A realização da denúncia se desdobra numa ação que está situada e motivada, explicitada pelo morador acusador na descrição do acontecimento e do acusado. No entanto, a própria construção situacional da motivação desdobra novas avaliações sobre as respostas a serem dadas. Em alguns casos, o padrão social de resposta é redimensionado em razão da interpretação da ação pelos policiais e moradores envolvidos na ocorrência policial.

Em alguns casos, denúncias despretensiosas acionam a interação da polícia, desdobrando o engrandecimento de complexidade do caso exponencialmente. Ouvir um suposto pedido de socorro no vizinho e, por conta disso, chamar a polícia, pode ser o ato disparador inaugural de uma grande operação policial, como descreve o soldado Dário:

Certa vez, chegou uma ocorrência pela CIOPS que tinha uma pessoa numa casa, lá no bairro 2, escutando alguém pedindo socorro. A gente chegou lá, bem tranquilo, eu desci da viatura, o meu parceiro ficou da viatura olhando, aí eu bati na porta tranquilo, a casa normal, sem problema nenhum, a gente até estranhou, mas era lá o endereço repassado, batemos na porta saiu de lá uma mulher bonita, assim, nova, uns vinte anos no máximo, olhos verdes bonitos, com uma irmãzinha, também, bonitinha. Aí eu perguntei, está havendo algum problema aqui?

- Não por quê? Por que foi que chamaram vocês aqui? (Respondeu ela)

O tom que ela falou isso me fez ficar meio receoso, parecia esconder alguma coisa, estava assustada. Expliquei-a que disseram que tinha alguém pedindo socorro, gritando na casa.

- Não teve nada não, aqui não. (Respondeu ela)

Falei está certo, tudo bem. Mas aí, aquilo ficou me incomodando, no dia seguinte, houve um assassinato de um homem muito conhecido aqui que era um tal de “Ciclano”. A gente encontrou com uma senhora na rua chorando, a gente parou, e eu perguntei por que ela estava chorando, ela contou que mataram seu marido, “o Ciclano”.

- Mas eu sei quem foi, foi fulana de tal, tá na casa tal, tá cheio de gente lá e eles tão comemorando a morte do meu marido. Uma casa preta, na rua tal, o número da casa é que, tão tudo lá dentro, comemorando a morte do meu marido, eu digo mesmo.

Dali, a gente ligou 190 e informou, pois não podíamos chegar lá batendo na porta só assim. A informação foi repassada até o serviço de inteligência, eles foram lá, fizeram o cerco, enquanto isso, a gente não saía de lá, porque sabíamos o que ia acontecer e ficamos pelas redondezas, quando a gente percebeu que eles estavam fazendo o cerco fomos também, mesmo sem eles chamarem, eles bateram na porta da frente e o pessoal começou a correr pelos fundos, só que nós já estávamos nos fundos, aí a gente deu de cara com o pessoal, conseguindo fazer a prisão. Meu parceiro subiu na casa, viu uma moça lá bem bonitinha, escondida dentro da caixa d’água, numa bolsa de mulher, que estava com ela tinha só duas pistolas e dois revólveres, e munição até a tampa, foi preso todo mundo, quando chegou lá que a gente deu a volta para ver qual era a casa, era a mesma casa do dia anterior, e as mesmas bichinhas bonitinhas. “Bonitinha e perigosa”, essa moça comandava o tráfico de determinada parte do bairro 2 e já foi assassinada pelos mesmos familiares do “Ciclano”, o nome dela era Fulana. (Soldado Dário, entrevista realizada em 2012).

Dinâmicas de ocorrência como a descrita atravessam a dimensão intersubjetiva do fazer policial. Foram, justamente, os traços de empatia e desconfiança da equipe de policiais que permitiram o encadeamento de possibilidades, até então, imprevistas, decorrentes do chamado recebido. Nesse aspecto, é necessário conceber que essas interações sociais entre polícia e população se constituem enquanto relações de poder que podem descortinar, ou não, práticas criminosas e ilegalidades presentes no território.

