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A geografia dos anos iniciais como desafiadora e perigosa * * O presente trabalho foi traduzido para o português com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Resumo

A geografia dos anos iniciais (AI) é um assunto muito confortável. Ela tende a evitar tópicos da Geografia considerados “inaceitáveis”, ameaçadores ou potencialmente perigosos. Considerar desafio e “perigo” na Geografia dessa fase escolar não é tanto sobre os perigos do trabalho de campo, mas sim sobre tópicos intelectuais, emocionais e socialmente perigosos, local e globalmente. A tendência é ensinar o que é aceitável e não causar desconforto, focar os aspectos positivos do mundo, demonstrar esperança. Mas isso não é sempre recomendável. Aqui se descrevem e questionam quatro argumentos em prol dessa abordagem confortável. O argumento que recomenda “ir com cuidado” num mundo inseguro, mesmo quando pensamos em crianças menores, mantém o indivíduo desinformado, e por isso deve ser questionado. O desejo de ser otimista não deve comprometer o ato de ser realista e honesto com as crianças, que por sua vez são capazes e resilientes. Para sustentar a proposta de uma abordagem mais exigente e mesmo mais “perigosa” da Geografia dos AI, sugerimos alguns tópicos que podem ser investigados pelas crianças. Surge então a inevitável pergunta: a quem ensinamos Geografia? O objetivo deste ensaio é levantar questionamentos e trazer uma reflexão sobre o papel da educação (em Geografia) no mundo atual.

Palavas-chave:
Geografia dos anos iniciais; Geografia desafiadora; Geografia perigosa; Geografia local; Geografia global

Abstract

Primary geography is rather comfortable subject. It tends to avoid ‘unacceptable’, threatening and potentially dangerous geography topics. Considering challenge and ‘danger’ in primary geography is not so much about fieldwork dangers as about intellectually, emotionally and socially dangerous topics, locally and globally. The tendency is to teach what is acceptable and not to ruffle feathers, except perhaps ever so gently. The desire is to focus on the positive about the world, to be hopeful. But this may not always be wise. Four arguments for a comfortable approach in primary geography are outlined and challenged. The argument is that 'playing safe' in an unsafe world, for even younger children, keeps them uninformed and needs to be challenged. The desire to be positive must not undermine being realistic and honest with children, who are capable and resilient. To make a case for taking a more demanding, even ‘dangerous’, approach in primary geography, examples are given to indicate challenging geography topics which younger children can investigate. Inevitably, the emergent question is who geography is taught for. Essentially, the purpose of this article is to raise questions, to think more openly and to encourage reflection on the role of (geographical) education in today’s world.

Keywords:
Primary geography; Challenging geography; Dangerous geography; Local geography; Global geography

Resumen

La geografía primaria es un tema bastante cómodo. Tiende a evitar temas geográficos “inaceptables”, amenazantes y potencialmente peligrosos. Considerar el desafío y el "peligro" en la geografía primaria no se trata tanto de los peligros del trabajo de campo como de los temas intelectual, emocional y socialmente peligrosos, a nivel local y global. La tendencia es enseñar lo que es aceptable y no causar incomodidad, enfocarse en los aspectos positivos del mundo, demostrar esperanza. El deseo es centrarse en lo positivo del mundo, tener esperanza. Pero esto no siempre puede ser sabio. Se describen y cuestionan cuatro argumentos a favor de un enfoque cómodo en la geografía primaria. El argumento es que "jugar a lo seguro" en un mundo inseguro, incluso para los niños más pequeños, los mantiene desinformados y necesita ser cuestionado. El deseo de ser positivo no debe socavar el ser realista y honesto con los niños, que son capaces y resistentes. Para justificar la adopción de un enfoque más exigente, incluso "peligroso", en la geografía primaria, se dan ejemplos para indicar temas de geografía desafiantes que los niños más pequeños pueden investigar. Inevitablemente, la pregunta emergente es para quién se enseña geografía. Esencialmente, el propósito de este artículo es plantear preguntas, pensar más abiertamente y alentar la reflexión sobre el papel de la educación (geográfica) en el mundo actual.

Palabras clave:
Geografía primaria; Geografía desafiante; Geografía peligrosa; Geografía local; Geografía mundial

Introdução

Ensinar geografia a crianças menores, sejam elas de 4-5 ou 9-10 anos, reflete visões sobre contextos e valores apropriados para sua educação. O consenso internacional parece ser que a escola deve oferecer às crianças mais novas a oportunidade de se desenvolver de forma calma e organizada, sem que os desafios e perigos do mundo as afetem. Ou seja, o papel da escola é proporcionar um ambiente seguro. No entanto, deve-se observar que essas mesmas crianças passam a maior parte de sua vida fora da escola, na realidade de seu mundo local, de sua casa e vizinhança. Este mundo real envolve lugares do cotidiano, suas casas, lojas, ruas e espaços de lazer ao lado da família, amigos, conhecidos e também estranhos. A maioria dessas pessoas e lugares comuns são amigáveis, mas as vidas dessas crianças mais novas não estão livres de desafios, contradições, dificuldades e até mesmo perigos. O trânsito, por exemplo, representa um perigo normal para a maioria das crianças, porém há vários outros, como escadarias, lugares com água (rios, lagos), lugares lotados ou isolados, a múltipla publicidade à qual estão expostas e a onipresente internet. Há muitas coisas nesse mundo real das quais os adultos desejam proteger as crianças, e o fazem com êxito, até certo ponto. As crianças mais novas têm maneiras de descobrir, ganhar acesso e explorar lugares perigosos reais ou digitais, talvez com amigos, além do conhecimento de seus responsáveis.

As crianças, desde a educação infantil, levam à escola uma ampla consciência e conhecimento - embora limitado - sobre o mundo além dos portões da escola, uma vez que esse mundo é um aspecto fundamental de sua vida. Esse mundo é particular a cada criança, difere segundo as características de cada uma e a realidade que apresenta também depende de várias outras circunstâncias (Catling; Pike, 2023Catling, S. and Pike, S. (2023) Becoming acquainted: aspects of diversity in children’s geographies. In L. Hammond, M. Biddulph, S. Catling and J. McKendrick (Eds.) Children, Education and Geography: Rethinking Intersections. (pp.83-101) Abingdon: Routledge .) como, por exemplo, onde mora, sua família e os lugares rurais, urbanos ou suburbanos que ela e seus tutores habitam. Pode haver poucos ou muitos perigos em sua vida, no lugar onde vive. Essas crianças podem ser acompanhadas por adultos e irmãos ou podem ter um grau de responsabilidade pessoal para cuidar de si mesmas quando fora de sua localidade. Crianças mais novas precisam ser geograficamente conscientes de seu local e perspicazes para evitar os perigos que as espreitam. Para ser conscientes, elas precisam estar informadas e alertas.

Um currículo de Geografia dos AI, em âmbito nacional, tem a responsabilidade de permitir que as crianças conheçam sua vizinhança e a área mais ampla. É importante que a Geografia, como o assunto que melhor pode ajudar as crianças mais jovens a conhecer e apreciar seu lugar, garanta que elas adquiram uma noção completa da área, que vai além de uma descrição direta de suas instalações e serviços, seu contexto físico e os aspectos não contenciosos desde os tipos de edifícios, lojas, trânsito, das rotas de pedestres aos trabalhos que as pessoas realizam, bem como as conexões da localidade com outros lugares próximos e distantes. Limitado a estes aspectos de sua área, os conteúdos de ensino dos AI oferece apenas uma Geografia “fechada”, limitada, confortável.

Este ensaio defende uma Geografia mais desafiadora para os alunos dos AI, uma vez que isso é importante, e até mesmo necessário, no mundo moderno. Para alguns professores isto não é problemático, mas outros leitores podem considerar essa perspectiva polêmica e inadequada, que levanta questões muito sensíveis para o currículo dos AI. A premissa do ensaio é que, em âmbito mundial, a Geografia dos AI se concentra numa geografia “confortável”, proporcionando um oásis de calma e otimismo, uma fuga simplista para as crianças do mundo real em que vivem, refletindo esta sensação do que uma escola primária deve fazer. Mas será isso apropriado, correto ou justo para as crianças menores? Não deveria a Geografia dos AI abordar o mundo local como ele é e deixar de lado a imagem que a maioria (se não todos) dos adultos considera “boa”?

