Acessibilidade / Reportar erro

“Na minha terra, ninguém entra para retirar cano algum!” Conflitos pela água e o hidronegócio no Recôncavo Baiano

Resumo

Este artigo analisa os conflitos pela água decorrentes de um processo de des-re-territorialização de famílias ribeirinhas atingidas pela construção, na década de 1980, da barragem Pedra do Cavalo, no Recôncavo Baiano. A pesquisa baseou-se numa metodologia qualitativa, a partir de um estudo de caso, usando entrevistas semiestruturadas com as famílias reassentadas na Agrovila do Sobrado, no município de Cabaceiras do Paraguaçu. Interpretados com base na literatura e em perspectivas da ecologia política, justiça ambiental e geografia crítica, os resultados mostram que o impacto do hidronegócio nessas famílias se manifesta em três tipos de conflito pela água, decorrentes: (1) do processo de deslocamento compulsório provocado pela construção da barragem, (2) da falta de acesso à água em qualidade e quantidade no novo território e (3) da perda do acesso gratuito a fontes de água comunitária essenciais para a manutenção das atividades reprodutivas das famílias. Assim, a vida dos atingidos pela barragem é caracterizada por uma luta incessante contra diversas formas de despossessão e pela defesa das águas comuns.

Palavras-chave:
Direito à água; Conflitos ambientais; Águas comuns; (Des-re)territorialização; Projeto hidrelétrico

Abstract

This article analyzes the conflicts over water resulting from a process of de-re-territorialization of riverside families affected by the construction of the Pedra do Cavalo dam, in the 1980s, in the region of Recôncavo Baiano. The investigation is based on a qualitative methodology, focusing on a case study in which we conducted semi-structured interviews with resettled families in Agrovila do Sobrado, in the Municipality of Cabaceiras do Paraguaçu. Through interpretations based on the literature and perspectives of political ecology, environmental justice and critical geography, the results have demonstrated that the impacts of “hydro business” on these families has led to three types of water conflicts, resulting from: (1) forced displacement caused by the construction of the dam; (2) a lack of access to water, both in quality and quantity, on the new territory; and, (3) the loss of free access to community water sources essential for maintaining reproductive activities. Thus, the lives of the families affected by the dam are characterized by an incessant struggle against various forms of dispossession and by defending the right to water commons.

Keywords:
Right to water; Environmental; Conflicts; (De-re)territorialization; Water commons; Hydroelectric; project

Résumé

Cet article analyse les conflits autour de l’eau résultant d’un processus de dé-re-territorialisation des familles riveraines affectées par la construction, dans les années 1980, du barrage de Pedra do Cavalo, dans le Recôncavo Baiano. La recherche s’est appuyée sur une étude de cas utilisant des entretiens semi-structurés menés avec des familles réinstallées à Agrovila do Sobrado, dans la municipalité de Cabaceiras do Paraguaçu. Les résultats de cette démarche qualitative, basée sur la littérature et perspectives d’écologie politique, justice environnementale et géographie critique, montrent que les impacts de l’hydrobusiness sur ces familles se manifestent à travers trois types de conflits résultant: (1) du processus de déplacement forcé causé par la construction du barrage; (2) du manque d’accès à l’eau en quantité et en qualité sur le nouveau territoire; et, (3) de la perte d’accès gratuit aux eaux de source essentielles à la manutention des activités reproductives. Ainsi, la vie des familles affectées par le barrage est caractérisée par une lutte incessante contre diverses formes de dépossession et pour la défense d’eaux communes.

Mots-clés:
Droit à l’eau; Conflits environnementaux; (De-re)territorialisation; Eaux communes; Projets hydroélectriques

Introdução

Nas últimas décadas, com o avanço do neoliberalismo e a acentuação das desigualdades sociais e da crise ambiental, os conflitos pela água têm se multiplicado pelo mundo (Pacific InstitutePACIFIC INSTITUTE. Water conflict chronology list. Available at: http://www.worldwater.org/conflict/list . Viewed on: June 8, 2022.
http://www.worldwater.org/conflict/list...
, [s.d.]). Tais conflitos podem se deflagrar em situação tanto de escassez, entendida não apenas como condição física, mas como problema de natureza política (Porto-Gonçalves, 2006PORTO-GONÇALVES, C. W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. ), quanto de abundância, quando ocorre a apropriação econômica desse recurso, criando uma distribuição desigual entre usuários (Ribeiro; Santos; Silva, L., 2019RIBEIRO, W. C.; SANTOS, C. L. S.; SILVA, L. P. B. Conflito pela água, entre a escassez e a abundância: marcos teóricos. Ambientes, v. 1, n. 2, p. 11-37, 2019. doi: 10.48075/amb.v1i2.23619.
https://doi.org/10.48075/amb.v1i2.23619...
). Os projetos hidrelétricos são um exemplo emblemático deste tipo de apropriação capitalista da água em seu contexto de abundância.

No Brasil, o número de conflitos pela água tem aumentado significativamente. Os relatórios anuais da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostram que, entre 2015 e 2021, este número mais que dobrou no país, passando de 135 conflitos (atingindo 42.337 famílias) em 2015 a 304 conflitos (atingindo 56.135 famílias) em 2021. Na Bahia, o número triplicou, passando de 27 conflitos (atingindo 2.687 famílias) em 2015 a 80 conflitos (atingindo 6.568 famílias) em 2021 (CPT, [2015]CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Tabela 7 - Conflitos pela água. Goiânia, [2015]. Available at: https://www.cptnacional.org.br/downlods/summary/6-conflitos-pela-agua/14010-conflitos-pela-agua-2015 . Viewed on: June 10, 2022.
https://www.cptnacional.org.br/downlods/...
, [2021CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Listagem de conflitos pela água. Goiânia, [2021]. Available at: https://www.cptnacional.org.br/downlods/summary/6-conflitos-pela-agua/14255-conflitos-pela-agua-2021 . Viewed on: June 10, 2022.
https://www.cptnacional.org.br/downlods/...
]). Para a CPT, são conflitos pela água:

[...] ações de resistência, em geral coletivas, para garantir o uso e a preservação das águas e de luta contra a construção de barragens e açudes, contra a apropriação particular dos recursos hídricos e contra a cobrança do uso da água no campo, quando envolvem ribeirinhos, atingidos por barragens, pescadores etc. (Gonçalves, A., 2013GONÇALVES, A. A água e a sede do capital. In: CANUTO, A.; LUZ, C. RS.; LAZZARIN, F. Conflitos no campo: Brasil 2013. Goiânia: CPT Nacional, 2013. p. 92-95. , p. 92).

A maioria desses conflitos é provocada pelo chamado “hidronegócio” (Vainer, 2008VAINER, C. B. Conceito de “atingido”: uma revisão do debate. In: ROTHMAN, F. D. (Org.). Vidas alagadas: conflitos socioambientais, licenciamento e barragens. Viçosa: UFV, 2008. p. 39-63.), uma forma de territorialização do capital em complexos produtivos locais, em conexão com os circuitos do capital globalizado. O hidronegócio baseia-se na exploração e no aproveitamento da água para geração de energia, consumo humano ou produção agropecuária em grande escala (Oliveira, J. C., 2019OLIVEIRA, J. C. Neoliberalismo, novas morfologias do trabalho e subjetividade: implicações sobre o hidronegócio e a organização social. Espaço e Economia - Revista Brasileira de Geografia Econômica, v. 8, n. 16, p. 1-23, 2019. doi: https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.9381.
https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.9...
). Esse tipo de territorialização:

[...] garante a apropriação privada da riqueza comum, além de aferição de taxas elevadas de lucros em função da sustentação de um status de commodity que tanto a água, quanto a energia hidráulica ou mesmo a produção de alimentos - com o aporte da irrigação - mantêm no cenário econômico mundial (Oliveira, J. C., 2019OLIVEIRA, J. C. Neoliberalismo, novas morfologias do trabalho e subjetividade: implicações sobre o hidronegócio e a organização social. Espaço e Economia - Revista Brasileira de Geografia Econômica, v. 8, n. 16, p. 1-23, 2019. doi: https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.9381.
https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.9...
, p. 11).

Estudos sobre conflitos pela água no Brasil têm mostrado as implicações socioambientais do hidronegócio ou “agrohidronegócio” (Mendonça, 2010MENDONÇA, M. R. Complexidade do espaço agrário brasileiro: o agrohidronegócio e as (re)existências dos povos cerradeiros. Terra Livre, v. 1, n. 34, p. 189-202, 2010. Availabe at: Availabe at: https://publicacoes.agb.org.br/terralivre/article/view/318/301 . Viewed on: June 10, 2022.
https://publicacoes.agb.org.br/terralivr...
; Thomaz Jr., 2017THOMAZ JUNIOR, A. Degradação sistêmica do trabalho no agrohidronegócio. Mercator, Fortaleza, v. 16, p. 1-20, 2017. doi: https://doi.org/10.4215/rm2017.e16020
https://doi.org/10.4215/rm2017.e16020...
)13 13 Mendonça (2010, p. 191) define o conceito de agrohidronegócio como “a expansão das monoculturas para a produção de energia (cana-de-açúcar, soja, palma etc.) combinadas com o represamento dos rios (empreendimentos barrageiros) para garantir energia limpa, abastecimento de água aos grandes complexos agroindustriais e as cadeias produtivas que alimentam a expansão e reprodução do capital”. na busca de novos espaços e arranjos para acumulação do capital. Na região do Nordeste semiárido, onde se desenvolveu este estudo, a implantação de perímetros irrigados nos vales úmidos, especialmente para a fruticultura de exportação (Pereira; Cuellar, 2015PEREIRA, G. R.; CUELLAR, M. D. Z. Conflitos pela água em tempos de seca no Baixo Jaguaribe, Estado do Ceará. Estudos avançados, v. 29, n. 84, p. 115-137, 2015. doi: https://doi.org/10.1590/S0103-40142015000200008.
https://doi.org/10.1590/S0103-4014201500...
), os barramentos para aproveitamento hidrelétrico, a mineração, a carcinicultura, a pecuária intensiva e a silvicultura de eucalipto são formas de desenvolvimento desigual, em que a apropriação da água e de seus múltiplos usos e a luta por sua reapropriação têm papel preponderante (Pires; Ferreira, 2012PIRES, A. P. N.; FERREIRA, I. M. Cercas e secas: reflexões sobre a água no nordeste semi-árido. In: JORNADA DO TRABALHO, 13., 9-12 out. 2012, Presidente Prudente, SP: Unesp. Anais... Presidente Prudente, 2012. Available at: http://www.proceedings.scielo.br/pdf/jtrab/n1/02.pdf . Viewed on: June 8, 2022.
http://www.proceedings.scielo.br/pdf/jtr...
; Silveira; Silva, M., 2019SILVEIRA, S. M. B.; SILVA, M. G. Conflitos socioambientais por água no Nordeste brasileiro: expropriações contemporâneas e lutas sociais no campo. Katálysis, v. 22, n. 2, p. 342-352, 2019. doi: https://doi.org/10.1590/1982-02592019v22n2p342.
https://doi.org/10.1590/1982-02592019v22...
; Peixoto; Soares; Ribeiro, 2022PEIXOTO, F. S.; SOARES, J. A.; RIBEIRO, V. S. Conflitos pela água no Brasil. Sociedade & Natureza, v. 34, p. 1-13, 2022. doi: https://doi.org/10.14393/SN-v34-2022-59410.
https://doi.org/10.14393/SN-v34-2022-594...
).

