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Espaço urbano e plataformas digitais: deslocamentos e condições de trabalho dos cicloentregadores da metrópole de São Paulo

Resumo

Este artigo examina a imbricação entre o espaço urbano e o trabalho por meio de plataformas digitais na metrópole de São Paulo. Com ênfase nos deslocamentos e nas condições de trabalho dos entregadores do iFood que utilizam bicicletas elétricas, adotam-se como técnicas de pesquisa o levantamento bibliográfico e documental, entrevistas e trabalhos de campo entre janeiro e abril de 2022. Como resultado, revelam-se os deslocamentos, em longas distâncias percorridas com significativo dispêndio de tempo, realizados por esses trabalhadores entre as diversas periferias da metrópole e algumas centralidades com alta potencialidade para realizar entregas. Despontam também as formas pelas quais a desigualdade espacial se manifesta e se reproduz nos deslocamentos dos entregadores, reafirmando a relação centro-periferia. Ao destacar as condições de trabalho e de moradia dos entregadores que utilizam bicicleta como meio de trabalho, explicita-se a articulação entre as formas ultraprecarizadas de engajamento laboral pelas plataformas digitais de entrega e o espaço urbano.

Palavras-chave:
espaço urbano; plataformas digitais; entregadores de bicicleta; iFood

Abstract

This article examines the imbrication between urban space and work by digital platforms in the metropolis of São Paulo, Brazil. Focusing on commuting journeys and the working conditions of iFood delivery workers who use electric bicycles. Interviews and field observations were carried out as research techniques, between January and April 2022, complemented by bibliographic and documentary research. The results show that the long-distance and time-consuming travels made by these workers between the various peripheries of the metropolis and some centralities with high potential for making deliveries. The ways in which spatial inequality manifests and reproduces itself in the commuting patterns of the deliverers are then evidenced, reaffirming the center-periphery relationship. By unveiling the working and living conditions of bicycle delivery workers, the articulation between ultra-precarious forms of platform work and urban space is made explicit.

Keywords:
urban space; digital platforms; bicycle delivery workers; iFood

Résumé

Cet article examine l'imbrication entre l'espace urbain et le travail des plateformes numériques dans la métropole de São Paulo, au Brésil. En mettant l'accent sur les trajets domicile-travail et les conditions de travail des livreurs iFood utilisant des vélos électriques, des recherches bibliographiques et documentaires, des entretiens et des travaux de terrain entre janvier et avril 2022 sont adoptés comme techniques de recherche. En conséquence, des déplacements se révèlent, sur de longues distances parcourues avec un investissement de temps important, effectués par ces travailleurs entre les différentes périphéries de la métropole et certaines centralités à fort potentiel pour recevoir et effectuer des livraisons. Les manières dont les inégalités spatiales se manifestent et se reproduisent dans les déplacements des coursiers émergent également, réaffirmant le rapport centre-périphérie. En révélant les conditions de travail et de logement des livreurs qui utilisent le vélo comme moyen de travail, l'articulation entre les formes extrêmement précaires d'engagement au travail par les plateformes numériques de livraison et l'espace urbain est rendue explicite.

Mots-clés:
Espace urbain; Plateformes numériques; livreurs à vélo; iFood

Introdução

Novas práticas espaciais vêm sendo produzidas, em âmbito mundial, como resultado da proliferação das plataformas digitais e das atuais determinações que recaem sobre o emprego da força de trabalho. No bojo dessa recente expansão das plataformas digitais, merecem destaque as empresas-aplicativo, conforme termo cunhado por Abílio (2017ABÍLIO, L. C. Uberização do trabalho: a subsunção real da viração. In: Passapalavra. [Blog da Boitempo]. 22 fev. 2017. Avaliable at: https://blogdaboitempo.com.br/ 2017/02/22/Uberizacao-do-trabalho-subsuncao-real-da-viracao/ . Accessed on: 11 jul. 2020.
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), de transporte individual (como Uber e 99) e de entrega (como iFood e Rappi), tanto pela sua importância quantitativa quanto pelo potencial de produzir e reproduzir práticas espaciais.

O surgimento de novas determinações ligadas a essas atualíssimas modalidades de engajamento laboral incorpora novos conteúdos à já tornada clássica temática da Geografia Urbana dos deslocamentos entre local de moradia e o de trabalho. Desdobram-se diversas possibilidades de pesquisa, na medida em que existe um vasto leque de plataformas digitais de entrega e de transporte individual que engajam trabalhadores em condições também distintas. Diferentemente de outras formas de engajamento, também precarizadas, os trabalhadores dos aplicativos de entrega e transporte apresentam como trabalho o próprio deslocamento, operando nos e pelos fluxos urbanos. Tal característica - somada às atuais determinações que recaem sobre o uso da força de trabalho - produz novas relações espaciais, reiterando ou mesmo redefinindo morfologias urbanas.

Os trabalhadores ocupados no setor de transportes (motoristas, fretistas e entregadores) representam 90% do total dos trabalhadores engajados pelas plataformas digitais no Brasil (MANZANO; KREIN, 2022MANZANO, M.; KREIN, A. Dimensões do trabalho por plataforma no Brasil. In: MACHADO, S.; ZANONI, A. P. (org.). O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos. Curitiba: Clínica Direito do Trabalho-UFPR, 2022. p. 31-126.). A finalidade (atender ao transporte individual ou realizar entregas) e o meio de deslocamento (carro, moto ou bicicleta) desses trabalhadores resultam e implicam em condições de trabalho distintas. Um entregador da empresa-aplicativo iFood tende a ter bem menos gastos e recursos disponíveis do que os de um motorista que trabalha com a Uber, que precisa arcar com a manutenção ou aluguel do automóvel e o combustível.

