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Le Corbusier e os situacionistas: a função contra a vida apaixonante

Le Corbusier and the situationists: the function against a passionate life

Le Corbusier y los situacionistas: la función contra la vida apasionante

Resumo

É impossível avançar no entendimento crítico da arquitetura no século XX sem passar por Le Corbusier. Os situacionistas sabiam perfeitamente disso e, movidos por ávida vontade de transformar radicalmente a vida e as cidades, procuraram compreender, criticar e superar a figura e a obra de Le Corbusier. Este texto recolhe cronologicamente a totalidade das vezes em que essa figura central da arquitetura e do urbanismo aparece nas revistas da Internacional Situacionista, bem como na revista Potlatch, da Internacional Letrista, antecessora daquela. O estudo das revistas letristas e situacionistas forneceu os elementos para uma reflexão sobre a relação forma-conteúdo no urbanismo e sua crítica radical pelos situacionistas.

Palavras-chave:
Internacional Situacionista; Le Corbusier; Arquitetura moderna.

Abstract

It is impossible to advance on the critical understanding of architecture in the 20th century without going through Le Corbusier. Situationists were perfectly aware of this and moved by an avid desire to radically transform life and cities, sought to understand, criticize and overcome Le Corbusier's character and work. This text collects, chronologically, all the occasions in which this central personality of architecture and urbanism features in the Situationist International magazines, as well as in the Potlatch magazine, of the International Lyricist, predecessor of the Situationist.

Keywords:
Situationist International; Le Corbusier; Modern architecture.

Resumen

Es imposible avanzar en la comprensión crítica de la arquitectura en el siglo XX sin hablar de Le Corbusier. Los situacionistas lo sabían perfectamente e, impulsados por un ávido deseo de transformar radicalmente la vida y las ciudades, trataron de comprender, criticar y superar la figura y la obra de Le Corbusier. Este texto recoge, cronológicamente, la totalidad de veces en que esta figura central de la arquitectura y del urbanismo aparece en las revistas de La Internacional Situacionista, así como en la revista Potlatch, de La Internacional Letrista, antecesora de Situacionista.

Palabras clave:
Internacional Situacionista; Le Corbusier; Arquitectura moderna.

Introdução

Este texto, escrito de modo solitário, é sobretudo fruto do acúmulo dos estudos realizados coletivamente pelo Grupo de Estudos dos Situacionistas que acontece desde 2002 no Laboratório de Geografia Urbana da Universidade de São Paulo (Labur-USP).1 1 Cumpre mencionar a importância da profa Amélia Luisa Damiani na organização, no entusiasmo e na meticulosa mediação destes estudos e debates, além dos muitos estudantes e pesquisadores que participaram e participam do grupo, cuja lista é imensa. A construção deste texto surge ainda da necessidade posta pelo objeto de estudo de minha tese de doutoramento, que exigiu compreender produção da cidade e de sua imagem e da cidade como imagem a partir da realização da Copa do Mundo da Fifa no Brasil em 2014 (Gonçalves, 2016GONÇALVES, G. R. A produção espetacular do espetáculo: as cidades como cenário na Copa de 2014. Tese (Doutorado em Geografia Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.).

Os estudos críticos do processo de urbanização da sociedade atingem, inexoravelmente, os ideais constitutivos da arquitetura moderna que se desenvolveu, ganhando força e tomando o mundo, ao longo do século XX. Ao se debruçar sobre a cidade, seu processo de implosão-explosão, suas formas, seus usos e seus ritmos, a geografia urbana dialoga profundamente, ainda que não queira ou não se dê conta, com a arquitetura e o urbanismo. Nesse diálogo inevitável para compreender o processo de produção do espaço, poucos personagens no campo da arquitetura e do urbanismo são tão relevantes quanto Le Corbusier. O modo de entender a cidade e suas formas tomam novos rumos, podem ser divididas espaço-temporalmente entre antes e depois da importante atuação desse arquiteto. Os situacionistas sabiam disso; o projeto de transformação radical da vida que almejavam p passava irremediavelmente pela profunda transformação da cidade, por isso Le Corbusier é uma das figuras mais importantes e recorrentes nos textos das revistas da Internacional Situacionista (ISDEBORD, G. Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência Situacionista Internacional. In: CONFERÊNCIA DE FUNDAÇÃO DA INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1957, Cosio di Arroscia. Anais... Cosio di Arroscia, 1957.).

Neste artigo, procuro resgatar de modo minucioso o aparecimento de Le Corbusier nas revistas da Internacional SituacionistaIS. INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Ese imbécil llamado Sartre: antología de insultos publicados en Internationale Situationniste. Madri: La Felguera, 2008., bem como nas publicações que a antecedem em Potlatch, a revista da Internacional Letrista (IL), depois tornada Situacionista.