O propósito deste ensaio é sério, sugerindo que o mundo e a disciplina da geografia não são o que, em muitos casos, “vendemos” para crianças menores e seus professores - nem deveria ser esse o caso. Certamente, existem preocupações válidas sobre a necessidade de defender crianças mais novas do perigo; mas protegê-las demais e não permitir que saibam como é realmente o mundo a sua volta e à distância lhes presta um grave desserviço, especialmente no mundo atual e interconectado, ao qual elas têm fácil acesso. Acredita-se que as crianças precisam de um ambiente seguro e fechado, em vez de ser tratadas como pessoas resistentes, inteligentes, atenciosas e capazes de lidar com o mundo - mesmo reconhecendo que elas vêm e vivem num mundo desorganizado que está além de seu edifício escolar e de seus terrenos seguros. Assim, implicitamente, este ensaio levanta questões sobre a finalidade e a quem se dirige a educação geográfica, como uma busca não apenas de conhecimento, mas uma busca ética, emocional, realista e cotidiana.

Introdução ao tema

Ao introduzir ideias sobre a realidade dos lugares, dos ambientes e do mundo a crianças mais jovens, a Geografia tende a se concentrar em descrições breves e informativas e dar algumas explicações técnicas sobre a localidade ou regiões maiores e sobre aspectos temáticos e características de diversos ambientes físicos e humanos. Em várias nações ocidentais essa abordagem serviu a propósitos coloniais, infundindo nas colônias desses países perspectivas sobre “pátria” como a base fundamental para um pensamento nacional subserviente diante do mundo (Radcliffe, 2022Radcliffe, S. (2022) Decolonizing geography: An Introduction. Cambridge: Polity Press.; Sharp, 2023Sharp, J. (2023) Geographies of Post-Colonialism: Spaces of Power and Representation. (2nd edition) London: Sage .). Concomitantemente, teve um papel semelhante com as crianças mais novas, proporcionando-lhes uma visão única do mundo, criando um senso de “disciplina” da escola como um lugar para ser e aprender o que está definido. Essencialmente, em ambos os contextos, haveria que investigar o poder emanado de ou originário de um lugar, quem detém e exerce esse poder sobre quem ou sobre o que, seu impacto na vida das pessoas e seus lugares, e a forma como ele se infiltra em seu cotidiano, clara ou imperceptivelmente. Descrições simples do cotidiano ajudam a fazê-lo parecer “normal”, pois tais descrições são incontroversas. Assim sendo, o cotidiano pode dar a impressão (enganosa) de que a própria vida cotidiana é incontestável. No entanto, há muitas coisas que suscitam preocupações em qualquer localidade, mesmo as marginalizadas ou escondidas, como os tipos de loja vistos como aceitáveis numa comunidade, o impacto do trânsito nas ruas laterais e as soluções para isso, os tipos de moradia permitidos numa área, a quem são destinadas essas moradias e quem responde por tal permissão.

Geografias críticas e radicais têm questionado o “aceitar sem discutir” por muitos anos (Peet, 1977; Berg et al., 2016Berg, L., Best, U., Gilmartin, M. and Gutzon Larsen, H. (Eds.) (2016) Placing Critical Geography: Historical Geographies of Critical Geography. Abingdon: Routledge.; Santos, 2021Santos, M. (2021) The Nature of Space (translated by Baletti, B.) London: Duke University Press.). Suas perspectivas são bem-vindas desde que feitas por vozes ausentes e alternativas, perspectivas minoritárias e desafios que mantenham uma visão confortável da área local e do mundo ao redor. Examinar os aspectos dos lugares e vidas vividas pode ser desconfortável e problemático; pode até ser percebido como algo perigoso, pois abre caminhos para olharmos para os lugares ao nosso redor e para o mundo em geral como ele nos afeta e levanta sérias questões e desafios a nossas maneiras de viver e pensar sobre o mundo.

As manifestações de crianças e jovens sobre a gravidade do impacto das mudanças climáticas proporcionaram tais desafios, mas são vistas como perigosas por alguns membros de nossas sociedades. Tais desafios às geografias “confortáveis” resultam em mudanças na percepção, na apreciação e nas atividades. Criar e ter esse efeito não está absolutamente além da capacidade ou do engajamento das crianças mais novas. Na verdade, essa é a maneira de desenvolver a Geografia com alunos dos AI; é uma abordagem que deve ser adotada (Catling, 2022Catling, S (2022) The danger in primary geography. Primary Geography,107, 10-12.), se não o tempo todo, ao menos como um componente chave do ensino da Geografia, envolvendo as crianças na realidade da localidade e do mundo onde vivem e com a qual terão oportunidade de contribuir em sua vida futura.

A Geografia dos AI é potencialmente perigosa. O desejo das crianças de saber sobre o mundo as leva a fazer perguntas, e tal questionamento pode ser altamente problemático. As perguntas podem ser exigentes, desafiadoras, até mesmo intrusivas, reveladoras da ignorância de muitos, que preferem deixá-las sem resposta, inexploradas. Para os curiosos - nossos alunos -, a Geografia explora o desconhecido, o que implica um perigo inevitável. Pode ser perigoso para aqueles - seus professores - que devem “conhecer” as respostas, quando lugares e tópicos estudados se aventuram no “conhecimento” desconhecido. Os políticos blefam frente a esse perigo; os professores também podem fazer isso, especialmente quando não estão seguros, mas na educação isso é perigoso; as crianças têm maneiras de se dar conta quando estão sendo “enganadas”. As crianças querem respostas, não generalizações, respostas parciais, não querem ouvir que suas perguntas são inadequadas. Este é um problema de segurança - para alguém. Embora essas indagações não representem necessariamente estar fisicamente em perigo, cria-se uma falta de segurança intelectual, emocional e social. Estas noções são contextos significativos de perigo (Quadro 1).

Em ambientes educacionais pode ser perigoso ir contra o que está estabelecido, desafiar o conhecimento recebido e as normas estabelecidas, incluindo requisitos dos currículos estaduais ou regionais de Geografia, oferecer perspectivas e ideias indesejadas ou diferentes a crianças ou professores. Desafiar expectativas e normas. Ser não convencional, imprevisível, incomum, trilhar um caminho desconhecido, ser provocativo e contencioso, todas essas condutas são passíveis de serem rotuladas como perigosas. Esse pode ser o caso ao propor tópicos no âmbito da Geografia com os quais muitos na etapa dos AI podem se sentir desconfortáveis. Afinal, a Geografia como busca intelectual não é neutra; tece julgamentos dentro de seus tópicos, uma vez que o mundo é controverso e desafiador. Perigoso ter que pensar sobre assuntos como as muitas manifestações da mudança climática e seus impactos (Thunberg, 2022Thunberg, G (2022) The Climate Book. Dublin: Allen Lane.).

Quadro 1 -
Significados de perigoso

O que é considerado perigoso é frequentemente visto como negativo. Os perigos inerentes ao trabalho de campo podem ser superados fazendo avaliações eficazes e tomando e seguindo as exigências apropriadas de saúde e segurança, bem como em lugares considerados seguros. Agir de forma segura, tomar a linha aceitável, não assumir riscos, permanecer intelectualmente sólido, fazer o que é percebido como não problemático e incontestável, tradicional e aceito dentro do currículo de Geografia no Ensino Fundamental é visto positivamente. Parece ser benigno, habitual e normal: isso é o que muitos adultos fazem, inclusive na escolaridade. Possivelmente, é melhor manter a geografia calma e pouco aventureira, e não entrar nas águas “perigosas” de pontos de vista e argumentos alternativos, explorando perspectivas imprevisíveis, propondo perguntas desafiadoras e não esperando respostas diretas. Isto é arriscado. É difícil saber quando assumir tais riscos na Geografia dos AI. Quando seria um bom momento para assumir riscos, para questionar e desafiar o “normal”? Talvez agora seja o momento certo, dadas as grandes preocupações ambientais, para examinar esse “problema perverso” de uma matéria controversa, exigente, arriscada e desafiadora, metaforicamente para fazer rafting em águas brandas no rio Colorado ou se aventurar em lugares e tópicos considerados inseguros e perigosos, pois eles podem dar respostas imprevisíveis.

