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Governança como ideologia e ajuste político-institucional e urbano do Banco Mundial

Governance as ideology and political-institutional and urban adjustment by the World Bank

La gobernanza como ideología y ajuste político institucional y urbano por parte del Banco Mundial

Resumo

Desde os anos 1980, a América Latina é assombrada pelos ajustes estruturais que migraram da esfera econômica à político-institucional, sendo promovidos, entre outros, pelo Banco Mundial. Neste artigo, mostramos a trajetória da agência internacional para promover os ajustes estruturais e seu alcance na aplicação da governança na região como ideologia e política voltada à reestruturação do Estado e do urbano.

Palavras-chave:
Ajuste estrutural; Governança; Ideologia

Abstract

Since 1980’s, Latin America is haunted by the structural adjustments that migrate from economic sphere to institutional politics, with one of its promoters the World Bank. In this article, we highlight the trajectory of this international agency in promote the structural adjustments and its scope in application of governance in region as an ideology and politics aimed at restructuring the state and the urban space.

Keywords:
Structural adjustments; Governance; Ideology

Resumen

Desde la década de 1980, America Latina esta atormentada por el ajustes estructurales que migran del ámbito económico para al político-institucional, con el Banco Mundial como uno de sus impulsores. En este artículo, destacamos la trayectoria del organismo internacional en la promoción de los ajustes estructurales y su alcance en aplicación de la gobernanza en la región como política y ideología orientada para la reestructuración del Estado y del urbano.

Palabras clave:
Ajustes estructurales; Gobernanza; Ideología

Introdução

Após análise empírica de instituições e de trajetórias intelectuais de determinadas correntes filosóficas, políticas e de pensamento e ideias no interior das ciências sociais (incluindo as aplicadas), Mészáros (2012MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo , 2012. ) constata que uma ideologia se torna dominante quando resulta da tomada de posição em relação à ordem social estabelecida e da capacidade de assumir interesses materiais e políticos. Por isso, em contextos históricos particulares, envolve práticas que concorrem desigualmente para formulações ideais que redundem em atividades necessárias para manutenção da ordem estabelecida e da divisão do trabalho. Essa relação configura compromissos de valor da ideologia com classes sociais dominantes, fazendo com que desfrutem da posição privilegiadae se destaquem na produção teórica por assumir posição positiva com as condições fundamentais do metabolismo socioeconômico, contando com apoio e financiamento de instituições econômicas, culturais e políticas que reproduzem essa ordem. Por essa razão, intelectuais e instituições em posição privilegiada na divisão do trabalho ditam regras e condições do discurso ideológico e moldam consciências conforme conceitos próprios de sua visão de mundo.

Conforme indicaram e perceberam, cada qual a seu modo e em seu tempo, Lefebvre (1976LEFEBVRE, H. Espacio y política: el derecho a la ciudad. Barcelona, ES: Península, 1976. v. 2.) e Marx (2011MARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo , 2011.), na sociedade de classes, a relevância histórico-particular das ideologias assume dimensão prática conforme o nível de lutas sociais pelo poder material e de instituições específicas a difundir soluções, mesmo inadequadas, para as contradições sociais.

Desde esses pressupostos resultantes do movimento da ideologia na sociedade contemporânea, mostramos neste ensaio a posição privilegiadaocupada pelo Banco Mundial (BM) no debate teórico e prático acerca da formulação da governançacomo ideologia aplicável aos campos da política, do planejamento e da gestão urbana.1 1 Em princípio, o moderno conceito de governança não tangia à política e ao planejamento, mas à teorização e à aplicabilidade econômica, sobretudo nas estratégias gerenciais, burocrático-administrativas e de controle sobre certo tipo de trabalho, com hegemonia do capital financeiro e mensuração na carteira de negócios de grupos de investidores e empresas monopólicas em diferentes bolsas de valores (Chesnais, 2002). Com os ganhos da estratégia gerencial, o efeito na produção de consensos e a aceitação dos parâmetros ideológicos dominantes, o conceito migrou, com novos contornos, para a teoria política, que, em momentos de intensa reestruturação do Estado, nos anos 1980-90, ganhou colorações de harmonização de conflitos, flexibilização das estruturas administrativas de acordo com a positividade das leis do mercado e princípio universal da gerência (Cardoso, 2019, 2022). Dos anos 1980 em diante, a posição privilegiadado BM resulta de sua situação como órgão do sistema das Nações Unidas e, junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), credor de projetos micro e macroeconômicos nos países periféricos o que generalizou a introdução dos ajustes estruturais, transformando-o em autoridade formuladora de doutrinas ideológicas (Ribeiro Filho, 2006RIBEIRO FILHO, G. B. O Banco Mundial e as cidades: construindo instituições na periferia - o caso do Produr, Bahia. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. ). Logo, concentramo-nos nos investimentos na América Latina destinados à reestruturação político-institucional do Estado e a reformulações de políticas urbanas.

À luz desses processos, pretendemos desvelar as reestruturações político-institucionais promovidas pelas chamadas boas práticas de governançacomo complemento dos ajustes estruturais, sua renovação com estatuto de continuidade e parâmetros urbanísticos a serem institucionalizados pelos países mutuários.

Ajustes estruturais do Banco Mundial na América Latina

A partir dos anos 1980, o BM e o FMI iniciaram em conjunto os ajustes estruturais na América Latina, sendo impulsionados pela crise da dívida externa que abateu a região (Katz, 2016KATZ, C. Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo. São Paulo: Expressão Popular/Perseu Abramo, 2016. ). Nesse período, as agências aumentaram em 45% o volume de empréstimos para toda a região, com prioridade na criação de “modelos de crescimento” para reestruturar “os sistemas de incentivos tarifários, não tarifários e fiscais, modificar os termos de intercâmbio entre diferentes setores, redefinir o papel do setor público e estimular a iniciativa privada” (Lichtensztejn; Baer, 1987LICHTENSZTEJN, S.; BAER, M. Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial: estratégias e políticas do poder financeiro. São Paulo: Brasiliense, 1987., p. 195), principalmente em países tidos como de renda média, como foi o caso da Argentina, do Brasil e do México.

As agências estrategicamente renegociaram a dívida externa dos países mutuários em troca de reformas estruturarias (Katz, 2016KATZ, C. Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo. São Paulo: Expressão Popular/Perseu Abramo, 2016. ). Mas havia diferenças internas entre os ajustes promovidos, pois os empréstimos do BM esbarravam em restrições do FMI, bifurcando propósitos e destinos. Como destaca Pereira (2010PEREIRA, J. M. M. O Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro (1944-2008). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.), enquanto o BM emprestava dinheiro para sustentar dívidas de médio prazo, o FMI refinanciava as de curto prazo.

Segundo os propósitos dos ajustes estruturais, nos anos 1980, o BM se voltou para a base agrário-exportadora dos países latino-americanos, que substanciaria a produção de divisas destinadas ao pagamento da dívida e ao crescimento dos empréstimos para produção e exportação, sendo 52% maior que a da década anterior e concorrendo para a reestruturação econômica baseada na inserção especializada desses países na divisão internacional do trabalho.2 2 Nesse período, o BM dispensava a apresentação de projetos e contrapartidas, mas já exigia que se aceitassem condições para ajustes nos empréstimos divididos em structural adjustment loanse sectorial adjustment loans.

No caso brasileiro, o primeiro ciclo de empréstimos condicionados aos ajustes estruturais ocorreu em 1983, sendo US$ 1,2 bilhão voltados aos setores exportadores, principalmente à agricultura. Com os mesmos propósitos, no biênio 1986-7, a Argentina contraiu US$ 1,4 bilhão em empréstimos. Entre 1983 e 1987, o México contraiu US$ 2,3 bilhões em empréstimos; além do aumento das exportações em 46%, sobretudo aos EUA, o país teve que cumprir obrigações especiais de pagamento da dívida em relação aos gastos públicos consumindo cerca de 6% do PIB em detrimento de investimentos públicos no período, que se retraíram de 12,1% para 5% do PIB. Na década de 1980, o total de investimentos nos três países foi divido em aproximadamente 47,9% para produção e exportação e 22,1% em infraestrutura (Arantes, P., 2004ARANTES, P. F. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. ).

Como efeito da dívida externa, a agência também exigiu reformulação na gestão das cidades, redefinição do padrão de financiamento local e reforma fiscal dos municípios, reestruturação do setor habitacional e mudanças na política tarifária. Aliás, os ajustes compreendiam a totalidade da vida nacional e, desde a década anterior, migravam para projetos de reestruturação política e urbana.3 3 A área de desenvolvimento urbano do BM cresceu desde os anos 1970, passando de 10 para 700 especialistas. Em 1981, o Departamento de Projetos Urbanos passou a avaliar operações em novas seis divisões, contando com o acúmulo do trabalho do Economic Development Institute, que promoveu cursos nas áreas de gestão e planejamento nos países mutuários formando quadros políticos e administrativos. Programas urbanos e macroeconômicos do BM foram incorporados ao discurso de “combate à pobreza” com valores liberais da política externa estadunidense implementados pelo ex-secretários da defesa dos EUA (1961-1968) e o presidente do BM, entre 1968 e 1981, Robert McNamara, sendo aplicados depois ao FMI e a outras agências internacionais. McNamara proferiu três discursos importantes sobre o tema ao longo dos anos 1970: no Chile, em 1972, na Assembleia Anual conjunta do BM com o FMI, em Nairóbi, em 1973, com apelo à “justiça social”, e na Assembleia de Governadores, em Washington, em 1975, com foco urbano. O “combate à pobreza” ampliou a atuação do BM para políticas urbanas no contexto da Guerra Fria.