Neste artigo, analisamos os conflitos ambientais desencadeados pelos processos de des-territorialização e re-territorialização de famílias ribeirinhas atingidas pela construção da barragem hidrelétrica Pedra do Cavalo, na década de 1980, que reteve as águas do rio Paraguaçu para geração de energia e abastecimento dos municípios da Região Metropolitana de Salvador e da Região de Feira de Santana, Bahia. Analisamos os diversos tipos de hidronegócio envolvidos nesses processos de “acumulação por despossessão” (Harvey, 2003HARVEY, D. The new imperialism. Oxford: Oxford University Press, 2003.) e os conflitos deles decorrentes, ao longo dos anos. Entendemos o conflito pela água como um tipo de conflito ambiental, que, segundo Acselrad (2004ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004., p. 31), envolve:

[...] grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriação do meio que desenvolve ameaçada por impactos indesejáveis - transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos - decorrentes do exercício das práticas de outros grupos.

O primeiro conflito pela água analisado ocorre no processo de des-territorialização das famílias ribeirinhas engendrado pela construção da barragem, formando um imenso lago e provocando a remoção forçada de centenas de famílias que viviam às margens do rio. Esse tipo de hidronegócio, que chamaremos de “hidronegócio por barragem”, enquadra-se na categoria dos grandes projetos de investimento: grandes obras de infraestrutura de cunho desenvolvimentista que movimentam vultosas cifras de dinheiro, mão de obra e recursos naturais (Cruz; Silva, V., 2010CRUZ, C. B.; SILVA, V. P. Grandes projetos de investimento: a construção de hidrelétricas e a criação de novos territórios. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 22, n. 1, p. 181-190, 2010. Available at: https://www.scielo.br/j/sn/a/Kgnz4kTyWrgxQJsMtvsxmcD/?lang=pt&format=pdf . Viewed on: June 10, 2022.
https://www.scielo.br/j/sn/a/Kgnz4kTyWrg...
).

O segundo conflito surge no processo de re-territorialização a partir da falta de acesso à água em quantidade e qualidade provocado pelo que chamamos de “hidronegócio da escassez”. Essa condição de precariedade configura-se não apenas pelas condições ambientais menos favoráveis no novo território, mas também pelo descompromisso do poder público de prover acesso à água para as famílias reassentadas. Assim, esse conflito se expressa na violação do direito à água, a saneamento básico e a moradia digna e pela omissão do Estado em cumprir sua responsabilidade como garantidor desses direitos para quem foi submetido ao deslocamento forçado. Aqui, o hidronegócio se manifesta de forma indireta ou velada, pela escala regional das suas atividades e dos seus impactos, afetando localidades muitas vezes distantes do local de extração. A ausência do Estado na provisão de água para estas comunidades também atua como produtor de escassez. Essa ausência é paradigmática em assentamentos que não apresentam atratividade lucrativa suficiente para o mercado que justificasse investimento estatal.

O terceiro conflito decorre de um processo de mercantilização da água a partir da implantação, em 2008, de novas redes de abastecimento da Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa)14 14 A Embasa “é uma sociedade de economia mista de capital autorizado, pessoa jurídica de direito privado, tendo como acionista majoritário o Governo do Estado da Bahia” (Embasa, [s.d.]). na região, que implicam cobrança pelo uso da água. Esse processo de cercamento da água se acentua mais recentemente com o bloqueio do acesso às águas subterrâneas que abasteceram a comunidade reassentada por mais de 30 anos para suas atividades reprodutivas, principalmente a produção de alimentos para sua subsistência. Esse conflito surge de outro tipo de hidronegócio, mais diretamente ligado ao serviço de abastecimento de água e de saneamento básico, o que chamamos de “hidronegócio por cobrança”. Esse setor tem passado por um processo de privatização no Brasil, especialmente diante do novo marco legal do saneamento básico (Brasil, 2020BRASIL. Presidência da República. Secretaria-Geral. Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico. DOU, 16 jul. 2020. Available at: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm . Viewed on: June 22, 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
), instituído em julho de 2020 pelo presidente Jair Bolsonaro sem a participação da sociedade brasileira.

Neste artigo, entendemos o território como espaço em disputa, que se constitui por meio de relações de poder desiguais entre as comunidades que o habitam e os agentes do Estado e do capital que o controlam e o dominam. A territorialidade destes diversos agentes manifesta-se de forma tanto material (nas práticas produtivas e reprodutivas de quem vive nele, nos projetos de desenvolvimento governamentais, nas atividades produtivas do setor privado etc.) quanto imaterial (no imaginário, nas memórias, nas representações, nos discursos, nos afetos etc.) (Saquet, 2007SAQUET, M. A . As diferentes abordagens do território e a apreensão do movimento e da (i)materialidade. Geosul, v. 22, n. 43, p. 55-76, 2007.; Godoi, 2014GODOI, E. P. Territorialidade: trajetória e usos do conceito. Raízes - Revista de Ciências Sociais e Econômicas, v. 34, n. 2, p. 8-16, 2014. Available at: http://raizes.revistas.ufcg.edu.br/index.php/raizes/article/view/411/393 . Viewed on: June 10, 2022.
http://raizes.revistas.ufcg.edu.br/index...
). O território também se (re)produz por relações particulares entre sociedade e natureza, com base em processos e sistemas valorativos que variam entre grupos, culturas e lugares. Existe, portanto, dentro do mesmo território, uma multi-territorialidade (Haesbaert, 2003HAESBAERT, R. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, v. 29, n. 1, p. 11-24, 2003. Available at: https://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/38739 . Viewed on: June 10, 2022.
https://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/3...
; Fernandes, 2009FERNANDES, B. M. Sobre a tipologia de territórios. In: SAQUET, M. A.; SPOSITO, E. S. Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular/Unesp, 2009. p.197-216.). A água é um dos componentes marcantes dessas relações socioambientais que torna o território num espaço valorizado e disputado.

Nessa perspectiva, Torres (2007TORRES, A. T. G. Hidroterritórios (novos territórios da água): os instrumentos de gestão dos recursos hídricos e seus impactos nos arranjos territoriais. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2007. ) usa o conceito de hidroterritório para enfatizar o papel preponderante da água na organização do espaço. Esse conceito ajuda a reconhecer a água como parte constitutiva e indissociável do território, fazendo com que a defesa do acesso à água e a defesa do território sejam vistos como parte de uma mesma luta para as comunidades e movimentos sociais que resistem à apropriação, privatização e mercantilização da natureza (Oliveira, J. S., 2011OLIVEIRA, J. S. A participação dos movimentos sociais na disputa pela água no Pontal do Paranapanema. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Geografia) - Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente, SP, 2011.).

Os conflitos pela água frequentemente envolvem lutas pela reapropriação do controle do uso e acesso à água e pela defesa da água como comum. Segundo Rowe (2002ROWE, J. Fanfare for the commons: the trees, the air, open spaces, the sky. UTNE Reader 109, p. 40-43, 2002. , [s.p.], tradução nossa) o comum pode ser entendido como:

[...] o vasto reino que está fora do mercado econômico e do Estado institucional e que todos nós normalmente usamos sem pedágio ou preço. A atmosfera e os oceanos, as línguas e as culturas, os depósitos de conhecimento e sabedoria humanos, os sistemas informais de apoio da comunidade, a paz e o sossego que ansiamos, os blocos genéticos da vida - todos esses são aspectos dos bens comuns.

Portanto, o comum situa-se além da noção de propriedade e dos âmbitos público e privado. Nesta perspectiva, o comum “deixa de ser objeto ou coisa sob o domínio de alguns, para ser entendido como ação coletiva de produção, apropriação e reapropriação do que existe e o que se faz” (Gutiérrez, 2017GUTIÉRREZ, R. Horizontes comunitario-populares: producción de lo común más allá de las políticas estado-céntricas. Madrid: Traficantes de Sueños, 2017., p. 75). Assim, trata-se “de pensar o comum como expressão de um processo antagônico que nega o capital e, ao mesmo tempo, como capaz de produzir e reproduzir a vida social sob outros fundamentos”15 15 Com base nessas definições, usamos o termo “comum” em vez de “bem comum”, para não remeter a uma ideia do comum como objeto ou propriedade. (Navarro, 2013NAVARRO, M. L. Luchas por lo común contra el renovado cercamiento de bienes naturales en México. Bajo el Volcán, v. 13, n. 21, p. 161-169, 2013. Available at: http://www.apps.buap.mx/ojs3/index.php/bevol/article/view/1475/1071 . Viewed on: June 10, 2022.
http://www.apps.buap.mx/ojs3/index.php/b...
, p. 165).

Usamos os conceitos des-territorialização e re-territorialização para dar conta dos processos de remoção, deslocamento e reassentamento compulsórios de famílias atingidas por barragem, entendidos como processos de despossessão e precarização socioambientais que o hidronegócio produz. Entendemos a des-territorialização como a perda de territórios sofrida por grupos subalternizados, historicamente marginalizados, como comunidades tradicionais indígenas, quilombolas, fundo de pasto, pesqueiras, extrativistas, bem como pequenos agricultores, posseiros e trabalhadores/as sem-terra.

Esse tipo de des-territorialização violenta e permanente provoca profundas mudanças que implicam a perda do território construído por meio de relações duradouras de afeto e pertencimento. As famílias atingidas por processos de des-territorialização são lançadas à própria sorte num mundo desconhecido, muitas vezes sem diálogo e participação nos processos decisórios, resultando em perdas simbólicas e materiais irreparáveis. De acordo com Haesbaert (2003HAESBAERT, R. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, v. 29, n. 1, p. 11-24, 2003. Available at: https://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/38739 . Viewed on: June 10, 2022.
https://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/3...
, p. 18):

[...] embora privilegiemos uma noção de território que vincule indissociavelmente [...] as dinâmicas, política e cultural, os processos de desterritorialização estão sempre atrelados, em maior ou menor intensidade, à dinâmica econômica que dilacera os espaços, subordina poderes políticos e condiciona (quando não direciona) a re-formulação de muitas estratégias identitárias.