O desafio imposto pela Geografia Perigosa

A maioria dos professores de Educação Infantil e dos anos iniciais (AI) trabalham um currículo “confortável” na Geografia, interessante, mas não provocador, ou seja, o que é esperado e aceito como um currículo aprovado pelo governo. Com muita discussão sobre globalização, pensamento crítico e descolonização do currículo, a questão é se devemos desafiar a geografia segura e amplamente benigna que a maioria, se não todos, os professores primários ensinam. E qual a razão disso? Será porque se considera que muitos professores não querem desafiar/questionar ou ser desafiados/questionados? Evidências obtidas pelos serviços nacionais de inspeção no Reino Unido, por exemplo, indicam que apenas 5-10% dos professores primários se sentem confiantes ensinando geografia ou outras disciplinas de ciências humanas (Catling, 2017Catling, S (2017) High quality in primary humanities: Insights from the UK’s inspectorates, Education 3 to 13, 45 (3), 354-364.), e estão preparados para assumir e administrar temas geográficos desafiadores, problemáticos e até mesmo controversos e insolúveis. O que isso diz sobre o que os professores desejam ensinar dentro e como Geografia?

Tal reflexão implica que a proposta de uma Geografia Perigosa nas escolas de Ensino Fundamental não pode passar despercebida. As respostas críticas à Geografia Perigosa nos AI tendem a adotar uma ou mais de quatro abordagens: que a Geografia dos AI não deve minar a esperança das crianças no futuro; explorar questões locais pode ser muito controverso; a Geografia Perigosa transcende os objetivos dos AI; os professores que não têm um forte entendimento geográfico não podem ajudar as crianças a investigar temas controversos de geografia. Estas críticas são descritas abaixo, e cada uma delas é discutida.

Mantendo a esperança na Geografia dos anos iniciais

Uma preocupação é se a investigação de temas “perigosos” desmente o otimismo, ou seja, se com ela ainda seria possível dar “esperança” às crianças do Ensino Fundamental (Hicks, 2014Hicks, D (2014) Educating for Hope in Troubled Times. London: Trentham Books.; Scoffham, 2021Scoffham, S (2021) Finding hope at a time of crisis. Primary Geography, Spring, 8-9.). A Geografia Perigosa nos AI pode ser problemática e preocupante. Muito embora constitua genuína parte da Geografia, a Geografia Perigosa pode ser vista como não apropriada para alunos dos AI, pois eles não teriam conhecimento e entendimento suficiente para investigá-la. Espera-se que, para as crianças mais novas, as salas de aula sejam lugares de esperança, de calma, de cura, de informação e de sentimento positivo sobre o mundo. As crianças nessa fase podem até precisar considerar tópicos que contenham controvérsia, mas isso deve ser feito dentro de restrições seguras, para que não venham a perceber o mundo como um lugar de discussão, desafio constante, perigo e desacordo; nem que os estudos geográficos sejam sobre quem detém o poder, influência e controle localmente e no mundo em geral. Tais focos podem ser perturbadores para os jovens. As salas de aula do Ensino Fundamental devem infundir tranquilidade e proporcionar a base sólida que as disciplinas escolares - como a Geografia - exigem e proporcionam. Elas não devem preocupar as crianças desnecessariamente, mas sim garantir esperança e otimismo. Qualquer ação que não seja a de tranquilizar está a cortejar o perigo.

No entanto, temas geográficos perigosos oferecem oportunidades para inspiração, análise, reflexão e ideias para mudança e melhoria mesmo em contextos e mundo imprevisíveis, nos quais é possível identificar soluções. Desafiar as crianças a ser criativas e sugerir uma série de maneiras de avançar em tópicos difíceis - inclusive como lidar com essas situações de forma alternativa - desenvolve sua consciência, conhecimento, criticidade, reflexões e senso do que importa, mesmo que a adoção de soluções e mudanças possa ser altamente problemática e algo que as próprias crianças não possam fazer. Os professores de Geografia dos AI devem ser otimistas - compreender um problema ou uma questão é aprendizado positivo -, porém devem também ser realistas e encorajar o senso de colaboração e engajamento e estimular o aluno a fazer a diferença. Isso não acontecerá se seus temas de geografia forem benignos e não desafiarem as crianças com novas formas de pensar, olhar e buscar soluções, sejam elas locais, nacionais ou globais. Esperança tem a ver com inspiração e visão de futuro; explorá-la em temas de Geografia Perigosa dá sentido a essa esperança e proporciona um aprendizado que as crianças mais novas podem enfrentar. A Geografia Perigosa é, portanto, baseada na esperança.

Conhecer a área da escola

Deve haver cuidado com o que é ensinado no sentido de ajudar as crianças mais novas a entender a localidade de uma escola, uma vez que alguns aspectos podem melindrar membros da vizinhança por estar muito “fora do limite aceitável”. A preocupação com ruas e becos inseguros é um exemplo disso. Quando educadores não apreciam realmente o significado das perspectivas geográficas sobre os ambientes, culturas e sociedades da escola e da área mais ampla - e não querem causar aborrecimentos locais com pais ou autoridades - há uma relutância natural em incluí-los no currículo geográfico e explorar tais preocupações com as crianças. Nessas circunstâncias, os professores relutarão a incluir tópicos perigosos de Geografia, mesmo onde tais tópicos possam ajudar as crianças a entender melhor sua área de residência e comunidade. Tópicos geográficos perigosos que são abordados nas aulas podem ser contestados por membros da comunidade local, por exemplo, por meio dos gestores das escolas e dos pais, porque podem encorajar as crianças a levantar questões em casa que não são desejadas. O currículo de Geografia do Ensino Fundamental depende das perspectivas pessoais dos líderes escolares e dos professores sobre as dimensões geográficas e sociais de sua comunidade. Deve-se refletir sobre esses tópicos locais, verificar se podem ser desafiadores e perigosos, ou seja, assuntos sérios a ser investigados, percebidos como problemáticos tão somente por criar um “ruído” desnecessário nos estudos geográficos.

Ademais, esse também é um argumento para incluir estudos locais de Geografia desafiadores no currículo a fim de para permitir que os alunos dos AI entendam melhor sua área de residência. Dirigidos a questões e baseados em problemas, os temas locais dão uma visão mais completa da localidade e ajudam as crianças a pensar, compreender e apreciar a diversidade de sua vizinhança e refletir sobre desigualdades e benefícios de sua área. É importante propor maneiras de abordar as preocupações locais reais, dando às crianças mais jovens um sentido mais profundo de seu papel de cidadãos na sociedade e em sua comunidade.

O perigo reside nas expectativas “exageradas” das crianças

Crianças são naturalmente curiosas e reflexivas. No entanto, persiste o argumento de que é importante evitar que as mais novas se aprofundem demais em determinados tópicos geográficos, e isso não é exatamente útil para mentes mais jovens diante de um assunto desafiador. Essencialmente, o papel do Ensino Fundamental é “ensinar”, e não envolver as crianças na responsabilidade e em decisões curriculares. Afinal de contas, essas crianças não são suficientemente maduras ou informadas para contribuir de forma útil nos tópicos ou nas lições de Geografia baseada no conhecimento. Elas precisam de informações que lhes permitam sentirem-se confortáveis com seu aprendizado em Geografia, seja sobre locais e ortografias de nomes de lugares ou sobre as descrições aprovadas e as razões estabelecidas dentro da geografia social, urbana ou física. Em suma, as crianças estão na escola para aprender o que está estabelecido no currículo. Falta-lhes a experiência necessária para que os professores possam se aprofundar nesse aspecto. Seria uma perda de tempo esperar o contrário delas.

O contrário dessa perspectiva é que as crianças trazem muito aos temas e ao currículo geográfico (Catling; Martin, 2011Catling, S and Martin, F (2011) Contesting powerful knowledge: the primary geography curriculum as an articulation between academic and children’s (ethno-)geographies. The Curriculum Journal, 22(3), 317-336.; Catling; Willy, 2018Catling, S and Willy, T (2018) Understanding and Teaching Primary Geography. London: Sage.). Reconhece-se que, não raro, o que as crianças trazem é informação fragmentada que precisa ser estruturada n uma perspectiva disciplinar. Proporcionar tal estruturação é um papel fundamental do ensino e do aprendizado em Geografia. Deve-se reconhecer que as crianças têm conhecimento que podem aproveitar e aplicar, tanto geográfico quanto em outras dimensões de suas experiências vividas e compreensão. Dentro de uma sala de aula isto será diversificado (Catling; Pike, 2023Catling, S. and Pike, S. (2023) Becoming acquainted: aspects of diversity in children’s geographies. In L. Hammond, M. Biddulph, S. Catling and J. McKendrick (Eds.) Children, Education and Geography: Rethinking Intersections. (pp.83-101) Abingdon: Routledge .). O aproveitamento dos conhecimentos, experiências, perspectivas, pontos de vista e valores das crianças permite que estes se relacionem com a estrutura geográfica de conceitos-chave e descrições e explicações do lugar e estudos temáticos do sujeito (Catling, 2019Catling, S (2019) Key Concepts. In T Willy (Ed) Leading Primary Geography. pp.17-27. Sheffield: Geographical Association., 2021Catling, S (2021) Reflecting on knowledge and primary geography, in M Farghar, D Mitchell and E Till (Eds) Recontextualising Geography Education. (pp.55-70. Cham: Springer.). O valor dessas ações é permitir que as crianças vão construindo senso crítico e uma compreensão do mundo que elas experimentam em diferentes contextos e por fontes de primeira ou de segunda mão. A agência das crianças em seus estudos geográficos fomenta seu pensamento geográfico num mundo desafiador que precisa de sua contribuição. Ter grandes expectativas em Geografia, bem como em outros segmentos do ensino dos AI, permite às crianças desenvolver sua agência como aprendizes de Geografia e ter voz em seu aprendizado geográfico.