Pouco a pouco, um chamado despretensioso - com grandes chances de ser considerado trote ou falsa interpretação do denunciador do acontecimento pelos policiais -, durante o transcorrer de dois dias de serviço, constituiu-se como um caso de polícia marcante no histórico do local. A ocorrência policial relatada figura entre o rol das maiores operações policiais realizadas na cidade até aquela época. A presença da polícia no território por meio da socialidade móvel do veículo provocou o encontro com a viúva em luto recente, que delatou aos policiais o assassinato do seu marido por uma família rival. Mais tarde, os policiais descobriram que o homicídio estava atrelado à disputa territorial pelo mercado ilícito do tráfico de drogas no bairro 2.

Ao tornarem-se “antigos”, os policiais passam a conhecer as redes de conflitos dos bairros da Área de Operações, costurando alianças e desconfianças que influenciam suas práticas. Por intermédio da viúva, os policiais da “boa vizinhança” iniciaram a elucidação do crime, se envolvendo junto com o serviço reservado da polícia, fomentando a operação que culminou na prisão dos criminosos.

Apesar de, juridicamente, o papel investigativo ser tarefa restrita à Polícia Civil, as tramas da vida social produzem novas formas de contornar os limites da lei. A investigação foi a ação central, a montagem do quebra-cabeça, pois foram movidos pela curiosidade e pelo interesse em relação ao problema da moradora. A ruptura entre investigar e patrulhar é prejudicial ao serviço de polícia: caso ela fosse levada às últimas instâncias, o crime flagrado não seria esquadrinhado em sua dizibilidade e visibilidade. A polícia civil participou do processo apenas recebendo o flagrante produzido pela PM, contendo as supostas provas do crime e formalizando uma acusação à justiça.

A conversão do acontecimento do bairro, em ocorrência policial, produz a cooperação entre as diferentes especialidades da PM, seja por sua especialização5 5 A seção P2, também conhecida como “serviço reservado”, é especializada como sendo o “setor de inteligência”. Os policiais não usam farda, nem seguem a disciplina militar, e envolvem-se na investigação e prisão de criminosos. O trabalho de Cavalcante (2014) faz uma discussão sobre as atividades de inteligência na PM a partir deste segmento. ou pela ampliação do número de agentes necessários à operação6 6 Algumas ocorrências necessitam da participação da GCM (Guarda Civil Metropolitana) e do Demutram, pois extrapolam os recursos de ação disponíveis aos policiais. Caso seja necessário reter o veículo de algum morador, em razão de suas infrações de trânsito, os agentes do Demutram são acionados por meio de modulação por rádio transmissor. Do mesmo modo, caso não desejem constranger mulheres suspeitas para abordagem e revista corporal, os PMs costumam recorrer às agentes femininas da GCM, caso haja falta de PMs mulheres de serviço na cidade. .

No universo de relatos e observações produzidas no trabalho de campo sobre as ocorrências policiais, existem situações que mesmo configurando a materialidade de um crime específico, como o de lesão corporal, por exemplo, podem ser resolvidas no local, dispensando a participação da polícia civil em sua elucidação e resolução. Esses acontecimentos são aqueles que estatísticas criminais, produzidas por intermédio dos dados oficiais, não capturam, pois são mediados pelas interações entre polícia e população desenvolvidas in loco. Para se ter uma ideia mais precisa, tomemos o relato do soldado Ben:

Então, ontem a gente se deparou com uma situação que a gente estava passando em um cruzamento de um bar e começou a vir alguns barulhos, deu para perceber que existia uma briga no local. Se tratava de um elemento que estava jogando garrafas contra o dono do bar, entendeu?

E, de pronto, a gente percebendo isso aí, a gente adentrou ao bar e realizou a abordagem desse indivíduo, entendeu? Ele não reagiu, obedeceu a composição, foi feita a busca pessoal e a partir daí a gente foi identificar o que estava acontecendo... qual era a problemática. Era óbvio que era a questão da bebida, era o consumo da bebida alcoólica ali e os ânimos alterados, e por conta até de uma conta que ele não quis pagar, não tinha pagado, então gerou uma discussão. Na verdade, foi uma lesão corporal, para você ver, já teve uma tipificação, uma lesão corporal. E ao jogar uma garrafa, ele lesionou o amigo no pescoço e até a gente conduziu para o Hospital Regional. Então, bem, foi resolvida. O elemento pagou a conta, na conversa e tudo, pagou a conta, disse até que ali era vinte anos de amizade, né? Então, para você ver, são níveis e níveis de ocorrência, né? (...) Imagine se fosse inimigo, não é? (Soldado Ben, entrevista realizada em 2012).