São analisadas aqui a totalidade das revistas publicadas pela Internacional Letrista. A Internacional Letrista lançou seu primeiro número da revista intitulada Potlatch em 22 de junho de 1954 e, ainda como Internacional Letrista, a última em 5 de novembro de 1957. Em 15 de julho de 1959, foi publicada uma última edição de Potlatch, mas agora seus autores se intitulam não mais letristas, e sim pertencentes ao nascente grupo Internacional SituacionistaIS. INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Sessão Inglesa. La Rioja, ES: Pepitas, 2007..2 2 Quando se fala nos situacionistas, não se excluem seus antecessores da Internacional Letrista. Atuante ao longo de quase toda a década de 1950, esse grupo foi dissolvido em 1958 para dar lugar à Internacional Situacionista. É também preciso distinguir a Internacional Letrista do movimento que ficou conhecido como letrismo, liderado por Isidore Isou, que trilhou um caminho, pode-se dizer, mais artístico e literário do que o grupo que estava formando a Internacional Situacionista. Isou figura na lista dos formadores da IL, mas foi expulso já no segundo número da revista (tachado como indivíduo moralmente retrógrado, de ambições limitadas). Portanto, como não poderia deixar de ser, a IL é entendida aqui como grupo que deu origem à IS, sendo, por isso, uma continuidade do movimento. Evidentemente, tal continuidade não foi sem rupturas ou exclusões, como era característico de todo o período em que essas duas Internacionais existiram e atuaram. Ressalta-se que, ao tratar da IL sem distingui-la da IS, não se pretende ignorar os processos e debates internos desses grupos, nem tão pouco desprezar as rupturas e transições da passagem de um a outro. A formação da IS, em 1958, se deu com a adesão da IL ao Movimento Internacional Bauhaus Imaginista (Mibi) (formado por Gallizio, e Jorn se contrapunha à Bauhaus funcionalista), que pode ser considerado oriundo do grupo Cobra (Copenhague, Bruxelas, Amsterdã, 1948-1951). Também merece ser citada a London Psichogeographical Association, que, dirigida e composta unicamente por Ralph Rumney, teve participação relevante na formação situacionista. Todas essas 30 revistas (das quais 29 foram elaboradas pelos letristas e a trigésima, já pelos situacionistas) foram reunidas e organizadas por Guy Debord (1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996.) num livro que levou o mesmo título das revistas: Potlatch.3 3 Por isso todas as menções e citações da revista Potlatch são creditadas a Guy Debord (1996).

O mesmo foi feito com as revistas da Internacional SituacionistaIS. INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Textos íntegros en castellano de la revista Internationale Situationniste (1958-1969).. Foram analisadas todas as 12 edições publicadas pelo grupo (sessão francesa da IS), da primeira, em junho de 1958, à última, em setembro de1969.

Não diferentemente de outras figuras recorrentes nos debates da Internacional SituacionistaIS. INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. La véritable scission. Paris: Arthème Fayard, 1997. (André Breton, para mencionar apenas um), Le Corbusier via de regra é abordado de maneira ácida e por vezes é insultado e achincalhado pelos situacionistas. Como se trata de algo especialmente recorrente nas menções a Le Corbusier, convém salientar que a forma como o insulto foi usado pelos letristas/situacionistas dá mostras da radicalidade e da objetividade com que o grupo movia suas táticas e estratégias no plano das ideias rompendo a barreira da teoria e tornando-a prática. Em seus escritos, o insulto é reinventado (desviado); não é mais o recurso que se adota quando não há mais lugar para a razão ou apenas para difamar pessoalmente. O insulto tirava a discussão do papel, recondicionava as discussões que não podiam mais ficar apenas no plano da razão e avançavam no campo da emoção. O insulto como tática situacionista foi um modo de romper as barreiras entre teoria e prática, bem como entre razão e emoção.

Não se pode entender os insultos e as ofensas pessoais que realizou a IS como um simples ataque visceral e irracional ao adversário quando não se tem nada mais a dizer, era uma parte importante de seu estilo e da coerência com seu próprio projeto revolucionário. Para a IS o insulto e a ofensa não são uma manifestação de subjetividade mas algo que lança sua concepção de objetividade revolucionária (Felguera, 2008FELGUERA [coletivo]. Ese imbécil llamado Sartre: antología de insultos publicados en Internationale Situationniste. Madrid: La Felguera, 2008., p. 20).

Este artigo dialoga com outro, também de minha autoria (Gonçalves, 2017GONÇALVES, G. R. Do urbanismo unitário à crítica ao urbanismo: um percurso sobre a cidade e o urbano na Internacional Situacionista. Geousp, v. 21, n. 2, p. 518-530, 2017. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892. geousp.2017.117516.
https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892....
), onde o movimento do pensamento do grupo é exposto num caminho que vai da tentativa de produzir um urbanismo crítico até atingir uma crítica do urbanismo. Aqui, o processo de crítica do urbanismo, bem como da arquitetura, concentra-se em seu principal personagem, Le Corbusier.