Optamos pelo uso do conceito de des-territorialização para contemplar processos de expropriação na busca por enfatizar as relações de poder e as relações socioespaciais, socioambientais e mais-que-econômicas desses processos. A dimensão territorial permite apreender esses acontecimentos não apenas como simples deslocamentos, ou enxergar a perda não apenas em termos materiais ou quantitativos - pela área, tamanho ou valor econômico da terra - mas também em termos qualitativo, relacional e temporal. Pensar em termos territoriais, portanto, significa considerar as múltiplas dimensões e imbricações entre os elementos materiais e simbólicos, biofísicos e sociais, que constituem o território.

Adotamos o termo re-territorialização, preferíveis a reassentamento ou realocação, na mesma perspectiva de des-territorialização, pois esse processo não acaba nem se resolve com a aquisição de uma casa e um pedaço de terra. A re-territorialização se efetiva em relações sociais, culturais, ambientais e econômicas que se configuram progressivamente, ao longo do tempo, muitas vezes de forma conflituosa. Portanto, o conceito dá conta da amplitude e da complexidade espaço-temporal e ético-política desse processo, sempre perpassado por dinâmicas de poder entre os diversos sujeitos envolvidos.

Além disso, o conceito de re-territorialização refere-se aqui não apenas a ações e inações do Estado no processo de reassentamento de um grupo des-territorializado, mas também à luta contínua dos reassentados na produção de um novo território de existência. Como lembra Haesbaert (2003HAESBAERT, R. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, v. 29, n. 1, p. 11-24, 2003. Available at: https://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/38739 . Viewed on: June 10, 2022.
https://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/3...
), des-territorialização implica necessariamente re-territorialização, a dupla face de um mesmo processo. “Dessa forma, territorializam-se hidrelétricas e, ao mesmo tempo, des-re-territorializam-se populações” (Bortone; Ludwig; Xavier, 2016BORTONE, F. A. S.; LUDWIG, M. P.; XAVIER, K. D. Contradições da modernidade no processo de des/re/territorialização do lugar: o caso dos atingidos pela construção da Hidrelétrica Candonga. Elo - Diálogos em Extensão, v. 5, n. 2, p. 1-12, 2016. doi: https://doi.org/10.21284/elo.v5i2.236.
https://doi.org/10.21284/elo.v5i2.236...
, p. 7).

A metodologia, de cunho qualitativo, contou com um levantamento bibliográfico e uma pesquisa de campo. Esta ocorreu em dezembro de 2021, na Agrovila do Sobrado, no município de Cabaceiras do Paraguaçu, onde foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os 21 moradores da comunidade que vivenciaram o processo completo de des-territorialização e re-territorialização. As entrevistas consistiram principalmente em perguntas sobre suas experiências ao longo do processo de remoção e reassentamento, os principais problemas, conflitos, conquistas, perdas e expectativas. Cada entrevista foi gravada e durou até uma hora. Também se entrevistou uma coordenadora da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do Estado da Bahia que lutou junto aos sindicatos dos municípios na década de 1980 em defesa dos direitos dos trabalhadores rurais atingidos pela barragem.

Na Figura 1, veem-se a localização da barragem Pedra do Cavalo e o lago formado pelas águas represadas, o Distrito de Geolândia no município de Cabaceiras do Paraguaçu, de onde as famílias ribeirinhas foram removidas, e a Agrovila do Sobrado, onde 22 foram reassentadas. Esse núcleo de reassentamento foi implantado na Fazenda Lagoa Comprida, numa área de 127 ha, a aproximadamente 3 km do Distrito de Geolândia e 5 km do território original das famílias.

Figura 1 -
Mapa do município de Cabaceiras do Paraguaçu

O artigo é estruturado a seguir em três partes principais. A primeira parte aborda o conflito decorrente do hidronegócio ligado à produção energética, que levou à des-territorialização de famílias ribeirinhas posseiras que viviam em terras de fazendeiros, no Distrito de Geolândia. Na segunda parte, analisamos o conflito gerado pela omissão do poder público em garantir o direito à água da população reassentada e as estratégias de resistência encontradas, nas negociações da comunidade com o poder público, para reduzir os problemas relativos ao acesso à água. Na terceira parte, apresentamos o mais recente conflito que surge com o cercamento dos recursos hídricos da comunidade, após a ligação da comunidade reassentada à rede de abastecimento da Embasa e o subsequente bloqueio do acesso às águas subterrâneas do aquífero, fonte essencial para a manutenção de suas atividades reprodutivas. Nas considerações finais, refletimos sobre formas possíveis de reduzir as desigualdades e injustiças ambientais que continuam precarizando a vida de inúmeras famílias e comunidades tradicionais na Bahia e no Brasil.

Conflito 1: o “hidronegócio por barragem” e o processo de des-territorialização

O Brasil é o segundo país que gera mais energia hidrelétrica no mundo, atrás da China, e um dos maiores construtores mundiais de barragens (Oliveira, N., 2018OLIVEIRA, N. C. C. A grande aceleração e a construção de barragens hidrelétricas no Brasil. Varia Historia, v. 34, n. 65, p. 315-346, 2018. doi: https://doi.org/10.1590/0104-87752018000200003.
https://doi.org/10.1590/0104-87752018000...
). A hidroenergia é renovável e considerada mais sustentável que outras formas de energia baseadas em petróleo ou carvão mineral. Porém, como outros grandes projetos de infraestrutura, a construção de barragens e a produção de energia hidrelétrica têm impactos socioambientais de grande magnitude, que afetam desproporcionalmente grupos sociais historicamente marginalizados. Os prejuízos e sofrimentos destes são abafados, naturalizados ou banalizados diante dos benefícios que esses empreendimentos rendem ao mercado de commodities (Giongo; Mendes; Werlang, 2016GIONGO, C. R.; MENDES, J. M. R.; WERLANG, R. Refugiados do desenvolvimento: a naturalização do sofrimento das populações atingidas pelas hidrelétricas. Revista de Estudios Brasileños, v. 3, n. 4, p. 101-114, 2016. Available at: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5352284 . Viewed on: June 10, 2022.
https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti...
).

Entendemos o desenvolvimento hidrelétrico como um tipo particular de hidronegócio - o que chamamos de “hidronegócio por barragem” ou “hidronegócio energético”. O hidronegócio por barragem refere-se aos grandes empreendimentos que se assentam “[n]a privatização dos recursos hídricos, transformados em insumo na produção hidroenergética” (Winckler; Renk, 2019WINCKLER, S.; RENK, A. A supressão dos meios de vida dos pescadores profissionais impactados pela Usina Hidrelétrica Foz do Chapecó. RDUNO, v. 2, n. 3, p. 205-220, 2019. doi: https://doi.org/10.46699/rduno.v2i3.5341.
https://doi.org/10.46699/rduno.v2i3.5341...
, p. 211). No Brasil, o hidronegócio por barragem serve em grande parte para a produção de commodities, particularmente no contexto atual de reprimarização da economia nacional, com destaque nos setores neoextrativistas da mineração e agropecuária. Portanto, o hidronegócio é intimamente relacionado ao conceito de água virtual (Allan, 1998ALLAN, J. A. Virtual water: a strategic resource global solutions to regional deficits. Groundwater, v. 36, n. 4, p. 545-546, 1998. doi: https://doi.org/10.1111/j.1745-6584.1998.tb02825.x.
https://doi.org/10.1111/j.1745-6584.1998...
), que corresponde ao volume de água consumida ou poluída para a produção de commodities. Essa água embutida nos produtos agrícolas e industriais exportados torna-se indisponível para usos alternativos, como os das comunidades vivendo nos territórios de onde é extraída (Vos; Hinojosa, 2016VOS, J.; HINOJOSA, L. Virtual water trade and the contestation of hydrosocial territories. Water International, v. 41, n. 1, p. 37-53, 2016. doi: https://doi.org/10.1080/02508060.2016.1107682.
https://doi.org/10.1080/02508060.2016.11...
).

A construção dessas obras grandiosas implica a destruição maciça de territórios que acabam sendo submersos e a consequente des-territorialização de centenas, às vezes milhares, de famílias ribeirinhas. Esses empreendimentos lucrativos de grande escala são marcados pelo desrespeito às populações locais, pela violência e algumas até pela militarização (Gonçalves, A., 2013GONÇALVES, A. A água e a sede do capital. In: CANUTO, A.; LUZ, C. RS.; LAZZARIN, F. Conflitos no campo: Brasil 2013. Goiânia: CPT Nacional, 2013. p. 92-95. ).

Frente à violação de direitos nos processos de des-re-territorialização do hidronegócio energético, surgem, no final da década de 1970, os primeiros Movimentos de Atingidos por Barragens (MAB). O contexto então era de crise mundial do petróleo, quando grandes projetos de investimento no Brasil se voltaram para a construção de barragens hidrelétricas para produzir uma forma alternativa de energia (Alves; Teixeira, 2021ALVES, V. O.; TEIXEIRA, M. G. C. Contribuições dos repertórios de ações coletivas na organização das populações atingidas por barragens: um estudo da Usina Hidrelétrica de Itapebi. Organizações & Sociedade, v. 28, n. 98, p. 677-709, 2021. Available at: https://www.scielo.br/j/osoc/a/YQP6jJWfWSdpBR7c7McQcpy/?lang=pt&format=pd . Viewed on: June 22, 2022.
https://www.scielo.br/j/osoc/a/YQP6jJWfW...
). O MAB (2004MAB. MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS. Ditadura contra as populações atingidas por barragens aumenta a pobreza do povo brasileiro. Brasília: MAB, 2004.) estima que as mais de duas mil barragens construídas no Brasil levaram à expulsão de mais de um milhão de pessoas e que, de cada 100 famílias atingidas, cerca de 70 não foram indenizadas. Ainda assim, inexiste hoje no Brasil um marco legal que assegure os direitos das populações atingidas por barragens, embora existam conquistas oriundas da luta dos movimentos, famílias, trabalhadores e comunidades afetados.16 16 O Decreto n. 7.342/2010 instituiu o cadastro socioeconômico para identificação, qualificação e registro público da população atingida por empreendimento de geração de energia hidrelétrica. No entanto, sua regulamentação em junho de 2012 privatizou o cadastramento dos atingidos, transformando e que deveria assegurar direitos em mais um negócio para as empresas (MAB, 2013). Porém as violações de direitos se multiplicaram no âmbito da neoliberalização e da privatização de vários setores da economia brasileira nos anos 1990, intensificando-se no contexto atual, de uma economia política de extrema direita marcada por grandes retrocessos sociais e ambientais.