Mesmo quando se trata de entregas, os deslocamentos podem ser bastante distintos, a depender do tipo de entrega, de duas ou três pontas, conforme terminologia empregada por Machado e Zanoni (2022MACHADO, S.; ZANONI, A. P. (org.). O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos. Curitiba: Clínica Direito do Trabalho-UFPR, 2022.). Na entrega de duas pontas, frequente nos serviços de e-commerce e que envolve empresas como a Loggi, os deslocamentos implicam a retirada de mercadorias em depósitos/armazéns, no geral em locais mais afastados do centro, e a entrega para o cliente. Já a de três pontas, foco deste artigo, abarca o cliente, a empresa de plataforma e uma terceira empresa, como um restaurante.

A nova dimensão quantitativa e qualitativa gerada pela disseminação do uso das plataformas digitais de entrega enseja diversas questões ainda pouco abordadas quando relacionadas ao espaço urbano. Algumas leituras sobremaneira ingênuas, já criticadas por Slee (2017SLEE, T. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Elefante, 2017.) e com fortes compromissos estabelecidos com o sucesso desse modelo de negócios, aclamaram a liberdade e espontaneidade dos deslocamentos decorrentes das plataformas digitais, apenas tangenciando as contradições dessas relações de trabalho. No entanto, conforme averiguado em trabalho de campo e entrevistas, os entregadores engajados nas e pelas plataformas digitais de entrega exercem deslocamentos diários entre as diversas periferias da metrópole e algumas centralidades com alta potencialidade para receber e realizar entregas.

No escopo da entrega de três pontas, busca-se entender a imbricação entre os deslocamentos e as condições de trabalho dos entregadores engajados por meio das plataformas digitais da metrópole de São Paulo, evidenciando de que modo a difusão das plataformas digitais de entrega, ao mesmo tempo em que exacerba a desigualdade espacial já existente na metrópole, introduz novas características aos deslocamentos entre moradia e o trabalho, sendo o próprio trabalho, ele também, realizado no deslocamento. A ênfase deste artigo serão os deslocamentos dos entregadores engajados pela empresa-aplicativo iFood, que fazem entregas principalmente de produtos de restaurantes e de lanchonetes e utilizam o serviço pago de bicicletas compartilhadas da empresa Tembici em São Paulo, retiradas nas bases do iFood Pedal.

Tal escolha decorre do fato de esses trabalhadores estarem em condições ainda mais arriscadas e precárias do que aqueles que utilizam motocicleta, como averiguado em trabalhos de campo e previamente apontado por autores como Machado (2019MACHADO, L. Dormir na rua e Pedalar 12 horas por dia: a rotina dos entregadores de aplicativos. BBC News Brasil, 22 mai. 2019. Avaliable at: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48304340/ . Accessed on: 18 set. 2021.
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) e Abílio (2020bABÍLIO, L. C. Uberização e juventude periférica. Desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 39, n. 3, p. 579-97, 2020b.). Diferentemente dos motoristas e dos motoboys, esse entregador percorre longas distâncias por dia empregando predominantemente sua própria força física e estando, ainda, exposto aos riscos de acidentes no trânsito de São Paulo por estar em uma bicicleta.

As bases do iFood Pedal se constituem em locais implantados para retirada de bicicletas elétricas, alguns dos quais contam também com infraestrutura para os entregadores (como tomadas, banheiros e micro-ondas). Seus arredores se mostraram viáveis para os trabalhos de campo e para entrevistas em razão da grande quantidade de entregadores com maior disponibilidade de tempo para relatar suas condições de trabalho enquanto aguardavam, às vezes por horas, a retirada das bicicletas para as entregas nos horários de almoço e jantar. Garantir acesso ao instrumento de trabalho aumenta ainda mais o dispêndio de tempo (na medida em que permanecem horas em filas para tentar garantir a retirada das bicicletas) e as distâncias percorridas por esses entregadores, que precisam também se deslocar até as bases do iFood Pedal, em determinadas centralidades da metrópole. A observação desses locais descortinou dinâmicas ligadas ao iFood, empresa brasileira fundada 2011 que, segundo pesquisa divulgada por Petropouleas (2022PETROPOULEAS, S. Saída da Uber Eats acirra briga entre iFood e Rappi e preocupa restaurantes. Folha de S. Paulo, 18 fev. 2022. Avaliable at: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/02/saida-da-Uber-eats-acirra-briga-entre-iFood-e-Rappi-e-preocupa-restaurantes.shtml/ . Accessed on: 01 ago. 2022.
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), detinha 83% da participação do mercado brasileiro em 2021, seguida pela Rappi, com 13%, e pela Uber Eats, com 4%.

Além de levantamento bibliográfico e documental, foram realizados trabalhos de campo e entrevistas semiestruturadas nas bases do iFood Pedal em São Paulo no primeiro quadrimestre de 2022. Foram coletadas informações sobre os locais de moradia de 270 entregadores, dos quais 210 estão especificamente nas bases do iFood Pedal ou arredores, enquanto aguardavam para retirar bicicletas elétricas da empresa Tembici. Com muitos deles, foi possível realizar, ainda, entrevistas e obter capturas de tela dos smartphones, evidenciando, no aplicativo Google Maps, os trajetos percorridos e, no aplicativo iFood, a dinâmica de entregas.

Este artigo está dividido em três seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira delas, diante de uma nova dimensão quantitativa e qualitativa do trabalho nas e pelas plataformas digitais, detalham-se algumas das condições de trabalho dos entregadores que os levam a tentar assegurar mais entregas e rendimentos. Na segunda, examinam-se os deslocamentos empreendidos diariamente por esses trabalhadores, em sua esmagadora maioria das periferias, para determinadas centralidades da metrópole, buscando intensificar o uso de sua força de trabalho e realizar mais entregas. Para compreender os fluxos desses trabalhadores, explicitam-se características do espaço urbano, anteriores ao surgimento do iFood. Por fim, na última seção, evidenciam-se formas de engajamento laboral e mecanismos de funcionamento do próprio aplicativo determinados pelo iFood que contribuem para reforçar a necessidade desses deslocamentos. Salientam-se, nessas duas últimas seções, processos que fornecem indícios do recrudescimento da relação centro-periferia por meio desses deslocamentos entre os locais de moradia dos entregadores e determinadas centralidades da metrópole.