Destaca-se neste artigo a faceta de um Le Corbusier cujas concepções vigoraram de maneira central na produção do espaço urbano mundial e que até hoje, em pleno século XXI, seguem sendo ditames do processo de urbanização. O debate entre letristas/situacionistas destacado aqui é notadamente voltado a concepções e formas de produção-reprodução da cidade e do urbano, e não aos projetos arquitetônicos isolados de Le Corbusier. Trata-se do movimento, posto em curso pela IS, de questionar e criticar radicalmente o modelo de cidade pensado e proposto pelo referido arquiteto, que pode ser visto sinteticamente na conhecida Carta de Atenas,4 4 Importante documento que expõe caminhos e compromissos sobre as cidades, redigido e assinado por urbanistas e arquitetos no começo da década de 1930. de 1931, e nos Congressos Internacionais de Arquitetura (Ciam).5 5 Foram ao todo dez Ciam, que podem ser divididos em três fases. Do I ao III, predominaram os alemães e suíços e foram marcados pelo começo da preocupação com questões sociais e técnicas (racionalização da construção). Do IV ao VII, foram basicamente dominados por Le Corbusier e suas ideias funcionalistas trazidas, sobretudo, pela Carta de Atenas. Os últimos três podem ser caracterizados pelo domínio de membros ingleses e holandeses que formaram o Team X (grupo crítico às ideias de Le Corbusier e, pode-se dizer, influenciado pelas ideias letristas de questionamento ao funcionalismo). Os trabalhos posteriores de membros Team X publicaram (revista Fórum) o projeto das maquetes da Nova Babilônia de Constant.

É nesse aspecto que ele traz contribuições mais proeminentes aos debates e formulações no campo da Geografia Urbana e em sua compreensão crítica da produção das cidades ao longo do século XX. Defende-se aqui que compreender a centralidade das ideias de Le Corbusier e colocá-las em jogo com a crítica radical tecida por letristas e situacionistas é um processo que traz potenciais elementos de primeira necessidade à Geografia Urbana e sua vocação para promover entendimentos críticos, postos em curso no plano da totalidade concreta, das cidades e do urbano.

Le Corbusier nas publicações situacionistas

Certamente Le Corbusier foi uma das figuras mais frequentes nos escritos da Internacional Letrista e da Situacionista. Pode-se até dizer que ele foi fundamental, na medida em que a negação ao funcionalismo e à Arquitetura Moderna foi um ponto irradiante da contestação desses grupos e, em última instância, aproximou a IL da Bauhaus Imaginista, sendo relevante inclusive na formação da IS. Aqui procuro traçar uma análise dessa relação a partir de um levantamento linear desde o início do periódico Potlatch até o fim da revista Internacional Situacionista.

Convém lembrar que o contexto do início da década de 1950 foi marcado por um pós-guerra que provocou a sonhada - tão-somente pela Arquitetura Moderna - tábula rasa no espaço urbano, que se viu esmigalhado e passou a ser produzido a toque de caixa, seguindo à risca os preceitos da Carta de Atenas. Nesse momento, o funcionalismo ascendeu e se tornou um verdadeiro padrão de produção no/do urbano. O que o colocava como um império socioespacial a ser combatido e repelido com todas as forças, fato que explica, em boa parte, a constância e a importância de Le Corbusier nos debates e nas críticas das Internacionais Letrista e Situacionista.

A presença do funcionalismo e a de Le Corbusier podem ser encontradas desde o primeiro número de Potlatch, em que a psicogeografia aparece contrapondo-se, embora indiretamente, ao projeto funcional de cidade e de vida. Já na revista n. 3 de Potlatch, de 6 de julho de 1954 (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 23), a cidade radiosa e o próprio Le Corbusier são citados nominalmente no texto “Construção de pardieiros”, onde se evidencia a predileção desse tipo de arquitetura pelo concreto armado, sendo ela a responsável por fixar a forma de morar e de construir cidades (e as formas de viver) no mundo moderno e na civilização ocidental; para a IL (A. F. Conord assina o texto), as casas construídas por este tipo de arquitetura não passam de caixas de lata, no melhor estilo da caserna. De pronto os letristas se postulam em contraposição direta afirmando que construirão casas apaixonantes (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 25-26). O projeto de construir uma vida apaixonante vai sendo delineado em oposição direta às ideias de Le Corbusier.

Na revista n. 5 de Potlatch (texto “Les gratte-ciel par la racine”, algo como “A rapinagem do céu pela raiz”), publicada em 20 de julho de 1954 (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 37), Le Corbusier é mais uma vez tema de um texto ainda mais crítico que o primeiro. Nas primeiras edições ele é certamente a figura mais constante e nominalmente citada, nem os surrealistas são tão presentes. Nesse texto, Corbusier é frontalmente atacado, inclusive com ofensas.6 6 Que são pessoais, mas que devem também ser colocadas dentro do projeto revolucionário, como tática de guerrilha. Como foi dito nas primeiras páginas deste texto, as ofensas situacionistas procuravam romper a passividade do escrito e ir além da razão, avançando brutalmente no campo da emoção. As ofensas a Le Corbusier visam atacar não só a pessoa, mas o projeto, a concepção de mundo. Nesse texto, ele é chamado de “Le Corbusier-Sing-Sing” (em alusão a sinos de igreja?). Também é adjetivado como “particularmente repugnante”, “protestante modulador” e “neocubista”. Satirizam-se suas células de unidade habitacional e seus “gestos verticais” (“estilo caserna militar”) (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 38), e sua “máquina de morar” funcionalista é caracterizada como neocubista para a “graça de Deus” e dos lecorbusianos (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 38). Para a IL, seu urbanismo moderno não pode ser tido como arte, estando “sempre inspirado pelas diretrizes da polícia” e sobretudo em Haussmann (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 38). Para ele e seus seguidores, a prisão é tida como a casa modelo: “hoje a prisão passa a ser a habitação modelo” (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 38),7 7 A crítica à ideia corbusiana de supressão da rua (da rua tradicional, que ele chamada de rua-corredor) passa dos letristas aos situacionistas e chega ao capítulo dedicado ao planejamento do espaço do clássico de Guy Debord, A sociedade do espetáculo, no aforisma 172: “O esforço de todos os poderes estabelecidos, desde as experiências da Revolução Francesa, para ampliar os meios de manter a ordem na rua, culmina com a supressão da rua” (Debord, 1997, p. 132). de modo que a sociedade deve viver em ilhas doentes, sem a chance da insurreição ou do encontro, submetida à resignação automática e que as manifestações de rua impedem a circulação e, portanto, seu Deus maior: a função (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 38). O projeto Internacional Letrista no plano do urbano e do cotidiano ganha força e complexidade (não à toa, o texto é assinado pela IL, fato raro na revista, dando indicativos do consenso em torno do tema) na medida em que se contrapõe ao funcionalismo e à Arquitetura Moderna de Le Corbusier (o novo Haussmann, nas palavras deles).