Os técnicos da agência reconhecem a importância do urbano para o comércio, a indústria e as atividades estatais conferindo as cidades estratégias de concentração de meios de produção e consumo. Por isso, projetos adotados para o urbano foram especializados e seguiram orientações institucionais e político-econômicas dos ajustes estruturais, mas sem ainda definir reformas profundas para essa esfera, só ocorrendo na década seguinte, como balanço desse primeiro ciclo de ajustes.

Nos anos 1990, as políticas monetárias estadunidenses foram recicladas nos países periféricos, mas ao invés de ajustes econômicos, as agências internacionais se voltaram à reestruturação das administrações estatais, com vistas a medidas monetárias para absorver a inflação e os efeitos da crise monetária estadunidense. Coggiola (2003COGGIOLA, O. O capital contra a história: gênese e estrutura da crise contemporânea. São Paulo: Xamã, 2003.) relata que as políticas monetárias internacionais aumentaram a remuneração do capital financeiro nos países de renda média, como Argentina, Brasil e México, assegurando a estabilização política e econômica dos EUA e, obedecendo as determinações do centro dinâmico do imperialismo, conduzindo o FMI a adotar alta nas taxas de juros e o BM a reciclar e renovar as políticas de ajustes macroestruturais. O “novo” ciclo de empréstimos das agências internacionais foi justificado (ironicamente) pela reversão da tragédia econômica dos países periféricos que, segundo a concepção dos intelectuais e técnicos a serviço dessas instituições, não teriam aplicado integralmente os ajustes estruturais (Arantes, P., 2004ARANTES, P. F. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. ). Assim, nos anos 1990, caberia ao FMI e ao BM o controle: (1) da inflação, com elevadas taxas mensais de crescimento, (2) do congelamento e do descongelamento seletivo de preços de determinados bens via Estado e (3) de novas acelerações inflacionárias em caso do aumento dos preços (Coggiola, 2003COGGIOLA, O. O capital contra a história: gênese e estrutura da crise contemporânea. São Paulo: Xamã, 2003.).

Sob essa orientação monetária com a finalidade da estabilização econômica, introduziram-se medidas cambiais de ajustes estruturais com foco na reforma político-institucional no México, no Chile (1990), na Argentina (1991) e no Brasil (1994) e se difundiram para outros países de renda média na América Latina, na África, na Ásia e no Leste Europeu.

O balanço político dos ajustes estruturais promovidos na América Latina na década de 1980 e a imposição dos parâmetros ideológicos de reformas via liberalização e desregulamentação do Estado, leis trabalhistas e do comércio internacional concorreram para as formulações do Consenso de Washington4 4 O debate que substancia as resoluções do Consenso de Washington tem início em 1989 (Pereira, 2010), mas a sistematização das pautas neoliberais para os países periféricos resultou de reunião realizada em 16 de janeiro de 1993. Entre os participantes, havia representantes do BM, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), do FMI e da Organização das Nações Unidas (ONU), proprietários de grandes empresas, representantes do grande capital, intelectuais ligados a instituições privadas e gestões presidenciais estadunidenses anteriores, muitas consideradas ultraliberais. As resoluções do encontro foram divididas nas seguintes orientações: (1) disciplina fiscal, (2) contenção de despesas públicas, (3) reformas tributárias, (4) liberalização financeira, (5) controle cambial, (6) liberalização do mercado, (7) abertura aos investimentos externos diretos (IED), (9) privatizações, (9) desregulamentação ou abolição de regulações restritivas de investimentos e (10) direitos de propriedade assegurados pelo Estado (Ferreira, 2007). e a retomada estratégica dos ajustes em escala planetária nas duas décadas seguintes. Conforme Chesnais (2008CHESNAIS, F. A mundialização do capital, natureza e papel da finança e mecanismos de “balcanização” dos países com recursos ambicionados. In: LIMA, M. C. (Org.). Dinâmicas do capitalismo pós-guerra fria. São Paulo: Ed. Unesp, 2008. p. 17-39.), esse contexto foi marcado pela “redemocratização” na América Latina e na África, pela industrialização e ampliação comercial no sudeste asiático e pela abertura econômica dos países do Leste Europeu, recém-saídos do bloco soviético. Logo, o BM redefiniu suas medidas com discurso e enfoque nas reformas necessárias à “democracia de mercado”.

De forma oportunista, a agência aproveitou o deslocamento de capitais para países periféricos e a desaceleração econômica dos centros dinâmicos do capitalismo para impor renegociação das dívidas, controle da inflação e conduta de empréstimo condicionada a privatizações, abertura de mercados de bens, serviços e capitais e, mais importante, à reforma do Estado, constituindo uma agenda voltada a governança (Serfati, 2008SERFATI, C. A economia política da finança global. In: LIMA, M. C. (Org.). Dinâmicas do capitalismo pós-guerra fria. São Paulo: Ed. Unesp , 2008. p. 41-76.).

Os investimentos no Brasil, na Argentina e no México, são novamente exemplares para representar o contexto do momento, dada a posição econômica que ocupam na região. Conforme dados de Chesnais (2008CHESNAIS, F. A mundialização do capital, natureza e papel da finança e mecanismos de “balcanização” dos países com recursos ambicionados. In: LIMA, M. C. (Org.). Dinâmicas do capitalismo pós-guerra fria. São Paulo: Ed. Unesp, 2008. p. 17-39.) e Serfati (2008SERFATI, C. A economia política da finança global. In: LIMA, M. C. (Org.). Dinâmicas do capitalismo pós-guerra fria. São Paulo: Ed. Unesp , 2008. p. 41-76.), nos anos 1990, o Brasil contraiu do BM cerca de US$ 9,8 bilhões em empréstimos à reforma do sistema financeiro, o que implicou a reestruturação de inúmeros serviços do Estado para acompanhar a reforma. Nesse período, o BM e o BID emprestaram juntos mais US$ 4,8 bilhões ao país, concentrados em reformas do Estado que incluíam os sistemas de saúde, seguridade e proteção social, o setor energético, a descentralização e privatização dos meios de transporte ferroviários e estradas e a reforma fiscal e administrativa em diferentes escalas; em contrapartida, houve o apagão no sistema elétrico, a venda de empresas abaixo de seus rendimentos e a pauperização do trabalho dos servidores públicos e dos serviços prestados.

No mesmo período, o México seguia preso aos acordos do Pacto de Solidariedade Econômica firmado por De La Madrid em 1987, sendo forçado a controlar gastos públicos e abrir o mercado. Em nome da estabilização econômica, foram promovidas privatizações, manutenção de câmbio forte, enxugamento do Estado e programas assistenciais que aumentou os empréstimos do BM ao país em conformidade com reformas financeiras, descentralização administrativa, reestruturação de setores produtivos como mineração, siderurgia, agricultura e de empresas públicas ligadas a saúde, habitação, transportes e telecomunicações (Arantes, P., 2004ARANTES, P. F. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. ). Entre 1990 e 1994, a Argentina contraiu empréstimos do BM na ordem de US$ 21,5 bilhões em programas de privatizações e concessões das empresas públicas, das quais 63% passaram para o controle do capital estrangeiro, sendo 98% dos recursos destinados a setores geradores de parcas divisas como eletricidade, gás, petróleo, telecomunicações e finanças implicando sua vulnerabilidade financeira, exportação de lucros e ao aumento do nível da pobreza de 13,7% para 57%, entre 1994 e 2003 (Arantes, P., 2004ARANTES, P. F. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. ).

De 2000 a 2004, conforme indica Cardoso (2019CARDOSO, F. S. O Banco Mundial e a emergência da governança como prática urbana: da reestruturação do capital ao ajuste institucional. Rebela - Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos, v. 9, n. 3, p. 536-562, 2019., 2022CARDOSO, F. S. A fantasmagórica governança metropolitana no Brasil: reprodução do espaço e prática teórico-ideológica do planejamento a soldo o capital. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. doi:10.11606/T.8.2021.tde-25052022-144421.
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), o BM destinou 62,5% de total dos empréstimos para reforma do Estado e práticas de boa governança, sendo que Argentina, Brasil e México, juntos, concentraram 42% dos empréstimos do BM para esse fim. De 1994 a 2004, os mesmos países contraíram anualmente de US$ 1,1 a US$ 1,6 bilhão de empréstimos do BM para reformas do Estado e intervenções urbanas, tornando a governançauma perspectiva teórica, política e ideológica dominante a ser perseguida pelos três níveis de governo.