Uma nova dimensão quantitativa e qualitativa do trabalho por meio das plataformas digitais

Muitas discussões acadêmicas tratam das transformações e permanências no mundo do trabalho decorrentes das mudanças tecnológicas e organizacionais intensificadas nas últimas décadas do século XX. Surgiram novas ocupações, especialmente no setor de serviços, e modos de organizar a produção e o processo de trabalho, com profissionais sendo contratados por projeto ou remunerados por tarefa, no chamado trabalho intermitente (BRIDI; LIMA, 2018BRIDI, M. A.; LIMA, J. C. O trabalho digital e os trabalhadores. In: BRIDI, M. A.; LIMA, J. C. (org.). Flexíveis, virtuais e precários? Os trabalhadores em tecnologias de informação. Curitiba: Ed. UFPR, 2018. p. 21- 40.). Essas mudanças nas relações e modos de organização do trabalho são marcadas pela precarização, informalidade e flexibilização, em uma nova morfologia do trabalho que acentua a exploração (ANTUNES, 2020ANTUNES, R. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2020.).1 1 O debate sobre a reprodução da força de trabalho não é recente. Engels, no clássico A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de 1845 [2008], já abordava as origens da classe operária e destacava o papel da Revolução Industrial para apreender o controle da produção de mercadorias pelo capital. Marx também já tratou minuciosamente das relações sociais de produção e destacou, em O Capital (2003 [1867]), como uma condição fundamental da produção capitalista a separação dos trabalhadores de seus meios de subsistência e instrumentos de trabalho. Atualmente, às relações de trabalho somam-se a precariedade, flexibilidade e informalidade. Nesse sentido, modulam-se as velhas e as novas formas de condições de vida e de trabalho, intensificando, com a plataformização do trabalho, um momento no qual se remunera apenas pelas tarefas/serviços efetivamente realizados (sem quaisquer garantias sobre a remuneração e a própria jornada de trabalho) e de assunção dos riscos e dos custos da atividade pelo próprio trabalhador (inclusive para ter acesso aos instrumentos de trabalho, como no caso das bicicletas e conforme evidenciado neste artigo).

É neste contexto de transformações nos modos de engajamento laboral que ganhou importância o trabalho sob o controle de plataformas digitais, definido por Manzano e Krein (2022MANZANO, M.; KREIN, A. Dimensões do trabalho por plataforma no Brasil. In: MACHADO, S.; ZANONI, A. P. (org.). O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos. Curitiba: Clínica Direito do Trabalho-UFPR, 2022. p. 31-126., p. 57) como aquele no qual o trabalhador “acessa a plataforma para obter ou entregar trabalho”, com níveis de controle e gerenciamento variáveis conforme cada plataforma. Como destacam Oliveira et al. (2020OLIVEIRA, M. C. S.; CARELLI, R. de L.; GRILLO, S. Conceito e crítica das plataformas digitais de trabalho. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 4, p. 2609-2634, 2020.), alertando para os riscos do “fetiche tecnológico”, as plataformas digitais - nas quais se incluem os aplicativos - são organizadas e gerenciadas por empresas capitalistas. Por isso, neste artigo, optou-se pela expressão empresa-aplicativo, de Abílio (2017ABÍLIO, L. C. Uberização do trabalho: a subsunção real da viração. In: Passapalavra. [Blog da Boitempo]. 22 fev. 2017. Avaliable at: https://blogdaboitempo.com.br/ 2017/02/22/Uberizacao-do-trabalho-subsuncao-real-da-viracao/ . Accessed on: 11 jul. 2020.
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), para evidenciar o fato de que os aplicativos são programados pelas empresas e a existência de contradições que o discurso da imprevisibilidade ou neutralidade do aplicativo e seus algoritmos procuram ocultar (OLIVEIRA et al., 2020OLIVEIRA, M. C. S.; CARELLI, R. de L.; GRILLO, S. Conceito e crítica das plataformas digitais de trabalho. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 4, p. 2609-2634, 2020.).

A ascensão de novas formas do trabalho por meio das plataformas digitais está fortemente vinculada à difusão do acesso à internet e às novas tecnologias da informação e da comunicação, engendrando novos modelos de negócios e de organização e exploração laborais. Tais relações de trabalho também foram favorecidas, no Brasil, pela crescente destituição de direitos trabalhistas e avassaladora corrosão das regulações protetivas do trabalho, como resultado das reformas neoliberais, especialmente a Reforma Trabalhista de 2017, que regulamentou antigas e novas práticas de exploração do trabalho. Tendo como alguns de seus marcos as entradas no Brasil na Uber em 2014 e na Loggi em 2015, o trabalho por meio das plataformas digitais foi catalisado pelo isolamento social adotado durante a pandemia da Covid-19, que fortaleceu processos já em curso relacionados à precarização do trabalho. Por um lado, a necessidade de sobrevivência levou parte dos trabalhadores a se engajar nas e pelas empresas-aplicativo. Por outro, as medidas de isolamento social favoreceram um aumento do consumo de delivery pelas famílias que puderam ficar em casa e arcar com tais custos (ANTUNES, 2020ANTUNES, R. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2020.; ABÍLIO, 2020bABÍLIO, L. C. Uberização e juventude periférica. Desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 39, n. 3, p. 579-97, 2020b.; MACHADO; ZANONI, 2022MACHADO, S.; ZANONI, A. P. (org.). O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos. Curitiba: Clínica Direito do Trabalho-UFPR, 2022.).