Em Potlatch n. 8 (texto “Os tagarelas”), de 10 de agosto de 1954 (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 57-61), Le Corbusier é mais uma vez nominalmente citado, bem como seus seguidores (inclusive Frank Lloyd e sua “arquitetura orgânica”). As experiências de modulação do concreto armado, bem como os conjuntos habitacionais (em franca expansão da França do pós-guerra) são citados para mostrar a larga preocupação com os materiais e suas formas e a inexpressiva (para não dizer inexistente) preocupação com o uso e as possibilidade de apropriação apaixonante dos prédios construídos (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 57-59). Em decorrência direta desse debate sobre a forma função, ainda na revista n. 8 há um desvio da frase de Baudelaire: “A forma de uma mesa muda mais rápido que o coração dos mortais” (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 61), fato que recoloca a comparação entre Le Corbusier e Haussmann e dá indicativos de que o problema deve ser recolocado dando preferência ao coração, e não mais à forma. O n. 14 de Potlatch, de 30 de novembro de 1954 (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 86), confirma essa direção num texto intitulado “A linha geral”, cujo primeiro parágrafo diz que “A Internacional Letrista se propõe a construir uma estrutura apaixonante da vida. Nossas experimentações de comportamento, de formas de decoração, de arquitetura, de urbanismo e de comunicação pretendem provocar situações atrativas” (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 86). O movimento de crítica e contestação à cidade vai da função à paixão, passando irremediavelmente pela situação (nota-se aqui, já em meados da IL, a importância que a situação adquire no projeto revolucionário do grupo, o que manifesta a importância do cotidiano sucumbido diante da mercadoria e do tédio e, ao mesmo tempo, com um enorme potencial transformador). Ainda nessa revista (n. 14), o texto “Resumo 1954” menciona e deriva e torna a constatar que a arquitetura deve ser apaixonante: “[...] o novo urbanismo é inseparável da subversão econômica e social felizmente inevitável. É possível afirmar que as reivindicações revolucionárias de uma época são em função da ideia que está época tem da felicidade” (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 91).

A métrica segue sendo essa, e já na revista seguinte, n. 15, de 22 de dezembro de 1954 (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 95), um texto de Asger Jorn, retirado de seu livro Por la forme e intitulado “Uma arquitetura da vida” (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 95), se faz latente. Jorn expõe seu desejo de desviar o funcionalismo: “[...] se trata de transformar o programa do funcionalismo”. Para ele, “Os funcionalistas ignoram a função psicológica da ambiência... o aspecto das construções e dos objetos que nos circundam e que nós utilizamos a uma função independente de seu uso prático” (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 95). Jorn critica a padronização racional do funcionalismo e de suas formas e concepções estáticas definitivas. Para ele, é preciso assumir uma concepção dinâmica da forma, guardando a dimensão verificável em toda forma humana de mudança contínua, e afirma que o conservadorismo das formas só é possível porque se estabelece uma compreensão ilógica quando se julga atingir uma forma definitiva e ideal do objeto (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 95-96). O texto de fragmentos do livro de Jorn termina afirmando que a arquitetura é a última realização da evolução mental e artística, a materialização de um estado econômico. Ela é o ponto determinante de realização de toda tentativa artística, pois criar uma arquitetura significa construir uma ambiência e fixar um modo de vida (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 96). Nota-se aqui a origem da centralidade da aposta no urbanismo unitário na formação da IS, pois a arquitetura seria capaz de ensejar a superação (e a síntese) das artes e, ao mesmo tempo, a construção de ambiências (que não só propiciaria vivências potentes, como facilitaria a construção de situações).

É curioso notar que Asger Jorn só figura no grupo da IL depois de aproximadamente quatro anos (ou 14 edições), quando passa a integrar a formação da IS, e que seu texto é um dos poucos publicados na revista por um não letrista. E cumpre mencionar que ele trabalhou com Le Corbusier e com Max Bill (Jacques, 2003JACQUES, P. B. (Org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003., p. 36).

É relevante lembrar que a preocupação da IL com a forma vai muito além da arquitetura e está no cerne existencial do grupo, visto que, segundo seu entendimento, seria impossível atacar e transformar os conteúdos desta sociedade sem fazer o mesmo com as formas.8 8 No texto “Porque do Letrismo”, em Potlatch n. 22 (Debord, 1996, p. 174-187), um dos mais longos publicados nesse periódico, há observações críticas à intelectualidade e a sua forma de pensar e escrever, bem como à esquerda e a sua forma de se manifestar. Em suma, a forma já contém e manifesta certo conteúdo.

