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Em defesa dos territórios indígenas no Brasil: direitos, demarcações e retomadas

Resumo

Nas últimas décadas, o Brasil vive numa encruzilhada civilizatória: a corrida por recursos naturais no período do capitalismo avançado neoliberal tem acentuado um processo extrativo violento, de invasão e de espoliação dos territórios indígenas. Este texto analisa, a partir de dados dos cadastros do SNCR, do Incra e da Funai, a situação fundiária das demandas e possessões indígenas no Brasil em perspectiva comparativa com a média e a grande propriedade rural. O delineamento metodológico consistiu em categorizar e mapear a situação fundiária das terras indígenas do Brasil. Atualmente, o governo bio/necropolítico atua para expandir e ampliar os territórios corporativos do agronegócio globalizado atacando terras indígenas, anulando políticas públicas, dispositivos administrativos e legislativos de defesa dos povos e interditando a demarcação das terras. Num país tão desigual, o cerne das relações de poder que primam pela violência é a histórica concentração fundiária. É imprescindível fortalecer os dispositivos da Constituição Federal de 1988 e da Convenção n. 169 da OIT para a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, bem como a autodemarcação (retomada), para que se faça justiça social.

Palavras-chave:
Terras indígenas; Conflitos; Demarcação; Direitos; Brasil

Abstract

In recent decades Brazil has been living through a crossroads of civilization; the race for natural resources in the period of advanced neoliberal capitalism has accentuated a violent extractive process, invasion and spoliation of indigenous territories. The objective of this text is to analyze, based on data from the SNCR, INCRA and FUNAI registers, the land tenure situation of indigenous claims and possessions in Brazil from a comparative perspective to that of medium and large rural properties. The methodological outline consisted in categorizing and mapping the land situation of indigenous lands in Brazil. Currently the bio/necropolitical government acts to expand and enlarge the corporate territories of globalized agribusiness by carrying out an attack on indigenous lands, annulling public policies, administrative and legislative devices in defense of the peoples and interdicting the demarcation of the lands. In a country as unequal as Brazil, the power relations that lead to violence are based on the historical concentration of land ownership. The strengthening of the provisions of the 1988 Federal Constitution and of Convention 169 of the International Labor Organization is indispensable for the demarcation of lands traditionally occupied by indigenous peoples, as well as through self-demarcation (land retake), in order for social justice to be achieved.

Keywords:
Indigenous Lands; Conflicts; Demarcation; Rights; Brazil

Resumen

En las últimas décadas Brasil ha vivido una encrucijada civilizatoria, la carrera por los recursos naturales en el período del capitalismo neoliberal avanzado ha acentuado un proceso de extracción violenta, invasión y expoliación de los territorios indígenas. El objetivo de este texto es analizar, a partir de los datos de los registros del SNCR, del INCRA y de la FUNAI, la situación de la tenencia de la tierra de las reivindicaciones y posesiones indígenas en Brasil en perspectiva comparativa con las medianas y grandes propiedades rurales. El esquema metodológico consistió en categorizar y mapear la situación de las tierras indígenas en Brasil. Actualmente, el gobierno bio/necropolítico actúa para expandir y ampliar los territorios corporativos de la agroindustria globalizado, llevando a cabo un ataque a las tierras indígenas, anulando las políticas públicas, los dispositivos administrativos y legislativos para la defensa de los pueblos e interviniendo en la demarcación de las tierras. En un país tan desigual, las relaciones de poder que conducen a la violencia se basan en la concentración histórica de la propiedad de la tierra. El fortalecimiento de las disposiciones de la Constitución Federal de 1988 y del Convenio 169 de la Organización Internacional del Trabajo es esencial para la demarcación de las tierras tradicionalmente ocupadas por los indígenas, así como a través de la autodemarcación (recuperación), para lograr la justicia social.

Palabras clave:
Tierras indígenas; Conflictos; Demarcación; Derechos; Brasil

Introdução

No Brasil, segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGEIBGE. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo 2010: características gerais dos indígenas - resultados do universo. Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_gerais_indigenas/default_caracteristicas_gerais_indigenas.shtm . Acesso em: 3 ago. 2019.
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) de 2010, a população indígena é de 896.917, com 305 povos falando 274 idiomas. Desses, 572.083 reside em áreas rurais e 324.834 em cidades, correspondendo a 0,47% da população total do país. O estado do Amazonas, com 168.680 habitantes, concentra a maior população indígena.

O relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi, [2020?]CIMI. CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Violência contra os povos indígenas no Brasil: dados de 2020. Relatório. [S.l.]: Cimi-CNBB, [2020?].), mostrou o aumento de casos de violência contra indígenas de 2018 para 2019. Foram 276 casos de violência contra um indivíduo em 2019, mais que o dobro do total registrado em 2018 (110 casos). O relatório também registrou um crescimento das invasões as terras/territórios e danos ao patrimônio indígena, no ano de 2019, o primeiro sob a presidência de Jair Bolsonaro. Foram 256 casos de invasão, 135% a mais do que em 2018.

Além disso, houve 113 assassinatos, e o descaso com a saúde desses povos no combate à Covid-19. Nas 19 categorias de violências elencadas pelo relatório do Cimi ([2020?]CIMI. CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Violência contra os povos indígenas no Brasil: dados de 2020. Relatório. [S.l.]: Cimi-CNBB, [2020?].), que envolve não apenas violência contra indivíduos, mas também contra o patrimônio indígena ou em decorrência da omissão do poder público, em 16 dessas categorias houve crescimento, destacando-se a intensificação da expropriação de terras, fosse por invasão, grilagem ou loteamento, além da morte de crianças de até 5 anos por desassistência. Em comparação com o ano de 2018, o número de casos de violências quase dobrou em cinco categorias: (1) “conflitos territoriais”, que passou de 11 para 35 casos em 2019, (2) “ameaça de morte”, que saltou de 8 para 33, (3) “ameaças várias”, que foi de 14 para 34 ocorrências, (4) “lesões corporais dolosas”, de 5 para 13, e (5) “mortes por desassistência”, que, de um total de 11 no ano de 2018, foi para 31 casos em 2019. Os casos de violência contra pessoas diminuíram um pouco em relação a 2018, tendo sido registrados 113 assassinatos, 33 ameaças de morte, 34 ameaças variadas, 24 tentativas de assassinato, 20 homicídios culposos, 16 atos de racismo e discriminação étnico-cultural, 13 lesões corporais dolosas, 13 casos de abuso de poder e 10 violências sexuais. O relatório do Cimi ([2020?]CIMI. CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Violência contra os povos indígenas no Brasil: dados de 2020. Relatório. [S.l.]: Cimi-CNBB, [2020?].) considera que o alvo desses assassinatos são as lideranças indígenas e destaca que, em 2019, as ameaças de morte passaram de 8 para 33 e mais que dobraram em relação a outros tipos de ameaça.

A violência contra os povos indígenas está alicerçada num projeto de governo neoliberal, cujo objetivo é pôr à disposição suas terras e os bens comuns nelas contidos a empresários do agronegócio, de mineradoras e madeireiras, entre outros. No Brasil, esse ataque aos territórios indígenas está ligado ao avanço neoliberal da “acumulação por espoliação” (Harvey, 2004HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.).