Atrelada às novas determinações de precarização do trabalho dos entregadores das empresas-aplicativo, a dimensão quantitativa da plataformização do trabalho produz uma dimensão qualitativa, vinculada aos deslocamentos desses entregadores, que dependem da infraestrutura e serviços urbanos para intensificar o uso de sua força de trabalho.

No âmbito da Geografia, a temática da relação entre os avanços técnicos, mudanças no mundo do trabalho e espaço não é propriamente nova. Especificamente no que se refere à imbricação entre técnicas, informação e espaço urbano, muito já foi tratado sob perspectivas diversas - em obras clássicas como as de Harvey (2008HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 2008 [1992]. [1992]), Santos (2008SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2008 [1996]. [1996]) e Castells (2008CASTELLS, M. A Sociedade em Rede. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2008 [1999]. [1999]). Todavia, as condições dos trabalhadores engajados por meio das plataformas digitais produzem relações espaciais ao mesmo tempo em que também são por elas influenciadas, trazendo à tona a necessidade de novas pesquisas.

Os trabalhadores engajados por meio das plataformas digitais, submetidos a novas práticas de sobrevivência e precarização, produzem práticas urbanas decorrentes de suas condições de trabalho e das especificidades desse trabalho (o deslocar-se). As condições de trabalho dos entregadores, primordialmente do iFood, revelam determinados aspectos do trabalho sob demanda que, somados à baixa remuneração por cada tarefa/entrega realizada, constituem-se em elementos-chaves para a compreensão dos fluxos desses trabalhadores pela metrópole, da necessária intensificação dos ritmos de trabalho e da busca por realizar mais entregas.

Tanto o trabalho sob demanda, ou trabalho just in time, quanto a informalização do trabalho são aspectos cruciais para apreender a plataformização do trabalho, segundo De Stefano (2016DE STEFANO, V. The Rise of the 'Just in Time Workforce': On-Demand Work, Crowd Work and Labour Protection in the 'Gig-Economy'. Geneva: ILO, 2016. Avaliable at: http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/---protrav/---travail/documents/publication/wcms_443267.pdf
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) e Abílio (2022aABÍLIO, L. C. Perfis e Trajetórias Ocupacionais. In: MACHADO, S.; ZANONI, A. P. (org.). O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos. Curitiba: Clínica Direito do Trabalho-UFPR, 2022. p. 127-164.). Para Abílio (2020aABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just in time? Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-26, 2020a., p. 116), “a condição do just in time é estar disponível para ser imediatamente utilizado, mas ser remunerado unicamente pelo que produz”. Nessa perspectiva, os entregadores são remunerados exclusivamente com base em cada entrega realizada, sem receber pelo tempo gasto nas inúmeras esperas - para o aplicativo chamar, para aguardar o pedido no restaurante e para entregar o pedido do cliente -, comuns ao longo da jornada de trabalho.

Uma espera que consome tempo significativo dos entregadores é a para conseguir utilizar seu meio de trabalho, a bicicleta (foco deste artigo). Como verificado por meio dos trabalhos de campo, alguns entregadores gastam até seis horas por dia em fila para retirar a bicicleta em alguns pontos do iFood Pedal. As bicicletas elétricas compartilhadas são liberadas em dois horários: às 10h30, para o turno do almoço, e às 17h, para o do jantar. Alguns trabalhadores relataram chegar às bases às 6h para assegurar a retirada da bicicleta para as entregas do almoço. Dependendo do horário de chegada em cada base e conforme a fila, a retirada ocorre somente a partir das 11h. Quando não conseguem retirar a bicicleta para as entregas, voltam para suas casas ou recorrem às bicicletas convencionais (não elétricas) do Itaú, com menor concorrência entre os trabalhadores por implicarem um desgaste físico maior e acarretarem um tempo maior de deslocamento entre os locais de retirada do produto e a entrega.

Os depoimentos obtidos em campo nas bases iFood Pedal reiteram os levantamentos anteriores sobre o perfil dos entregadores de bicicleta2 2 Optou-se neste texto predominantemente pela expressão “entregadores de bicicleta” por ser a mais utilizada entre os próprios entregadores, além de ser a mais frequentemente encontrada em redes sociais (como grupos de entregadores no Facebook ou WhatsApp) e sites da internet com anúncios de vagas de trabalho. Embora a preposição “de” possa, isoladamente, fornecer a ideia de que o entregador poderia entregar “a bicicleta”, o contexto deste texto se refere à bicicleta como meio de trabalho. Em alguns momentos, para evitar duplicidade de sentido, utilizou-se a preposição “por” ou se empregou o termo “cicloentregadores”. Outras expressões utilizadas em textos acadêmicos são “bikeboys” (ABÍLIO, 2020b) ou “entregadores ciclistas”, como no relatório da Aliança Bike (2019), a qual, em nossa visão, fornece ênfase ao uso da bicicleta como prática esportiva, e não como uma forma de mobilizar os trabalhadores mais pobres. no ano de 2019 (MACHADO, 2019MACHADO, L. Dormir na rua e Pedalar 12 horas por dia: a rotina dos entregadores de aplicativos. BBC News Brasil, 22 mai. 2019. Avaliable at: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48304340/ . Accessed on: 18 set. 2021.
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; ALIANÇA BIKE, 2019ALIANÇA BIKE. Pesquisa de perfil dos entregadores ciclistas de aplicativo. São Paulo: Aliança Bike, 2019. Avaliable at: https://aliancabike.org.br/pesquisa-de-perfil-dos-entregadores-ciclistas-de-aplicativo/ . Accessed on: 17 set. 2021.
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). Em geral, os cicloentregadores são jovens negros que moram nas periferias das cidades e têm nas empresas-aplicativo de entrega a porta de entrada para o mundo do trabalho (ABÍLIO, 2020bABÍLIO, L. C. Uberização e juventude periférica. Desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 39, n. 3, p. 579-97, 2020b.). Conforme o Relatório Aliança Bike (2019), a partir de pesquisa com 270 trabalhadores, o entregador de aplicativo que utiliza a bicicleta como meio de trabalho é, em geral, homem e negro e tem de 18 a 22 anos de idade. É morador das periferias, desempregado e com Ensino Médio completo. Trabalha de nove a 10 horas por dia, percorre em média 40 km e ganha em média R$ 992 por mês. Como as condições de trabalho dos entregadores está em constante transformação, os trabalhos de campo e as entrevistas revelaram que a distância percorrida por eles, as horas trabalhadas e a remuneração aumentaram desde o levantamento da Aliança Bike até o início de 2022.