Me parece que, como no caso da crítica ao urbanismo, quando as formulações críticas sobre algum tema atingem um ponto definitivo, esse tema não segue sendo abordado com frequência, textos e excertos param de ser publicados nas revistas, tanto na IL como na IS, dando mostras de que tais revistas sintetizavam o debate em curso, mais do que as colocações prontas e acabadas. Isso pode ser visto no caso da crítica ao urbanismo dentro da IS, que, quando atinge um grau definitivo (na revista n. 6 da IS), deixa de aparecer nas revistas seguintes.9 9 Depois do n. 6, só há mais um e pequeno texto sobre o urbanismo publicado pelos situacionistas, “O urbanismo como vontade e como representação”, publicado no n. 9 da IS. Também no caso da crítica a Le Corbusier e ao funcionalismo o texto de Jorn adquire caráter definitivo (por um tempo, depois vêm à tona a discussão e novas colocações, quando se forma a IS) e, embora tenha uma ou outra menção residual nos números seguintes, só volta a ser tema central em Potlatch n. 27,10 10 Publicada em 2 de novembro de 1956 (Debord, 1996, p. 243). quando ocorre o festival de artes de vanguarda em Marseille, e a cidade radiosa de Le Corbusier é frontalmente atacada.

Ainda na edição 27, são publicadas as considerações acerca do Congresso de Alba. Esse texto marca a fundação da IS: os participantes declaram todo seu repúdio ao funcionalismo e ao projeto de cidade de Le Corbusier, o que mostra sua importância na formação da IS, sendo o único indivíduo citado nominalmente (nem Breton teve alguma menção).11 11 Ainda na revista n. 27, são citados nominalmente todos os participantes do festival de Marseille (cidade radiosa). Entre eles, encontra-se Isou. Aliás, até o fato de a Plataforma de Alba ocorrer em simultâneo com o festival da cidade radiosa (forma como a IL/IS classificou o festival de Marseille, um dos Ciam) é relevante e dá mostras da oposição direta desse grupo ao urbanismo funcionalista de Le Corbusier.

Os situacionistas chegaram a uma convicção exatamente contrária à dos arquitetos modernos. Enquanto os modernos acreditavam, num determinado momento, que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a sociedade, os situacionistas estavam convictos de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo. Enquanto os modernos chegaram a achar, como Le Corbusier, que a arquitetura poderia evitar a revolução - Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a revolução12 12 LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1989. - os situacionistas, ao contrário, queriam provocar a revolução e pretendiam usar a arquitetura e o ambiente urbano em geral para induzir à participação, para contribuir nessa revolução da vida cotidiana contra a alienação e a passividade da sociedade (Jacques, 2003JACQUES, P. B. (Org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003., p. 19-20).

Na revista da Internacional SituacionistaIS. INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. Paris: Arthème Fayard , 1997., as menções a Le Corbusier são bem menos frequentes; e aparecem, principalmente, nos primeiros números. Isso se deve, sobretudo à drástica diminuição de sua influência nos debates dos Ciam. É preciso levar em conta, como bem lembrou Paola B. Jacques (2003JACQUES, P. B. (Org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.), esse paralelo entre o debate dos situacionistas sobre a cidade e a ocorrência dos Ciam e de suas disputas e tendências vigentes.

Também merece ser novamente citado o texto de Gilles Ivain “Formulário para um urbanismo novo”, que, embora fosse de 1953, foi publicado na revista n. 1 da IS, em junho de 1958 (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996.). É curioso notar que boa parte do texto foi suprimida, sendo que algumas dessas parte atacavam diretamente Le Corbusier. No momento em que o texto foi escrito, a figura desse arquiteto predominava e ditava as regras da Arquitetura Moderna; já quando o texto foi publicado na IS n. 1, ele já não figurava na linha de frente dos parâmetros e tendências e havia, inclusive, recebido críticas de dentro dos Ciam. Outra possibilidade para a exclusão dos trechos em que Ivain atacava Le Corbusier pode ter sido o fato de que, no início da Internacional SituacionistaIS. INTERNAZIONALE SITUAZIONISTA. Sessão Italiana. La Rioja, ES: Pepitas , 2007., havia a preocupação de mediar e unir diferente grupos e pessoas, o que pode ter restringido ataques mais ferozes a certos indivíduos. Deve-se levar em conta ainda que tanto Jorn como Constant13 13 Ver Jappe (2004, p. 111), que discute a proximidade e a influência de Le Corbusier em Constant. figuravam havia pouco tempo dentro do grupo e, algum tempo antes, tinham tido relações de proximidade com o funcionalismo e mesmo com Le Corbusier.