Nos últimos trinta anos, o volume dos empréstimos do BM foi direcionado conforme a perspectiva ideológica adotada pela instituição e a imposição de ajustes ao corpo técnico-administrativo do setor público dos países mutuários, pois instituições e intelectuais precisariam absorver o léxico e as premissas da agenda do banco. Logo, aumentaram os empréstimos para educação, saúde, implementação de medidas de redesenho de políticas sociais e da agenda de alívio da pobreza e setorização de empréstimos à reforma urbana e político-administrativa em detrimento dos empréstimos para agricultura e desenvolvimento rural (Pereira, 2010PEREIRA, J. M. M. O Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro (1944-2008). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.).

O enfoque da reforma administrativa converge com a pauta da governançacomo parte da segunda rodada dos ajustes estruturais e, desde então, adquire importância no campo das teorias e dos conceitos relativos ao planejamento estatal de enfoque territorial e espacial, incluindo reformas interfederativas em escala regional, metropolitana e urbana. A reforma do Estado, da gestão pública e de seus instrumentos legais, iniciada como parte e característica central do segundo ciclo dos ajustes estruturais, exigiu um alicerce teórico-conceitual específico, que impulsionou a governançacomo conceito adaptável às diferentes realidades que se deveriam ajustar.

Governança como ajuste político-institucional

O BM produziu uma série de documentos e relatórios sobre governança, sendo o primeiro intitulado “Governança e desenvolvimento”, escrito em 1991 e publicado no ano seguinte. Nesse documento, explicitam-se os parâmetros das reformas do Estado como um novo ciclo de ajustes liberais, com agenda ideológica e política para o campo do planejamento. Os elementos estruturantes dessa concepção de governança vigoram até hoje como ideologia dominante dentro e fora das agências internacionais.

Além do léxico corporativo das business schools, esse e outros documentos sobre governança revelam a tentava da agência de imprimir coerência a leis e instituições regulatórias que orientam práticas corporativas na agenda política dos ajustes estruturais com jargões da ciência política inglesa, sobretudo aquela que justificou as reformas conduzidas por Margareth Thatcher (Pereira, 2010PEREIRA, J. M. M. O Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro (1944-2008). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.). Logo, o BM tornou essas normas e leis em modelo de governo, com estrutura funcional adequada ao mercado, redução de custos e dialeto contábil das agências multilaterais subordinadas ideológica e financeiramente a Washington.

A adequação institucional aos mercados fez parte dos ajustes estruturais no campo da administração pública com linguagem ligada ao controle de dados e incentivo à formação de intelectuais e técnicos como “líderes”, para tanto o banco deu assistência técnica a incubadoras e apoio direto a projetos de fortalecimento de laços institucionais, comunicação, educação e disseminação do que identificou como boas práticasda reforma política local (Arantes, P., 2004ARANTES, P. F. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. ).

Para entender as reestruturações políticas em nome da governança, voltemo-nos ao tratamento do tema dado no documento “Governança e desenvolvimento”, para depois ver os desdobramentos ideológicos dos ajustes em seu nome.

Tratando das diretrizes políticas e ideológicas da instituição para seus mutuários, nas primeiras páginas do documento, o então presidente da agência, L. T. Preston (1991-1995), enfatizava que a:

Boa governança é complemento essencial de políticas econômicas sólidas. Eficiente e responsável gestão do setor público e previsível e transparente estrutura política são críticas para a eficiência dos mercados e dos governos, e conseqüentemente do desenvolvimento econômico. O aumento da atenção do Bando Mundial para o problema da governança é uma importante parte de nossos esforços para promover o desenvolvimento sustentável e equitativo (BM, 1992BM. BANCO MUNDIAL. Governance and development. Washington DC: World Bank , 1992. , p. V).

Páginas depois, lê-se: “O que é dito neste livreto sobre o desempenho do governo deve ser aplicado em países individuais em seu contexto” (BM, 1992BM. BANCO MUNDIAL. Governance and development. Washington DC: World Bank , 1992. , p. 9).

Evidenciamos aqui duas perspectivas ideológicas da instituição e que até hoje orientam sua atuação: (1) o enquadramento político dos países mutuários aos ajustes estruturais independentemente dos empréstimos da agência e (2) o melhor ambiente de governopara que o mercado atue livremente, com pequenas correções ou “marcos legais” como regulamentação estatal obrigatória. A síntese dessa acepção é a formulação da governança como reestruturação e adaptação estatal às vicissitudes do capital por meio de “regras para fazer os mercados funcionarem eficientemente e intervenções corretivas onde há falhas” (BM, 1992BM. BANCO MUNDIAL. Governance and development. Washington DC: World Bank , 1992. , p. 6).

A estratégica do BM para os países periféricos condizia com um “tipo ideal” de Estado universalizado como modelo variável em virtude de relações socioeconômicas de produção imutáveis. Afirma-se categoricamente que os países mutuários precisariam manter seus ambientes controlados, justificando antecipadamente o fracasso de práticas não adequadas à governança, pois, nessa perspectiva, só teriam dificuldades os países que não criassem ambientes adequados às “boas práticas”. Assim, suas premissas partem da corrigibilidadedas “pequenas” falhas do mercado, como as crises, dando prioridade a seu funcionamento mecânico ad infinitum. Logo, para o BM (1992BM. BANCO MUNDIAL. Governance and development. Washington DC: World Bank , 1992. , p. 4):

Empréstimos para os ajustes estruturais e reformas relacionadas à gestão do setor público visavam criar um ambiente propício ao crescimento [...] procuravam reduzir a intervenção do governo nas práticas políticas de incentivo, promover o uso mais eficiente dos recursos públicos e reduzir os déficits fiscais - abordando os problemas de governança que afetavam o gerenciamento de recursos. Apesar de algum sucesso encorajador com empréstimos para ajustes e reformas do setor público, o ambiente favorável ainda é deficiente [...]. Os investimentos e reformas de políticas apoiados pelo Banco mais efetivamente dependem, em tais casos, de melhorias adicionais na estrutura institucional da gestão do desenvolvimento.

A governança é qualificada como modelo estatal para a administração, a legislação e o planejamento como substância que se institui para além do Estado, sendo aplicável a qualquer circunstância e lugar, em nome do consenso ideológico e da coesão associada às leis do mercado.

A produção desse consenso e da governança não se limitou à teorização do documento citado, mas, antes de tudo, tornou-se fundamento das resoluções práticas e estratégias da agência internacional e dos projetos que passaram a envolver outras instituições, o que exigiu uma teoria política mais ampla, com foco no apaziguamento das tensões de classe dentro e fora do Estado.

Aliás, a ideologia da governança apresenta concepções morais e fetichizantes da política ao propor a correção dos maléficos efeitos “culturais” da corrupção inerentes à invariável “natureza humana”. Nesses termos, o alinhamento institucional levaria ao equilíbrio, tal como o supostofuncionamento autorregulado do mercado, deslocando-se igualmente para um “tipo ideal” e utópico de sociedade civil harmoniosa.5 5 Conforme Davis (2006), a governança se tornou tema aglutinador e abarcou outros conceitos dos programas do BM tais como empoderamento, participação, justiça social, capital humano e social. Tais conceitos transferem abstratamente a luta de classes para a dimensão institucional e, em nome da coesão civil, tornam-se álibi para práticas políticas que visam rearranjos estatais contra crises de todos os tipos (incluindo a urbana) e, a partir desses rearranjos, consenso para transferência de fundos públicos à iniciativa privada assegurando a estabilidade econômica e a garantia de contratos. Aliás, em nome da governança, o BM e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) financiaram Estados, instituições da sociedade civil, igrejas, partidos políticos e ONG excluindo arbitrariamente sindicatos trabalhistas e movimentos sociais mais radicais.

No documento citado, essa concepção fica evidente no tratamento dos problemas políticos que são reduzidos ao caráter moral dos homens provenientes das formações estatais periféricas que levariam, recorrentemente, ao clientelismo, a corrupção, ao nepotismo, ao burocratismo e ao patrimonialismo (BM, 1992BM. BANCO MUNDIAL. Governance and development. Washington DC: World Bank , 1992. ). Portanto, a governança como prática liberal moldaria subjetividades nos termos indicados anteriormente. O caráter supostamente democrático da concorrência entre níveis de Estado e diferentes nações, cidades e organismos beneficiaria a disputa econômica intracapitais, promoveria a abertura do mercado autorregulador e inibiria a formação de monopólios e formas corruptíveis de governo, sendo a política reduzida à cultura (Cardoso, 2019CARDOSO, F. S. O Banco Mundial e a emergência da governança como prática urbana: da reestruturação do capital ao ajuste institucional. Rebela - Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos, v. 9, n. 3, p. 536-562, 2019., 2022CARDOSO, F. S. A fantasmagórica governança metropolitana no Brasil: reprodução do espaço e prática teórico-ideológica do planejamento a soldo o capital. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. doi:10.11606/T.8.2021.tde-25052022-144421.
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). Nesse prognóstico tautológico, as relações de produção são tidas como imutáveis e conduziriam naturalmente à adaptação do Estado a seus preceitos, com formas “responsáveis e transparentes” dos recursos públicos vinculadas à “boa ordem” política e ao crescimento econômico, à falta de contradições entre classes e grupos sociais, que seriam mediados institucionalmente por uma “burocracia altamente treinada e profissional [...] [que] evitaria a influência exagerada das oligarquias locais nas regras do jogo” (Arantes, P., 2004ARANTES, P. F. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. , p. 83).