A maior remuneração pode estar relacionada à própria taxa mínima de entrega, que em 2020, após uma série de manifestações desses trabalhadores, passou de R$ 3,50 para R$ 5,31. A maior distância percorrida e as horas trabalhadas possivelmente são resultado da necessidade de intensificação do uso da própria força de trabalho, bem como uma provável menor quantidade de entregas recebida por cada entregador (devido à queda de consumo de delivery com o fim do isolamento social da Covid-19), obrigando-os a buscar realizar mais entregas e prolongar a jornada de trabalho.

Esses trabalhadores just in time estão submetidos a uma ampla informalização da atividade laboral (ABÍLIO, 2020aABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just in time? Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-26, 2020a.). Há uma completa ausência de regulamentações sobre os limites da jornada e garantias mínimas de trabalho, inclusive sobre os custos e os riscos ( FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Contracampo, v. 39, n.1, p. 27-43, 2020.; ABÍLIO, 2022ABÍLIO, L. C. Perfis e Trajetórias Ocupacionais. In: MACHADO, S.; ZANONI, A. P. (org.). O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos. Curitiba: Clínica Direito do Trabalho-UFPR, 2022. p. 127-164.). Os custos das atividades dos entregadores de bicicleta, embora sejam menores do que os de motocicleta, consomem parcela significativa dos rendimentos: é indispensável ter smartphone com GPS preciso, bateria durável e acesso à internet móvel, por exemplo.

Além disso, equipamentos essenciais geralmente não são fornecidos pelas empresas-aplicativo, de acordo com os entrevistados, e, quando o são, são distribuídos por sorteios ou na forma de bonificações aos entregadores mais produtivos. Os custos para adquirir uma bag (bolsa térmica) variam de R$ 80 (usada, modelo quadrado) a R$ 240 (nova, modelo dobrável). Os outros itens necessários para o trabalho também são adquiridos pelo próprio entregador, da capa para proteger o celular no caso de chuva até o capacete.

Os entregadores arcam também com os custos do deslocamento de seu local de moradia até as bases do iFood Pedal, em geral feito por transporte público. Para um entregador que utiliza somente ônibus, pagando uma única passagem em intervalo de três horas, os gastos são de R$ 8,80 por dia ou R$ 228,80 por mês, considerando uma folga semanal (26 dias ao mês). Esse número salta para R$ 397,80 reais quando precisam tomar metrô/trem e ônibus para ir e voltar das regiões de entrega.

No período analisado nesta pesquisa, de janeiro a abril de 2022, era preciso ainda desembolsar R$ 34,90 por mês (e mais R$ 1 por cada retirada de bicicleta) para usar o plano do iFood Pedal, gerenciado pela Tembici, que permite a retirada tanto das bicicletas vermelhas do iFood nas bases do iFood Pedal quanto das convencionais laranjas com símbolo do Itaú, distribuídas em mais pontos da cidade, que podem ser retiradas a qualquer momento.3 3 É preciso ser entregador com conta ativa no iFood para ter acesso ao plano do iFood Pedal, mas nem todos os entregadores necessariamente realizaram entregas para essa empresa-aplicativo nos dias do levantamento em campo. Ou seja, um entregador pode estar cadastrado no iFood, retirar bicicletas no iFood Pedal e fazer entregas também outra empresa-aplicativo, como Rappi ou Uber Eats (desativada no Brasil em março de 2022), que chame primeiro ou ofereça mais entregas ou mais promoções em determinado momento. Embora tenha sido frequente um entregador ter mais de um aplicativo de entrega instalado no celular, o iFood foi o mais utilizado no período em que os trabalhos de campo foram realizados. Para as bicicletas elétricas do iFood Pedal, são permitidas até duas retiradas, de quatro horas cada, com tolerância de meia hora de atraso, e multa de R$ 5 caso se ultrapasse o limite de tempo. Assim, apenas para ter acesso ao meio de trabalho, no caso das bicicletas compartilhadas, são gastos R$ 87,90 (considerando folga de um dia por semana). Um entregador que gasta R$ 8,80 por dia com transporte público, faz ao menos uma refeição diária a R$ 15, paga um plano mensal de acesso à internet por R$ 50 e assina o plano do iFood Pedal, gasta quase R$ 30 por dia, o que equivale ao menos a seis entregas, para cobrir os custos do próprio trabalho. Tais gastos são ainda maiores se considerados os smartphones e demais equipamentos, como bags e capacetes. Sem contar a alimentação, os rendimentos de no mínimo três entregas por dia são consumidos com os gastos do transporte público e para ter acesso aos próprios meios de trabalho (internet e plano iFood Pedal).