A proposta de construção da barragem Pedra de Cavalo surgiu no período da ditadura militar, quando o Brasil visava sua modernização a qualquer custo. O foco fundamental do uso dos recursos hídricos naquela época, ainda no arcabouço legal do Código das Águas (Lei n. 24.643/1934), era a produção de energia elétrica para fomentar o desenvolvimento industrial (Calgaro; Maggioni; Gardelin, 2021CALGARO, C.; MAGGIONI, I. C.; GARDELIN, L. D. O direito à água como um direito fundamental: notas crítico-comparativas sobre a sua recepção normativa pelo sistema jurídico brasileiro e pelo constitucionalismo latino-americano. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, v. 27, n. 1, 2021. Available at: https://revistas.direitosbc.br/index.php/fdsbc/article/view/1012/913 . Viewed on: June 22, 2022.
https://revistas.direitosbc.br/index.php...
). De acordo com o Plano de Valorização dos Recursos Hídricos da Bacia do Rio Paraguaçu, de 1974, encomendado pelo então governador Antônio Carlos Magalhães, o complexo Pedra do Cavalo teria como usos: “geração de energia elétrica; abastecimento de água à grande Salvador; controle de cheias; controle de assoreamento; irrigação marginal (Cruz das Almas e Santo Estevão); recuperação de navegação a jusante do barramento e melhoria das condições sanitárias do rio” (Palma, 2007PALMA, E. G. A. Aplicação da legislação ambiental no território da APA do Lago de Pedra do Cavalo: o caso do núcleo de reassentamento Ilha de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007., p. 59). Porém nenhuma passagem desse Plano fazia menção aos possíveis impactos negativos nas comunidades ribeirinhas da região e em seu destino (Germani, 1993GERMANI, G. I. Cuestión agraria y asentamiento de población en el área rural: la nueva cara de la lucha por la tierra: Bahia, Brasil (1964-1990). Tese (Doutorado em Geografia) - Facultad de Geografía e Historia, Universidad de Barcelona, Barcelona, 1993.; Palma, 2007PALMA, E. G. A. Aplicação da legislação ambiental no território da APA do Lago de Pedra do Cavalo: o caso do núcleo de reassentamento Ilha de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.).

Desde a concepção até a entrada em operação da usina hidrelétrica, a barragem Pedro do Cavalo foi alvo de controvérsias e vários conflitos. Os interesses econômicos por trás desse projeto eram inegáveis desde o início e suplantaram até os diagnósticos que alertavam para a instabilidade geológica do sítio escolhido para a construção (Palma, 2007PALMA, E. G. A. Aplicação da legislação ambiental no território da APA do Lago de Pedra do Cavalo: o caso do núcleo de reassentamento Ilha de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.). De acordo com Palma (2007PALMA, E. G. A. Aplicação da legislação ambiental no território da APA do Lago de Pedra do Cavalo: o caso do núcleo de reassentamento Ilha de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007., p. 70-71):

[...] a intenção de instalar na Bahia um Complexo Petroquímico passava, necessariamente, pela garantia de insumos básicos às futuras plantas industriais e a construção de Pedra do Cavalo, segundo o Plano de valorização dos recursos hídricos da bacia do rio Paraguaçu (1974), garantiria o abastecimento de água dessas unidades industriais, bem como a garantia de energia, já que Pedra do Cavalo é construída com o objetivo de ser uma barragem de usos múltiplos.

A construção da barragem iniciou-se em 1979. O Governo da Bahia criou a Companhia de Desenvolvimento do Vale do Paraguaçu (Desenvale) como responsável pela gestão e execução da obra. A promessa que a barragem se destinaria a “múltiplos usos” e que haveria um “desenvolvimento” de todo o vale do Paraguaçu permitiu legitimar o projeto perante os setores de oposição e as organizações de trabalhadores rurais da região (Palma, 2007PALMA, E. G. A. Aplicação da legislação ambiental no território da APA do Lago de Pedra do Cavalo: o caso do núcleo de reassentamento Ilha de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.).

A barragem Pedra do Cavalo foi inaugurada em 1985, mas o sistema de abastecimento só entrou em funcionamento em 1987. Com uma altura de 142 m, ela é uma das mais altas do país. O represamento das águas formou um grande lago de 186 km2, que se estende por 13 municípios, sendo, portanto, o segundo maior do estado (Palma, 2007PALMA, E. G. A. Aplicação da legislação ambiental no território da APA do Lago de Pedra do Cavalo: o caso do núcleo de reassentamento Ilha de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.).

A falta de planejamento para o reassentamento dos atingidos pela barragem gerou muitos conflitos entre o governo estadual e a sociedade civil organizada. A demora na definição de um plano oficial de realocação engendrou dezenas de manifestações em toda a região, com a mediação de várias organizações (Palma, 2007PALMA, E. G. A. Aplicação da legislação ambiental no território da APA do Lago de Pedra do Cavalo: o caso do núcleo de reassentamento Ilha de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.).17 17 Palma (2007) destaca a participação da Universidade Federal da Bahia, da Universidade Estadual de Feira de Santana, da Igreja Católica (pela atuação de dom Avelar Brandão Vilela, arcebispo de Salvador), do MAB, do Movimento de Organização Comunitária, da Associação Baiana de Sociólogos, da Associação dos Engenheiros Agrônomos da Bahia, do Clube de Engenharia da Bahia e do Grupo Ambientalista da Bahia.

O plano emergencial de reassentamento finalmente foi elaborado pela Desenvale, e 1.660 famílias foram desalojadas, das quais 700 foram reassentadas em 14 núcleos na primeira etapa do processo, enquanto apenas 115 das 250 cadastradas na segunda etapa foram reassentadas em cinco núcleos de reassentamento (Germani, 1993GERMANI, G. I. Cuestión agraria y asentamiento de población en el área rural: la nueva cara de la lucha por la tierra: Bahia, Brasil (1964-1990). Tese (Doutorado em Geografia) - Facultad de Geografía e Historia, Universidad de Barcelona, Barcelona, 1993.). Os demais desalojados não foram contemplados pelo programa de reassentamento, e muitos ficaram sem indenização. Isso provocou a desestruturação de centenas de famílias forçadas a migrar para áreas urbanas, principalmente nas periferias de Feira de Santana ou de outras cidades menores da região, sem condições de existência dignas (Palma, 2007PALMA, E. G. A. Aplicação da legislação ambiental no território da APA do Lago de Pedra do Cavalo: o caso do núcleo de reassentamento Ilha de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.).

No caso do município de Cabaceiras do Paraguaçu, as famílias foram informadas de sua remoção pela Desenvale em 1983, e as primeiras remoções começaram em 1986. A indenização foi padrão para todas as famílias: dez tarefas de terra (4,34 ha)18 18 Como ressalta Palma (2007), a área do lote instituída pela Desenvale era inapropriada já que, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o módulo rural para a região é de 72 tarefas. e uma casa no núcleo de reassentamento.19 19 O modelo da casa também era padrão: um depósito, dois quartos, uma sala, uma sala de jantar, uma cozinha, um banheiro e uma varanda. Como ressalvou Germani (1993), as casas eram, no geral, maiores que as anteriores, o que também serviu como propaganda do projeto e contribuiu para legitimar a proposta de reassentamento perante os atingidos. A luta dos movimentos sociais e sindicatos foi fundamental para alcançar uma indenização mais justa daquela proposta inicialmente pela Desenvale, pelo menos para uma parte da população atingida. Por exemplo, concorreu para a criação de um segundo modelo de núcleo, onde as casas foram construídas dentro das parcelas individualizadas, e não fora delas.20 20 Esse segundo modelo não foi implementado nos primeiros núcleos de assentamento, como no caso da Agrovila do Sobrado. Também contribuiu para a inclusão de outros grupos sociais, principalmente os que não ocupavam terras, mas trabalhavam nelas (arrendatários, parceiros, meeiros, pequenos comerciantes da área etc.) (Germani, 1993GERMANI, G. I. Cuestión agraria y asentamiento de población en el área rural: la nueva cara de la lucha por la tierra: Bahia, Brasil (1964-1990). Tese (Doutorado em Geografia) - Facultad de Geografía e Historia, Universidad de Barcelona, Barcelona, 1993.; Palma, 2007PALMA, E. G. A. Aplicação da legislação ambiental no território da APA do Lago de Pedra do Cavalo: o caso do núcleo de reassentamento Ilha de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.).

A usina hidrelétrica foi implantada na barragem em 2005, sob a responsabilidade do grupo Votorantim, para gerar energia e abastecer os municípios da Região Metropolitana de Salvador e da Região de Feira de Santana. Nesse contexto, as águas do rio Paraguaçu passam a ser usadas intensivamente, comprometendo ainda mais sua qualidade e disponibilidade. Isso tem prejudicado a atividade pesqueira nos municípios a jusante da barragem e na foz do rio, devido à diminuição de sua vazão e ao aumento da salinidade da água, que alterou o ecossistema da bacia provocando uma redução significativa da população de peixes e comprometendo o modo de vida dos pescadores artesanais da região (Genz, 2006GENZ, F. Avaliação dos efeitos da barragem Pedra do Cavalo sobre a circulação estuarina do Rio Paraguaçu e Baía de Iguape. Tese (Doutorado em Geologia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006.; Palma, 2007PALMA, E. G. A. Aplicação da legislação ambiental no território da APA do Lago de Pedra do Cavalo: o caso do núcleo de reassentamento Ilha de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.).

Este primeiro conflito pela água que emerge a partir do processo de des-territorialização de famílias ribeirinhas provocada pelo “hidronegócio por barragem” pode ser entendido como “conflito ambiental territorial” (Zhouri; Laschefski, 2010ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. (Org.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010., [s.p.]) sendo que “existe sobreposição de reivindicações de diversos grupos sociais, portadores de identidades e lógicas culturais diferenciadas, sobre o mesmo recorte espacial”. O conflito envolve, de um lado, os atingidos pela barragem, apoiados por vários grupos da sociedade civil organizada, que reivindicam seus direitos de permanecer no território ou de ser indenizados de forma justa, respeitando sua identidade e sua lógica cultural. De outro, o conflito envolve a atuação autoritária do governo do estado a serviço dos interesses econômicos das empresas contratadas e beneficiárias desse megaprojeto hidrelétrico. Nesse caso, os conflitos gerados pela construção da barragem permitiram descortinar as injustiças socioambientais atreladas a seus impactos de curto e longo prazo (deslocamento forçado da população ribeirinha, degradação da qualidade das águas do rio, comprometimento do modo de vida local etc.). Desvelaram também as violações de direito cometidas pelo poder vigente no processo de indenização dos atingidos, e levou à retificação de algumas ações injustas e à garantia de compensações para grupos sociais cujos direitos foram historicamente negados.