Partimos da premissa de que uma das questões fundamentais no país atualmente é a defesa das terras indígenas e sua relação com a crise sanitária, ambiental, econômica, geopolítica, social, institucional, civilizacional e a violação dos direitos humanos. Isso se justifica pelas iniciativas estatais etnocêntricas e a luta e r-existência 6 1 Porto-Gonçalves (2013, p. 169) formulou o conceito de r-existência para mostrar que “mais que resistência, que significa retomar uma ação anterior e, assim, é sempre uma ação reflexa, o que temos é r-existência, isto é, uma forma de existir, uma determinada matriz de racionalidade que atua nas circunstâncias, inclusive re-atua a partir de um topoi, enfim, de um lugar próprio, tanto geográfico como epistêmico. Na verdade, atua entre duas lógicas”. por terra e território. O governo bio/necropolítico (Foucault, 2004FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard-Seuil, 2004.; Mbembe, 2011MBEMBE, A. Necropolítica. Tenerife, ES: Melusina, 2011.) atua para expandir e ampliar os “territórios corporativos do agronegócio globalizado” (Silveira, 2007SILVEIRA, M. L. Los territorios corporativos de la globalización. Geograficando, v. 3, n. 3, p. 13-26, 2007. Disponível em: https://memoria.fahce.unlp.edu.ar/art_revistas/pr.3665/pr.3665.pdf . Acesso em: 27 dez. 2021.
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), atacando toda forma livre de vida e anulando políticas públicas, dispositivos administrativos e legislativos de defesa dos povos indígenas. De um lado, o grande capital financeiro, extrativista e agroindustrial e do “consenso de commodities” (Svampa, 2013SVAMPA, M. “Consenso de los commodities” y lenguajes de valoración en América Latina. Nueva Sociedad, n. 244, p. 30-46, 2013. Disponível em: https://nuso.org/articulo/consenso-de-los-commodities-y-lenguajes-de-valoracion-en-america-latina/. Acesso em: 27 dez. 2021.
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, 2019SVAMPA, M. Neo-extractivism in Latin America: socio-environmental conflicts, the territorial turn, and new political narratives. New York: Cambridge University Press, 2019.) atua para explorar e privatizar as terras públicas e, de outro, o lobby evangélico e militar procura descaracterizar/desterritorializar/precarizar os povos indígenas com o intuito de converter sua alma, seu espírito, para alterar a relação imanente entre povo e terra, povo e território - a relação indissociável dos povos indígenas e sua autonomia. Esse ataque quer integrar o indígena à sociedade nacional. Mesmo assim, como veremos, existem estratégias em curso de luta por terra e território, ações coletivas, alianças intensivas de corpos e política de rua.

Segundo Schwarcz (2019SCHWARCZ, L. M. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.), os atuais ataques a grupos minoritários como os povos indígenas e comunidades quilombolas, entre outros povos da terra, da água e da floresta, demonstram o período de crise democrática que vivemos. A repressão à liberdade justificada pela doutrinação ideológica, a flexibilização do porte de armas de fogo justificada pela defesa da propriedade privada, em tempos de necropolítica (Mbembe, 2011MBEMBE, A. Necropolítica. Tenerife, ES: Melusina, 2011.), tem acentuado, por um lado, o clima de temor, de medo, de desesperança.

Combater a violência, a intolerância e a desigualdade social como práticas e ideias autoritárias é fundamental para a sobrevivência dos grupos minoritários no Brasil contemporâneo. A luta por direitos coletivos, a vigilância cidadã, a defesa territorial e o incentivo à diversidade cultural fazem parte das lutas atuais contra o desmantelamento de políticas públicas de educação, saúde, segurança, regularização fundiária, liberdade e ataques à Constituição Federal de 1988 (Schwarcz, 2019SCHWARCZ, L. M. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.). Essas linhas de luta têm a potência de gerar novas ideias e práticas, fundadas na dessubordinação e descolonização de poderes e imaginários coloniais sobre, por exemplo, os povos indígenas, seus corpos, terras e territórios.

As territorialidades dos povos indígenas estão vivas de r-existência (existir para resistir) contra o governo bio/necropolítico do agronegócio e dos territórios corporativos. Num momento em que as ações do Estado brasileiro e do capital, em sua fase neoliberal (Dardot; Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.), têm por objetivo o desmonte, o retrocesso e a retirada (privatização) de recursos naturais (terra, água, floresta, minério, ar, entre outros), é fundamental entender as estratégias adotadas por esses povos para conquistar e/ou manter seus direitos territoriais. Para isso, este texto focaliza justamente o território como categoria da prática, como dispositivo de r-existência, e as territorialidades subalternas e hegemônicas em disputa (Haesbaert, 2018HAESBAERT, R. De categoria de análise a categoria da prática: a multiplicidade do território numa perspectiva latino-americana. In: FRIDMAN, F.; GENNARI, L. A.; LENCIONI, S. (Org.). Políticas públicas e territórios: onze estudos latino-americanos. Buenos Aires: Clacso, 2018. p. 267-288.). A terra, o território, a autonomia, a autodeterminação, o corpo, o Estado, as políticas públicas etc. fazem parte do futuro dos povos indígenas.

Nesse contexto, este artigo analisa, a partir de dados dos cadastros do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e Fundação Nacional do Índio (Funai), a situação fundiária das demandas e possessões indígenas no Brasil em relação à média e grande propriedade rural. Este trabalho consiste numa pesquisa quantitativa e qualitativa. Adotamos o levantamento bibliográfico e documental e a coleta de dados e informações. O delineamento metodológico consistiu numa categorização, por grandes regiões, da situação fundiária dos territórios indígenas no Brasil. Com base nos dados, foram elaboradas tabelas para analisar a estrutura fundiária do país e, a partir de dados coletados junto à Funai, também uma cartografia da situação fundiária das terras indígenas.

Os resultados e a discussão são estruturados em três seções: (a) terras tradicionalmente ocupadas por índios, (b) o dilema da demarcação de terras indígenas no Brasil e (c) em defesa dos territórios indígenas. Nas considerações finais, reconhecem-se a importância da defesa da biodiversidade e a força de r-existência da etnodiversidade territorial dos povos indígenas no Brasil.

Terras tradicionalmente ocupadas por índios

A categoria normativa (jurídico-política) “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” foi conquistada e reconhecida como direito na Constituição Federal de 1988. Essa categoria de terra indígena, determinada no art. 231, §1° da Carta Constitucional de 1988, define:

São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.).

No que tange à questão indígena, em seu capítulo VIII, art. 231, a Constituição Federal de 1988 reconhece que os índios têm direito ao território tradicional, determinando que todas as terras indígenas do país devem ser identificadas, delimitadas, demarcadas e homologadas pela União. Reconhece ainda que:

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988., grifos nossos).