Entretanto, creio que o mais relevante dos fatores (ainda que não exclua os outros) advém da perda de centralidade das ideias de Le Corbusier no cenário da arquitetura mundial. Mais uma vez, recorro à importante contribuição de Paola B. Jacques (2003JACQUES, P. B. (Org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.), na apresentação de seu Apologia da deriva, onde a autora lembra que Le Corbusier foi sendo sucedido por um grupo intitulado Team X, que não só criticava a cidade radiosa de Le Corbusier como tinha ideias que chegavam a se aproximar das proposições letristas/situacionistas sobre a cidade. À medida que esse grupo ascende e toma a frente nos Ciam, o debate em torno do urbano dentro da IS também vai se alterando e, como se viu, culmina na eliminação da possibilidade de pensar propositivamente algum urbanismo. Então, tanto no plano interno (com os debates, críticas e por fim exclusão de Constant e de seu modelo de urbanismo unitário) como no externo (ascensão do Team X e predominância da “nova guarda” em detrimento da “velha guarda” funcionalista de Le Corbusier dentro dos Ciam), o desenvolvimento das ideias e possibilidades em torno de uma proposta urbanística dentro da IS foi sendo ceifada, e, se a contraposição a Le Corbusier poderia até ser feita com proposta de cunho prático (com o UU), o desenrolar da arquitetura e a ascensão desses novos grupos e ideias exigia uma crítica mais profunda, que negava toda e qualquer possibilidade de pensar e propor fosse qual fosse o urbanismo. Nesse sentido, é importante observar que os textos contra o urbanismo publicados na revista n. 6 da IS, em agosto de 1961 (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996.), não deixam a menor possibilidade de aceitação de propostas de especialistas no ramo, e o entendimento da Internacional Situacionista sobre o tema toma caráter definitivo: não há nenhuma chance de mudar ou propor algo no campo do urbano sem a necessária e profunda transformação do mundo e da vida. Não há como mudar (ou construir) a cidade sem mudar radicalmente a vida.

Le Corbusier some da revista da IS, pois se torna quase inócuo e inimigos novos e mais complexos ocupam o seu lugar. Ainda assim, de modo bastante residual, é possível encontrá-lo. Sobretudo na revista de n. 3, em dezembro de 1959 (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996.), onde se pode ver uma inusitada concordância de Debord com Le Corbusier no texto “Posições situacionistas sobre a circulação”, em cujo aforisma 3 Debord afirma: “O tempo de transporte, como bem viu Le Corbusier, é um trabalho suplementar que reduz ainda mais a vida chamada livre” (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 94). Na medida em que Le Corbusier sai do posto de detentor maior da Arquitetura Moderna, se coloca a possibilidade de desviá-lo ou mesmo de aproveitar, ainda que residualmente, alguma de suas considerações.

No texto “Outra cidade para outra vida” (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 96), de Constant, o funcionalismo é aceito como premissa, como base, para por cima dele serem estabelecidas as funções lúdicas. O autor chega a falar em novo funcionalismo: “Entendemos por ele um novo funcionalismo ainda mais em evidência a vida utilitária idealizada? Não se pode esquecer que, uma vez estabelecidas as funções, lhes sucede o jogo” (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 97). Aqui fica mais uma vez evidente a forte presença do funcionalismo no pensamento e nas propostas de Constant que deixa claro que partirá do estabelecimento das funções para tão somente depois estabelecer o jogo. Não é à toa que o criador da Nova Babilônia passa a sofrer mais críticas de dentro da IS do que o próprio Le Corbusier.

Ainda na revista n. 3, são encontradas críticas potentes ao funcionalismo, que é exposto ao ridículo por construir igrejas, evidenciando um “edifício sem função dentro do urbanismo funcional [o que] pode colocar-se como um livre exercício de formas plásticas” (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 76). Aqui é tratado de forma clarividente o salto mortal do funcionalismo sem função ou de funções meramente plásticas, estéticas.14 14 Assim como de algum modo toda a discussão que tento traçar sobre Le Corbusier, esse ponto está diretamente relacionado e dialoga com o que escrevi sobre a questão da forma na Arquitetura Moderna como um momento relevante na produção da cidade como cenário. Naquele momento da tese, tento mostrar que o funcionalismo foi gradativamente rumando às formas; aqui, os situacionistas dão indicativos no mesmo sentido. Também no texto “Informe inaugural” (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 86), a crítica ao funcionalismo passa pela forma e pelo formal (dando mais uma vez mostras da ascensão da forma como a única função). Também é possível identificar, no excerto abaixo, a abordagem de uma daquelas que se configurou como questão principal de Le Corbusier (fato que talvez ajude a compreender por que seu aparecimento se torna raro nas publicações da IS), bem como ver que há um movimento para superar o debate em torno da máxima forma função:

O que faz a arquitetura de hoje tão aborrecedora é sua preocupação principalmente formal. O problema da arquitetura já não é a oposição função-expressão; esta questão está superada. Ao utilizar as formas existentes, ao criar formas novas, a principal questão do arquiteto deve ser o efeito que terá tudo aquilo sobre o comportamento e a existência dos habitantes. A arquitetura formará parte de uma atividade mais ampla e completa e, em última instância desaparecerá, como as demais artes atuais, em proveito de uma atividade unitária (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 86).