Alguns entregadores estipulam para si mesmos metas diárias de em média 15 entregas (cada uma a, no mínimo, R$ 5,31, em janeiro de 2022), procurando assegurar de R$ 80 a R$ 100 por dia. Portanto, 26 dias trabalhados por mês poderiam resultar em um ganho bruto de R$ 2.070,90 (15 entregas por dia, com taxa mínima de 5,31, considerando 26 dias trabalhados ao mês), dos quais uma parcela é destinada aos custos do próprio trabalho (como internet móvel e deslocamento para as regiões de entrega). Um entregador que mora em Itapevi, uma cidade da Região Metropolitana de São Paulo, e retira bicicletas compartilhadas em Pinheiros, distrito da Zona Oeste a uma remuneração recebida por cada entrega:

(...) deveria ter vale alimentação e vale transporte [fornecidos pelas empresas para as quais prestam serviços]. Porque esses custos giram em torno de 25 reais [transporte e alimentação], e para fazer [de bicicleta] são pelo menos cinco entregas. É muita coisa. Acho que também em relação a essa questão da espera é complicadíssimo. Eles [a empresa iFood] cobram que a gente esteja no lugar antes da hora e tudo mais, e a gente sofre penalidade por não chegar a tempo, mas se o restaurante demora, ou se o cliente demora, isso não é repassado para a gente. Eu acho também que eles poderiam aumentar o valor do repasse. Eu não sei se você sabe, mas quando um restaurante opta por pegar o entregar do iFood eles precisam pagar até 26% do valor do pedido para o iFood, e nada dessa porcentagem é repassada para a gente. Às vezes, a gente pega um pedido de 200, 300 reais e o iFood paga cinco reais [para o entregador], e eles estão lucrando 26% disso.

Para aumentar seus rendimentos, e considerando que para muitos entregadores é a principal ou única fonte de renda (ABÍLIO, 2022ABÍLIO, L. C. Perfis e Trajetórias Ocupacionais. In: MACHADO, S.; ZANONI, A. P. (org.). O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos. Curitiba: Clínica Direito do Trabalho-UFPR, 2022. p. 127-164.), prolongam sua jornada de trabalho quando há “promoção”, nome dado às bonificações nas quais recebem cerca de R$ 3 a mais por cada entrega, geralmente em dias de chuva e períodos de maior demanda, como as noites de sextas-feiras e fins de semana. É importante lembrar que pagar pelo plano ou se deslocar até a base iFood Pedal não assegura a retirada de uma bicicleta, cujo acesso depende do horário de chegada ou, mesmo com a bicicleta, de receber entregas para fazer. Ou seja, os entregadores não contam com quaisquer garantias de remuneração ou da jornada de trabalho. Frases como “é uma loteria”, “um dia pelo outro” e “precisa aproveitar quando tem promoção” foram comuns nas entrevistas.

Diante dos custos e riscos de seu trabalho e da baixa remuneração por cada tarefa/entrega realizada, os entregadores procuram reduzir ao mínimo os tempos improdutivos do trabalho, intensificando o emprego da própria força de trabalho, otimizando seus descolamentos, procurando regiões com maior demanda de entregas e prolongando as jornadas diárias de trabalho. Apreender esses deslocamentos implica entender suas manifestações no tempo e no espaço e analisar as particularidades das regiões para as quais os entregadores se deslocam e as estratégias territoriais do próprio iFood.

O recrudescimento da relação centro-periferia

A partir do que se verificou nos trabalhos de campo e de sete elementos que serão indicados e detalhados, aventa-se a hipótese de que os fluxos diários dos entregadores com bicicleta engajados pelas plataformas digitais reproduzem características dos deslocamentos já reiterados na metrópole, isto é, de trabalhadores que precisam se deslocar das periferias, onde moram, para o centro ou demais centralidades, onde trabalham. A relação centro-periferia, cuja reafirmação é indicada neste texto, não é, evidentemente, uma relação dual ou dicotômica e tampouco se refere a uma única centralidade, atributo exclusivo do centro até as últimas duas décadas do século XX. A relação centro-periferia adquiriu novos conteúdos com o “desdobramento da centralidade”, conforme expressão de Cordeiro (1980CORDEIRO, H. K. O centro da metrópole paulistana: expansão recente. São Paulo: Universidade de São Paulo; Instituto de Geografia, 1980.), do centro para novos espaços da metrópole e formação de novas centralidades. Ela é uma relação dialética, em constante transformação e que, segundo Alves (2010ALVES, G. A. O uso do centro da cidade de São Paulo e sua possibilidade de apropriação. São Paulo: FFLCH, 2010.), fortifica o processo de constituição das centralidades das metrópoles na medida em que a centralidade “nunca se faz completa. Ela depende das relações entre as diversas localidades, entre o centro e a periferia e, logo, está em permanente movimento” (ALVES, 2010ALVES, G. A. O uso do centro da cidade de São Paulo e sua possibilidade de apropriação. São Paulo: FFLCH, 2010., p. 37).4 4 Uma ampla e densa discussão vem sendo realizada no escopo da Geografia Urbana Crítica sobre os conceitos de centro, centralidade e periferia. Ancorada no pensamento de Henri Lefebvre (2004 [1970]), essa perspectiva teórico-metodológica considera a centralidade como o essencial do fenômeno urbano e a partir do movimento dialético que, ao mesmo tempo, a constitui e a destrói. Se a centralidade, para o Lefebvre (2004 [1970]), é a reunião e a simultaneidade, o conteúdo do urbano também produz o seu negativo, ou seja, segundo sublinha Carlos (2020, p. 417), “ao concentrar todos os momentos essenciais da vida urbana ela libera atividades que lhe são próprias”. Como afirma Lefebvre (2004 [1970]), a urbanização, ao se realizar por meio da industrialização, gerou, contraditoriamente, o processo de “implosão/explosão” da cidade: a implosão da centralidade, saturada, em novas centralidades, e a explosão do tecido urbano em diversas periferias. Tal movimento gera, de modo contraditório, tanto a negação da centralidade (em espaços segregados e hierarquizados diante do processo de valorização-desvalorização e da propriedade privada do solo urbano) quanto o espraiamento do tecido urbano e a generalização da urbanização.