Conflito 2: o “hidronegócio da escassez” e o processo de re-territorialização

Posso morar 100 anos neste lugar e nunca vou me acostumar. É um lugar péssimo para viver, temos dificuldades com a água; o solo é ruim para a agricultura, ou é arenoso ou pedregoso. Aqui é um lugar distante de tudo. Nem gosto de passar perto do lugar onde eu morava antes porque sinto muita saudade (Entrevista 3, 2021).

No processo de re-territorialização, uma nova configuração paisagística e territorial foi constituída, impondo profundas mudanças na vida das famílias que habitam as proximidades do rio, estabelecendo ao longo de muitos anos diversas relações socioambientais em seus territórios, especialmente por meio da pesca e da agricultura. Uma vez reassentadas, as famílias tiveram que repensar as atividades reprodutivas a ser desenvolvidas no novo espaço, com características muito diferentes das que havia no território de origem, especialmente no que tange à acessibilidade da água e à qualidade do solo.

No Brasil, como os governos não criam canais legais ou políticas públicas que contemplem de forma justa os direitos dos atingidos por barragens, estes são afetados duplamente, com a perda do antigo território e com carência de infraestruturas e serviços essenciais, como educação, saúde e saneamento básico, nas áreas de reassentamento. Os reassentados costumam se organizar em associações ou buscar apoio de sindicatos ou movimentos rurais para juntos minimizar os impactos sofridos e reivindicar direitos compensatórios. Porém as limitações do acesso e do uso das águas comprometem a permanência e qualidade de vida das comunidades nos novos territórios, tendo em vista que, sem água em quantidade e qualidade suficientes, não há condições para o desenvolvimento das atividades reprodutivas, inviabilizando o atendimento das necessidades básicas, a exemplo da de se alimentar.

Portanto, conflitos ambientais tendem a irromper também no processo de re-territorialização, quando as famílias que foram expulsas de seus territórios não são assistidas com uma proposta de reassentamento e reparação justa, que atenda minimamente as condições dignas de moradia. Na maioria dos casos, os núcleos de reassentamento estão em terrenos precários, baratos, sem acesso adequado à água e com solos impróprios para a produção agrícola, como foi o caso da Agrovila do Sobrado. Vários moradores expressaram a dificuldade em se adaptar a um lugar imposto e inóspito:

A gente não queria vir morar aqui. Eu já sabia que o terreno não prestava, que era muito ruim para plantar roça, porque tinha parente que morava aqui perto. Como não teve outro jeito, nós viemos “amarrados”, contra a nossa vontade, para não morrer afogados nas águas do rio (Entrevista 9, 2021).

Nos antigos territórios, os atuais moradores da Agrovila do Sobrado eram posseiros, vivendo e trabalhando em terras de diferentes fazendeiros, onde tinham fácil acesso às águas do rio para consumo e desenvolvimento de suas atividades. Apesar de não morarem em uma comunidade coesa, os posseiros conheciam-se, encontravam-se e colaboravam na realização de atividades produtivas e culturais, na forma de mutirão, especialmente no plantio e na colheita de milho e feijão, no armazenamento do fumo e na organização de eventos como festas de São João, cantigas de Reis ou cantigas de roda.

A vida em comunidade foi uma novidade para a maioria das famílias, que costumavam viver longe uma das outras nos antigos territórios. Os problemas da escassez de recursos no novo território e a proximidade entre as moradias geraram conflitos entre vizinhos, comprometendo a retomada de muitas atividades coletivas. A descontinuidade dessas atividades representa uma grande perda de identidade cultural para muitos moradores, que hoje lembram desse período com nostalgia, como esta moradora:

Na antiga morada havia muita coisa boa. Lembro das festas de Reis que eram realizadas lá. No período de festa, a gente saía às noites para a casa das pessoas e acordava os moradores com a cantoria e ali fazíamos o samba de roda... com cantoria e alegria, comida e bebida à vontade, que a gente levava e que os moradores ofereciam (Entrevista 7, 2021).

As famílias na Agrovila foram re-territorializadas a partir de 1985, quando as casas e as obras da barragem foram concluídas. Nessa perspectiva, inúmeros problemas foram registrados, tanto de ordem biofísica, a exemplo da escassez da água e da infertilidade do solo, como de ordem social, como a carência de infraestruturas, saneamento básico, serviços de transporte, educação e saúde. Mas o maior problema destacado pelos moradores foi a falta de acesso à água. Segundo uma moradora:

[...] foi muito difícil se adaptar por aqui, porque a gente morava na beira do rio, com água em abundância, chegamos aqui e sentimos falta desse recurso, a escassez é grande. Tivemos que pegar água na cabeça, e a fonte ficava longe da nossa casa. Não tivemos outra alternativa (Entrevista 18, 2021).

Inicialmente, havia na Agrovila uma única fonte hídrica, um minadouro, que abastecia toda a comunidade. Com seu uso cada vez mais intenso, a qualidade e a quantidade de suas águas ficaram comprometidas: a água cristalina passou a apresentar uma coloração barrenta, sinalizando que era preciso buscar alternativas. A comunidade fez uso do minadouro entre 1985 e 1987, como relatou este morador:

[...] quando chegamos aqui, tivemos um grande problema de acesso à água, pois era através de uma única fonte que as necessidades de todas as pessoas eram atendidas. Dali pegava água para beber, lavar e fazer todas as tarefas de casa. Havia muitas limitações (Entrevista 2, 2021).

Frente a essas limitações, surgiu o segundo conflito pela água, decorrente da falta de comprometimento dos governos estadual e municipal para abastecer a comunidade assentada com água e garantir seu direito de acesso a ela. A partir de então, a comunidade começou a reivindicar junto à prefeitura uma solução para esse problema. O conflito se resolveu parcialmente quando a prefeitura passou a distribuir água do rio em carro pipa, que abastecia os tanques de 10.000 m3 instalados nas residências pela Desenvale, duas a três vezes por semana. Mas essa medida também só vigorou dois anos.

A comunidade sofreu por falta de acesso à água por pelo menos cinco anos, até que o governo estadual perfurou poços artesianos e, com apoio da prefeitura, as águas subterrâneas passaram a ser bombeadas, armazenadas e canalizadas para as residências, com distribuição e uso pela comunidade. Porém essas águas nunca foram tratadas e não se sabe se houve problemas de saúde relativos a isso. Durante três décadas, o poder público não se preocupou em fornecer água de qualidade para a comunidade reassentada, como apontou este morador:

Durante muito tempo as águas aqui nunca foram tratadas. Primeiro do minadouro, depois do carro pipa que pegava diretamente no rio e depois a água do poço. Ninguém aqui tem conhecimento que tenha passado por tratamento antes de chegar às nossas casas (Entrevista 2, 2021).

No Brasil, a distribuição das águas ocorre de forma irregular e profundamente desigual, sendo em algumas localidades necessário desenvolver políticas públicas para armazená-las e distribuí-las por meio de açudes e barramentos, para atender às atividades domésticas e produtivas de muitas famílias. De acordo com a Lei n. 9.433/1997, conhecida como Lei das Águas, são objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos. Essa política tem um caráter descentralizado por criar um sistema nacional que integra as três esferas de poder (união, estados e municípios) e que almeja efetivar-se em processos democráticos e participativos (Brasil, 1997BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Regulamentada pelo Decreto n. 4.613, de 11 de março de 2003. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. DOU, 9 jan. 1997. Available at: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9433.htm . Viewed on: March 8, 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). Porém, no caso da Agrovila do Sobrado, não foram alcançados nem o direito à água em padrões adequados de qualidade e quantidade, nem a participação em processos decisórios para garantir sua gestão democrática, como estipulado pela lei.

Portanto, esse segundo conflito ambiental irrompe da violação do direito dos reassentados a uma vida digna, na constatação cotidiana de que o processo indenizatório não foi justo e na luta incessante por reparação. Como costuma acontecer em processos de deslocamento compulsórios no Brasil, seja no contexto urbano ou rural, as populações despejadas são geralmente reassentadas em áreas mais precarizadas e marginalizadas, tanto nos aspectos biofísicos (áreas de risco ou de degradação ambiental) quanto nos aspectos sociofísicos (falta de serviços e infraestrutura básicos). Na Agrovila do Sobrado, a falta de água e terra em quantidade e qualidade impossibilita a produção de excedentes no cultivo de alimentos para sustentação econômica das famílias. Além disso, a maior distância entre o rio e as casas no novo território levou a maioria dos reassentados a abandonar a pesca, como modo de vida. Este quadro tem gerado problemas sociais profundos dentro da comunidade como o uso e tráfico de drogas e o envolvimento da juventude na criminalidade. Portanto, este segundo conflito pode se enquadrar na categoria de “conflitos ambientais distributivos” relativos à distribuição desigual dos recursos naturais e à falta das condições materiais necessárias para sustentar o modo de vida dos povos atingidos pelo atual modelo de desenvolvimento (Zhouri; Laschefski, 2010ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. (Org.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.). Nesse caso, o hidronegócio atua em outra escala e, portanto, se manifesta de forma indireta ou velada, quando se apropria das áreas mais produtivas (terras férteis e água em abundância) para a reprodução do capital, deixando a população local que depende desses recursos para sua subsistência e reprodução social, sem acesso a eles. Essa produção de escassez pelo hidronegócio tem sido indispensável para justificar a atribuição de um valor econômico à água e a sua mercantilização.

Conflito 3: o “hidronegócio por cobrança” e a luta por águas comuns

O acesso à água potável e ao saneamento básico é reconhecido desde 2010 pela ONU como direito essencial, fundamental e universal, indispensável à vida com dignidade. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 reconhece indiretamente a água como direito humano fundamental, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, do direito fundamental à integridade física, à saúde, à vida e a um ambiente ecologicamente saudável e equilibrado para as gerações presentes e futuras.21 21 Tramita atualmente uma proposta de emenda constitucional (PEC n. 4/2018) que requer que a água seja um direito fundamental explicitamente reconhecido pela Constituição. No entanto, o que prevalece na legislação brasileira é sua determinação como bem público dotado de valor econômico.

É pela atribuição de um valor econômico à água, justificado pelo discurso e pela produção social de escassez (Porto-Gonçalves, 2006PORTO-GONÇALVES, C. W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. ), que vem se desenvolvendo no Brasil e no mundo um novo mercado da água, que se constitui por meio de diversos tipos de negócio, entre eles, o hidronegócio por cobrança, que se assenta na possibilidade de o Estado, empresas privadas ou parcerias público-privadas responsáveis pelo abastecimento de água lucrarem com sua cobrança, quando seu acesso deveria ser gratuito, especialmente para famílias de baixa renda. O hidronegócio por cobrança torna-se ainda mais lucrativo quando a gestão dos serviços de abastecimento e saneamento básico deixa de ser responsabilidade do Estado.