A proposição de Le Corbusier, da forma como função, teve sua importância ao se contrapor aos neoclassicistas e a todos os arquitetos aristocratas que projetavam fachadas imponentes; ele deve ser criticado por não ter levado a forma ao nível do conteúdo, algo mais profundo que a função. A função é a diminuição do conteúdo; ela imobiliza, normatiza e limita sua potência. O excerto acima parece levar isso em conta (bem como parece que esse entendimento passa a ser corrente na IS, o que pode ajudar a explicar o fato de Debord concordar com Le Corbusier no texto “Posições situacionistas sobre a circulação”). Também é preciso resgatar as contribuições de Asger Jorn ao tema (lembrando que ele fundou a Bauhaus Imaginista justamente para superar o racionalismo funcionalista e sua forma função). Aqui fica evidente por que Jorn foi o único não letrista que teve seu texto publicado em Potlatch.

São trechos de seu então recém-lançado livro Pour la forme; por exemplo:

Utilidade e função continuarão sempre a ser o ponto de partida de toda a crítica formal; trata-se apenas de transformar o programa do funcionalismo. [...] Os funcionalistas ignoram a função psicológica dos ambientes [...] os aspectos das construções e dos objetos que nos rodeiam e que utilizamos têm função independente do seu uso prático (Jorn, 2001JORN, A. Pour la forme. Paris: Allia, 2001., p. 49).

De maneira ampla, o projeto de Jorn e da Bauhaus Imaginista é propor uma reunião das artes avançadas. Em sua dissertação, Magalhães (2011MAGALHÃES, F. L. B. M. Ideias provisórias para tempos provisórios: a trajetória da Internacional Situacionista e apontamentos para seu lugar na geografia. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011., p. 33) tece considerações sobre a arquitetura como instância de produção capaz de reunir e de algum modo sintetizar o conjunto de outras produções artísticas. Todavia, ao tentar absorver a pintura e a escultura, a arquitetura moderna acabou por deteriorar e destruir as duas. Como estéticas, a pintura e a escultura foram separadas da vida cotidiana e agora só têm lugar nos museus. A funcionalidade estrita do projeto moderno está ligada à ideia de necessidade, mas esquece que existe uma necessidade para além do ponto de vista prático da máquina de morar, que se relaciona com a:

[...] função psicológica dos ambientes, deve-se imaginar antes de poder criar. A arquitetura é sempre a última realização de uma evolução mental e artística... criar uma arquitetura significa construir uma ambiência e fixar um modo de vida. As condições de vida foram mudadas profundamente depois da última guerra (Jorn, 2001JORN, A. Pour la forme. Paris: Allia, 2001., p. 50).

Mais uma vez, Jorn se mostra imprescindível nos debates e direcionamentos situacionistas. Se Le Corbusier e o funcionalismo passam a ser entendidos por sua contribuição e menos por uma negação radical total do projeto e com mais ponderações sobre possíveis contribuições, isso certamente se deve a Jorn (bem como, de algum modo, a Constant, mas este, ao que tudo indica, procurou ocupar o lugar de Le Corbusier). Entretanto, se Jorn fazia ponderações procurando relevar as ideias e ações positivas do funcionalismo e do racionalismo, nem por isso deixou de criticá-los e tampouco de tentar superá-los:

A faculdade de agir de certos objetos sobre nossos sentidos vem do fato de representarem algo novo e particular para nós. A atividade funcionalista do entre guerras aparecia como fenômeno novo e assim estético e surpreendente, mas seu programa de estandardização, a rigor, era anti-estético e os funcionalistas chegaram a criar um mundo cada vez mais regrado, ordenado, racionalizado e estabilizado, tedioso. Como evitar o automatismo completo, - uma transformação de nossa inteligência em reflexo instintivo e estandardizado? Há que resguardar a liberdade e o desejo experimental, criar as bases de uma elaboração sistemática dessa possibilidade. O artista experimental deve se apoderar da indústria e a submeter aos seus fins não utilitários. No movimento, chega-se em 1956 a definir dialeticamente o urbanismo unitário e proclamar a ação psicogeográfica (Jorn, 2001JORN, A. Pour la forme. Paris: Allia, 2001., p. 26-29).

Do começo dos debates e das publicações, ainda em meados da década de 1950, com a revista Potlach, da Internacional Letrista, aos últimos momentos e publicações da Internacional Situacionista, já na década de 1970, está presente o tema da arquitetura e do urbanismo sempre atrelados à perspectiva de transformação radical total da experiência vivida e das cidades.

De modo pretensioso e mesmo arrogante, os arquitetos e urbanistas modernos, sempre influenciados por Le Corbusier, acreditavam que a arquitetura e o urbanismo transformariam a vida; na contramão, frontalmente opostos a tal raciocínio, os situacionistas se dedicaram ao movimento de transformação da sociedade.

Se Le Corbusier apontava categoricamente que a arquitetura evitaria a revolução, a Internacional Situacionista se dedicou efusivamente ao longo de toda a sua existência a arquitetar a revolução.