O primeiro elemento que ajuda a entender esses deslocamentos em busca da redução dos tempos improdutivos do trabalho é a evidente desigualdade social estabelecida entre os que consomem delivery, especialmente de comida, e os que trabalham por meio das plataformas digitais. Uma pesquisa do Instituto Qualibest (2022INSTITUTO Qualibest. Uso de apps de delivery de refeição. 2022. Avaliable at: https://www.institutoqualibest.com/download/pesquisa-sobre-uso-de-apps-delivery-de-refeicao-2022/ . Accessed on: 18 jul. 2022.
https://www.institutoqualibest.com/downl...
) aponta que a maior parte (53%) da demanda por delivery de comida por aplicativo no Brasil estava nas faixas de renda média familiar mensal de R$ 5.755,23 a R$ 21.826,74. Os distritos de maior demanda para delivery na cidade de São Paulo, identificados com base em dados do próprio iFood no primeiro trimestre de 2012, eram Itaim Bibi, Pinheiros, Jardim Paulista e Moema (AGÊNCIA ESTADO, 2012AGÊNCIA ESTADO. Itaim-Bibi é o bairro paulistano nº 1 em delivery. G1. 10 jun. 2012. Avaliable at: https://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/06/itaim-bibi-e-o-bairro-paulistano-no-1-em-delivery.html/ . Accessed on: 9 jul. 2022.
https://g1.globo.com/brasil/noticia/2012...
). Não por acaso, exatamente onde foram implantadas as bases do iFood Pedal.

Além do fato de as pessoas de maior renda, que consomem delivery, residirem em regiões mais valorizadas da metrópole e solicitarem entregas em suas casas, cabe destacar que determinados pedidos são feitos no local de trabalho, especialmente durante o café da manhã e almoço. Assim, a demanda por delivery também varia conforme o período do dia e se a região é mais comercial ou residencial: dos pedidos em Moema, de perfil mais residencial, 83% eram feitos no jantar, enquanto no Itaim, mais comercial, os pedidos nesse mesmo período eram somente 5% a mais do que no almoço (AGÊNCIA ESTADO, 2012AGÊNCIA ESTADO. Itaim-Bibi é o bairro paulistano nº 1 em delivery. G1. 10 jun. 2012. Avaliable at: https://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/06/itaim-bibi-e-o-bairro-paulistano-no-1-em-delivery.html/ . Accessed on: 9 jul. 2022.
https://g1.globo.com/brasil/noticia/2012...
). Tal diferença influencia os deslocamentos dos entregadores e suas estratégias de trabalho: no Itaim, foi mais frequente encontrar entregadores com bicicletas convencionais no período matutino em função do volume da demanda.

O segundo elemento é a concentração de restaurantes em determinadas regiões da metrópole. Dados divulgados pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho da Prefeitura de São Paulo (2019) registravam o maior número de estabelecimentos formais na gastronomia (restaurantes, bares e outros serviços de comida) em Itaim Bibi e Pinheiros. Como há um raio máximo de entrega no iFood para entregas por bicicletas (no geral, de 3 km entre o restaurante e a casa do cliente), os entregadores precisam estar nas regiões não somente de maior demanda de pedidos, mas também nas de onde irão retirá-los. Muito embora essa distância seja frequentemente ultrapassada, conforme relatos desses trabalhadores, a proximidade entre o local de retirada e o cliente é um aspecto que aumenta as chances de um entregador de bicicleta receber mais pedidos. Se a distância entre o restaurante e o cliente for muito grande ou mesmo a própria entrega for pesada ou volumosa de forma a não caber na bag, a tendência é que seja enviada para um entregador de moto ou de carro.

Nos trabalhos de campo, foi possível obter relatos de entregadores que haviam tentado entregar em regiões mais próximas de seus locais de moradia. Um deles era de Cidade Tiradentes, no extremo leste da cidade, e chegou a entregar com bicicleta própria em Itaquera, distrito da Zona Leste mais próximo ao centro. “Eu tirava 700 reais em Itaquera em 15 dias de trabalho. Aqui [Moema] eu faço de 1.100 a 1.300 [reais] em 15 dias.” Outro entregador ganhava por semana R$ 300 no Grajaú, distrito no extremo da Zona Sul, com entregas de moto, e de R$ 500 a R$ 700 na região da avenida Faria Lima, ocupada por prédios de escritórios. Um morador de Guarulhos, cidade da Região Metropolitana que abriga o aeroporto internacional de São Paulo, havia tentado entregar na região próxima a sua casa com bicicleta própria, mas, disse ele: “não compensava. Lá, eu tirava 1.200 a 1.300 [reais] por mês. Pegando bike aqui na Augusta ou Pinheiros e entregando por aqui eu tiro 2.800 a 2.900 [reais]”.

A concentração do mercado consumidor e de restaurantes ajuda a explicar os lugares delimitados pelo iFood como melhores para entregar de bicicleta e a localização das bases do iFood Pedal (Mapa 1). Observam-se as melhores regiões para entregar de bicicleta de acordo com perímetro indicado pela própria empresa e a partir de critérios não explicitados. Embora distritos da Zona Leste (Água Rasa, Vila Prudente, Sapopemba e São Matheus) e da Zona Sul (Cidade Dutra, Socorro, Campo Grande e Cidade Ademar) contem com regiões recomendadas para realizar entregas por bicicleta, os deslocamentos dos trabalhadores ocorrem primordialmente para as regiões com bicicletas compartilhadas do iFood Pedal.

Mapa 1.
Melhores regiões para entregas por bicicleta na cidade de São Paulo segundo o iFood e localização das bases do iFood Pedal, 2022.

As bases do iFood Pedal, implantadas a partir de meados de 2020, localizam-se nos distritos de Pinheiros, Jardim Paulista, Itaim Bibi e Moema (Mapa 1). Em março de 2022, estavam em funcionamento as seguintes bases: Largo da Batata e Rua Cardeal Arcoverde (em Pinheiros); Rua Canário (em Moema); Rua Quatá (no Itaim Bibi) e Rua Augusta (próxima à Av. Paulista). As bases das Rua Fradique Coutinho e da Rua Pequetita foram, conforme averiguado em trabalhos de campo, desativadas em fevereiro de 2022. As demandas dessas bases foram direcionadas para as novas bases, implantadas, respectivamente, na Rua Cardeal Arcoverde e Rua Quatá.