No Brasil, a privatização deste setor expressa-se na Lei n. 14.026, instituída em julho de 2020 pelo presidente Jair Bolsonaro, em meio à pandemia da Covid-19 (Brasil, 2020BRASIL. Presidência da República. Secretaria-Geral. Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico. DOU, 16 jul. 2020. Available at: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm . Viewed on: June 22, 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Este marco legal traz importantes alterações na Política Nacional de Saneamento,22 22 A Política Nacional de Saneamento (Lei n. 11.445/2007) torna o saneamento básico um direito social e aponta a necessidade de dar prioridade a planos, programas e projetos que visem implantar e ampliar serviços e ações de saneamento nas áreas ocupadas por população de baixa renda (Britto; Rezende, 2017). prejudicando principalmente os direitos sociais, ao estimular a mercantilização da gestão de serviços de água e saneamento básico. A privatização tende a provocar o aumento da tarifa, tornando o serviço inacessível à parte mais vulnerável da sociedade, comprometendo, portanto, a universalização do serviço (Gonçalves, L.; Silva, C., 2020GONÇALVES, L. S.; SILVA, C. R. Pandemia de Covid-19: sobre o direito de lavar as mãos e o “novo” marco regulatório de saneamento básico. Revista Científica Foz, v. 3, n. 1, p. 71-92, 2020. Available at: http://raizes.revistas.ufcg.edu.br/index.php/raizes/article/view/411/393 . Viewed on: June 10, 2022.
http://raizes.revistas.ufcg.edu.br/index...
). Como salienta Swyngedouw (2005SWYNGEDOUW, E. Dispossessing H2O: the contested terrain of water privatization. Capitalism Nature Socialism, v. 16, n. 1, p. 81-98, 2005. doi: https://doi.org/10.1080/1045575052000335384.
https://doi.org/10.1080/1045575052000335...
, p. 91, tradução nossa), “na medida em que a água é transformada em dinheiro e capital e os usuários de água são transformados em consumidores que pagam pela água (em vez de cidadãos com direito ao acesso à água)”, configuram-se “formas autocráticas de governança e fiscalização, com controle democrático limitado”. Além disso, estes processos contribuem para a incorporação da água nos circuitos globais do capital financeiro, nos quais produtos e serviços correlatos são transformados em ativos financeiros, negociados de forma especulativa. Isso faz com que as empresas responsáveis pela produção ou distribuição de água sejam pressionadas para satisfazer os interesses dos investidores antes dos “beneficiários” desses serviços (Bayliss, 2014BAYLISS, K. The financialization of water. Review of Radical Political Economics, v. 46, n. 3, p. 292-307, 2014. doi: https://doi.org/10.1177/0486613413506076.
https://doi.org/10.1177/0486613413506076...
).

O hidronegócio por cobrança adentra a Agrovila do Sobrado a partir de 2008, quando a Embasa passou a fornecer água potável à comunidade e propôs à prefeitura desativar todos os poços artesianos. A água do rio Paraguaçu foi então canalizada pela Embasa, passando por uma estação de tratamento para a remoção das impurezas, tornando-a potável e apropriada para o consumo. Essa medida foi aprovada pelos moradores, embora gere um custo em função da quantidade consumida em metros cúbicos. Atualmente, a água potável é distribuída para todas as residências para consumo próprio das famílias. No entanto, não é usada em atividades reprodutivas como o cultivo de alimentos ou a criação de animais. O consumo de água fornecida pela Embasa para essas atividades levaria a um alto custo, que as famílias não teriam condições de pagar.

A partir de 2020, a prefeitura decidiu suspender o fornecimento de água do aquífero, deixando de pagar o trabalhador que exercia a função de bombeá-la, e começou a remover a canalização das residências. A medida gerou mais um conflito, já que muitos moradores foram contra a suspensão desse fornecimento da água, usada gratuitamente havia mais de 30 anos no desenvolvimento das atividades reprodutivas da comunidade. Isso ocorreu no início do mandato do atual prefeito, que cedeu à pressão da Embasa. O objetivo de suspender o fornecimento de águas subterrâneas sempre foi ampliar a rede de atendimento e o consumo dos residentes para gerar maiores lucros. Em reação, a comunidade pressionou a prefeitura para que mantivesse em seu território o acesso gratuito às águas subterrâneas. O depoimento de uma moradora mostra a importância dessas águas para a sobrevivência da comunidade:

As águas do poço deveriam permanecer de acesso à comunidade para que tenhamos condições de molhar as plantações desenvolvidas em nossos quintais, porque não precisamos pagar, ao contrário da água da Embasa, que, se a gente for utilizar com essa finalidade, aumenta o custo e não temos como pagar a conta (Entrevista 3, 2021).

Ao longo de 2020 e 2021, atendendo à pressão da Embasa, a prefeitura continuou a remover os canos que distribuíam as águas do aquífero para as residências, na tentativa de finalizar o trabalho. Mais uma vez, encontrou resistência, e muitas famílias reagiram, não permitindo a retirada da canalização de suas propriedades. Um dos moradores exclamou:

Aqui, na minha terra, ninguém entra para retirar cano algum! A prefeitura não está vendo que essa política vai acabar com a gente? Será que não sabe que o povo aqui vive de Bolsa Família? Quem vai pagar a água da Embasa? Para entrar aqui e remover os canos, tem que passar por cima do meu cadáver! (Entrevista 2, 2021).

Os moradores continuam resistindo, porém sem o apoio do Sindicato Rural de Cabaceiras do Paraguaçu hoje aliado da política do prefeito. Grande parte dos moradores não aceita a ação “nefasta” da prefeitura em atendimento à política estadual de gestão hídrica. Ao contrário, estes moradores querem reativar o acesso e uso gratuito das águas subterrâneas, na perspectiva de melhorarem suas condições de vida. A esse respeito, uma moradora relatou:

Estive na sessão da Câmara de Vereadores em 2021, pedi a palavra e falei do conflito que estamos passando. Disse que será muito difícil para nós continuarmos vivendo na Agrovila sem o fornecimento da água do poço, porque financeiramente não podemos pagar a água da Embasa para responder às nossas necessidades (Entrevista 2, 2021).

Importa ressaltar que essa intervenção da prefeitura ocorreu em meio à crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19, quando o acesso à água se tornou chave, já que uma das medidas preventivas era lavar as mãos com frequência para reduzir as chances de contágio. Com a suspensão do fornecimento das águas subterrâneas, as atividades reprodutivas da comunidade e sua própria permanência no local estão em risco. Porém, mesmo se se mantiver o acesso às águas subterrâneas, ainda permanece o problema de estas não serem tratadas, o que implica altos riscos para a saúde dos moradores. Essas águas precisariam ser analisadas para verificar seu teor de contaminação e assim certificar-se para que uso elas podem ser administradas.

Atualmente, as famílias que insistem em manter acesso às águas do aquífero precisam contribuir pagando uma pessoa para bombear. Isso vai de encontro à concepção da comunidade de que as águas subterrâneas são um comum que o Estado deveria ajudar a preservar como tal. Na Agrovila do Sobrado, as águas subterrâneas são usadas exclusivamente para a subsistência, com a consciência de que esse ecossistema é frágil e limitado. Por outro lado, o governo continua outorgando o uso intensivo das águas para grandes empreendimentos que as usam para acumular riqueza, levando à degradação ambiental e afetando a qualidade de vida de várias comunidades da região.

Esse terceiro e mais recente conflito ambiental vivenciado pela comunidade da Agrovila do Sobrado se expressa como um conflito pelo controle do uso e livre acesso às águas comuns. Na tipologia dos conflitos socioambientais de Little (2001LITTLE, P. E. Os conflitos socioambientais: um campo de estudo e de ação política. In: BURSZTYN, M. (Org.). A difícil sustentabilidade: política energética e conflitos ambientais. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. p. 107-122., p. 108), isso corresponderia aos “conflitos pelo controle de recursos naturais”.23 23 Os dois outros tipos de conflito socioambiental incluídos na classificação de Little (2001) são os decorrentes de impacto ambiental ou social devido a ação humana ou natural e os conflitos em torno do uso dos conhecimentos ambientais. Esse tipo de conflito remete à luta pela autonomia dos povos atingidos pelas ações autoritárias do Estado desenvolvimentista. Entendemos este conflito ambiental também como “conflito de valoração” (Florit, 2016FLORIT, L. F. Conflitos ambientais, desenvolvimento no território e conflitos de valoração: considerações para uma ética ambiental com equidade social. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 36, p. 255-271, 2016. doi: http://dx.doi.org/10.5380/dma.v36i0.41624.
http://dx.doi.org/10.5380/dma.v36i0.4162...
) no sentido de expressar diferentes lógicas, visões e valores morais sobre o mundo e a nossa relação com a natureza que se opõem aos valores hegemônicos centrados na dimensão econômica, na acumulação de riqueza ou no valor instrumental da natureza. Ao contrário, a comunidade do Sobrado tem usado a água não como moeda de troca, mas pelo seu valor de uso comum.

Considerações finais

A partir da pesquisa sobre os processos de des-territorialização e re-territorialização vividos por famílias atingidas pela barragem Pedra do Cavalo, no Recôncavo Baiano, constatou-se que a comunidade tem passado por três grandes conflitos pela água, engendrados por três tipos de hidronegócio: (1) o conflito ambiental territorial ligado ao processo de des-territorialização dessas famílias provocado pelo ‘hidronegócio por barragem’, (2) o conflito ambiental distributivo decorrente da falta de acesso à água provocado pelo ‘hidronegócio da escassez’ no longo processo de re-territorialização e (3) o conflito pelo controle do uso e do acesso à água deflagrado pelo ‘hidronegócio por cobrança’, levando a um processo de mercantilização da água e cercamento de um comum hídrico - as águas subterrâneas.

Esses conflitos se devem a múltiplas formas de despossessão das famílias atingidas pela barragem ao longo de várias décadas. Primeiro, pela remoção forçada e a consequente perda dos seus territórios e modos de vida. A construção da barragem Pedra de Cavalo suprimiu o acesso cotidiano às águas do rio Paraguaçu de centenas de famílias camponesas a fim de abastecer setores industriais extrativistas e grandes centros urbanos. Segundo, pela perda do acesso gratuito à água e pelo cercamento de um comum (as águas subterrâneas) essencial à sobrevivência de uma comunidade sistematicamente precarizada pelas (in)ações de um Estado neoliberal a serviço do mercado da água. Essa violação de direitos fundamentais mostra como grupos historicamente des-territorializados continuam sofrendo e acumulando histórias de despossessão, sendo recorrentemente destituídos de seus direitos de ocupar, usar e produzir territórios e de manter relações outras com a natureza, baseadas em sistemas de valoração não-capitalistas ou mais-que-econômicos.