Os professores devem conhecer sua geografia para lidar com aspectos desafiadores

O ensino da Geografia Perigosa depende de quão bem e profundamente os professores dos AI conhecem e apreciam o assunto e suas ideias-chave e também das formas pelas quais essa geografia permite entender e agir no mundo e em sua diversidade e muito mais. A questão fundamental é: o que os professores dos AI sabem sobre temas não neutros e controversos da Geografia e como eles podem ser investigados e engajados no ensino da Geografia? Isto é problemático (Catling, 2017Catling, S (2017) High quality in primary humanities: Insights from the UK’s inspectorates, Education 3 to 13, 45 (3), 354-364., 2022Catling, S (2022) The danger in primary geography. Primary Geography,107, 10-12.) e continua a ser uma questão espinhosa, que a maioria dos governos, líderes escolares evitam abordar. Essa questão envolve verbas para recursos, hierarquia curricular (a geografia tende a estar abaixo da lista), interesses políticos e sociais na escola e na comunidade em geral, e os perigos inerentes a tais tópicos geográficos de examinar e refletir sobre assuntos controversos que os professores precisam de confiança para ensinar, o envolvimento com pontos de vista diferentes e conflitantes e possíveis caminhos a seguir. O enfrentamento de temas de Geografia Perigosa provavelmente dará às crianças a falsa sensação de que elas podem influir em assuntos que afetam o mundo, local e globalmente. Ensinar Geografia Perigosa exige que os professores dos AI conheçam e compreendam a natureza dos tópicos que ensinam, e apreciem as exigências que isso lhes impõe como professores de crianças menores. Uma Geografia Perigosa e desafiadora é pedir demais aos professores dos AI.

Essa crítica é motivo de preocupação, embora existam provas globais insignificantes sobre a profundidade e as limitações do conhecimento geográfico dos professores (Catling; Willy, 2018Catling, S and Willy, T (2018) Understanding and Teaching Primary Geography. London: Sage.; Catling, 2022Catling, S (2022) The danger in primary geography. Primary Geography,107, 10-12.). Certamente, a Geografia Perigosa representa um desafio para professores dos AI. Para ensinar eficazmente a Geografia Perigosa, os professores precisam compreender e apreciar a Geografia que ensinam para que possam permitir que seus alunos explorem os tópicos geográficos local e globalmente. Precisam conhecer a população local e suas preocupações com questões ambientais e seus pontos de vista sobre esses impactos. Assim, os educadores podem garantir que as investigações das crianças sejam informativas, perspicazes e eficazes. Essa é a responsabilidade de cada professor dos AI em sala de aula: apresentar honestamente aos alunos a realidade do mundo.

Para que as crianças desenvolvam e ampliem adequadamente seu senso e conhecimento de Geografia, os professores dos AI devem garantir uma compreensão do assunto em seu sentido mais pleno. Isso significa usar recursos e materiais locais sobre outros lugares e preocupações temáticas sobre Geografia que facultem às crianças o acesso a uma visão completa dos temas geográficos. Isso é importante para o ensino da Geografia Perigosa, não menos do que quando se ensina temas de Geografia aparentemente “benignos”. Essencialmente, é preciso entender que nenhum tópico de Geografia é benigno; o que os professores selecionam e como eles ensinam é que proporcionará - ou negará - oportunidades para uma compreensão mais completa e profunda pelas crianças. As preocupações e questões comunitárias e ambientais envolvem múltiplos pontos de vista; não há “histórias únicas” porque são assuntos em disputa e debate. Alguns temas geográficos podem ser valorizados por investigar preocupações aceitáveis como formas de lidar com o lixo das ruas, mas mesmo esses podem levantar preocupações sérias e profundas e questões controversas como ideais para lidar com o congestionamento nas estradas locais e ações na vida nacional e pessoal para atenuar os efeitos da mudança climática. Os professores devem deixem de lado seu “desconforto” e perceber que ensinar geografia perigosa, para reiterar, é abrir a mente das crianças, desenvolver habilidades de pensamento crítico, empreender investigações profundas, engajar-se em perspectivas diferentes e divergentes e entender que, na maioria das vezes, não há respostas simples ou únicas ou “soluções” para os assuntos que a Geografia examina e procura resolver. É essencial que os professores dos AI entendam isso para que possam proporcionar aos alunos uma visão estimulante, desafiadora e atraente da lente geográfica.

Exemplos de geografia perigosa nos anos iniciais

Exemplificar temas geográficos perigosos ajudará a olhar diretamente para aspectos da geografia que poderiam ser incluídos no currículo de Geografia dos AI. Vários contextos familiares são considerados a seguir. Como em todos os aspectos da Geografia Perigosa, estes exemplos levantam questões de valores, desigualdade e justiça social porque em nenhum lugar ela está livre de injustiça, embora possa passar despercebida e ser ignorada (criando assim uma geografia benigna). A questão que este debate e os seguintes exemplos levantam é: o que os alunos dos AI devem ser capazes de indagar para conhecer melhor o mundo? Os seguintes elementos ajudam a reconhecer, refletir e decidir o que incluir na Geografia das crianças mais novas.

A Geografia Perigosa tem como objetivo fazer com que as crianças pensem, façam perguntas, façam investigações, tirem conclusões e ofereçam caminhos para o futuro, embora suas conclusões e soluções possam ser diversas. Ensinar discutindo temas de Geografia Perigosa não é uma abordagem que envolve aceitar informações (de quem?) ou aceitar uma visão sobre um lugar e preocupações mais amplas e globais. Ela envolve múltiplos pontos de vista, às vezes argumentos contraditórios, questões difíceis e insolúveis e possíveis soluções incompatíveis. Não se trata de respostas “fáceis”, mas sim de questionar, refletir e reconhecer o contencioso que existe no mundo, seja em nosso próprio lugar ou em outros e sobre assuntos que os atravessam (Scoffham; Rawlinson, 2022Scoffham, S. and Rawlinson, S. (2022) Sustainability Education: A classroom guide. London: Bloomsbury.).

Cinco exemplos de áreas geográficas de estudo são apresentados: investigar a Geografia do Ensino Fundamental, investigar a área local da escola, pesquisar espaços, explorar a emergência climática e investigar o que é “normal” nos lugares e na vida das pessoas. A questão a ter em mente não é se tais tópicos podem ser perigosos quando discutidos na Geografia do Ensino Fundamental, mas quem eles podem deixar desconfortáveis e por que essas pessoas teriam preocupações? Raramente as crianças se sentirão desconfortáveis, pois se envolverão com os tópicos, os desafios e a reflexão sobre o que descobrirão e aonde isso poderá levar. A Geografia Perigosa mostra a resiliência das crianças em aprender sobre a natureza do mundo em que vivem.

Contexto 1 - Investigação das geografias dos anos iniciais

Tradicionalmente, os alunos investigam a própria escola na Geografia dos AI. A um nível “confortável”, trata-se de investigar quem trabalha na escola e os trabalhos que fazem, os usos dos locais e espaços dentro e fora do edifício e do recinto da escola, o ambiente físico, a vida selvagem que habita o local, que tipos de planta crescem onde e quando, intencionalmente ou não e como e por que são tratadas. Algumas escolas e professores também incluem a diversidade de vínculos entre suas crianças, famílias e funcionários, suas conexões globais e por que eles frequentam esta escola em particular. Quando investigamos os empregos das pessoas e trabalhamos em uma escola do Ensino Fundamental, várias questões podem ser exploradas. Por exemplo: quem trabalha em determinado horário, por que trabalha nesse horário, em que lugar da escola trabalha, em benefício de quem, o que isso exige delas e a que custo? O foco das investigações é mais em alguns empregos do que em outros? Pergunta-se às crianças quem elas veem trabalhando e com quem se envolvem com frequência e com quem raramente. As crianças se envolvem com as recompensas comparativas oferecidas pelo trabalho das pessoas e por que existem disparidades e consideram o status e a hierarquia ligados ao seu trabalho? Quais seriam as consequências se alguns desses trabalhos não fossem realizados? Algumas perguntas podem ser consideradas intrusivas ou preocupantes, mas examiná-las informará as crianças sobre as relações de poder dentro da escola como um local de trabalho, sobre quem tem autoridade em que nível nos espaços de uma escola, a diversidade de trabalho, papéis e lugares e seu significado variado na geografia diária de uma escola.