No entanto, mesmo com a proteção constitucional conquistada pelos indígenas, além das normas internacionais - como a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) -, ainda se reproduzem no contexto brasileiro contemporâneo concepções e práticas coloniais que levam ao genocídio, ao etnocídio e ao ecocídio. A luta desses povos no ordenamento territorial jurídico-político é pelo reconhecimento aos indígenas dos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Num momento de crise das instituições, foi feita a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 2015,7 2 O intuito da PEC 215 é transferir a responsabilidade pela demarcação de terras para o Poder Legislativo, e não mais o Executivo, contrapondo-se à Constituição de 1988, mais especificamente, à cláusula pétrea no art. 60. Isso causará danos à democracia e às conquistas da população indígena, pois, assim como demarcação de terras, outros assuntos serão tratados pelo Poder Legislativo, como a recusa a ampliar as terras indígenas. com tentativas de mudanças propostas pelo Marco Temporal8 3 O Marco Temporal é um projeto de lei que está em discussão a fim de que terras indígenas e quilombolas só sejam declaradas se estiverem ocupadas desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Ele fere os direitos indígenas, uma vez que representa malefícios para essa população e nega a expulsão/desterritorialização que esses povos sofreram em suas terras. Na esfera do direito, Viegas (2018) considera a importância da territorialização como instituto jurídico-constitucional e de contraposição ao Marco Temporal. face à tradicionalidade da terra definida na Constituição Federal de 1988, do discurso anti-indígena do governo atual, que se materializou em ataques aos povos indígenas, à política indigenista, com o aparelhamento ruralista da Funai e a invasão de territórios por garimpeiros, madeireiros e grileiros. Para a coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do (Apib) Sônia Guajajara (2020GUAJAJARA, S. Governo Bolsonaro: o retrato da barbárie contra os povos indígenas e a vida. In: Conflitos no campo: Brasil 2019. Goiânia: CPT Nacional, 2020. p. 182-194. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/downlods?task=download.send&id=14195&catid=0&m=0 . Acesso em: 27 dez. 2021.
https://www.cptnacional.org.br/downlods?...
, p. 182), “o principal foco dos ataques são os territórios tradicionais, seja para a exploração de madeira, minério, expansão agrícola de fazendas, agronegócio ou especulação imobiliária”. Com isso, a vida de todos aqueles “que lutam em defesa da Terra e do meio ambiente está em risco”.

Essa bio/necropolítica constrói dispositivos político-jurídicos de flexibilização da legislação ambiental para permitir atividades de mineração e parceiras do agronegócio para produção agrícola em terras indígenas (retomando os discursos e as práticas de integração do indígena à sociedade nacional pelo mercado capitalista do período da ditadura militar brasileira, de 1964 até 1985), bem como das tentativas de extinguir a Secretaria Especial de Saúde Indigenista (Sesai) no âmbito no Ministério da Saúde junto à União, com o objetivo de municipalizar a saúde, sem o atendimento diferenciado. Essas mudanças mostram que o novo governo se posiciona contra os direitos indígenas reconhecidos e conquistados pela Constituição Federal de 1988. O objetivo de promover, por um lado, o desmanche da Funai, que sobrevive no limiar da inoperância, com restrições orçamentárias e de pessoal, e, do outro, de “instrumentalizá-la como sucursal do ruralismo no Brasil” (Cimi, [2019?]CIMI. CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Violência contra os povos indígenas no Brasil: dados de 2018. Relatório. [S.l.]: Cimi-CNBB, [ 2019?].), evidenciam a negação dos direitos indígenas no governo bio/necropolítico do agrotóxico.

De acordo com a Constituição Federal de 1988, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são bens da União (art. 20, XI). É importante lembrar que a definição da natureza dos direitos constitucionais dos índios foi uma conquistada que se deu por meio de um movimento de luta dos povos indígenas. A Constituição de 1988 incorporou os princípios do indigenato no seu art. 231 que reconhece sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Segundo Silva (2018SILVA, J. A. Parecer. In: CARNEIRO DA CUNHA, M.; BARBOSA, S. R. Direitos dos povos indígenas em disputa. São Paulo: Ed. Unesp, 2018. p. 17-42., p. 32-33), a Constituição Federal de 1988 reconhece “que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios se destinam à sua posse permanente, isso não significa um pressuposto do passado como ocupação efetiva”, mas dá “uma garantia para o futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis e indisponíveis são destinadas, para sempre, ao seu habitat”. Isso se deve ao reconhecimento dos direitos das comunidades indígenas à posse permanente das terras ocupadas, como definido nos termos do art. 231, §§ 1º e 2º. Daí a importância da permanência e da territorialização explicitadas pela norma constitucional vigente.

O cotidiano das terras e territórios indígenas tem sido marcado, histórica e geograficamente, pela violência colonial dos garimpeiros, das madeireiras, dos megaprojetos desenvolvimentistas como das hidrelétricas na Amazônia, do agronegócio tão presente no Centro-Oeste, e que se intensificou desde que às recentes mudanças editadas em Medida Provisória n. 870/2019 pelo novo governo, com força de lei, e determinando, entre outras mudanças, a transferência da demarcação e proteção das terras indígenas da Funai ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que é atualmente comandado pela popularmente conhecida “bancada ruralista, armamentista e evangélica”, que formam um bloco majoritário.9 4 Em 2020, a bancada ruralista era formada por 251 deputados federais (de um total de 513) e 40 senadores (de um total de 81). Essa medida provisória colocou em prática o ataque, o desmonte e a pilhagem dos territórios dos povos tradicionais, indígenas e quilombolas, corroborando a espoliação das terras indígenas na Amazônia para garimpeiros, madeireiras, hidrelétricas, frigoríficos e empresas do agronegócio.

É importante esclarecer que a Medida Provisória n. 870/2019 foi a primeira editada, em 1º de janeiro, pelo novo governo, com força de lei, que alterou a estrutura administrativa, reduzindo o número de Ministérios de 29 para 22 e determinando, entre outras mudanças, a transferência da regularização fundiária de terras indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Antes, as terras indígenas estavam sob a responsabilidade da Funai, órgão vinculado ao Ministério da Justiça e que passou a integrar a estrutura do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. As terras quilombolas antes eram de responsabilidade do Incra, ligado à Casa Civil. A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal se manifestou contrária à medida provisória e considerou que essa nova estrutura do governo afronta os direitos indígenas definidos na Constituição Federal de 1988 e viola o direito dos povos originários à consulta prévia, livre e informada, prevista na Convenção n. 169 da OIT.

De acordo com a Constituição Federal de 1988, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são bens da União (art. 20, XI). É importante lembrar que a definição da natureza dos direitos constitucionais dos índios foi uma conquistada que se deu por meio de um movimento de luta dos povos. A Constituição de 1988 incorporou os princípios do indigenato em seu art. 231, que reconhece sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e sua reprodução física e cultural segundo seus usos, costumes e tradições.

Além disso, no capítulo VIII, art. 231, a Constituição Federal de 1988 reconhece que os índios têm direito de acesso à terra ao determinar que todas as terras indígenas do país devem ser identificadas, delimitadas, demarcadas e homologadas pela União: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.).

A Convenção n. 169 da OIT orienta a política indigenista no Brasil e em países que aderiram à política de reservas. Aqui, esse texto foi aprovado por meio do Decreto Legislativo n. 143, de 2002. Essa Convenção, por um lado, reduziu o direito desses povos à autodeterminação e à autonomia no contexto dos Estados moderno-coloniais. Assim, enquanto o Estado é reconhecido pela soberania de seu território, as nações originárias são, sob o signo dessa convenção, reconhecidas como povos, com direito à autodeterminação e, em casos específicos, à autonomia. Nesses países, é reconhecido o direito às terras que originariamente ocupam, assegurando uma relativa autonomia, e não a soberania de seus territórios ancestrais.

Por essa razão, a Convenção n. 169 da OIT tem sido usada pelos povos indígenas como um dispositivo quanto ao direito de consulta livre, prévia e informada contra o ataque e o desrespeito de Estados e empresas a seus territórios e recursos naturais e toda a violência e insegurança que resultam. Assim, tanto a Constituição Federal de 1988 quanto a Convenção n. 169 da OIT são dispositivos jurídicos, normativos e práticos na luta pelos direitos indígenas à demarcação de terras tradicionalmente ocupadas.