Nesse contexto de precarização de vidas e violação de direitos, é necessário e urgente responder à demanda do MAB (2013MAB. MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS. PNAB: Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens. São Paulo: MAB, 2013.) de criação de uma política pública nacional respaldada em marcos regulatórios que assegurem os direitos dos atingidos por barragens. Por exemplo, incluindo a garantia de que os núcleos de reassentamento sejam adequados à manutenção de uma vida digna, com controle comunitário do uso sustentável e gratuito da água. É imprescindível que a indenização dos atingidos por barragens vá além de uma compensação puramente quantitativa e pontual, que abstrai outras dimensões imateriais da dignidade humana. Uma compensação justa não se pode calcular apenas em “tarefas de terra” ou em “número de cômodos”. O território não existe sem os elementos que lhe dão vida e sustento ao longo do tempo. Esses elementos são imensuráveis e produtos de relações culturais e socioambientais complexas e de longa duração que dificilmente podem ser reproduzidas em outro contexto e num tempo que permita garantir uma vida digna aos reassentados. Portanto, é preciso continuar a lutar contra formas de desenvolvimento que violam o direito à terra e ao território e, por consequência, o direito das comunidades camponesas historicamente despossuídas à água.

Os conflitos pela água que irrompem nas comunidades des-territorializadas são reflexo de um Estado neoliberal preocupado em satisfazer os interesses do hidronegócio antes de respeitar e garantir os direitos das populações que usam seus “hidroterritórios” (Torres, 2007TORRES, A. T. G. Hidroterritórios (novos territórios da água): os instrumentos de gestão dos recursos hídricos e seus impactos nos arranjos territoriais. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2007. ) como modo de vida, e não como mercadoria. Os conflitos ambientais apresentados neste artigo evidenciam uma longa história de luta pelos direitos à água, a saneamento básico, à saúde, a moradia digna e a permanência dessas populações no território, que merecem um processo justo de reparação e uma vida digna. A comunidade da Agrovila do Sobrado continua lutando para que se lhes restituam as águas subterrâneas como comum hídrico inalienável e de livre acesso para os que ali habitam, preservam e produzem o território.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos imensamente a toda comunidade da Agrovila do Sobrado que com o coração aberto aceitou participar dessa pesquisa. Gratidão também a Liliane e Adib Hobeica pela revisão minuciosa do manuscrito, a Flávio José Rocha pelas valiosas sugestões e a Racquel Magalhães Costa pela elaboração do mapa. Quaisquer erros restantes são nossos.