Quando consideramos o cotidiano da linha de frente da execução do patrulhamento, são separações tênues e flexíveis que influem diretamente quanto às maneiras de fazer da polícia. Ao consideramos a percepção dos policiais sobre o nível de complexidade da ocorrência, as duas questões-chave são: a avaliação de como aquela situação pode engrandecer ou retrair de complexidade pela ação da polícia; e como a ação ineficaz, abusiva e, por vezes, a omissão pode se tornar uma ameaça para os próprios policiais.

A tomada de decisão pela continuidade ou descontinuidade da ocorrência policial, com a formalização do crime de lesão corporal à polícia civil, como descrito no caso da entrevista anterior, incorpora justamente esses elementos. Há um conjunto de sutilezas simbólicas captadas no curso da interação social que são levadas em conta em maior ou menor grau. A “amizade de vinte anos” e o pagamento da dívida após o envolvimento da polícia contribuíram para o arrefecimento das tensões na situação, dispensando o interesse pela formalização da acusação criminal por parte da vítima. Naquele contexto, as partes sequer haviam realizado um chamado formal à polícia, pois sucedeu de uma ocorrência de campo. Trata-se se uma parte do tecido conflituoso do território invisível pelas estatísticas oficiais que foi revelado pela presença e atuação da polícia.

A maioria dos acontecimentos tornados casos de polícia desencadeia relações de poder mediadas por negociação de sentido entre polícia, vítima e perseguidor. Nesses casos, há sempre a possibilidade do que poderíamos descrever como um “consenso situacional” pelo comum interesse na resolução da ocorrência. Os policiais costumam relatar que, no curso do trabalho de policiamento, a maioria das ocorrências são resolvidas em campo, pela própria conveniência dos policiais e a viabilidade da continuidade das ações de patrulhamento.

Considerações finais

Este artigo buscou elucidar os aspectos cotidianos do trabalho policial de patrulhamento, com base no fenômeno das ocorrências policiais. Essa face importante do trabalho policial, em que equipes são designadas para atender os chamados da população em um dado território, permitiu adentrar a performance das atividades de policiamento consideradas sob o ponto de vista dos operadores policiais.

No debate acerca do papel da polícia na sociedade brasileira, centrada no tema da legitimidade policial, que reflete a crise de confiança e os problemas de diferentes ordens enfrentados especialmente pela polícia militar letalidade das ações policiais; vitimização policial; violência policial; racismo etc. -, este trabalho pretende contribuir esclarecendo as dinâmicas territoriais em que são construídas as relações entre polícia e população, assim como isso rebate nos modos de ação da polícia. O tecido conflituoso em que essas relações se operam joga luz a dimensões fundamentais para a compreensão do fenômeno da segurança pública e os desafios que estão postos na crise de identidade e legitimidade das polícias militares. Uma contribuição importante trazida na discussão são as manobras morais desempenhadas na gestão das conflitualidades e da violência nas comunidades por meio das ações policiais.

Pensamos, nesse sentido, os desdobramentos da permanência da polícia em territórios habitados por camadas mais pobres da população, esquecidas pelas políticas públicas e sociais. A interface da polícia de boa vizinhança, programa de policiamento propagado como comunitário e que aos poucos absorveu a função de atendimento às ocorrências policiais, foi muito rica. A partir dessa configuração, o trabalho de campo desenvolvido a bordo da viatura permitiu compreender como os acontecimentos no interior dos bairros patrulhados tornam-se caso de polícia. Na produção da ocorrência policial, encontram-se duas grandes chaves: como a polícia é acionada pelos moradores do território ou como os agentes, por iniciativa própria, com base em operações simbólicas de construção da suspeição, inauguram um caso mediante uma ocorrência de campo. Por trás dessas duas maneiras, há uma infinidade de manobras morais e formas de acusação, atreladas ao fazer da polícia, que são decisivas para a construção das relações entre polícia e população.