O dilema da demarcação de terras indígenas no Brasil

Em 2010, as terras indígenas representavam 12,5% do território nacional, com a maior parte situada na região Norte, na Amazônia brasileira. Atualmente, “as Terras Indígenas ocupam 13% do território nacional e abrigam mais de meio milhão de pessoas. Os verdadeiros latifundiários [...] 97 mil grandes proprietários controlam 21,5% das terras do país” (Leite, 2019LEITE, M. Terras sem dono somam 1/6 do território brasileiro. Folha de S.Paulo, 1 jul. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marceloleite/2019/07/terras-sem-dono-somam-16-do-territorio-brasileiro.shtml . Acesso em: 15 jul. 2019.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ma...
).

Segundo Porto-Gonçalves (2002PORTO-GONÇALVES, C. W. Da geografia às geo-grafias: um mundo em busca de novas territorialidades. In: SADER, E.; CECENA, A. E. (Org.). La guerra infinita-hegemonia y terro mundial. Buenos Aires: Clacso , 2002. p. 217-253.), o processo contraditório de desenvolvimento do espaço agrário da sociedade brasileira se caracteriza por relações de poder que primam pela violência e que tem como cerne a histórica concentração fundiária. Desde os anos 1970, já sob a ditadura militar (1964-1985), teve início uma nova fase de desenvolvimento econômico - conhecida como “Revolução Verde” ou “Modernização Conservadora” -, e seus “avanços” no campo tecnológico consagraram a profunda injustiça social e a violência que subjazem a esse contraditório padrão de poder. Desde então, se aprofundou um processo expropriatório de desterritorialização de povos indígenas, comunidades quilombolas e camponesas de seus territórios de uso coletivo.

Sobre esse processo, há que compreender a atual estrutura fundiária do Brasil (Tabela 1). Com base em dados do SNCR e do Incra, podemos verificar que, em abril de 2020, os imóveis na classe de até 200 hectares, pequenas propriedades, correspondiam a 92,22% do total, mas ocupavam 14,98% da área de todos os imóveis rurais. Já os imóveis da classe de área acima de 1.000 hectares, grandes propriedades, correspondiam a 1,78% do total e ocupavam 49,75 da área. Assim, é possível afirmar que 1,78% do número de imóveis são proprietários de quase 50% das terras do país. Isso demonstra a intensa concentração fundiária brasileira, resultante do processo histórico-geográfico de dominação capitalista da terra por não indígenas e atualmente da articulação entre fazendeiros, corporações, milícias e o Estado.

Tabela 1-
Brasil: estrutura fundiária - 2020

Sobre a situação fundiária atual das Terras Indígenas no Brasil, de acordo com Instituto Socioambiental (ISA, 2019ISA. INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Terras Indígenas no Brasil. Portal Eletrônico Terras Indígenas. Disponível em: http://www.terrasindigenas.org.br. Acesso em: 3 ago. 2019.
http://www.terrasindigenas.org.br...
), com base nos dados da Funai, em março de 2020, existem 723 terras em diferentes fases do procedimento demarcatório: 120 estão em identificação - terras em estudo por grupo de trabalho nomeado pela Funai, 43 estão identificadas - terras com relatório de estudo aprovado pela presidência da Funai, 74 estão declaradas - terras declaradas pelo Ministro da Justiça, 486 estão homologadas e reservadas - terras homologadas pela presidência da república, adquiridas pela União ou doadas por terceiros.

É importante lembrar que, desde 2016, depois do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, não foi demarcada mais nenhuma terra indígena (Tabela 2). Como demonstramos, a Constituição de 1988 reconhece os direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, atribuindo à União a competência para demarcá-las. O Estado brasileiro não cumpriu a determinação prevista na Constituição, de demarcar as terras indígenas em cinco anos. Esse contexto mostra o ataque aos direitos constitucionais dos povos originários e como os territórios tradicionais estão em disputa. Por isso, no Brasil contemporâneo, coletivos indígenas lutam pelo reconhecimento e pela defesa de suas terras de uso e ocupação tradicional, mas, como territórios de r-existência, essas terras têm a potência de transformação social dessa realidade.

Tabela 2-
Homologação de terras indígenas por gestão presidencial

De acordo com a Funai ([2018a]FUNAI. FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Terras indígenas, o que é?. Portal eletrônico da Funai, [2018a]. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/2014-02-07-13-24-32?limitstart=0# . Acesso em: 16 maio 2019.
http://www.funai.gov.br/index.php/2014-0...
), no Brasil existiam 462 terras regularizadas que representam 12,2% do território nacional. Por região, as Terras Indígenas regularizadas estão distribuídas da seguinte maneira: 54% estão no Norte, 19% no Centro-Oeste, 11% no Nordeste, 10% no Sul e 6% no Sudeste. A maior parte está concentrada na Amazônia brasileira, e esse fato é explicado pela política de integração nacional e consolidação das fronteiras norte e noroeste na década de 1980. Nas demais regiões, os povos indígenas foram mantidos em áreas reduzidas e esparsas, muitas delas reconhecidas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) entre os anos de 1910 e 1967, sem levar em conta os requisitos necessários para sua reprodução biológica e cultural.

Com base em dados do ISA, podemos afirmar que as áreas reivindicadas pelas populações indígenas no Brasil somam quase dois milhões de hectares e incluem terras em vários estados, como Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Para ilustrar esse processo, apresentamos a situação fundiária das terras indígenas nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sul.

Figura 1-
Situação fundiária das terras indígenas do Brasil

Sobre a situação fundiária das terras indígenas no Brasil, com base em dados da Funai, em 2019, existem 616 terras em diferentes fases do procedimento demarcatório:10 5 Collet, Paladino e Russo (2014, p. 79-80) explicam que as terras indígenas são definidas da seguinte maneira: (a) terras em estudo: quando são feitos estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais que fundamentam a delimitação de uma terra indígena, (b) terras delimitadas: são as que tiveram a conclusão dos estudos publicados no Diário Oficial da União pela Funai e se encontram em análise pelo Ministério da Justiça, para eventual expedição de Portaria Declaratória da Posse Tradicional Indígena, (c) terras declaradas: são as que obtiveram a expedição da Portaria Declaratória e têm demarcação autorizada, (d) terras homologadas: são ss que foram demarcadas e tiveram seus limites homologados pela presidência da república, (e) terras regularizadas: são as que, após a homologação de seus limites, foram registradas em cartório em nome da União e no Serviço de Patrimônio da União e (f) reservas indígenas: correspondem às terras doadas por terceiros, adquiridas ou desapropriadas pela União, que não se confundem com as de posse tradicional e, por esse motivo, não se submetem a nenhum dos procedimentos descritos acima. seis em estudo, 75 delimitadas, 75 declaradas, nove homologadas e 473 regularizadas.

Figura 2 -
Situação fundiária das terras indígenas da região Norte

Sobre a situação fundiária das Terras Indígenas pelas grandes regiões brasileiras, com base nos dados da Funai, em 2019, na região Norte existiam 294 terras em diferentes fases do procedimento demarcatório: cinco estão em estudo, seis estão delimitadas, 21 estão declaradas, uma está homologada e 256 regularizadas.