References

  • ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
  • ALLAN, J. A. Virtual water: a strategic resource global solutions to regional deficits. Groundwater, v. 36, n. 4, p. 545-546, 1998. doi: https://doi.org/10.1111/j.1745-6584.1998.tb02825.x
    » https://doi.org/10.1111/j.1745-6584.1998.tb02825.x
  • ALVES, V. O.; TEIXEIRA, M. G. C. Contribuições dos repertórios de ações coletivas na organização das populações atingidas por barragens: um estudo da Usina Hidrelétrica de Itapebi. Organizações & Sociedade, v. 28, n. 98, p. 677-709, 2021. Available at: https://www.scielo.br/j/osoc/a/YQP6jJWfWSdpBR7c7McQcpy/?lang=pt&format=pd Viewed on: June 22, 2022.
    » https://www.scielo.br/j/osoc/a/YQP6jJWfWSdpBR7c7McQcpy/?lang=pt&format=pd
  • BAYLISS, K. The financialization of water. Review of Radical Political Economics, v. 46, n. 3, p. 292-307, 2014. doi: https://doi.org/10.1177/0486613413506076
    » https://doi.org/10.1177/0486613413506076
  • BORTONE, F. A. S.; LUDWIG, M. P.; XAVIER, K. D. Contradições da modernidade no processo de des/re/territorialização do lugar: o caso dos atingidos pela construção da Hidrelétrica Candonga. Elo - Diálogos em Extensão, v. 5, n. 2, p. 1-12, 2016. doi: https://doi.org/10.21284/elo.v5i2.236
    » https://doi.org/10.21284/elo.v5i2.236
  • BRASIL. Presidência da República. Secretaria-Geral. Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico. DOU, 16 jul. 2020. Available at: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm Viewed on: June 22, 2022.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm
  • BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Regulamentada pelo Decreto n. 4.613, de 11 de março de 2003. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. DOU, 9 jan. 1997. Available at: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9433.htm Viewed on: March 8, 2022.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9433.htm
  • BRITTO, A. L.; REZENDE, S. C. A política pública para os serviços urbanos de abastecimento de água e esgotamento sanitário no Brasil: financeirização, mercantilização e perspectivas de resistência. Cadernos Metrópole, v. 19, n. 39, p. 557-581, 2017. doi: https://doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3909
    » https://doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3909
  • CALGARO, C.; MAGGIONI, I. C.; GARDELIN, L. D. O direito à água como um direito fundamental: notas crítico-comparativas sobre a sua recepção normativa pelo sistema jurídico brasileiro e pelo constitucionalismo latino-americano. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, v. 27, n. 1, 2021. Available at: https://revistas.direitosbc.br/index.php/fdsbc/article/view/1012/913 Viewed on: June 22, 2022.
    » https://revistas.direitosbc.br/index.php/fdsbc/article/view/1012/913
  • CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Listagem de conflitos pela água. Goiânia, [2021]. Available at: https://www.cptnacional.org.br/downlods/summary/6-conflitos-pela-agua/14255-conflitos-pela-agua-2021 Viewed on: June 10, 2022.
    » https://www.cptnacional.org.br/downlods/summary/6-conflitos-pela-agua/14255-conflitos-pela-agua-2021
  • CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Tabela 7 - Conflitos pela água. Goiânia, [2015]. Available at: https://www.cptnacional.org.br/downlods/summary/6-conflitos-pela-agua/14010-conflitos-pela-agua-2015 Viewed on: June 10, 2022.
    » https://www.cptnacional.org.br/downlods/summary/6-conflitos-pela-agua/14010-conflitos-pela-agua-2015
  • CRUZ, C. B.; SILVA, V. P. Grandes projetos de investimento: a construção de hidrelétricas e a criação de novos territórios. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 22, n. 1, p. 181-190, 2010. Available at: https://www.scielo.br/j/sn/a/Kgnz4kTyWrgxQJsMtvsxmcD/?lang=pt&format=pdf Viewed on: June 10, 2022.
    » https://www.scielo.br/j/sn/a/Kgnz4kTyWrgxQJsMtvsxmcD/?lang=pt&format=pdf
  • EMBASA. EMPRESA BAIANA DE ÁGUAS E SANEAMENTO S .A . Available at: https://www.embasa.ba.gov.br/ Viewed on: June 10, 2022.
    » https://www.embasa.ba.gov.br/
  • FERNANDES, B. M. Sobre a tipologia de territórios. In: SAQUET, M. A.; SPOSITO, E. S. Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular/Unesp, 2009. p.197-216.
  • FLORIT, L. F. Conflitos ambientais, desenvolvimento no território e conflitos de valoração: considerações para uma ética ambiental com equidade social. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 36, p. 255-271, 2016. doi: http://dx.doi.org/10.5380/dma.v36i0.41624
    » http://dx.doi.org/10.5380/dma.v36i0.41624
  • GENZ, F. Avaliação dos efeitos da barragem Pedra do Cavalo sobre a circulação estuarina do Rio Paraguaçu e Baía de Iguape. Tese (Doutorado em Geologia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006.
  • GERMANI, G. I. Cuestión agraria y asentamiento de población en el área rural: la nueva cara de la lucha por la tierra: Bahia, Brasil (1964-1990). Tese (Doutorado em Geografia) - Facultad de Geografía e Historia, Universidad de Barcelona, Barcelona, 1993.
  • GIONGO, C. R.; MENDES, J. M. R.; WERLANG, R. Refugiados do desenvolvimento: a naturalização do sofrimento das populações atingidas pelas hidrelétricas. Revista de Estudios Brasileños, v. 3, n. 4, p. 101-114, 2016. Available at: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5352284 Viewed on: June 10, 2022.
    » https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5352284
  • GODOI, E. P. Territorialidade: trajetória e usos do conceito. Raízes - Revista de Ciências Sociais e Econômicas, v. 34, n. 2, p. 8-16, 2014. Available at: http://raizes.revistas.ufcg.edu.br/index.php/raizes/article/view/411/393 Viewed on: June 10, 2022.
    » http://raizes.revistas.ufcg.edu.br/index.php/raizes/article/view/411/393
  • GONÇALVES, A. A água e a sede do capital. In: CANUTO, A.; LUZ, C. RS.; LAZZARIN, F. Conflitos no campo: Brasil 2013. Goiânia: CPT Nacional, 2013. p. 92-95.
  • GONÇALVES, L. S.; SILVA, C. R. Pandemia de Covid-19: sobre o direito de lavar as mãos e o “novo” marco regulatório de saneamento básico. Revista Científica Foz, v. 3, n. 1, p. 71-92, 2020. Available at: http://raizes.revistas.ufcg.edu.br/index.php/raizes/article/view/411/393 Viewed on: June 10, 2022.
    » http://raizes.revistas.ufcg.edu.br/index.php/raizes/article/view/411/393
  • GUTIÉRREZ, R. Horizontes comunitario-populares: producción de lo común más allá de las políticas estado-céntricas. Madrid: Traficantes de Sueños, 2017.
  • HAESBAERT, R. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, v. 29, n. 1, p. 11-24, 2003. Available at: https://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/38739 Viewed on: June 10, 2022.
    » https://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/38739
  • HARVEY, D. The new imperialism. Oxford: Oxford University Press, 2003.
  • LITTLE, P. E. Os conflitos socioambientais: um campo de estudo e de ação política. In: BURSZTYN, M. (Org.). A difícil sustentabilidade: política energética e conflitos ambientais. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. p. 107-122.
  • MAB. MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS. PNAB: Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens. São Paulo: MAB, 2013.
  • MAB. MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS. Ditadura contra as populações atingidas por barragens aumenta a pobreza do povo brasileiro. Brasília: MAB, 2004.
  • MENDONÇA, M. R. Complexidade do espaço agrário brasileiro: o agrohidronegócio e as (re)existências dos povos cerradeiros. Terra Livre, v. 1, n. 34, p. 189-202, 2010. Availabe at: Availabe at: https://publicacoes.agb.org.br/terralivre/article/view/318/301 Viewed on: June 10, 2022.
    » https://publicacoes.agb.org.br/terralivre/article/view/318/301
  • NAVARRO, M. L. Luchas por lo común contra el renovado cercamiento de bienes naturales en México. Bajo el Volcán, v. 13, n. 21, p. 161-169, 2013. Available at: http://www.apps.buap.mx/ojs3/index.php/bevol/article/view/1475/1071 Viewed on: June 10, 2022.
    » http://www.apps.buap.mx/ojs3/index.php/bevol/article/view/1475/1071
  • OLIVEIRA, J. C. Neoliberalismo, novas morfologias do trabalho e subjetividade: implicações sobre o hidronegócio e a organização social. Espaço e Economia - Revista Brasileira de Geografia Econômica, v. 8, n. 16, p. 1-23, 2019. doi: https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.9381
    » https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.9381
  • OLIVEIRA, J. S. A participação dos movimentos sociais na disputa pela água no Pontal do Paranapanema. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Geografia) - Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente, SP, 2011.
  • OLIVEIRA, N. C. C. A grande aceleração e a construção de barragens hidrelétricas no Brasil. Varia Historia, v. 34, n. 65, p. 315-346, 2018. doi: https://doi.org/10.1590/0104-87752018000200003
    » https://doi.org/10.1590/0104-87752018000200003
  • PACIFIC INSTITUTE. Water conflict chronology list. Available at: http://www.worldwater.org/conflict/list Viewed on: June 8, 2022.
    » http://www.worldwater.org/conflict/list
  • PALMA, E. G. A. Aplicação da legislação ambiental no território da APA do Lago de Pedra do Cavalo: o caso do núcleo de reassentamento Ilha de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.
  • PEIXOTO, F. S.; SOARES, J. A.; RIBEIRO, V. S. Conflitos pela água no Brasil. Sociedade & Natureza, v. 34, p. 1-13, 2022. doi: https://doi.org/10.14393/SN-v34-2022-59410
    » https://doi.org/10.14393/SN-v34-2022-59410
  • PEREIRA, G. R.; CUELLAR, M. D. Z. Conflitos pela água em tempos de seca no Baixo Jaguaribe, Estado do Ceará. Estudos avançados, v. 29, n. 84, p. 115-137, 2015. doi: https://doi.org/10.1590/S0103-40142015000200008
    » https://doi.org/10.1590/S0103-40142015000200008
  • PIRES, A. P. N.; FERREIRA, I. M. Cercas e secas: reflexões sobre a água no nordeste semi-árido. In: JORNADA DO TRABALHO, 13., 9-12 out. 2012, Presidente Prudente, SP: Unesp. Anais... Presidente Prudente, 2012. Available at: http://www.proceedings.scielo.br/pdf/jtrab/n1/02.pdf Viewed on: June 8, 2022.
    » http://www.proceedings.scielo.br/pdf/jtrab/n1/02.pdf
  • PORTO-GONÇALVES, C. W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
  • RIBEIRO, W. C.; SANTOS, C. L. S.; SILVA, L. P. B. Conflito pela água, entre a escassez e a abundância: marcos teóricos. Ambientes, v. 1, n. 2, p. 11-37, 2019. doi: 10.48075/amb.v1i2.23619.
    » https://doi.org/10.48075/amb.v1i2.23619
  • ROWE, J. Fanfare for the commons: the trees, the air, open spaces, the sky. UTNE Reader 109, p. 40-43, 2002.
  • SAQUET, M. A . As diferentes abordagens do território e a apreensão do movimento e da (i)materialidade. Geosul, v. 22, n. 43, p. 55-76, 2007.
  • SILVEIRA, S. M. B.; SILVA, M. G. Conflitos socioambientais por água no Nordeste brasileiro: expropriações contemporâneas e lutas sociais no campo. Katálysis, v. 22, n. 2, p. 342-352, 2019. doi: https://doi.org/10.1590/1982-02592019v22n2p342
    » https://doi.org/10.1590/1982-02592019v22n2p342
  • SWYNGEDOUW, E. Dispossessing H2O: the contested terrain of water privatization. Capitalism Nature Socialism, v. 16, n. 1, p. 81-98, 2005. doi: https://doi.org/10.1080/1045575052000335384
    » https://doi.org/10.1080/1045575052000335384
  • THOMAZ JUNIOR, A. Degradação sistêmica do trabalho no agrohidronegócio. Mercator, Fortaleza, v. 16, p. 1-20, 2017. doi: https://doi.org/10.4215/rm2017.e16020
    » https://doi.org/10.4215/rm2017.e16020
  • TORRES, A. T. G. Hidroterritórios (novos territórios da água): os instrumentos de gestão dos recursos hídricos e seus impactos nos arranjos territoriais. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2007.
  • VAINER, C. B. Conceito de “atingido”: uma revisão do debate. In: ROTHMAN, F. D. (Org.). Vidas alagadas: conflitos socioambientais, licenciamento e barragens. Viçosa: UFV, 2008. p. 39-63.
  • VOS, J.; HINOJOSA, L. Virtual water trade and the contestation of hydrosocial territories. Water International, v. 41, n. 1, p. 37-53, 2016. doi: https://doi.org/10.1080/02508060.2016.1107682
    » https://doi.org/10.1080/02508060.2016.1107682
  • WINCKLER, S.; RENK, A. A supressão dos meios de vida dos pescadores profissionais impactados pela Usina Hidrelétrica Foz do Chapecó. RDUNO, v. 2, n. 3, p. 205-220, 2019. doi: https://doi.org/10.46699/rduno.v2i3.5341
    » https://doi.org/10.46699/rduno.v2i3.5341
  • ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. (Org.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
  • 13
    Mendonça (2010MENDONÇA, M. R. Complexidade do espaço agrário brasileiro: o agrohidronegócio e as (re)existências dos povos cerradeiros. Terra Livre, v. 1, n. 34, p. 189-202, 2010. Availabe at: Availabe at: https://publicacoes.agb.org.br/terralivre/article/view/318/301 . Viewed on: June 10, 2022.
    https://publicacoes.agb.org.br/terralivr...
    , p. 191) define o conceito de agrohidronegócio como “a expansão das monoculturas para a produção de energia (cana-de-açúcar, soja, palma etc.) combinadas com o represamento dos rios (empreendimentos barrageiros) para garantir energia limpa, abastecimento de água aos grandes complexos agroindustriais e as cadeias produtivas que alimentam a expansão e reprodução do capital”.
  • 14
    A Embasa “é uma sociedade de economia mista de capital autorizado, pessoa jurídica de direito privado, tendo como acionista majoritário o Governo do Estado da Bahia” (EmbasaEMBASA. EMPRESA BAIANA DE ÁGUAS E SANEAMENTO S .A . Available at: https://www.embasa.ba.gov.br/ . Viewed on: June 10, 2022.
    https://www.embasa.ba.gov.br/...
    , [s.d.]).
  • 15
    Com base nessas definições, usamos o termo “comum” em vez de “bem comum”, para não remeter a uma ideia do comum como objeto ou propriedade.
  • 16
    O Decreto n. 7.342/2010 instituiu o cadastro socioeconômico para identificação, qualificação e registro público da população atingida por empreendimento de geração de energia hidrelétrica. No entanto, sua regulamentação em junho de 2012 privatizou o cadastramento dos atingidos, transformando e que deveria assegurar direitos em mais um negócio para as empresas (MAB, 2013MAB. MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS. PNAB: Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens. São Paulo: MAB, 2013.).
  • 17
    Palma (2007PALMA, E. G. A. Aplicação da legislação ambiental no território da APA do Lago de Pedra do Cavalo: o caso do núcleo de reassentamento Ilha de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.) destaca a participação da Universidade Federal da Bahia, da Universidade Estadual de Feira de Santana, da Igreja Católica (pela atuação de dom Avelar Brandão Vilela, arcebispo de Salvador), do MAB, do Movimento de Organização Comunitária, da Associação Baiana de Sociólogos, da Associação dos Engenheiros Agrônomos da Bahia, do Clube de Engenharia da Bahia e do Grupo Ambientalista da Bahia.
  • 18
    Como ressalta Palma (2007PALMA, E. G. A. Aplicação da legislação ambiental no território da APA do Lago de Pedra do Cavalo: o caso do núcleo de reassentamento Ilha de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.), a área do lote instituída pela Desenvale era inapropriada já que, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o módulo rural para a região é de 72 tarefas.
  • 19
    O modelo da casa também era padrão: um depósito, dois quartos, uma sala, uma sala de jantar, uma cozinha, um banheiro e uma varanda. Como ressalvou Germani (1993GERMANI, G. I. Cuestión agraria y asentamiento de población en el área rural: la nueva cara de la lucha por la tierra: Bahia, Brasil (1964-1990). Tese (Doutorado em Geografia) - Facultad de Geografía e Historia, Universidad de Barcelona, Barcelona, 1993.), as casas eram, no geral, maiores que as anteriores, o que também serviu como propaganda do projeto e contribuiu para legitimar a proposta de reassentamento perante os atingidos.
  • 20
    Esse segundo modelo não foi implementado nos primeiros núcleos de assentamento, como no caso da Agrovila do Sobrado.
  • 21
    Tramita atualmente uma proposta de emenda constitucional (PEC n. 4/2018) que requer que a água seja um direito fundamental explicitamente reconhecido pela Constituição.
  • 22
    A Política Nacional de Saneamento (Lei n. 11.445/2007) torna o saneamento básico um direito social e aponta a necessidade de dar prioridade a planos, programas e projetos que visem implantar e ampliar serviços e ações de saneamento nas áreas ocupadas por população de baixa renda (Britto; Rezende, 2017BRITTO, A. L.; REZENDE, S. C. A política pública para os serviços urbanos de abastecimento de água e esgotamento sanitário no Brasil: financeirização, mercantilização e perspectivas de resistência. Cadernos Metrópole, v. 19, n. 39, p. 557-581, 2017. doi: https://doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3909.
    https://doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3...
    ).
  • 23
    Os dois outros tipos de conflito socioambiental incluídos na classificação de Little (2001LITTLE, P. E. Os conflitos socioambientais: um campo de estudo e de ação política. In: BURSZTYN, M. (Org.). A difícil sustentabilidade: política energética e conflitos ambientais. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. p. 107-122.) são os decorrentes de impacto ambiental ou social devido a ação humana ou natural e os conflitos em torno do uso dos conhecimentos ambientais.

Editado por

Editor do artigo:

José Sobreiro Filho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2022
  • Aceito
    30 Jan 2023
Universidade de São Paulo Av. Prof. Lineu Prestes, 338 - Cidade Universitária, São Paulo , SP - Brasil. Cep: 05339-970, Tels: 3091-3769 / 3091-0297 / 3091-0296 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistageousp@usp.br