Nas escolas, como na sociedade, a vida é condicionada a regulamentos. Por exemplo, por que crianças e adultos podem ir a algumas áreas e não a outras, quando e sob quais condições podem fazê-lo? Consideremos os tempos de brincadeira em diferentes climas e locais “fora dos limites”. Quem decide as regras para essas situações e locais? O quanto esse raciocínio é comum e compartilhado? Por que o acesso a alguns sites é tendencioso, ou até mesmo ignorado quando é possível fazê-lo? O que dizem as regras sobre de quem é a escola e sobre a comunidade escolar? O que tem essa gestão de comportamento a ver com o exercício de controle e poder num lugar? Quais são os impactos e em quem recaem? Há muitas vezes boas razões para as regras de lugar, mas todas as crianças e funcionários as apreciam e estão envolvidos na sua criação - e, se não, por que não? Se e quando elas são “quebradas” por quem e quais as sanções que se seguem? As regras da escola são aplicadas de forma consistente e justa, e, se não, por que não? Esse enfoque também pode ser explorado em nosso bairro. Como as regras se aplicam aos lugares que habitamos e às expectativas sobre as formas de tratá-las - e quais são essas expectativas, mesmo ignoradas?

Tais tópicos na Geografia Social e Ambiental tratam da vida em nossos espaços e lugares cotidianos - e eles deslizam para a geografia política, as geografias de fronteiras e de acesso e as geografias de poder. Esses podem parecer temas benignos, mas cavam um pouco mais fundo e se torna perigoso persegui-los, já que os alunos podem levantar questões sobre as relações de poder no espaço escolar e, se forem consultados, até que ponto podem contribuir para seu “ser” da escola e até que ponto eles são realmente cidadãos de sua comunidade escolar. O que significa “ir para”, “ser membro de” e “é a minha escola” para os alunos? Eles precisam ser reconhecidas como mais do que um elemento na geografia de uma escola, sendo apreciados como chave dessa geografia, pois, sem eles, a escola não tem nenhum propósito e não é necessária. Seus filhos fazem uma escola. Para se envolver com sua geografia, alunos de todas as idades precisam ter agência dentro da escola, de seus espaços e de seu currículo (Devine, 2003Devine, D. (2003) Children, Power and Schooling. Stoke on Trent: Trentham Books.).

Contexto 2 - Investigação da área da escola

Considere a localidade da escola. As localidades ou bacias de captação de diferentes escolas não são iguais, embora cada uma possa partilhar muitas características com outras. Bairros diferem entre si de várias maneiras. As crianças geralmente investigam aspectos de sua própria área, tais como suas características e instalações. Mas é raro investigar desigualdades locais como a habitação, as diferenças entre ruas e bairros, por que lá e com que efeito. Qual é a percepção das pessoas, inclusive das crianças, sobre a desigualdade social e ambiental dentro de sua própria área, e não apenas em outros lugares? De fato, quem vive onde dentro da localidade e quais são suas várias visões sobre a diversidade local? Tais perspectivas são precisas e justas? Quais são as atitudes que emergem dessas percepções, entre outros impactos?

Ao investigar sua localidade, os professores locais tendem a se concentrar em informações aceitáveis: sua localização, tamanho e natureza, os tipos e usos das lojas, e tópicos como os tipos e a quantidade de lixo nas ruas, a intensidade de tráfego de automóveis. Que benefícios ou preocupações esses assuntos causam nas pessoas e como as pessoas se sentem a respeito? Há muitos anos é aceito que esses aspectos das localidades são apropriados para examinar e construir entendimento junto às crianças do Ensino Fundamental. Entretanto, há perguntas perturbadoras, por exemplo, sobre a poluição do ar local e seu impacto na saúde e na vida das crianças e o que se poderia fazer para limitar o tráfego de automóveis, uma causa bem conhecida da poluição do ar.

Quando olhamos para a natureza, variedade, qualidade e acessibilidade da habitação local, que foco é tomado? As crianças podem mapear quem vive onde, mas será que investigam a composição social e econômica do bairro ou das ruas? Esses lugares têm o mesmo status? Os bairros são diferentes. Como são percebidas as diversas ruas? As crianças estarão cientes, mas será que os professores exploram como elas veem e percebem sua localidade, além de suas instalações e talvez sua estética? Será que explorar tais perspectivas é válido e justo? Quem diz que é e quem pensa o contrário? Por que isso acontece e o que nos diz sobre como as pessoas consideram que a geografia local é apropriada para crianças mais novas? Os estudos geográficos investigam quem vive “perto” e quem vive “longe” de seu local de trabalho? E quanto à opinião dessas pessoas? E quanto ao conhecimento comparativo e senso de vizinhança da escola, da vida das pessoas? Quão diversas são essas visões e será que elas se sobrepõem?

Mais do que isso, será que a Geografia dos AI investiga a natureza e a escala dos sem-teto no bairro da escola? Quem congrega onde durante o dia e por que lá? Onde seriam os locais menos agradáveis e mais abrigados para dormir fora à noite? Qual é o local apropriado para instalar um albergue para desabrigados - ou um abrigo móvel ou permanente para os desabrigados ou para aqueles que não podem comprar comida suficiente para si e sua família? Esses são tópicos raramente geográficos para crianças menores, embora elas os conheçam. Por que eles não são investigados (talvez os professores “deixem de” abordá-los, ou será que é socialmente inaceitável considerar essas realidades)? O que os sem-teto nos dizem sobre uma localidade e a vida de algumas das pessoas que nela vivem? O que diz sobre a diversidade do bairro? Mais contenciosamente - e, mais uma vez, crianças percebem essas coisas -, a Geografia dos AI investiga as evidências visíveis do uso de drogas nas ruas e parques? Que locais são conhecidos, quais estão abertos e quais estão “escondidos” e por que lá? O que isso nos diz sobre a vida no bairro de uma escola?

Esse enfoque deve embasar estudos de Geografia local que investiguem: como a escola está preparada para responder a um desastre local? Com a mudança dos padrões climáticos, o aumento do número, frequência e força das tempestades e a crescente probabilidade de inundações, que planos de contingência a escola e cada turma tem feito para permanecer segura? Isso é algo que cabe exclusivamente ao diretor da escola, professores e governadores planejar, ou as crianças devem ser envolvidas, mesmo assumindo a liderança, preparando-se para tal situação? Por que elas não deveriam ser envolvidas? De fato, por que não o são? As crianças podem fazer perguntas muito pertinentes, incisivas e desafiadoras sobre como garantir a segurança, seja por esgoto circulante nos rios, danos no telhado ou falha de energia e identificar soluções? Crianças em outras partes do mundo se preparam para situações como tornados e terremotos (Catling, 2014Catling, S (2014) Empowering Pedagogy: Giving Children Voice in Primary Geography - A Personal Reflection, International Research in Geographical and Environmental Education, 23 (4), 350-372.). As escolas de Ensino Fundamental permitem que as crianças sejam instruídas e preparadas ou os professores acreditam que elas não podem e devem ser apenas informadas? Ou se pensa que as catástrofes só afetam outros lugares e pessoas?

Esses tópicos perigosos e essas questões geográficas perguntam o que é aceitável e inaceitável para as crianças mais novas estudarem ao olhar a realidade de sua localidade. Esses tópicos são todos os aspectos da geografia urbana e rural em todo o mundo. Por que a localização é significativa neles? O que diz sua espacialidade sobre um bairro? Qual o impacto de sua presença em nossos ambientes e percepções de lugar? O que pensamos que pode e deve ser feito sobre tais assuntos - para quem e por quem? As perspectivas das crianças são importantes? Surge a pergunta: de que se trata realmente a nossa Geografia dos AI e para quem ela serve? O que é aceitável e inaceitável, para quem e por que?