Essas terras indígenas são alvo dos interesses privatistas das potências do sul global. Nas últimas décadas, segundo Porto-Gonçalves (2017PORTO-GONÇALVES, C. W. Amazônia: encruzilhada civilizatória, tensões territoriais em curso. Rio de Janeiro: Consequência, 2017.), a Amazônia brasileira - onde está o maior número de terras indígenas - vive uma encruzilhada civilizatória, a corrida por recursos naturais no período do capitalismo avançado neoliberal tem acentuado um processo extrativo violento, de invasão e espoliação dos territórios de ocupação e usufruto tradicionais, em especial dos povos indígenas, negando sua relação indissociável de seu lugar. Nessa “complexidade sociometabólica amazônica”, temos uma “demanda produtivista consumista de ‘recursos naturais’ alimentada pela lógica da acumulação de capital em busca de lucro”. Esse processo tem implicações ecológicas, nos direitos dos povos e das etnias amazônidas e um desafio ético-político (Porto-Gonçalves, 2017PORTO-GONÇALVES, C. W. Amazônia: encruzilhada civilizatória, tensões territoriais em curso. Rio de Janeiro: Consequência, 2017., p. 26).

Para Porto-Gonçalves (2017PORTO-GONÇALVES, C. W. Amazônia: encruzilhada civilizatória, tensões territoriais em curso. Rio de Janeiro: Consequência, 2017., p. 15), “prevalecem visões sobre a Amazônia, e não da Amazônia”, ou da região como (a) natureza, (b) vazio demográfico, (c) reserva e fonte inesgotável de recursos e (d) região do futuro, reproduzindo-se em todas elas uma ótica colonizadora desse lugar.

Figura 3-
Situação fundiária das terras indígenas da região Centro-Oeste

No Centro-Oeste, existem 126 terras em diferentes fases do procedimento demarcatório: uma está em estudo, oito estão delimitadas, 19 estão declaradas, sete estão homologadas e 91, regularizadas. Nessa região, uma das questões fundamentais é a luta pela demarcação das terras indígenas. No Mato Grosso do Sul, os povos Guarani e Kaiowá vivem conflitos e confrontos fundiários com os fazendeiros do agronegócio globalizado nas mobilizações por direitos territoriais. Se, por um lado, a luta pela regularização fundiária dos territórios indígenas mobiliza grupos étnicos, em defesa e retomada de suas terras, por outro, esse processo promove reações violentas e autoritárias de setores do agronegócio e seus aliados, como fazendeiros, sindicatos rurais, federações da agricultura, empresas, corporações e frentes compostas por parlamentares ruralistas, entre outros.

Sobre esse processo, é importante compreender a estrutura fundiária do estado. Com base nos dados do SNCR e do Incra, é possível comprovar a concentração de terras no Mato Grosso do Sul (Tabela 3).

Tabela 3-
Mato Grosso do Sul: estrutura fundiária - 2020

Em abril de 2020, os imóveis de até 200 hectares, as pequenas propriedades, correspondiam a 69,92% do total, mas ocupavam 6,87% da área ocupada por todos os imóveis rurais. Por outro lado, os imóveis com mais de 1.000 hectares, as grandes propriedades, correspondiam a 9,52% do total e ocupavam 70,47% da área. Isso mostra a intensa concentração fundiária brasileira, resultante do processo histórico-geográfico de dominação capitalista da terra por não indígenas e, atualmente, da articulação entre fazendeiros, corporações e Estado.

Quanto ao efeito dessa concentração fundiária em territórios de povos indígenas, destaca-se o centro-sul do estado, onde a concentração fundiária é grande, exatamente nas áreas de conflitos e confrontos fundiários entre os latifundiários do agronegócio e os indígenas, região ocupada por meio da captura e transformação de terras tradicionais - tekoha - em fazendas capitalistas pelo processo de despossessão e expulsão/desterritorialização de indígenas desde as primeiras décadas do século XX, e onde se encontra a maior concentração de assentamentos e de reservas indígenas, e também transcorrem os conflitos pela retomada dos territórios tradicionais contra o agronegócio.

Como já afirmado, desde 2016, depois do fim do governo de Dilma Rousseff, não foi demarcada mais nenhuma terra indígena. Essa política anti-indígena do Estado é emblemática no Mato Grosso do Sul devido ao descaso no reconhecimento das terras originárias. De acordo com o Relatório (Cimi, [2019?]CIMI. CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Violência contra os povos indígenas no Brasil: dados de 2018. Relatório. [S.l.]: Cimi-CNBB, [ 2019?].) os povos Guarani e Kaiowá estão na posse de 29% das terras reconhecidas pelo Estado. Isso ocorre porque, nas 31 terras indígenas demarcadas e tituladas, os Guarani Kaiowá e Ñhandeva ocupam ou estão na posse de apenas 29% delas. Com uma população de 54.658 pessoas (Funai, [2018b]FUNAI. FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Índios no Brasil: quem são. Portal eletrônico da Funai, [2018b]. Disponível em: http://www.funai.gov.br . Acesso em: 16 maio 2019.
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), as comunidades ocupam 70.370,08 dos 242.370,08 hectares reconhecidos oficialmente como territórios tradicionais, tekoha.

No Mato Grosso do Sul, na perspectiva e na prática indígena de descolonização de territórios, a luta pela terra é dita retomada. Para Fernandes Alarcon (2013FERNANDES ALARCON, D. A forma retomada: contribuições para o estudo das retomadas de terras, a partir do caso Tupinambá da Serra do Padeiro. Ruris, v. 7, n. 1, p. 99-126, 2013. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ruris/article/view/1648 . Acesso em: 28 dez. 2021.
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), a retomada de terra é uma forma de ação política que, ao longo das últimas décadas, converteu-se em símbolo de mobilização indígena. Para a autora, as retomadas têm se tornado cada vez mais a forma pela qual os indígenas fazem pressão para que se efetive o processo demarcatório da terra indígena requerida.

De acordo com o antropólogo Guarani Kaiowá Tonico Benites (2014BENITES, T. Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (Rezando e lutando): o movimento histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowa e dos Ava Guarani pela recuperação de seus tekoha. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/artigos/docs/artigos/docs_artigos/rojeroky-hina-ha-roike-jevy-tekohape-rezando-e-lutando . Acesso em: 28 dez. 2021.
http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/cc...
, p. 25), os processos de retomada dos territórios no Mato Grosso do Sul remontam à década de 1990. As retomadas de seus territórios envolvem “articulações das lideranças políticas (mburuvicha) e espirituais (ñanderu) das famílias extensas Guarani e Kaiowá”. Essas áreas são resultado da dinâmica de territorialização que os Guarani e os Kaiowá passaram a vivenciar a partir do processo de colonização e da criação de reservas indígenas.

Os povos Guarani e Kaiowá têm um “projeto étnico-sistêmico-local” (Escobar, 2015ESCOBAR, A. Territorios de diferencia: la ontología política de los “derechos al territorio”. Cuadernos de Antropología Social, n. 41, p. 25-38, 2015. Disponível em: http://revistascientificas.filo.uba.ar/index.php/CAS/article/view/1594/1520 . Acesso em: 27 dez. 2021.
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) de autonomia na luta pela terra. A retomada, essa forma de luta, se dá pelo retorno ao teko porã (ou “bem viver”, nas palavras de Acosta, 2015ACOSTA, A. El buen vivir como alternativa al desarrollo: algunas reflexiones económicas y no tan económicas. Política y Sociedad, v. 52, n. 2, p. 299-330, 2015. doi: https://doi.org/10.5209/rev_POSO.2015.v52.n2.45203.
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), em práticas de retomada: acampamentos e ocupações. Nas últimas três décadas, vêm ganhando força, no campo brasileiro, as ações diretas de luta pela terra, denominadas retomadas de territórios tradicionais. A ação ganha variações semânticas, a depender da terra e dos territórios requeridos e dos sujeitos sociais envolvidos: retomadas territoriais, retomadas de tekoha, retomadas de território, retomadas de quilombos, reocupação e recuperação, entre outros.