A governança alcança o estatuto de ideologia pautada no fetiche de neutralidade política e cientificismo economicista cuja meta estaria na responsabilidade dos gastos públicos palatáveis as frentes da direita à esquerda oficiais lastreadas no discurso democrático construído nos credos e princípios liberais. Em suma, o Estado é reduzido ao apaziguamento das tensões e à democracia em fator consensual entre partes antagônicas. Logo, o Estado deve ser forte, parceiro, regulador e financiador da iniciativa privada, cuja boa governançavaloriza o credo da corrigibilidadedos fatores negativos do capital para garantir sua reprodução com ambientes abstergidos de contradições como:

[...] complemento essencial para políticas econômicas sólidas. Os governos desempenham um papel fundamental na provisão de bens públicos. Eles estabelecem regras que fazem com que os mercados tenham um funcionamento eficientemente e, de maneira mais problemática, corrigem falhas de mercado. Para desempenhar esse papel, eles precisam de receitas e agente para coletar receitas e produzir bens públicos. Isso, por sua vez, exige sistemas de prestação de contas informações adequadas e confiáveis e eficiência no gerenciamento de recursos (BM, 1992CARDOSO, F. S. A fantasmagórica governança metropolitana no Brasil: reprodução do espaço e prática teórico-ideológica do planejamento a soldo o capital. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. doi:10.11606/T.8.2021.tde-25052022-144421.
https://doi.org/10.11606/T.8.2021.tde-25...
, p. 1).

Ou seja, além dos empréstimos, as preocupações centrais do BM são o treinamento e a educação da burocracia político-administrativa nos jargões da teoria política forjada nas crenças liberais e o foco no planejamento estatal flexível e adaptável às oportunidades de “crescimento econômico virtuoso” associado ao mercado global. Mas a aplicação da governança exigia ainda dos países mutuários “revisar, atualizar e simplificar seus sistemas legais. Tais reformas dos sistemas legais melhorarão a capacidade do governo de regular a economia com eficiência e de tomar decisões administrativas com base em um conjunto de leis novas e relevantes” (BM, 1992CARDOSO, F. S. A fantasmagórica governança metropolitana no Brasil: reprodução do espaço e prática teórico-ideológica do planejamento a soldo o capital. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. doi:10.11606/T.8.2021.tde-25052022-144421.
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, p. 35).

Conforme essas diretrizes, como relatado no “Policy paper” do BM para a América Latina nos anos 1990, 90% dos programas de ajustes estruturais para o urbano passam a determinar:

[...] mudança no quadro regulatório (legal framework); reforma e/ou privatização de empresa públicas; gestão econômica (economic management); capacitação institucional (capacity building); e apoio aos processos de descentralização. Tais iniciativas inseriam-se no objetivo mais geral de promover uma “mudança de paradigma do Estado”, criando uma nova “sinergia” entre “governos menores e mais focados e um setor privado renovado” (Arantes, P., 2004ARANTES, P. F. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. , p. 84).

A sinergia entre “modelo estatal” e “governos menores” foi mensurada com indicadores de governabilidade sob critérios de “homens de negócios” e consultores das agências internacionais. A “boa governança” passa por indicadores como o business environment risk index(Beri) e o international country risk guide(ICRG) que, respectivamente, qualificam os serviços públicos e o ambiente contratual e classificam instituições públicas e a capacidade de implementação projetos de empresas multi e transnacionais nos países periféricos. Tais critérios se baseiam no repudio das agências internacionais aos contratos de risco e aversão a “expropriação, tradição de lei e ordem, qualidade da burocracia e corrupção no governo” (Arantes, P., 2004ARANTES, P. F. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. , p. 85). Por isso, o enaltecimento da flexibilidade jurídica para desobstruir investimentos e promover boa governançana qualidade de ajuste político e institucional.

Pela lente do BM, o planejamento de risco envolve programas internos de decisão autônomos e marcados por projetos de cunho de longo prazo, nacionalistas e de oferta de serviços públicos e retorno de investimento a perder de vista, oposto, portanto, às demandas da agência e de Washington (Katz, 2016KATZ, C. Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo. São Paulo: Expressão Popular/Perseu Abramo, 2016. ). Assim, ao longo dos anos 2000, houve uma guinada na gestão e/ou administração estatal, reforçando os ajustes para reinserir as economias periféricas na dinâmica da acumulação internacional financeirizada e na domesticação do corpo técnico do Estado e da “sociedade civil” (Cardoso, 2019CARDOSO, F. S. O Banco Mundial e a emergência da governança como prática urbana: da reestruturação do capital ao ajuste institucional. Rebela - Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos, v. 9, n. 3, p. 536-562, 2019.).

Governança como projeto urbano

Comecemos pelo ponto de chegada. Na aurora do século XXI, o BM generalizou as perspectivas de reestruturação político-institucional para os países mutuários. Além de fazer parte de todos os projetos do BM desde 1992, a governança passou a ter tópico próprio na segmentação de seus empréstimos, tendo os programas específicos da agência internacional uma variedade de tipos, como interfederativa, urbana, metropolitana, intermunicipal etc. (Cardoso, 2019CARDOSO, F. S. O Banco Mundial e a emergência da governança como prática urbana: da reestruturação do capital ao ajuste institucional. Rebela - Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos, v. 9, n. 3, p. 536-562, 2019., 2022CARDOSO, F. S. A fantasmagórica governança metropolitana no Brasil: reprodução do espaço e prática teórico-ideológica do planejamento a soldo o capital. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. doi:10.11606/T.8.2021.tde-25052022-144421.
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).

Como indica a Tabela 1, de 1995 até 2009, os empréstimos do BM à América Latina para governança do setor público estiveram entre os quatro maiores, exceto em 2005, sendo a principal iniciativa na região em 2001, 2002 e 2008, com cerca de, respectivamente, 19%, 27% e 20% dos empréstimos. Torna-se mais evidente a estratégia da agência para região se analisarmos o destino dos empréstimos por setor. No mesmo período, o setor “Lei, Justiça e Administração Pública” teve o maior volume de empréstimos, aproximadamente 28,72% do total dos gastos do banco na região, ficando em segunda posição apenas em 2003, 2004 e 2009, atrás do setor de saúde e outros, e, em 2007 e 2008, quando foi superado pelo setor de transportes (Tabela 2).

Tabela 1 -
Empréstimos concedidos à América Latina e ao Caribe, por tópico (milhões de US$) - exercício financeiro 1995-2009, em milhões de US$.
Tabela 2 -
Empréstimos concedidos à América Latina e ao Caribe, por setor (milhões de US$) - exercício financeiro 1995-2009

Muitos investimentos direcionado ao urbano estavam segmentados nos setores de transportes, saúde, educação, água, saneamento e proteção com inundações e envolveram a administração estatal, o avanço das privatização e gestão mista ou híbrida dos serviços públicos. Ao contrair os empréstimos, os Estados dos países mutuários eram/são “responsáveis” pela aplicação dos ajustes político-institucionais em todos os seus níveis (federal, estadual e municipal) e poderes (judiciário, legislativo e executivo) reafirmando os prognósticos do BM e suas resoluções tidas como técnicas e neutras para a gestão de projetos com objetivo na “reengenharia” da administração pública com agenda voltada, predominantemente, para o urbano (Pereira, 2010PEREIRA, J. M. M. O Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro (1944-2008). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.).

Para além da América Latina, mas tendo em vista essas experiências pioneiras, como relatam documentos do BM (2011BM. BANCO MUNDIAL. Relatório Anual de 2011. Washington DC: World Bank , 2011. , 2015aBM. BANCO MUNDIAL. Governança metropolitana no Brasil: subsídios para a construção de uma agenda e de uma estratégia. Washington DC: World Bank , 2015a., 2015bBM. BANCO MUNDIAL. Relatório Anual de 2015. Washington DC: World Bank , 2015b.), a governança como instrumento de reestruturação do setor público se generalizou nos investimentos da agência internacional por tópico e por setor (Tabelas 3a 6). Tal foi a importância estratégica dessa guinada para a reestruturação do Estado que, de 1995 a 2015, junto ao tópico especificamente criado para a “governança do setor público”, os itens ligados a gestão, desenvolvimento e crescimento estiveram associados à mediação política necessária à pretendida eficiência do Estado, envolvendo critérios, ajustes, reformas e reestruturações, ocorrendo o mesmo nos setores voltados ao urbano (BM, 2011BM. BANCO MUNDIAL. Relatório Anual de 2011. Washington DC: World Bank , 2011. , 2015aBM. BANCO MUNDIAL. Governança metropolitana no Brasil: subsídios para a construção de uma agenda e de uma estratégia. Washington DC: World Bank , 2015a., 2015bBM. BANCO MUNDIAL. Relatório Anual de 2015. Washington DC: World Bank , 2015b., 2017BM. BANCO MUNDIAL. Governança e a lei. Washington DC: World Bank, 2017.).