Contexto 3 - Explorando espaços de vigilância

Cada vez mais alunos dos AI têm acesso a telefones celulares e computadores domésticos ou pessoais. A grande maioria o faz em casa em muitas partes do mundo - por exemplo, mais da metade das crianças de 7-8 anos de idade possui telefone celular (OFCOM, 2022Ofcom (2022) Children and Parents: Media use and attitudes report 2022. https://www.ofcom.org.uk/research-and-data/media-literacy-research/childrens/children-and-parents-media-use-and-attitudes-report-2022.
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; Childwise, 2020Childwise (2020) Childwise Monitoring Report 2020. https://www.childwise.co.uk/reports.html.
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). Isso é significativo geograficamente, com crianças ligando-se localmente, em lugares mais distantes ou no exterior com amigos e familiares, seja para descobrir informações, usar jogos on-line etc. O acesso a computadores nas localidades, por meio de seu uso em lojas, empresas ou pessoalmente, faz parte da vida diária. Uma característica-chave do dispositivo digital - a menos que seja desarmado - é sua função de localização. Os dispositivos digitais não só podem mostrar onde você está quando se comunica com outras pessoas ou quando compra mercadorias, mas a mobilidade dos dispositivos também pode mostrar aonde você vai, quando e por quanto tempo. Qualquer pessoa pode ser rastreada! Vivemos na era da vigilância (Staples, 2014Staples, W. (2014) Everyday Surveillance: Vigilance and visibility in postmodern life. Lanham, MY: Rowman and Littlefield.; Flynn; Mackay, 2017Flynn, S. and Mackay, A. (Eds.) (2017) Spaces of Surveillance: States and selves. Cham: Palgrave Macmillan; Klauser, 2017Klauser, F. (2017) Surveillance and Space. (2nd edition) London: Sage .; Newell; Timan; Koops, 2018Newll, B., Timan, T and Koops, B.-J. (2018) Surveillance, Primacy and Public Space. Abingdon; Routledge.). Porém esse tema pode ser um pouco pessoal demais para ser investigado dentro de uma escola de Ensino Fundamental, embora se deva perguntar: por quê? Outra forma de vigilância é o uso de câmeras em edifícios, estádios e ruas e seus registros digitais (Kroener, 2014Kroener, I. (2014) CCTV: A technology under thee radar? Farnham: Ashgate.). Há câmeras digitais em muitas escolas de Ensino Fundamental e Educação Infantil. As razões para isso incluem o monitoramento do comportamento das crianças e a verificação de quem entra numa escola e para onde vai; diz-se que é uma medida de segurança. Como a polícia e outros serviços de vigilância as utilizam, as pessoas podem ser vistas e monitoradas, especialmente em áreas urbanas ou em estradas principais e secundárias.

A vigilância é um aspecto potencial de uma localidade para os alunos dos AI investigarem (não sobre indivíduos), pois eles são inevitavelmente vigiadas quando se encontram naquela área e em redor. Certamente, como um aspecto frequentemente escondido de sua vida, o porquê e como a vigilância acontece é significativo para eles: sobre o porquê da vigilância, onde, por que razões e com que efeito. Mas pode ser um tópico geográfico perigoso, pois, se informarmos as crianças mais novas desse aspecto menos óbvio de sua vida diária, certamente elas têm o direito de saber que estão sendo rastreadas e registradas, devem saber que estão sendo vigiadas. As crianças podem investigar a vigilância que ocorre em sua escola, onde estão as câmeras, o que elas mostram, o uso de qualquer informação, e examinar o que elas pensam e sentem sobre isso. Se for “desconfortável” para os adultos da própria escola, as investigações podem ser realizadas em outros locais.

Considere câmeras de vigilância na área local ou perto dela. Onde estão as câmeras? As crianças podem observar onde elas estão e considerar por que nesses locais. Elas podem sugerir o que as câmeras podem estar vendo e gravando e por que essas observações são úteis e para quem. Pode ser que as câmeras se concentrem no trânsito e nos fluxos de pedestres, caso em que se pode levar as crianças para encontrar aqueles que observam as câmeras digitais, para ver o que eles veem e perguntar como isso é útil e a quem. Talvez numa grande loja ou loja (mesmo em muitas lojas pequenas) as crianças possam discutir com membros do pessoal por que usam câmeras e os benefícios e problemas com elas. Outro local apropriado pode ser um centro comercial, onde a administração do centro observa e registra os movimentos e as atividades das pessoas em todo o centro, e talvez em lojas individuais, como isso é útil e quais são as limitações. Tais investigações envolvem excelente geografia: sobre o que há no centro comercial, como ele é usado, onde ocorrem eventos positivos ou problemáticos, onde é bem mostrado e onde é menos ou não visível e como tal vigilância é benéfica ou tem limitações.

As investigações sobre vigilância podem ser consideradas perigosas por aqueles que administram lojas ou centros comerciais e por aqueles que vigiam estradas, porque o que eles fazem será conhecido pelas crianças investigadoras; no entanto, esse tópico pode ser mais aceitável para os gerentes e guardas de lojas porque as crianças mais novas têm mais probabilidade de ser estimuladas e se interessar nas dimensões geográficas do que em outras oportunidades que tais explorações podem proporcionar. Se uma investigação for recusada, as crianças mais novas podem questionar o motivo da recusa e o que isso implica em sua comunidade e na sociedade local e mais ampla.

Contexto 4 - Investigando a emergência climática

Como resultado do contínuo aumento da temperatura mundial, a mudança climática e seus impactos se tornaram tópicos cada vez mais importantes da Geografia dos AI. A inclusão da mudança climática é argumentada para ajudar as crianças mais jovens a conhecer, entender e apreciar informações e argumentos que ouvem em programas de notícias ou documentários. Ao mesmo tempo, a terminologia mudou para “a crise climática” e “a emergência climática” para a Terra e sua população. Ela se tornou quase uma convenção na Geografia em Ciências no Ensino Médio (Teaching the Future, 2022Teaching the Future (2022) Report: Teaching the future - climate, citizenship and digital teaching: Curriculum and pedagogical guidelines. http://www.teachingthefuture.eu
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). No entanto, é um tema desafiador a ser examinado na Geografia dos AI (Dolan, 2022Dolan, A (Ed) (2022) Teaching Climate Change in Primary Schools: An interdisciplinary approach. Abingdon: Routledge .). É um desafio porque conseguir ações transnacionais é notoriamente difícil. A solução dessa crise planetária envolve inúmeras dificuldades porque requer acordos intergovernamentais, cooperação e respostas estabelecidas em comum acordo. Embora existam soluções úteis, a implementação é o maior desafio. O acordo da COP27 instituído a nível global pelas para um Fundo de Perdas e Danos (UNFCCC, [s.d.]Unfccc [United Nations Framework Convention on Climate Change] (2022) COP27 Reaches Breakthrough Agreement on New “Loss and Damage” Fund for Vulnerable Countries (press release). https://unfcc.int/news/cop27-reaches-breakthfough-agreement-on-new-loss-and-damage-fund-for-vulnerable-countries.
https://unfcc.int/news/cop27-reaches-bre...
) destinado a apoiar países vulneráveis é útil, mas requer que o financiamento seja doado pelos ricos. A questão significativa sobre se os fundos e uma variedade de outras soluções podem realmente acontecer identifica esse “problema perverso”, que os líderes nacionais podem ou não estar comprometidos de todo o coração em benefício de sua nação e da flora e da fauna da planta (Dasgupta, 2021Dasgupta, P (2021) The Economics of Biodiversity: The Dasgupta Review Final Report. http://www.gov.uk/government/publications/final-report-the-economics-f-biodiversity-the-dasgupta-revi.
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). De fato, a preocupação “real” é com a humanidade, que criou sem pensar a situação em que se encontra. A crise climática não se reduz ao que está mudando no clima, mas inclui os efeitos - incêndios e inundações, entre muitos outros (WMO, 2022), como isso tem sido causado e o que pode ser feito para atenuá-lo (Foster, 2019Foster, J (Ed) (2019) Facing Up to Climate Reality: Honesty, disaster and hope. London: Green House Publishing.; Gates, 2021Gates, B (2021) How to Avoid a Climate Disaster: The solutions we have and the breakthroughs we need. London: Allen Lane.). Uma ampla gama de soluções práticas, científicas, de engenharia e políticas, assim como humanitárias e pessoais são propostas regularmente.