O sentido prático, político e estratégico atribuído e aplicado nas retomadas torna o território uma “arma de luta”, político e catalizador das práticas adotadas pelos movimentos das populações tradicionais em r-existência no espaço brasileiro. Em nome do território - tekoha -, se fazem as retomadas em atos de mobilizações: acampamentos e ocupações. No Mato Grosso do Sul, quanto aos povos Guarani e Kaiowá, a área de retomada normalmente é aquela onde transcorrem conflitos e confrontos e onde se deposita a esperança de reconectar a relação indissociável dos povos com a terra e o território. Existem retomadas com condições territoriais, político e jurídica, distintas, a depender dos sujeitos coletivos, étnicos e raciais, envolvidos na luta pela terra e dos grupos hegemônicos contrários aos movimentos de retorno aos territórios tradicionais.

Uma vez que a retomada é uma geoestratégia de luta adotada pelos povos Guarani e Kaiowá para retomar as terras das quais foram expulsos durante o processo de colonização, isso implica traçar linhas alternativas, redesenhar espaços, contornar cercas e construir estratégias vitais em territorialidades de r-existência. Nessa reelaboração cultural de seus modos de ser (o teko), no caminhar, altera-se a relação com a natureza devido às r-existências traçadas pelos grupos nos front de batalha e em reconexão com a terra. Nesse movimento de reapropriação, a natureza é vista como cultura. Para isso, é necessária uma politização da cultura, como propõe Latour (2004LATOUR, B. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru, SP: Edusc, 2004.).

Assim, nesse estado, além das relações econômicas do agronegócio que monopolizaram a terra e lhe atribuíram novas funções, é preciso entender as ações locais contemporâneas de r-existência dos povos indígenas. Nesta pesquisa, o território é visto da perspectiva da luta pela terra. Na dinâmica espaço-temporal contraditória do agronegócio, de um lado, a ação de fazendeiros e de grandes empresas (com o frequente apoio do Estado) atuam para dominar as terras e explorar seus recursos naturais na lógica global de acumulação do capital, e, de outro, os povos indígenas lutam pelo território em ações diretas de retomada - acampamentos (Loera, 2014LOERA, N. R. Tempo de acampamento. São Paulo: Ed. Unesp, 2014.) e ocupações - em territorialidades alternativas para reproduzir seu modo de ser - teko.

Figura 4-
Situação fundiária das terras indígenas da região Sul

Na região Sul, existem 76 terras em diferentes fases do procedimento demarcatório: seis estão delimitadas, 19 estão declaradas, uma encaminhada ao RI e 50 regularizadas. Nessa região de ocupação não indígena mais antiga, restaram nas menores áreas indígenas do país. No entanto, de acordo com o relatório do Cimi ([2020?]CIMI. CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Violência contra os povos indígenas no Brasil: dados de 2020. Relatório. [S.l.]: Cimi-CNBB, [2020?].), em 2019 houve 17 ocupações de terra. Os indígenas, principalmente Guarani, reivindicam nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná 26 territórios de ocupação tradicional. A luta indígena ocorre por meio de retomadas dos territórios tradicionais espoliados nas primeiras décadas do século XX por latifundiários e com forte apoio do Estado. Esse processo de espoliação confinou os indígenas em pequenas reservas e titulou grandes extensões de terras a não indígenas, principalmente grupos econômicos hegemônicos, ligados à moderna agricultura, do sul do país. Os conflitos são mais acentuados no oeste catarinense e no oeste e no sudoeste paranaense, nas fronteiras do Brasil com a Argentina e o Paraguai.

Assim, é importante assinalar que esses mapas (Figuras 1-4) evidenciam (embora sem retratá-las, devido aos limites deste texto, as regiões Sudeste e Nordeste, onde também há lutas pela demarcação de territórios indígenas) uma geografia indígena presente no Brasil e invisibilizada pela ideia de “espaços vazios” e por megaprojetos desenvolvimentistas de modernização do território nacional. Os processos de reconhecimento dos territórios tradicionais demonstram, atualmente, a necessidade de defesa dos direitos indígenas e de demarcação de terras frente o governo neoliberal que atua em frentes de violência neoextrativista.

Em defesa dos territórios indígenas

Historicamente, o Estado e a sociedade moderna-colonial atuaram/atuam como genocidas dos povos indígenas. No Brasil, os integrantes do atual governo pensam e agem como inimigos, anti-indígenas, dos povos originários. O governo anti-indígena e antiambiental implanta uma política da morte, isto é, necropolítica (Mbembe, 2011MBEMBE, A. Necropolítica. Tenerife, ES: Melusina, 2011.), para garantir o genocídio, o etnocídio, o ecocídio e o epistemicídio em favor da “despossessão” (Harvey, 2004HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.) das terras de ocupação tradicionais para consolidar grandes projetos de “desenvolvimento” do território nacional brasileiro, da política do mercado globalitário e do risco social corporativo (Giffoni Pinto, 2019GIFFONI PINTO, R. Conflitos ambientais, corporações e as políticas do risco. Rio de Janeiro: Garamond, 2019.), a exemplo das terras agrícolas que se transformaram em plataformas de produção de commodities agrícolas e minerais do agronegócio e fundos ativos de pensão de grandes cooperações. Nesses termos, a terra não é vista como um organismo vivo, mãe-terra, Pachamama, como a veem os povos indígenas latino-americanos, mas como um metabolismo de produção de matéria e energia para o funcionamento da lógica de acumulação da sociedade capitalista em regime neoliberal (Toledo, 2013TOLEDO, V. M. El metabolismo social: una nueva teoría socioecológica. Relaciones, n. 136, p. 41-71, 2013. Disponível em: http://www.scielo.org.mx/pdf/rz/v34n136/v34n136a4.pdf . Acesso em: 27 dez. 2021.
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). Isso significa que continua a marcha de execução programada de extermínio dos povos indígenas e, com ela, assassinam-se toda a pluridiversidade étnica e a biodiversidade do planeta.

Para os povos indígenas, é preciso levar adiante a luta dos antepassados, incorporando a ancestralidade como uma dimensão fundante das territorialidades que compõe esse potencial de resistência. Os ancestrais orientam o caminho a seguir e meio para a defesa dos territórios tradicionais. A busca pela autonomia dos territórios por práticas dissidentes (não normatizadas pela lógica colonial-moderna ocidental) passa pelo projeto-ação de autodeterminação e pela r-existência em favor dos modos próprios de organização sociopolítica, espacial e cosmológica, na luta pelos direitos dos povos. Em nome da terra indígena e do território tradicional, os Yanomami, na Amazônia, lutam pela defesa territorial e pela conquista de direitos. O território indígena incorpora a dimensão de condensador material e político da luta por direitos. Atualmente, esse território tem sido elaborado por concepções articuladas com as cosmologias e práticas em contexto ecoterritorial das lutas e r-existências.