Tabela 3 -
Empréstimos concedidos pelo Banco Mundial a mutuários, por tópico (milhões de US$) - exercício financeiro 1995-2006
Tabela 4 -
Empréstimos concedidos pelo Banco Mundial a mutuários, por tópico (milhões de US$) - exercício financeiro 2007-2015
Tabela 5 -
Empréstimos concedidos pelo Banco Mundial a mutuários, por setor (milhões de US$) - exercício financeiro 1995-2006
Tabela 6 -
Empréstimos concedidos pelo Banco Mundial a mutuários, por setor (milhões de US$) - exercício financeiro 2007-2015

Em balanço da aplicação de medidas de gestão urbana brasileiras, em especial a gerência das metrópoles em conformidade com as perspectivas do BM, em relatório intitulado Governança metropolitana no Brasil6 6 Nesse documento, a noção de governança é naturalizada como algo posto, diferentemente dos documentos anteriores, que ainda punham sua aplicação em perspectiva. Contudo, cabem as afirmações de que a governança seria “a articulação necessária de políticas especiais” cuja aplicação decorreria dos “princípios fundamentais da geografia econômica” e de sua tendência - natural - ao equilíbrio e à harmonia entre os grupos sociais e as regiões, processo posto pela “urbanização como pré-requisito inevitável ao crescimento dos países - assim como o adensamento para a transformação econômica em direção à industrialização - [...] [por isso] os governos podem estar preocupados com as disparidades de renda e de bem-estar em face da concentração da produção em áreas determinadas. A solução seria, portanto, ‘promover a integração econômica para reduzir essas disparidades’[, mediante a] integração [que] exige instituições e regulamentação a fim de oferecer serviços básicos e certeza a todos; infraestrutura para garantir a conectividade espacial e permitir às pessoas se deslocar e ter acesso ao mercado de trabalho; educação e cultura; e intervenções espacialmente direcionadas, como obras de melhoria nas favelas e incentivos à inovação. Intervenções como essas possibilitarão a convergência das condições de vida em todo o espaço, de maneira que todos possam usufruir dos benefícios da urbanização”, regulamentação identificada imediatamente como sendo a governança, sem grandes explicações além dos “princípios da geografia econômica” (BM, 2015a, p. 25). (BM, 2015aBM. BANCO MUNDIAL. Governança metropolitana no Brasil: subsídios para a construção de uma agenda e de uma estratégia. Washington DC: World Bank , 2015a.), técnicos a serviço da agência internacional reconhecem a realização de práticas urbanas voltadas à governança em escala internacional, sendo o Brasil um dos polos mais avançados de aplicação desses critérios, principalmente mediante a institucionalização, em 2015, do Estatuto da Metrópoles que, pela primeira vez numa lei federal, enfatiza a governança das metrópoles como principio de gestão para diferentes aglomerações urbanas em escala nacional.7 7 Para o trajeto específico da governança metropolitana no Brasil, o papel do BM nas decisões e na implementação de critérios específicos de gestão urbana no país e os potenciais desdobramentos desse processo, ver Cardoso (2022). No entanto, a origem dos termos e suas principais premissas são de períodos anteriores.

A agenda de reestruturações jurídico-administrativas para as esferas federal e municipal dos Estados ligados ao urbano remonta à década de 1990, com teorização, conceitos e temas abordados pelo BM e forte apelo à transferência de medidas implementadas nas cidades dos países centrais, reconhecidas como empreendedorismo urbano,8 8 O descompasso entre a origem das medidas aplicadas nos países centrais e os ajustes estruturais nos países periféricos é evidente. Nas décadas de 1970-80, o empreendedorismo urbano subsidiou o planejamento da atração de investimentos como solução dos problemas urbanos. Londres e Baltimore, tornaram-se exemplos de reversão do crescimento econômico pela requalificação urbana em áreas tidas como deterioradas (Arantes, O., 2011; Harvey, 2008). No caso dos EUA, diante da crise fiscal dos municípios, resultante da desregulamentação promovida na gestão do presidente Ronald Reagan (1981-89), Baltimore e Nova York foram forçadas a emitir títulos no mercado, privatizando, taxando e cobrando serviços básicos em áreas comerciais tidas como business improvement districts (BID) para elevar os investimentos e assegurar alguma autonomia e poder de gestão municipal. para projetos urbanos e jurídico-administrativos de países periféricos, desconsiderando particularidades históricas ou geográficas.

Um dos primeiros relatórios sobre esse debate foi intitulado “Política Urbana e Desenvolvimento Econômico”, datado de 1991, com apelo ao empreendedorismo urbanoe foco na gestão local, mas com afinidades macroeconômicas neoliberais e medidas de governança (BM, 1995BM. BANCO MUNDIAL. Políticas urbana y desarrollo económico: un programa para el decenio de 1990. Washington DC: Banco Internacional de Reconstrucción y Fomento/Banco Mundial, 1995.).

Nas veredas do empreendedorismo urbano, as cidades são vistas como competitivas, produtivas e eficientes e devem ser gerenciadas como empresas privadas, com metas de produtividade em intervenções estatais que ofereçam serviços como “âncoras” de investimentos privados que estimulariam o mercado e reinseririam os pobres nos vetores de crescimento econômico (Arantes, O., 2011ARANTES, O. B. F. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, O. B. F.; MARICATO, E.; VAINER, C. (Org.). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. p. 11-74. ).9 9 Dois projetos da agência ganharam relevância no combate à pobreza urbana, o slums upgrading e o site and service (Davis, 2006). Os pobres levariam ao crescimento econômico por intermédio de empregos formais e informais, das políticas intituladas target-based e da filantropia governamental (Arantes, P., 2004). Na América Latina, esses programas desmantelaram a legislação trabalhista e os serviços de proteção social e assistência universal com cortes e reduções de subsídios (Katz, 2016). Assim, os próprios pobres subsidiariam o combate à pobreza, por meio de taxas e impostos baseados no crescimento urbano. No entanto, o dito ajuste estrutural para o urbano, sob a ideologia do empreendedorismo, ainda carecia de adaptação dos governos locais e federais para promover “estabilidade fiscal, financeira e monetária para evitar a inflação e permitir a inversão pública e privada” (BM, 1995BM. BANCO MUNDIAL. Políticas urbana y desarrollo económico: un programa para el decenio de 1990. Washington DC: Banco Internacional de Reconstrucción y Fomento/Banco Mundial, 1995., p. 41) de ajustes macroeconômicos, até então, sendo promovidos:

  • • A fim de corrigir os preços relativos, reduzir as distorções e fomentar a produção agrícola, a relação de intercâmbio rural-urbano para se inclinar a favor do setor rural.

  • • A fim reduzir o custo para as despesas fiscais, para reduzir os subsídios do consumo urbano, especialmente aos alimentos, a água, a habitação, o transporte e a energia.

  • • Os preços relativos dos bens comerciáveis (por exemplo, exportações manufaturadas) e não comerciáveis (por exemplo, habitação e infraestrutura) urbanos tem variado em detrimento dos últimos, pelo que estas necessidades essenciais tornaram-se mais custosos e mais difíceis de financiar.

  • • Ao orientar as inversões urbanas em direção aos bens comerciais, a demanda de trabalho tem variado dentro do mercado laboral urbano.

  • • A fim de mobilizar recursos adicionais para inversão, tem-se aumentado a tributação urbana (BM, 1995BM. BANCO MUNDIAL. Políticas urbana y desarrollo económico: un programa para el decenio de 1990. Washington DC: Banco Internacional de Reconstrucción y Fomento/Banco Mundial, 1995., p. 39).

Por essa razão, a agência estipulava como meta ampliar recursos públicos para a iniciativa privada, intensificar a acumulação por meio de privatizações, desregulamentações e flexibilizações do mercado de trabalho, reconverter fundos sociais e previdenciários aos mercados de capitais, sobretudo no imobiliário urbano, e potencializar a emissão de títulos dos municípios nos mercados financeiros (BM, 1995BM. BANCO MUNDIAL. Políticas urbana y desarrollo económico: un programa para el decenio de 1990. Washington DC: Banco Internacional de Reconstrucción y Fomento/Banco Mundial, 1995.), mas sem ainda definir agendas urbanas acabadas para a administração pública. As metas acima descritas são pontuadas apenas como potenciais marcos regulatórios.

Essas metas foram refinadas junto as perspectivas de ajuste e governança para o urbano do BM através do financiamento dos governos federais e municipais por meio de coalizões políticas intituladas Cities of Changee Cities Alliance.Orientadas pelo BM, em parceria com o Pnud e com o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat), a partir do ano 2000, tais coalizões voltadas às cidades conduziram empréstimos em contratos cujo objetivo era reinventar o governo(Ribeiro Filho, 2006RIBEIRO FILHO, G. B. O Banco Mundial e as cidades: construindo instituições na periferia - o caso do Produr, Bahia. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. ). Para tanto, a Cities of Changee a Cities Alliance, respectivamente, adotaram o Plano de Ação para o Desenvolvimento Econômico Local (Local Economic Development -LED) e a Estratégia para o Desenvolvimento da Cidade (City Development Strategy - CDS).