A produção social da ocorrência policial parte, comumente, pela mobilização dos “chamados” de moradores. Essa relação é permeada por manobras possíveis diante da situação motivadora formalizada, como acusação à polícia - ou pela polícia, no caso das ocorrências de campo. Nesse processo, os policiais participam na construção da situação e são definidos por ela, levando em consideração os recursos materiais e simbólicos disponíveis e o seu repertório de práticas. Há, desse modo, manobras desempenhadas com base nos mapas de recursividade agentiva policial. Trata-se de cenas que revelam muitas dimensões em jogo para solucionar, ou não, ocorrências - satisfazendo, ou não, as expectativas dos partícipes do chamado tornado ocorrência policial. Isso colocava a polícia como um elemento central do tecido conflituoso do território, seja na mediação e manutenção dos conflitos pré-existentes ou na inauguração de novas conflitualidades. Em suma, a instituição policial presente na comunidade por meio da estratégia de policiamento do Ronda do Quarteirão assumiu um caráter importante na economia das conflitualidades da ZPN enquanto um caso possível das relações de polícia e população.

Nesse sentido, o tema da construção da legitimidade policial vista da perspectiva da sua atuação na gestão das ocorrências policiais ganha sujeitos, situações e práticas, apontando elementos descritivos e analíticos que ensejam novos estudos sobres as práticas policiais na sociedade brasileira. Trata-se de materiais que ajudam a elucidar o campo espinhoso das relações de confiança e desconfiança entre polícia e população.

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  • 1
    Para fins de preservação da identidade dos interlocutores da pesquisa, foram ocultados os nomes dos bairros e atribuídos nomes fictícios a todos os participantes que são mencionados no artigo.
  • 2
    A expressão “antigo” é utilizada frequentemente por policiais militares para se referir ao acúmulo de experiência profissional e a progressão temporal profissional na instituição.
  • 3
    Goffman (2011GOFFMAN, Erving. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Petrópolis: Vozes, 2011.) pensa situações comuns aos processos descritos, com base na ideia de “máquinas decisórias”. Mediante tais rituais de interação, estão envolvidas as possibilidades de arriscar chances consequenciais, percebidas na situação em que faces se engajam. Ocorre como numa aposta em que estão postas as possibilidades de ganhar e perder, dar certo e dar errado.
  • 4
    O sistema de premiações, instaurado nas forças policiais do estado do Ceará durante esse período, não envolve as dinâmicas abordadas por Skol Nick e Bayley (2006) quanto ao sistema de recompensas adaptado ao “policiamento comunitário”. A definição da eficiência das ações policiais está, sobretudo, codificada no “combate ao crime”. Duarte (2013DUARTE, Anderson. Policiamento Comunitário e Educação: Discursos de produção de uma “nova polícia”. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2013.) tematiza, em seu estudo, “o policiamento comunitário do Ceará” como a ferramenta de governabilidade, imputando no seio da cultura policial local a dimensão empreendedora organizacional. Disto, desdobra-se a produção de um sistema de recompensas financeiras para premiar os policiais militares. Estas recompensas, entretanto, limitam-se ao “combate ao crime”. Os policiais são premiados com folgas por efetuarem prisões, recebem recompensas financeiras por apreender armas de fogo, mas não há premiações mensuradas pelo “aumento da confiança na polícia”, por exemplo.
  • 5
    A seção P2, também conhecida como “serviço reservado”, é especializada como sendo o “setor de inteligência”. Os policiais não usam farda, nem seguem a disciplina militar, e envolvem-se na investigação e prisão de criminosos. O trabalho de Cavalcante (2014CAVALCANTE, Ricardo. M. “Polícia civil e serviço reservado da PM: campo de tensões”. Confluências. Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito, v. 16, n. 3, pp. 85-105, 2014.) faz uma discussão sobre as atividades de inteligência na PM a partir deste segmento.
  • 6
    Algumas ocorrências necessitam da participação da GCM (Guarda Civil Metropolitana) e do Demutram, pois extrapolam os recursos de ação disponíveis aos policiais. Caso seja necessário reter o veículo de algum morador, em razão de suas infrações de trânsito, os agentes do Demutram são acionados por meio de modulação por rádio transmissor. Do mesmo modo, caso não desejem constranger mulheres suspeitas para abordagem e revista corporal, os PMs costumam recorrer às agentes femininas da GCM, caso haja falta de PMs mulheres de serviço na cidade.

Editado por

Editor responsável:

Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2021
  • Aceito
    14 Fev 2023
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