Referências

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  • VASCONCELLOS, R. P. Guia Rússia para turismo de colapso ou O espetáculo das ruínas construtivistas na Moscou especulada. São Paulo. Elefante, 2018b.
  • 1
    Cumpre mencionar a importância da profa Amélia Luisa DamianiDAMIANI, A. L. Espaço e geografia: observações de método, elementos da obra de Henri Lefebvre e a geografia, ensaio sobre geografia urbana a partir da metrópole de São Paulo. Tese (Livre-docência em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. na organização, no entusiasmo e na meticulosa mediação destes estudos e debates, além dos muitos estudantes e pesquisadores que participaram e participam do grupo, cuja lista é imensa.
  • 2
    Quando se fala nos situacionistas, não se excluem seus antecessores da Internacional Letrista. Atuante ao longo de quase toda a década de 1950, esse grupo foi dissolvido em 1958 para dar lugar à Internacional Situacionista. É também preciso distinguir a Internacional Letrista do movimento que ficou conhecido como letrismo, liderado por Isidore Isou, que trilhou um caminho, pode-se dizer, mais artístico e literário do que o grupo que estava formando a Internacional Situacionista. Isou figura na lista dos formadores da IL, mas foi expulso já no segundo número da revista (tachado como indivíduo moralmente retrógrado, de ambições limitadas). Portanto, como não poderia deixar de ser, a IL é entendida aqui como grupo que deu origem à IS, sendo, por isso, uma continuidade do movimento. Evidentemente, tal continuidade não foi sem rupturas ou exclusões, como era característico de todo o período em que essas duas Internacionais existiram e atuaram. Ressalta-se que, ao tratar da IL sem distingui-la da IS, não se pretende ignorar os processos e debates internos desses grupos, nem tão pouco desprezar as rupturas e transições da passagem de um a outro. A formação da IS, em 1958, se deu com a adesão da IL ao Movimento Internacional Bauhaus Imaginista (Mibi) (formado por Gallizio, e Jorn se contrapunha à Bauhaus funcionalista), que pode ser considerado oriundo do grupo Cobra (Copenhague, Bruxelas, Amsterdã, 1948-1951). Também merece ser citada a London Psichogeographical Association, que, dirigida e composta unicamente por Ralph Rumney, teve participação relevante na formação situacionista.
  • 3
    Por isso todas as menções e citações da revista Potlatch são creditadas a Guy Debord (1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996.).
  • 4
    Importante documento que expõe caminhos e compromissos sobre as cidades, redigido e assinado por urbanistas e arquitetos no começo da década de 1930.
  • 5
    Foram ao todo dez Ciam, que podem ser divididos em três fases. Do I ao III, predominaram os alemães e suíços e foram marcados pelo começo da preocupação com questões sociais e técnicas (racionalização da construção). Do IV ao VII, foram basicamente dominados por Le Corbusier e suas ideias funcionalistas trazidas, sobretudo, pela Carta de Atenas. Os últimos três podem ser caracterizados pelo domínio de membros ingleses e holandeses que formaram o Team X (grupo crítico às ideias de Le Corbusier e, pode-se dizer, influenciado pelas ideias letristas de questionamento ao funcionalismo). Os trabalhos posteriores de membros Team X publicaram (revista Fórum) o projeto das maquetes da Nova Babilônia de Constant.
  • 6
    Que são pessoais, mas que devem também ser colocadas dentro do projeto revolucionário, como tática de guerrilha. Como foi dito nas primeiras páginas deste texto, as ofensas situacionistas procuravam romper a passividade do escrito e ir além da razão, avançando brutalmente no campo da emoção. As ofensas a Le Corbusier visam atacar não só a pessoa, mas o projeto, a concepção de mundo. Nesse texto, ele é chamado de “Le Corbusier-Sing-Sing” (em alusão a sinos de igreja?). Também é adjetivado como “particularmente repugnante”, “protestante modulador” e “neocubista”.
  • 7
    A crítica à ideia corbusiana de supressão da rua (da rua tradicional, que ele chamada de rua-corredor) passa dos letristas aos situacionistas e chega ao capítulo dedicado ao planejamento do espaço do clássico de Guy Debord, A sociedade do espetáculo, no aforisma 172: “O esforço de todos os poderes estabelecidos, desde as experiências da Revolução Francesa, para ampliar os meios de manter a ordem na rua, culmina com a supressão da rua” (Debord, 1997DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997., p. 132).
  • 8
    No texto “Porque do Letrismo”, em Potlatch n. 22 (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 174-187), um dos mais longos publicados nesse periódico, há observações críticas à intelectualidade e a sua forma de pensar e escrever, bem como à esquerda e a sua forma de se manifestar. Em suma, a forma já contém e manifesta certo conteúdo.
  • 9
    Depois do n. 6, só há mais um e pequeno texto sobre o urbanismo publicado pelos situacionistas, “O urbanismo como vontade e como representação”, publicado no n. 9 da IS.
  • 10
    Publicada em 2 de novembro de 1956 (Debord, 1996DEBORD, G. Potlach (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996., p. 243).
  • 11
    Ainda na revista n. 27, são citados nominalmente todos os participantes do festival de Marseille (cidade radiosa). Entre eles, encontra-se Isou.
  • 12
    LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1989.
  • 13
    Ver Jappe (2004JAPPE, A. L’avant-garde inacceptable: réflexions sur Guy Debord. Paris: Lignes, 2004., p. 111), que discute a proximidade e a influência de Le Corbusier em Constant.
  • 14
    Assim como de algum modo toda a discussão que tento traçar sobre Le Corbusier, esse ponto está diretamente relacionado e dialoga com o que escrevi sobre a questão da forma na Arquitetura Moderna como um momento relevante na produção da cidade como cenário. Naquele momento da tese, tento mostrar que o funcionalismo foi gradativamente rumando às formas; aqui, os situacionistas dão indicativos no mesmo sentido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2021
  • Aceito
    13 Jan 2022
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