As duas coalizões conduziram a gestão urbana do BM, por isso toda CDS10 10 Segundo Davis (2006), na América Latina, a experiência mais avançada e pioneira de CDS foi em Cali, na Colômbia, com deterioração dos serviços e da administração pública municipal em virtude de programas voltados para o mercado. No caso brasileiro, o município de Santo André foi o primeiro a estabelecer relações com a Cities Alliance, a aplicar o CDS e promover a governança como método de gestão empresarial do município. Relatando passiva e acriticamente essa experiência, Rolnik e Somekh (2004, p. 119) reconhecem que o município incorporou a agenda do BM e suas propostas de “gestão inovadora e compartilhada [que representaram] [...] não só uma forma de cooperação entre Estado, mercado e comunidade, mas também a constituição de um sistema de governança empreendedora, superando os tradicionais conflitos municipalistas”. Em escala metropolitana, os primeiros CDS promovidos pelo BM, com assessoria do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) foram implementados nas Regiões Metropolitanas de Recife e Belo Horizonte (Alvarez, 2008; Brasil, 2004), modelos que também se tornaram experiências de sucesso para o BM (2015a). Ainda de acordo com Davis (2006), soma-se a essas experiências a atuação da Cities Alliance na Ásia, no Leste Europeu e na África, difundindo a governança urbana como parte dos ajustes estruturais. era “composta por um LED e uma ‘estratégia de governança urbana’” (Arantes, P., 2004ARANTES, P. F. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. , p. 62) assegurando ajustes político-administrativos, reformas pró-mercado e medidas de empreendedorismo urbano.11 11 Em 1999, o BM e a UN-Habitat lançaram o Plano de Ação de combate às favelas para promover a Cities Alliance envolvendo dez governos doadores (países do G7 e outras três nações) e Nelson Mandela como patrono; o plano foi incorporado à Declaração do Milênio para “beneficiar” mais de 100 milhões de pessoas em favelas e assentamentos precários (scaling-up) e acentuar as “boas práticas” (good or best practice) de governança, objetivando: (1) aumentar a visibilidade das instituições e agências internacionais sob orientação político-ideológica dos EUA, (2) implementar programas de baixo custo, (3) mobilizar recursos via mercado, (4) aprimorar o discurso do combate à pobreza identificando nos pobres um fator de produtividade econômica e (5) difundir a gestão pública urbana, a identidade local e o pagamento de serviços por meio de taxas pelo uso da infraestrutura urbana (Arantes, P., 2004; Davis, 2006). No âmbito das medidas de governança, estariam as garantias de sustentabilidade fiscal das contas dos municípios e outros entes federados, que o BM denominou solubilidade (bankability), justificando parcerias público-privadas na criação de infraestrutura, na emissão de títulos e na credibilidade das administrações públicas para inserir cidades no mercado financeiro.

Com critérios da governança financeira, os títulos emitidos pelos municípios eram colocados nas bolsas de valores e tinham como “âncora” obras e intervenções públicas em áreas selecionadas pela articulação entre Estado e mercado. Os títulos foram classificados conforme potencial valorização de capitais e condições de pagamento ou “solvabilidade” das dívidas dos municípios com rankingsinternacionais (ratings) de emissão de títulos das cidades, sendo as dos países centrais as primeiras posições.12 12 A classificação máxima, de triplo A, só existe nos EUA; as demais cidades definidas como C ou D. Para inibir especulações com ratings, foram criados programas de seguro intitulados bond insurance, porém, diferentemente do que se prega, ao utilizar os títulos em mercados secundários, os governos federais concorreram para a especulação. Sem mercado de títulos municipais, as cidades são obrigadas a contrair empréstimos no mercado financeiro internacional.13 13 Essas práticas tiveram efeito nos mercados mundial e nacional. Por exemplo, os títulos de médio prazo da Eurobond Marketingreceberam cerca de US$ 125 milhões em 1996 e US$ 400 milhões em 1997 lançados pela cidade do Rio de Janeiro e ainda um trilhão de liras por Buenos Aires.

O resultado dessas práticas de gestão pública foi catastrófico: segundo Davis (2006DAVIS, M. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. ), os ganhos dos mercados futuros e a garantia de retorno aos acionistas dos títulos emitidos pelos municípios foram em detrimento da arrecadação e da oferta de serviços públicos, criando círculos viciosos de privatizações e transferências de valor e patrimônio público para os capitais envolvidos, bem como expropriações e gentrificações ocasionadas pela requalificação urbana de regiões inteiras.

No entanto, a predominância dos empréstimos para “reinvenção dos governos”, por um lado, contribuiu ideologicamente para o uso flexível do conceito de governança em particularidades socioeconômica distintas, centrando-se sobretudo nos governos locais e no federal e na transiçãode economias e Estados tidos como fechados, arcaicos ou centralizados para abertos, modernos e descentralizados, mas baseadas em critérios globais de acumulação. Por outro, reforçou a suposta identidade entre mercado e democracia, entendendo boas práticascomo sendo indiferentes a processos sócio-históricos e geográficos. Portanto, o termo governançagoza de isonomia para tratar diferentes experiências de formação social e processo histórico, equalizando a introdução da iniciativa privada de mercado no Leste Europeu e em países antes vinculados ao bloco soviético, o fim das ditaduras civil-militares na América Latina, a destituição de governos de cunho nacionalistas na África e no Oriente Médio e a introdução de zonas econômicas para exportação na Ásia (BM, 2000BM. BANCO MUNDIAL. Cities in transition: World Bank urban and local strategy. Washington DC: World Bank , 2000. , 2015aBM. BANCO MUNDIAL. Governança metropolitana no Brasil: subsídios para a construção de uma agenda e de uma estratégia. Washington DC: World Bank , 2015a., 2015bBM. BANCO MUNDIAL. Relatório Anual de 2015. Washington DC: World Bank , 2015b.).

A agência renovou o debate acumulado sobre gestão urbana e aprimorou o discurso da governança e do planejamento com balanço estratégico dos ajustes, refinando-os politicamente. Uma amostra deste refinamento está no relatório do BM (2000BM. BANCO MUNDIAL. Cities in transition: World Bank urban and local strategy. Washington DC: World Bank , 2000. ) intitulado “Cidades em Transição”. A noção de transiçãopode ser traduzida por mudanças na esfera do planejamento urbano e o deslocamento da “gestão centralizada no Estado” (state-base) para a “gestão do mercado” (market-base) com provisão de serviços e financiamento para promover a inserção competitiva das cidades no mercado mundial, sendo a governança o mecanismo político adequado à identificação das “vantagens comparativas” e das “economias de aglomeração” com o fluxo de capitais. Verbetes das escolas de negócio são usados para naturalizar a reestruturação jurídico-administrativa designando prefeitos como chief executive offices(CEO) bem pagos e preparados para conciliar o aparato político com conselhos empresariais (board) de equipes multidisciplinares e conselheiros do mercado (stakeholders). Além disso, o documento acentua a necessidade de ampliar os “ganhos potenciais da transição urbana [que] depende de quão bem as cidades gerenciam o crescimento [econômico] e enfrentam os desafios de fornecer governança responsável e asseguram serviços para todas as empresas e famílias” (BM, 2000BM. BANCO MUNDIAL. Cities in transition: World Bank urban and local strategy. Washington DC: World Bank , 2000. , p. 31).

Sob os auspícios da austeridade e do fetiche da eficiência, a administração pública precisaria transitar novamentepara a liberalização e privatização com a inserção dos serviços coletivos em programas potencialmente rentáveis, a participação da sociedade-civil na promoção da suposta isonomia política entre classes sociais e unidades federativas para gestão e produção das aglomerações urbanas e, não menos importante, a redução do efetivo dos servidores público e o congelamento ou recuo de seu salário - para fomentar mercados de trabalho formal e informal. Para tanto, uma dupla estratégia de governança urbanaainda era necessária, a saber: primeiro, aquela que:

[...] se concentra no caráter espacial das relações econômicase sociais- como a combinação de serviços setoriais e a proximidade de pessoas e empresas no urbano - [e nos] [...] benefícios (economias de aglomeração) que excedem as atividades separadas. Segundo, [aquela] da atenção à governança e gestão urbanas [...] [ou] processos pelos quais os governos locais, em parceria com outros órgãos públicos, o setor privado e os residentes, asseguram a prestação e o financiamento de serviços essenciais e promover o bem-estar e a produtividade (BM, 2000BM. BANCO MUNDIAL. Cities in transition: World Bank urban and local strategy. Washington DC: World Bank , 2000. , p. 31-32).

As premissas do que seria o “caráter especial das relações econômicas e sociais”, plasmados em certa teoria geográfica no desenvolvimento homogêneo, linear e evolutivo funcional do urbano, ressaltam a estratégia do BM em promover a aceitação da permanência da acumulação capitalista como universal e imutável. Nesse amalgama ideal, as cidades só se sustentariam mediante articulação harmônica da tríade mercado, Estado e espaço aplicável a diferentes formações sociais. Ao mercado é associado ao desenvolvimento como idêntico a liberdade do capital e resoluções para os problemas econômicos periódicos. Ao Estado caberia a dimensão de gestão, administração, registro legal, mediação jurídica em todos os elementos presentes na esfera institucional e, quando necessário, o uso da violência. As funções do poder estatal estariam diretamente associadas à organização dos fatores “naturais” do supostamente oposto ao Estado, ou seja, a sociedade civil entendida como a comunidade heterogênea, cooperativa, passivamente participativa e produtora do “capital social” necessário para fomentar instituições e movimentos de cogestão e associação das unidades administrativas e espaciais, substituindo os serviços públicos oferecidos pelo Estado. O exército de técnicos, servidores e intelectuais, como burocratas a serviço da governança, organizariam o novo tipo de planejamento com ponto nevrálgico na relação entre Estado e mercado.