A emergência climática gerou “protestos” do clima escolar e outras ações de jovens, envolvendo algumas crianças do Ensino Fundamental e suas famílias (Thunberg, 2019Thunberg, G (2019) No One is Too Small to Make A Difference. London: Penguin Random House.). Muitas pessoas não estão satisfeitas com as decisões e ações aparentemente atenuantes das indústrias, agricultores e políticos. Uma abordagem é apreciar as intenções de agir de modo a reconhecer - embora não tido como adequado a crianças dos AI, pois adultos consideram as crianças mais novas incapazes de entender o que é a crise/emergência climática - ou apreciar as implicações tanto da emergência climática quanto de suas próprias perspectivas e ações. Em outras palavras, esse importante tópico de Geografia é uma Geografia Perigosa e considerada além da capacidade dessas crianças. De fato, se a Geografia Perigosa fizer parte do currículo dos AI, é provável que se diga que os professores estão doutrinando as crianças, afirmando que há uma crise e fazendo com que elas discutam soluções e perguntando o que está sendo feito local e nacionalmente para apoiar um futuro melhor para elas. Contudo, talvez essa Geografia Perigosa devesse ser debatida com os alunos dos AI (Dolan, 2022Dolan, A (Ed) (2022) Teaching Climate Change in Primary Schools: An interdisciplinary approach. Abingdon: Routledge .). Deixamos de ensinar assuntos porque as crianças mais novas ainda não se depararam com eles? Ensinar sobre a emergência climática é problemático pois, para muitos, esse tópico é desconfortável, desconcertante e excessivamente desafiador - e para uma pequena minoria ele não existe ou não importa. Lidar com assuntos assim exige mudanças profundas, não apenas ajustes confortáveis. Talvez seja simplesmente muito difícil lidar com ele, o que o torna um tópico perigoso para todos nós.

Somos encorajados a ser otimistas enquanto as temperaturas globais aumentam e os seres humanos continuam a agir de modo a fomentar o aumento da temperatura dos oceanos e da atmosfera. Somos também encorajados a ter esperança de que podemos mudar nossa maneira de fazer as coisas, como por exemplo, reduzindo o uso de combustíveis fósseis e introduzindo ações de redução de carbono e mudando para atividades de produção e lazer sem carbono, e vivendo estilos de vida mais verdes. Entretanto, e se ser otimista for um tanto equivocado? E se - como indicam as evidências sobre o aquecimento global, o derretimento do gelo polar e das geleiras e a mudança das zonas climáticas - as coisas estão ficando e continuarão a ficar piores enquanto agimos muito lentamente, esse desastre se aproxima (Franzen, 2021Franzen, J (2021) What If We Stopped Pretending? London: 4th Estate.)? Por não ser honestos, será que enganamos crianças de todas as idades? Estamos contentes em deturpar, em contar histórias climáticas que não são verdadeiras? Estamos preparados para ser reconhecidos como “desorientadores” pelas gerações futuras? Será que ser otimista não pode ser inadequado e até enganoso? Não seria na verdade um problema, um desafio a ser assumido, e não apenas a busca de “soluções” aparentes, como diminuir nosso consumo de energia, deixar de utilizar combustíveis fósseis, viajar de forma mais sustentável e construir turbinas eólicas e campos de painéis solares para geração de energia? Tentamos vender “otimismo” porque esse tópico é realmente uma Geografia Perigosa?

Os alunos dos AI devem ser convidados a considerar o que sabem sobre a emergência climática e o que está sendo proposto e feito para enfrentá-la. Podemos lhes perguntar o que sabem e permitir que explorem a exatidão de seu conhecimento, bem como o que os outros dizem e pensam, e que descubram até que ponto esse conhecimento é preciso. Eles podem investigar possíveis soluções e debatê-las. O que está envolvido no fornecimento de fontes alternativas de energia? Se as pessoas passarem a utilizar carros elétricos, de onde vem a energia elétrica adicional necessária, como ela é gerada, que tipo de baterias novas serão necessárias e onde estas serão carregadas ao fazer viagens curtas e longas? Quem financiará o Fundo de Perdas e Danos da ONU para ajudar as nações vulneráveis, que tipo de financiamento e quantas nações precisarão dele? Algumas dessas medidas apoiarão as nações insulares de baixa altitude e as comunidades costeiras em todo o mundo, e o que deve ser feito para ajudá-las, até mesmo movê-las, à medida que o nível do mar subir? Como as pessoas se aquecerão em sua casa nos invernos frios à medida que houver mudanças no aquecimento de casas, lojas e outros negócios? Pode ser que um clima global cada vez mais quente afete lugares onde ocorrem períodos mais quentes e frios e como eles afetam as pessoas. As crianças mais jovens têm participado de protestos e greves de crise climática. O que elas sentem sobre tais ações? Elas consideram que conseguem alguma coisa e, se sim, o quê? Quais são suas próprias formas preferidas de contribuir para enfrentar a emergência climática, para si mesmos e para os outros? Como eles justificariam tais ações? Quais são os benefícios e as limitações? As crianças do ensino fundamental podem explorar essas e muitas outras questões pertinentes, começando em sua escola e comunidade, mas levando seus estudos a outros lugares e povos, nacional e globalmente.

Os educadores têm a responsabilidade de permitir que as crianças sejam realistas, o que às vezes significa reconhecer que algumas questões e soluções podem estar além dos governos internacionais e nacionais no presente e no futuro previsível, e que haverá tempos difíceis pela frente. Ser irrealista ao considerar as questões e as possíveis soluções não é honesto nem justo com crianças mais novas, mesmo que possa ser reconfortante. É sempre correto desejar ou fingir dar esperança? A crise climática é tão desafiadora que fazer outra coisa que não responder assim seria prejudicial para as crianças do mundo, para as gerações futuras e lidar com ela? Essa é uma Geografia Perigosa.

Contexto 5 - Investigar a noção de “normal” na vida das pessoas

As pessoas definem a vida como “normal” quando executam suas atividades diárias como de costume, seguindo as mesmas rotinas, que pouco diferem de indivíduo para indivíduo, a menos talvez que elas escolham fazer mudanças. Lugares são frequentemente chamados de “lugares normais”, o que significa que as pessoas estão acostumadas a eles, que as características permanecem como as pessoas esperam que estejam, mesmo que não frequentem esses lugares, e que o uso que as pessoas fazem dos lugares e seus serviços, lojas etc., seja muito semelhante de um dia para o outro. Porém, ao longo dos anos, em diferentes lugares, os aspectos dessa “normalidade” têm sido questionados, como, por exemplo, os campos se tornando conjuntos habitacionais e lojas sendo demolidas ou o uso desses locais sendo alterado. Esses eventos e fatores ambientais e sociais têm levantado questões sobre o que é a vida “normal” em lugares - e, vale ressaltar, enfrentamos a pandemia da Covid-19 de 2020-22, que teve um grande impacto na vida cotidiana e em lugares do mundo inteiro.

Então, o que são “lugares normais”? O que é a vida cotidiana normal? O que as pessoas normalmente fazem ao fazer compras, ir à escola ou ao trabalho ou para o lazer? A pandemia da cobiça, a emergência climática, as emissões de carbono dos veículos a motor e das aeronaves, o declínio da biodiversidade planetária e dos ambientes, os impactos e as atitudes frente às migrações, os debates sobre a agricultura pastoral e as dietas vegetarianas, o esgotamento das florestas, a ubiquidade de recipientes e embalagens de plástico e papel/cartão, os resíduos e seu descarte, a poluição do plástico na água potável e nos oceanos, as crescentes preocupações com a poluição do ar urbano e a forma como as pessoas cuidam - ou não - do meio ambiente, e muito mais, têm enfatizado questões sobre o que é aceito como “normal”, sobre o que as pessoas estão acostumadas a fazer, suas expectativas e suposições gerais, suas escolhas e preferências e seus impactos, e como percebemos e respondemos a outros povos e lugares. Todos esses fatores dedem ser reunidos para explorar qual o significado de “normal” para as pessoas - crianças e adultos -, ou seja, o que esperam do cotidiano.