Desde a década de 1970, no mundo, na Abya Yala/América Latina, no Brasil e na Amazônia verificamos uma crescente visibilidade das populações originárias/indígenas em contextos internacionais e nacionais, por um lado, graças às lutas por seus direitos territoriais como povos diferenciados e, por outro, pelos conflitos por terra, corpo e território em todos os grandes continentes neste início do século XXI. Concomitantemente, em escala global, o aquecimento do planeta mostra a necessidade premente de uma mudança ecológica, por exemplo, da “ecologia neoliberal dos desastres à ecologia indígena” (Krenak, 2018KRENAK, A. Ecologia política. Ethnoscientia, v. 3, n. 2, p. 1-2, 2018. Número especial. doi: http://dx.doi.org/10.18542/ethnoscientia.v3i2.10225.
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), valorizando a “memória biocultural” e a agroecologia produzida pelos saberes das populações tradicionais e indígenas do mundo, das diferentes formas de manejo e conservação agrícola das comunidades inseridas em ecossistemas de todo o planeta (Toledo; Barrera-Bassols, 2008TOLEDO, V. M.; BARREIRA-BASSOLS, N. La memoria biocultural: la importancia ecológica de las sabidurías tradicionales. Barcelona, ES: Icaria, 2008.), para garantia e proteção de condições ambientais que permitam o futuro da humanidade (humana e “não humana”) e da Terra.

Faz algum tempo que as espécies e o planeta Terra, as sociedades e seus ambientes, as “humanidades” e os “mundos”, as formas de “sentir-pensar com a terra” (Escobar, 2014ESCOBAR, A. Sentipensar con la tierra: nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Medellín, CO: Ed. Unaula, 2014. ), entraram numa nefasta crise ecológica, cada vez mais evidente, mas só agora, com a pandemia da Covid-19, torna-se cada vez mais difícil de negar e ignorar. Esse “tempo das catástrofes” (Stengers, 2015STENGERS, I. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que vem. São Paulo: Cosac Naify, 2015.) está associado reiteradamente aos nomes controversos de Antropoceno e Gaia. O primeiro termo designa um período no qual o ser humano tem se convertido numa força de transformação em escalas global e geológico; nessa experiência geo-histórica, o “ambiente” do Planeta está se transformando mais rapidamente que a “sociedade”, aproximando as escalas de mutação geofísicas e biológicas às da história humana. O segundo, Gaia, designa outra forma de habitar os mundos e imaginar os espaços geográficos, reconhecendo a crise ecológica ao mesmo tempo em que possibilita criar condições da continuidade da vida e da Terra como uma composição ontológica heterogênea de espécies.

Isso evidencia que a ecologia indígena é vital para o reconhecimento de que o saber tradicional desses povos é relevante com os ambientes onde vivem e que souberam preservar. Esses conhecimentos se revelam, atualmente, geoestratégicos frente aos “limites do modelo civilizatório ocidental” (Lander, 2016LANDER, E. Com o tempo contado: crise civilizatória, limites do planeta, ataques à democracia e povos em resistência. In: DILGER, G.; LANG, M.; PEREIRA FILHO, J. (Org.). Descolonizar o imaginário. São Paulo: Elefante , 2016. p. 214-255., p. 216), dos limites materiais do planeta pela forma hegemônica adotada de existência (Nodari, 2014NODARI, A. Limitar o limite: modos de subsistência. In: Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra. Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: https://osmilnomesdegaia.files.wordpress.com/2014/11/alexandre-nodari.pdf . Acesso em: 27 dez. 2021.
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), e das alternativas ao desenvolvimentismo para frear o consumo por meio do decrescimento e do pós-extrativismo (Acosta; Brand, 2018ACOSTA, A.; BRAND, U. Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista. São Paulo: Elefante, 2018.).

No Brasil, mesmo com o ódio à democracia (Rancière, 2014RANCIÈRE, J. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo , 2014.), os retrocessos democráticos e a acentuação da violência contra povos e comunidades tradicionais (Guajajara, 2020GUAJAJARA, S. Governo Bolsonaro: o retrato da barbárie contra os povos indígenas e a vida. In: Conflitos no campo: Brasil 2019. Goiânia: CPT Nacional, 2020. p. 182-194. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/downlods?task=download.send&id=14195&catid=0&m=0 . Acesso em: 27 dez. 2021.
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), mobilizações, manifestações e lutas ocorrem a favor dos direitos territoriais indígenas e dos “direitos da natureza” (Gudynas, 2019GUDYNAS, E. Direitos da natureza: ética biocêntrica e políticas ambientais. São Paulo: Elefante , 2019.). No entanto, o governo bio/necropolítico do agronegócio e das grandes corporações e a sociedade autoritária negam e combatem esse movimento para retirar direitos indígenas, como nas disputas que envolvem: (a) a transferência da Funai para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, (b) a transferência da demarcação das terras indígenas para o Ministério da Agricultura, (c) o desmonte da política especial e diferenciada de saúde indígena e a municipalização da saúde indígena, (d) a mineração e o desmatamento em terras indígenas, (e) do fim da participação social nos conselhos e colegiados, (f) a perseguição às ONG e (g) a violação dos direitos humanos e da consulta prévia e informada, entre outras pautas que afetam os territórios, os direitos e a existência desses povos.

Mas por que ocorrem essas disputas por territórios? As terras onde vivem esses povos indígenas no Brasil ou reivindicam o reconhecimento de seus antigos territórios de uso e ocupação tradicional atualmente são propícios para o aumento da produção agrícola, instalação de hidrelétricas, exploração de minérios em garimpos, retirada de madeiras pelo desmatamento, exploração de rios e de água subterrânea dos aquíferos, além de outros recursos naturais. Mas para que isso aconteça os povos indígenas que vivem nesses espaços têm que estar de acordo ou desacordo com essas ações ao exercer seu direito de consulta livre, prévia e informada, como determina a Convenção n. 169 da OIT. Esse consulta na maioria das vezes não acontece. A insaciabilidade do uso dos recursos naturais afeta negativamente a cosmologia de cada povo e também a vida de não indígenas. Alguns indígenas vivem apinhados em pequenas reservas na malsucedida política de integração - que, atualmente, sob a gestão do governo biopolítico (Foucault, 2004FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard-Seuil, 2004.) e da necropolítica (Mbembe, 2011MBEMBE, A. Necropolítica. Tenerife, ES: Melusina, 2011.) dos territórios corporativos do necropolítico do agronegócio quer que retorne -, em condição de vulnerabilidade social, com saúde precária e muitas vezes são brutalmente acossados pela violência de milícias, garimpeiros e fazendeiros.

Os povos indígenas, por sua vez, nos fazem sentir e pensar sobre as potencialidades de usufruto coletivo da terra, da natureza, da sobrenatureza (que compõem o mundo dos espíritos), das relações de parentesco e da relação da “sociedade contra o Estado” (Clastres, 1974CLASTRES, P. La société contre l’État: recherches d’anthropologie politique. Paris: Éditions de Minuit, 1974.), do perspectivismo e do multinaturalismo (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify , 2002), para compreender outras formas, não estatais ou eurocêntricas, de concepções de territórios e territorialidades. Isso nos leva a pensar os territórios criados do ponto de vista indígena, pela multiplicidade das cosmologias ameríndias. O perspectivismo permite pensar territórios de natureza multinaturalista, em consonância com os pensamentos ameríndios, suas mitologias e práticas nativas. Assim, a cosmopolítica é imprescindível para entender as relações de poder nas sociedades indígenas e entre estas e o Estado e as sociedades (Stengers, 2011STENGERS, I. Cosmopolitics II. Minneapolis, MN: University of Minnesotta Press. 2011.).

Atualmente, diante do governo bio/necropolítico e da superposição de conflitos territoriais e uma mudança de estratégia de luta por terras e territórios tradicionais no Brasil. Verifica-se que os povos indígenas se tornaram protagonistas da demarcação de suas terras. Essa forma de atuação dos movimentos indígenas se deve ao fato de os territórios tradicionais estarem em disputa com o agronegócio globalizado, o que leva à centralização territorial dos conflitos por meio de pelos menos duas formas de luta: a ocupação de terras e as manifestações sociais. Mesmo com retrocessos democráticos e com a escalada da violência, os processos de r-existência, luta e enfrentamento acontecem no campo brasileiro por movimentos como os dos povos indígenas.