Nessa perspectiva, o espaço é entendido como infraestrutura e aspecto fenomênico da regularidade harmônica das leis do mercado, que atenderia às demandas da sociedade civil e suas instituições com serviços específicos, ou seja, como unidade de custo. As relações sociais que compõem a produção do espaço e sua desigualdade de desenvolvimento, o trabalho acumulado, as relações de encontro, troca e os aspectos extraeconômicos plasmados e determinativos de sua produção são reduzidos “a combinação de serviços setoriais e a proximidade de pessoas e empresas no urbano” que permitem a cada unidade territorial as “vantagens competitivas” no mercado mundial.

As dimensões do espaço são entendidas como estruturas rígidas e âncoras de investimentos e “desenvolvimento” a soldo da mobilidade, do volume e das necessidades do capital. Da gestão urbana e local, segundo relatório do BM (2000BM. BANCO MUNDIAL. Cities in transition: World Bank urban and local strategy. Washington DC: World Bank , 2000. ), o espaço é concebido como molde das instituições e do Estado independentemente de sua escala, incorporando à lógica da gestão local os níveis estadual e federal da administração estatal (BM, 2000BM. BANCO MUNDIAL. Cities in transition: World Bank urban and local strategy. Washington DC: World Bank , 2000. ). Nos termos da governança, o urbano é quantificado em volume de infraestrutura, serviços, proximidade geométrica entre pessoas e empresas ganhando relevância para promover ajustes políticos interfederativos.

Analisados os componentes da “teoria política e geográfica” da agência internacional para os países periféricos, é possível verificar a simbiose entre governança e urbano que, como vimos no nosso ponto de chegada, conferiu ao BM estratégia de investimentos no contexto do rearranjo político da administração estatal internacional, especialmente na América Latina. Além da natureza isolada dos projetos e investimos da agência e a escala local de sua intervenção, a posição privilegiada do BM também lhe conferiu poder ideológico cuja governança revela a penetração de perspectivas políticas de longo prazo e em vários níveis de Estado, incluindo a escala nacional, com projetos macroestruturais, reciclando os ajustes estruturais na reprodução dos espaços urbanos.

Conclusão

Antes de concluir, cabe citar o balanço dos técnicos do BM a respeito dos projetos urbanos nos países mutuários e sua função no conjunto dos ajustes estruturais na transição para o século XXI. No “balanço”, os ajustes da administração estatal e as reestruturações urbanas tinham caráter pedagógico e, dado o seu perfil ideológico, conduziam a:

  • • Replicabilidade - promover melhorias duradouras nos resultados, particularmente na elevação dos padrões de vida dos pobres urbanos em escala proporcional às suas demandas;

  • • Relevância - mobilizando habilidades e conhecimentos em uma ampla gama de questões urbanas e oferecendo assistência com projetos flexíveis, prazos realistas, e formas apropriadas de financiamento;

  • • Alcance - garantindo que mais governos locais, de tamanhos variados, juntamente com suas contrapartes do governo nacional, podem ser alcançados diretamente (ou, mais freqüentemente, indiretamente) do que por meio de projetos tradicionais de desenvolvimento urbano ou outras operações (BM, 2000BM. BANCO MUNDIAL. Cities in transition: World Bank urban and local strategy. Washington DC: World Bank , 2000. , p. 13).

Somam-se a isso a introdução nos países periféricos das formas de trabalho burocrático-administrativo dos técnicos de agência de planejamento (públicas e privadas), os arranjos políticos dos ciclos de ajustes anteriores e a internalização das premissas ideológicas das agências internacionais nas esferas da sociedade civil, consubstanciando com elementos e “ambientes” adequados a transição do planejamento urbano e territorial para a “gestão do mercado” (market-base) das cidades (BM, 1995BM. BANCO MUNDIAL. Políticas urbana y desarrollo económico: un programa para el decenio de 1990. Washington DC: Banco Internacional de Reconstrucción y Fomento/Banco Mundial, 1995., 2000BM. BANCO MUNDIAL. Cities in transition: World Bank urban and local strategy. Washington DC: World Bank , 2000. , 2009BM. BANCO MUNDIAL. Relatório Anual de 2009. Washington DC: World Bank , 2009. , 2011BM. BANCO MUNDIAL. Relatório Anual de 2011. Washington DC: World Bank , 2011. , 2015aBM. BANCO MUNDIAL. Governança metropolitana no Brasil: subsídios para a construção de uma agenda e de uma estratégia. Washington DC: World Bank , 2015a., 2015bBM. BANCO MUNDIAL. Relatório Anual de 2015. Washington DC: World Bank , 2015b.), mobilizando consciências nos países periféricos para internalizar as práticas neoliberais da agência nos campos do planejamento e do Estado e que, a longo prazo, dispensam os empréstimos (Arantes, P., 2004ARANTES, P. F. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. ; Pereira, 2010PEREIRA, J. M. M. O Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro (1944-2008). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.).

A partir dessa trajetória e perspectiva, podemos concluir que a governança se tornou instrumento dos ajustes promovidos pelo BM, demonstrando sua posição privilegiadana produção de conceitos, projetos e temas em escala internacional e a ideologia que difunde certa concepção dominante favorável à acumulação capitalista por meio de forças econômicas e extraeconômicas, sobretudo num dos campos mais complexos da reprodução humana: o urbano.