As crianças dos AI podem se perguntar: o que significa “normal” ao investigar as restrições impostas pela pandemia da Covid-19, por exemplo? O mesmo normal é compartilhado por todos nós? Como são os lugares e atividades normais, e para quem? O que normalmente afeta os lugares, ao nosso redor e mais além? O que as crianças pensam e sentem agora sobre o que é considerado a normalidade diária, para si mesmas e para os outros? Eles devem ser otimistas ou críticos da normalidade? O que as crianças e os adultos devem e podem fazer para repensar sua ideia de benefícios “normais” e para atenuar as preocupações? O que poderia ser feito de outra forma? Elas desafiarão outras pessoas a repensar o que entendem por “normal”? Existem maneiras de fazer as coisas? Como? Algumas mudanças foram inevitáveis ou queremos que elas sejam revertidas? As crianças percebem que as mudanças, grandes ou pequenas, são constantes, apesar de algumas vezes ser imperceptíveis? Uma mudança “normal” é também considerada normal por outras pessoas em diferentes lugares? O que as crianças aprenderam sobre os lugares, o meio ambiente e a vida das pessoas ao perceber que alguns aspectos não são mais como eram - que o conceito de “normal” pode mudar? As crianças podem investigar na escola, em casa e localmente o que mudou, como as coisas são diferentes, para quem e com que efeitos. Como tudo isso afeta sua localidade, e qual o impacto em outros lugares e vidas? Elas podem considerar se as pessoas pioram a situação ao não mudar sua atitude em relação aos lugares, à vida e aos ambientes, abordando todas essas questões.

No entanto, isso tem seus perigos. Crianças e adultos podem ter opiniões e prioridades diferentes sobre o que consideram normal, seja na vida escolar ou na comunidade local. Será que todos querem voltar à “forma como as coisas eram” antes da pandemia ou há quem prefira a forma como são depois das mudanças? Pode ser uma dimensão perigosa nos estudos geográficos querer voltar ao passado ou avançar para criar mudanças no futuro. Perspectivas e opiniões podem conflitar, mas isso pode elevar o compromisso positivo de ouvir outros pontos de vista, de concordar em divergir, de persuadir outros a mudarem de opinião, de justificar e debater, de pensar criticamente, de procurar acordar uma ou mais resoluções, e de aprender que viver juntos é um equilíbrio (Shorer; Quinn, 2023Shorer, A. and Quinn, K. (2023) Philosophy for Children Across the Primary Curriculum: Inspirational Themed Planning. Abingdon: Routledge .).

Existem múltiplas geografias perigosas a investigar

Reunir estes assuntos, repensar o que significam para as crianças e outros e para o planeta, e sugerir e promover ações para a mudança é perigoso, como ilustram a resistência ambiental e as greves climáticas, e as respostas a elas têm mostrado. Esses temas são altamente sensíveis e controversos, pois podem significar mudanças no modo de vida das pessoas, hábitos de compra, acesso à energia, compra de roupas e alimentos, usos ou recursos, e na exploração de lugares e vidas alheias, para citar alguns pontos de impacto. Os professores e as crianças estão preparados para abraçar essa perigosa geografia?

Existe, certamente, uma geografia dos AI muito perigosa a ser investigada. As cinco áreas temáticas apresentadas acima contêm apenas alguns exemplos de Geografia potencialmente perigosa, e dentro delas muito mais poderia ter sido levantado. Uma variedade de outras possibilidades de geografia perigosa é apresentada no Quadro 2. Há, é claro, muitas outras.

Quadro 2 -
Temas adicionais de geografia perigosa para alunos dos anos iniciais

Se há relutância em admitir o ensino de geografias tão perigosas, do que as pessoas têm medo? Qual é o perigo de fazer perguntas de Geografia Urbana, Rural, Natural, Física e Social como as acima e no Quadro 2? Uma pergunta significativa é se elas devem ser importantes. São inadequadas para crianças do Ensino Fundamental? Quem o diz e quem não o diz? É que elas são desagradáveis para os professores, ou para o diretor ou os diretores de uma escola de Ensino Fundamental - porque desconfortáveis, não apropriadas para a idade, muito “assustadoras” -, embora as crianças conheçam esses assuntos, tenham opiniões e possam investigar e refletir ponderadamente sobre eles? É que os professores não querem abalar o barco da sociedade ou da política? Será que isso significa ter que considerar e explorar mais do que os focos e as atividades em que os professores se sentem seguros e confortáveis com o ensino? O que as abordagens benignas e perigosas ao ensino da geografia dizem sobre os valores da escola e o que é realmente a educação - e particularmente a educação geográfica? Esse é um assunto para reflexão pessoal de cada professor ligado à escola, a seu contexto local e social e a seus próprios valores e propósitos como educador.

Considerações finais

A Geografia Perigosa dos AI se concentra em valores: tanto em sua compreensão como um ramo do conhecimento quanto na percepção de que sustentam nossas decisões sobre o que e com quem nos engajarmos dentro dos assuntos (Catling, 2021Catling, S (2021) Reflecting on knowledge and primary geography, in M Farghar, D Mitchell and E Till (Eds) Recontextualising Geography Education. (pp.55-70. Cham: Springer.), os estudos de caso a selecionar e o que é percebido como importante na geografia. Os valores estão no cerne da educação em geografia. O ensino da geografia reflete valores na sociedade, aqueles que são aceitos na comunidade mais ampla e se refletem na escola. Nenhum conhecimento em geografia pode ser prontamente compreendido como objetivo, pois é influenciado por perspectivas sociais, políticas e mesmo pessoais daqueles que tomam essas decisões. Isso vale para as decisões curriculares. A adoção de temas de “geografia perigosa” é uma decisão de valores e, por si só, envolve perigos.

Uma Geografia questionadora, motivadora, estimulante e envolvente é perigosa. Nesse sentido, ela tem as marcas de um “problema perverso”. Não é simples definir os problemas perversos pois, entre outras características, eles têm limites nebulosos, são dinâmicos por natureza, evoluem e mudam, têm impactos e criam reações, desenvolvimentos e respostas que levam a outros desafios. E têm consequências morais (Duckett et al., 2016Duckett, D, Felician, D, Martin-Ortega, J & Munoz-Rojas, J (2016) Tackling wicked environmental problems: The discourse and its influence on praxis in Scotland. Landscape and Urban Planning, 154 (1), 44-56.). Questões locais como o controle do trânsito ou temas nacionais como o fornecimento de energia podem ser problemas perversos, em que se chocam perspectivas conflitantes, e, embora um governo local ou nacional possa impor uma solução, isso não necessariamente resolve o problema. A verdadeira dificuldade é que um problema realmente perverso não tem autoridade central capaz de resolvê-lo. A mudança climática tem sido descrita como um problema perverso - e por alguns como um problema superperverso, porque requer cooperação internacional global e mudanças sociais e pessoais na maneira de viver; muda as prioridades. Como a mudança climática, a própria Geografia dos AI pode ser considerada um problema perverso, inclusive porque ainda está em debate se seu ensino deve ajudar alunos e professores a se sentirem confortáveis ou se deve desafiá-los, adotando uma abordagem “perigosa”. Da mesma forma, muda o que pode importar nos estudos geográficos com crianças menores, porque o mundo muda. Enquanto a Geografia é baseada no presente e no futuro, o tempo não está do seu lado, uma vez que as preocupações planetárias continuam a surgir, sejam pandemias, crises energéticas ou guerras. Cada um dos exemplos de temas perigosos de Geografia dos AI referidos neste ensaio pode ser considerado perverso, o que talvez torne a Geografia mais importante como componente do currículo dessa etapa do Ensino Fundamental.

A Geografia dos AI precisa ser perigosa e enfrentar outras geografias perigosas - a fim de ser informativa e construtivamente perigosa. Ela se preocupa em envolver e capacitar crianças mais novas instigando sua curiosidade natural, suas preocupações com o mundo e seus variados ambientes, sua apreciação da interconectividade global, sua consciência espacial por meio de um engajamento criativo, crítico e positivo (Owens; Willy; Witt, 2021Owens P, Willy T and Witt S (2021) Editorial: Empowering geography, Primary Geography, Spring, 4-5.). Precisa ser honesta e realista para capacitar crianças e professores a agir; sua finalidade não é “sentar e observar e descrever” (Dolan, 2020Dolan, A and Usher, J (2021) Where in the world is covid-19? Primary Geography, Spring, 10-12. ). Precisa captar a atenção e ser cintilante, desconfortável e até um pouco assustadora. Para evitar perigos intelectuais e andar em torno de perigos sociais e emocionais a crianças, presta-se um enorme desserviço, se enfraquece sua educação, se as priva de direitos e lhes dá uma chance ínfima de criar um mundo melhor. É hora de a Geografia dos AI ser desafiadora e perigosa!

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  • *
    O presente trabalho foi traduzido para o português com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Editado por

Editora do ensaio:

Paula Cristiane Strina Juliasz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2023
  • Aceito
    15 Abr 2023
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