Houve uma mudança porque, além das ocupações de terra (retomadas de territórios tradicionais) e dos acampamentos (para retomada de terras), outras ações passaram a ser mobilizadas pelos movimentos sociais para enfrentar o latifúndio e o agronegócio globalizado. No entanto, além dessas ações diretas, as manifestações emergiram a partir de 2019 e transformaram-se na principal estratégia de luta para reivindicar do Estado a terra e o território. Isso mostrou que movimentos indígenas não arrefeceram diante das constantes ameaças. Essa ação coletiva revela também um processo intenso de resistência indígena contra a violência desenfreada do latifúndio do agronegócio globalizado e do poder do Estado.

Essa mudança de estratégia de luta pela terra demonstra uma mutação da acepção do território para os movimentos indígenas. As ocupações e acampamentos de retomada se juntaram às manifestações em ruas e órgãos públicos e ao fechamento temporário de rodovias, para dar visibilidade à questão da luta pela terra e pressionar as autoridades para a recuperação dos territórios de ocupação tradicionais. É possível afirmar que, para os povos indígenas, a proliferação das ocupações e dos acampamentos de retomada, das manifestações e dos bloqueios temporários de rodovias estão implicadas no próprio conceito de território. Assim, como estratégia concreta, política e simbólica, na última década, a ampliação das lutas indígenas pela demarcação dos territórios teve ressonância nas retomadas, ocupações e manifestações.

Considerações finais

Num país tão desigual como o Brasil, com estrutura fundiária concentrada, como demonstramos, é fundamental fortalecer os dispositivos da Constituição Federal de 1988 para o exercício do poder para que se faça justiça social. Infelizmente, a demarcação ainda não é uma garantia dos direitos territoriais no país. Desde 2016, depois do impeachment de Dilma Rousseff, não foi demarcada mais nenhuma terra indígena. Essa política anti-indígena do Estado é emblemática no Mato Grosso do Sul devido ao descaso no reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas. Os povos Guarani e Kaiowá estão na posse de 29% das terras reconhecidas pelo Estado. Isso ocorre porque, nas 31 terras indígenas demarcadas e tituladas, os Guarani Kaiowá e Ñhandeva ocupam ou estão na posse de apenas 29% delas. Com uma população de 54.658 pessoas, as comunidades ocupam 70.370,08 dos 242.370,08 hectares reconhecidos oficialmente como territórios tradicionais, tekoha. Esses dados mostram a demanda desses povos por territórios e a necessidade de demarcar suas terras ancestrais.

Assim, é preciso aprofundar o debate sobre os territórios indígenas tradicionais e suas práticas, denunciar as violações e dar visibilidade às lutas e reinvindicações para construir categorias com potência, “armas de luta”, para o apoio efetivo com a Constituição Federal e o direito consuetudinário às reivindicações de reconhecimento de terras dos povos indígenas. Por meio do debate dos povos e das populações tradicionais, o território é um direito que condensa formas de obter reconhecimento étnico e de conquistar ou ter acesso e fazer avançarem direitos como à saúde, à educação, à alimentação, à segurança, à terra, ao território, a justiça social e a mecanismos de consulta como a Convenção n. 169 da OIT. Por isso, o direito dos povos indígenas à saúde parte da defesa e do fortalecimento de políticas públicas específicas para os grupos étnicos e implica o reconhecimento das terras de uso e ocupação originária, como definido na Constituição Federal de 1988. O direito à vida está condicionado ao direito à terra de ocupação tradicional, que se conecta à luta pela terra para a demarcação dos territórios.

Considerando que a luta é um compromisso coletivo, é importante lutar pela autodeterminação (autogoverno), a autonomia e o território contra todas as formas de violência ou violação dos direitos humanos dos povos indígenas. No Brasil, combater e r-existir à ideia de espaço vazio, de espaço de recursos naturais, contra o neoextrativismo, a mineração e o desmatamento, entre outras visões colonialistas, é fundamental para dar visibilidade a lutas e reinvindicações que sejam efetivas e capazes de gerar políticas eficazes de vigilância dos territórios, de proteção territorial, reconhecendo a força da biodiversidade e a resistência da etnodiversidade para o diálogo, a pluralidade e a convivência com a floresta em pé e os povos reexistindo.

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  • 1
    Porto-Gonçalves (2013PORTO-GONÇALVES, C. W. La reinvención de los territorios: la experiencia latino-americana y caribeña. In: PORTO-GONÇALVES, C. W. Territorialidades y lucha por el territorio en América Latina. Lima: Unión Geográfica Internacional, 2013. p. 151-197., p. 169) formulou o conceito de r-existência para mostrar que “mais que resistência, que significa retomar uma ação anterior e, assim, é sempre uma ação reflexa, o que temos é r-existência, isto é, uma forma de existir, uma determinada matriz de racionalidade que atua nas circunstâncias, inclusive re-atua a partir de um topoi, enfim, de um lugar próprio, tanto geográfico como epistêmico. Na verdade, atua entre duas lógicas”.
  • 2
    O intuito da PEC 215 é transferir a responsabilidade pela demarcação de terras para o Poder Legislativo, e não mais o Executivo, contrapondo-se à Constituição de 1988, mais especificamente, à cláusula pétrea no art. 60. Isso causará danos à democracia e às conquistas da população indígena, pois, assim como demarcação de terras, outros assuntos serão tratados pelo Poder Legislativo, como a recusa a ampliar as terras indígenas.
  • 3
    O Marco Temporal é um projeto de lei que está em discussão a fim de que terras indígenas e quilombolas só sejam declaradas se estiverem ocupadas desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Ele fere os direitos indígenas, uma vez que representa malefícios para essa população e nega a expulsão/desterritorialização que esses povos sofreram em suas terras. Na esfera do direito, Viegas (2018) considera a importância da territorialização como instituto jurídico-constitucional e de contraposição ao Marco Temporal.
  • 4
    Em 2020, a bancada ruralista era formada por 251 deputados federais (de um total de 513) e 40 senadores (de um total de 81).
  • 5
    Collet, Paladino e Russo (2014COLLET, C.; PALADINO, M.; RUSSO, K. Quebrando preconceitos: subsídios para o ensino das culturas e histórias dos povos indígenas. Rio de Janeiro: Contra Capa/Laced, 2014., p. 79-80) explicam que as terras indígenas são definidas da seguinte maneira: (a) terras em estudo: quando são feitos estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais que fundamentam a delimitação de uma terra indígena, (b) terras delimitadas: são as que tiveram a conclusão dos estudos publicados no Diário Oficial da União pela Funai e se encontram em análise pelo Ministério da Justiça, para eventual expedição de Portaria Declaratória da Posse Tradicional Indígena, (c) terras declaradas: são as que obtiveram a expedição da Portaria Declaratória e têm demarcação autorizada, (d) terras homologadas: são ss que foram demarcadas e tiveram seus limites homologados pela presidência da república, (e) terras regularizadas: são as que, após a homologação de seus limites, foram registradas em cartório em nome da União e no Serviço de Patrimônio da União e (f) reservas indígenas: correspondem às terras doadas por terceiros, adquiridas ou desapropriadas pela União, que não se confundem com as de posse tradicional e, por esse motivo, não se submetem a nenhum dos procedimentos descritos acima.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2020
  • Aceito
    08 Ago 2021
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