Referências

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  • 1
    Em princípio, o moderno conceito de governança não tangia à política e ao planejamento, mas à teorização e à aplicabilidade econômica, sobretudo nas estratégias gerenciais, burocrático-administrativas e de controle sobre certo tipo de trabalho, com hegemonia do capital financeiro e mensuração na carteira de negócios de grupos de investidores e empresas monopólicas em diferentes bolsas de valores (Chesnais, 2002CHESNAIS, F. A teoria do regime de acumulação financeirizado: conteúdo, alcance e interrogações. Economia e Sociedade, Campinas: Unicamp, v. 11, n. 2002.). Com os ganhos da estratégia gerencial, o efeito na produção de consensos e a aceitação dos parâmetros ideológicos dominantes, o conceito migrou, com novos contornos, para a teoria política, que, em momentos de intensa reestruturação do Estado, nos anos 1980-90, ganhou colorações de harmonização de conflitos, flexibilização das estruturas administrativas de acordo com a positividade das leis do mercado e princípio universal da gerência (Cardoso, 2019CARDOSO, F. S. O Banco Mundial e a emergência da governança como prática urbana: da reestruturação do capital ao ajuste institucional. Rebela - Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos, v. 9, n. 3, p. 536-562, 2019., 2022CARDOSO, F. S. A fantasmagórica governança metropolitana no Brasil: reprodução do espaço e prática teórico-ideológica do planejamento a soldo o capital. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. doi:10.11606/T.8.2021.tde-25052022-144421.
    https://doi.org/10.11606/T.8.2021.tde-25...
    ).
  • 2
    Nesse período, o BM dispensava a apresentação de projetos e contrapartidas, mas já exigia que se aceitassem condições para ajustes nos empréstimos divididos em structural adjustment loanse sectorial adjustment loans.
  • 3
    A área de desenvolvimento urbano do BM cresceu desde os anos 1970, passando de 10 para 700 especialistas. Em 1981, o Departamento de Projetos Urbanos passou a avaliar operações em novas seis divisões, contando com o acúmulo do trabalho do Economic Development Institute, que promoveu cursos nas áreas de gestão e planejamento nos países mutuários formando quadros políticos e administrativos. Programas urbanos e macroeconômicos do BM foram incorporados ao discurso de “combate à pobreza” com valores liberais da política externa estadunidense implementados pelo ex-secretários da defesa dos EUA (1961-1968) e o presidente do BM, entre 1968 e 1981, Robert McNamara, sendo aplicados depois ao FMI e a outras agências internacionais. McNamara proferiu três discursos importantes sobre o tema ao longo dos anos 1970: no Chile, em 1972, na Assembleia Anual conjunta do BM com o FMI, em Nairóbi, em 1973, com apelo à “justiça social”, e na Assembleia de Governadores, em Washington, em 1975, com foco urbano. O “combate à pobreza” ampliou a atuação do BM para políticas urbanas no contexto da Guerra Fria.
  • 4
    O debate que substancia as resoluções do Consenso de Washington tem início em 1989 (Pereira, 2010), mas a sistematização das pautas neoliberais para os países periféricos resultou de reunião realizada em 16 de janeiro de 1993. Entre os participantes, havia representantes do BM, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), do FMI e da Organização das Nações Unidas (ONU), proprietários de grandes empresas, representantes do grande capital, intelectuais ligados a instituições privadas e gestões presidenciais estadunidenses anteriores, muitas consideradas ultraliberais. As resoluções do encontro foram divididas nas seguintes orientações: (1) disciplina fiscal, (2) contenção de despesas públicas, (3) reformas tributárias, (4) liberalização financeira, (5) controle cambial, (6) liberalização do mercado, (7) abertura aos investimentos externos diretos (IED), (9) privatizações, (9) desregulamentação ou abolição de regulações restritivas de investimentos e (10) direitos de propriedade assegurados pelo Estado (Ferreira, 2007FERREIRA, J. S. W. O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano. Petrópolis, RJ: Vozes /São Paulo: Ed. Unesp /Salvador: Anpur, 2007.).
  • 5
    Conforme Davis (2006DAVIS, M. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. ), a governança se tornou tema aglutinador e abarcou outros conceitos dos programas do BM tais como empoderamento, participação, justiça social, capital humano e social. Tais conceitos transferem abstratamente a luta de classes para a dimensão institucional e, em nome da coesão civil, tornam-se álibi para práticas políticas que visam rearranjos estatais contra crises de todos os tipos (incluindo a urbana) e, a partir desses rearranjos, consenso para transferência de fundos públicos à iniciativa privada assegurando a estabilidade econômica e a garantia de contratos. Aliás, em nome da governança, o BM e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) financiaram Estados, instituições da sociedade civil, igrejas, partidos políticos e ONG excluindo arbitrariamente sindicatos trabalhistas e movimentos sociais mais radicais.
  • 6
    Nesse documento, a noção de governança é naturalizada como algo posto, diferentemente dos documentos anteriores, que ainda punham sua aplicação em perspectiva. Contudo, cabem as afirmações de que a governança seria “a articulação necessária de políticas especiais” cuja aplicação decorreria dos “princípios fundamentais da geografia econômica” e de sua tendência - natural - ao equilíbrio e à harmonia entre os grupos sociais e as regiões, processo posto pela “urbanização como pré-requisito inevitável ao crescimento dos países - assim como o adensamento para a transformação econômica em direção à industrialização - [...] [por isso] os governos podem estar preocupados com as disparidades de renda e de bem-estar em face da concentração da produção em áreas determinadas. A solução seria, portanto, ‘promover a integração econômica para reduzir essas disparidades’[, mediante a] integração [que] exige instituições e regulamentação a fim de oferecer serviços básicos e certeza a todos; infraestrutura para garantir a conectividade espacial e permitir às pessoas se deslocar e ter acesso ao mercado de trabalho; educação e cultura; e intervenções espacialmente direcionadas, como obras de melhoria nas favelas e incentivos à inovação. Intervenções como essas possibilitarão a convergência das condições de vida em todo o espaço, de maneira que todos possam usufruir dos benefícios da urbanização”, regulamentação identificada imediatamente como sendo a governança, sem grandes explicações além dos “princípios da geografia econômica” (BM, 2015aBM. BANCO MUNDIAL. Governança metropolitana no Brasil: subsídios para a construção de uma agenda e de uma estratégia. Washington DC: World Bank , 2015a., p. 25).
  • 7
    Para o trajeto específico da governança metropolitana no Brasil, o papel do BM nas decisões e na implementação de critérios específicos de gestão urbana no país e os potenciais desdobramentos desse processo, ver Cardoso (2022CARDOSO, F. S. A fantasmagórica governança metropolitana no Brasil: reprodução do espaço e prática teórico-ideológica do planejamento a soldo o capital. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. doi:10.11606/T.8.2021.tde-25052022-144421.
    https://doi.org/10.11606/T.8.2021.tde-25...
    ).
  • 8
    O descompasso entre a origem das medidas aplicadas nos países centrais e os ajustes estruturais nos países periféricos é evidente. Nas décadas de 1970-80, o empreendedorismo urbano subsidiou o planejamento da atração de investimentos como solução dos problemas urbanos. Londres e Baltimore, tornaram-se exemplos de reversão do crescimento econômico pela requalificação urbana em áreas tidas como deterioradas (Arantes, O., 2011ARANTES, O. B. F. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, O. B. F.; MARICATO, E.; VAINER, C. (Org.). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. p. 11-74. ; Harvey, 2008HARVEY, D. Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008. ). No caso dos EUA, diante da crise fiscal dos municípios, resultante da desregulamentação promovida na gestão do presidente Ronald Reagan (1981-89), Baltimore e Nova York foram forçadas a emitir títulos no mercado, privatizando, taxando e cobrando serviços básicos em áreas comerciais tidas como business improvement districts (BID) para elevar os investimentos e assegurar alguma autonomia e poder de gestão municipal.
  • 9
    Dois projetos da agência ganharam relevância no combate à pobreza urbana, o slums upgrading e o site and service (Davis, 2006DAVIS, M. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. ). Os pobres levariam ao crescimento econômico por intermédio de empregos formais e informais, das políticas intituladas target-based e da filantropia governamental (Arantes, P., 2004ARANTES, P. F. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. ). Na América Latina, esses programas desmantelaram a legislação trabalhista e os serviços de proteção social e assistência universal com cortes e reduções de subsídios (Katz, 2016KATZ, C. Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo. São Paulo: Expressão Popular/Perseu Abramo, 2016. ). Assim, os próprios pobres subsidiariam o combate à pobreza, por meio de taxas e impostos baseados no crescimento urbano.
  • 10
    Segundo Davis (2006DAVIS, M. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. ), na América Latina, a experiência mais avançada e pioneira de CDS foi em Cali, na Colômbia, com deterioração dos serviços e da administração pública municipal em virtude de programas voltados para o mercado. No caso brasileiro, o município de Santo André foi o primeiro a estabelecer relações com a Cities Alliance, a aplicar o CDS e promover a governança como método de gestão empresarial do município. Relatando passiva e acriticamente essa experiência, Rolnik e Somekh (2004ROLNIK, R.; SOMEKH, N. Governar as metrópoles: dilemas de recentralização. In: RIBEIRO, L. C. Q.; LAGO, L. C.; AZEVEDO, S.; SANTOS JÚNIOR, O. A. (Col.). Metrópoles: entre a coesão e a fragmentação, a cooperação e o conflito. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo/Rio de Janeiro: Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, 2004. p. 111-124., p. 119) reconhecem que o município incorporou a agenda do BM e suas propostas de “gestão inovadora e compartilhada [que representaram] [...] não só uma forma de cooperação entre Estado, mercado e comunidade, mas também a constituição de um sistema de governança empreendedora, superando os tradicionais conflitos municipalistas”. Em escala metropolitana, os primeiros CDS promovidos pelo BM, com assessoria do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) foram implementados nas Regiões Metropolitanas de Recife e Belo Horizonte (Alvarez, 2008ALVAREZ, I. A. P. A reprodução da metrópole: o projeto eixo Tamanduatehy. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. ; Brasil, 2004BRASIL. CÂMARA DOS Deputados; COMISSÃO DE DESENVOLVIMENTO URBANO E INTERIOR. A questão metropolitana no Brasil. Brasília, DF: Câmara dos Deputados/Coordenação de Publicações, 2004. (Série Ação Parlamentar, 263.)), modelos que também se tornaram experiências de sucesso para o BM (2015aBM. BANCO MUNDIAL. Governança metropolitana no Brasil: subsídios para a construção de uma agenda e de uma estratégia. Washington DC: World Bank , 2015a.). Ainda de acordo com Davis (2006DAVIS, M. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. ), soma-se a essas experiências a atuação da Cities Alliance na Ásia, no Leste Europeu e na África, difundindo a governança urbana como parte dos ajustes estruturais.
  • 11
    Em 1999, o BM e a UN-Habitat lançaram o Plano de Ação de combate às favelas para promover a Cities Alliance envolvendo dez governos doadores (países do G7 e outras três nações) e Nelson Mandela como patrono; o plano foi incorporado à Declaração do Milênio para “beneficiar” mais de 100 milhões de pessoas em favelas e assentamentos precários (scaling-up) e acentuar as “boas práticas” (good or best practice) de governança, objetivando: (1) aumentar a visibilidade das instituições e agências internacionais sob orientação político-ideológica dos EUA, (2) implementar programas de baixo custo, (3) mobilizar recursos via mercado, (4) aprimorar o discurso do combate à pobreza identificando nos pobres um fator de produtividade econômica e (5) difundir a gestão pública urbana, a identidade local e o pagamento de serviços por meio de taxas pelo uso da infraestrutura urbana (Arantes, P., 2004ARANTES, P. F. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. ; Davis, 2006DAVIS, M. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. ).
  • 12
    A classificação máxima, de triplo A, só existe nos EUA; as demais cidades definidas como C ou D.
  • 13
    Essas práticas tiveram efeito nos mercados mundial e nacional. Por exemplo, os títulos de médio prazo da Eurobond Marketingreceberam cerca de US$ 125 milhões em 1996 e US$ 400 milhões em 1997 lançados pela cidade do Rio de Janeiro e ainda um trilhão de liras por Buenos Aires.

Editado por

Editor de seção:

Fabio Betioli Contel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2021
  • Aceito
    14 Jul 2022
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