Além das bicicletas do iFood, o plano da Tembici para entregadores do iFood fornece as bicicletas convencionais Itaú, também disponíveis para o público em geral. Elas são uma opção caso não se consiga a bicicleta elétrica do iFood. Alguns dos entregadores entrevistados nos arredores das bases do iFood Pedal também utilizavam as bicicletas convencionais do Itaú antes das 10h30 ou das 17h, quando as elétricas do iFood Pedal eram liberadas, otimizando os tempos improdutivos do trabalho e procurando fazer mais entregas. A localização dos pontos das bicicletas do Itaú também coincide eixos valorizados da metrópole, como as avenidas Faria Lima, Luiz Carlos Berrini, Marginal Pinheiros e Juscelino Kubitschek. A capacidade de cada estação (Mapa 2), segundo levantamento realizado com dados disponíveis no aplicativo Bike Itaú, também mostra essa concentração: as estações com maior capacidade estão no Largo da Batata (83 bicicletas) e nos arredores do terminal da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) da Vila Olímpia (45 bicicletas).

Mapa 2.
Capacidade e localização das estações Bike Itaú na cidade de São Paulo, 2022.

Nessa perspectiva, a concentração do próprio meio de trabalho, isto é, das bicicletas elétricas disponíveis nos pontos iFood Pedal e bicicletas convencionais do Itaú, ambas fornecidas pela Tembici, configura-se no terceiro elemento que permite compreender os deslocamentos dos entregadores de bicicleta até determinadas centralidades da metrópole. Nos trabalhos de campo, foram entrevistados entregadores que haviam tentado utilizar bicicleta própria, mas depois recorreram às da Tembici para evitar os custos de manutenção, especialmente da bicicleta elétrica. Os entregadores que sofreram furtos de suas bicicletas também viram nas compartilhadas uma alternativa mais segura e prática. Nesse sentido, as bicicletas compartilhadas são preponderantemente utilizadas pelos entregadores não porque eles apresentam habilidades específicas, mas por se constituírem como única alternativa possível para esse grupo de trabalhadores, configurando-se em um elemento de hierarquia nos desempenhos das funções (entre quem utiliza bicicleta convencional, bicicleta elétrica, bicicleta adaptada com motor à combustão, mobilete e motocicleta) e da própria divisão do trabalho.

Os três elementos até aqui elencados manifestam e reproduzem a desigualdade espacial da metrópole, ao reforçarem a necessidade de longas distâncias a serem percorridas pelos entregadores entre os locais de moradia e de trabalho. Embora os entregadores engajados nas e pelas plataformas digitais não tenham um único local de trabalho, como seria a fábrica, existem regiões mais procuradas por oferecerem mais entregas e rendimentos.

A despeito dos levantamentos realizados em trabalhos de campo e por meio de entrevistas semiestruturadas não se configurarem como uma amostra quantitativa, tais recursos permitem um esboço inicial de um quadro representativo dos deslocamentos dos cicloentregadores de pedidos do iFood. No universo de pesquisa de 270 entregadores no primeiro quadrimestre de 2022, foram obtidos os distritos de moradia (quando no Município de São Paulo) ou Município (quando morador da Região Metropolitana) de 210 entregadores nas bases ativas do iFood Pedal ou arredores (Mapa 1).

O Mapa 3 revela as distâncias percorridas pelos entregadores das periferias para algumas centralidades privilegiadas para entrega, que concentram, como já se destacou neste artigo, restaurantes, a demanda de consumo de delivery e bicicletas compartilhadas. Nessas centralidades, os entregadores tentam realizar mais entregas, reduzindo o tempo de espera entre elas e os tempos improdutivos do trabalho.

Com a ressalva de que os dados refletem o período de coleta de dados, cujo intuito foi abrir caminhos qualitativos para reflexão, observa-se no Mapa 3 que a maioria dos entregadores que se deslocam para a região da Paulista reside em distritos da Zona Leste (com destaque para os distritos de Guaianases, Cidade Tiradentes e Jardim Helena), no distrito de Capão Redondo (Zona Sul) e na cidade de Guarulhos. Os trabalhadores que se deslocam para Pinheiros moram predominantemente no distrito de Raposo Tavares (Zona Oeste) e nos Municípios a oeste da Região Metropolitana de São Paulo, marcadamente Itapevi, Cotia e Embu. Já a base da iFood Pedal Canário, em Moema, atrai principalmente entregadores dos distritos do Grajaú e Capão (Zona Sul), além do Município de Itapecerica da Serra. Por sua vez, a base da Rua Pequetita, no Itaim Bibi, conta com grande parte dos entregadores residindo no Jardim Ângela, além de Capão Redondo e Grajaú.

Mapa 3.
Deslocamentos de 210 entregadores por bicicleta do local de moradia até centralidades privilegiadas para entrega na cidade de São Paulo, 2022.

O mapa também reflete o movimento de trabalhadores em cada base e em ruas próximas nos dias dos trabalhos de campo. Entre janeiro e abril de 2022, as regiões de Pinheiros e da Augusta reuniam mais entregadores utilizando as bases do iFood Pedal do que no Itaim Bibi e em Moema. Em Pinheiros, somando as bases do Largo da Batata e da Cardeal Arcoverde, foram obtidos os locais de moradia de 99 entregadores, 19 (19,2%) deles residindo no distrito Raposo Tavares. Já na base da Rua Augusta e proximidades da Av. Paulista, foram 49 entregadores, com destaque para Guarulhos (com 4 entregadores ou 8,2%). Já na base da Rua Pequetita e arredores, foram 23 trabalhadores, com cinco deles (21,7%) do Jardim Ângela. Por fim, na Rua Canário e arredores, em Moema, foram 39 entregadores, com proeminência do Grajaú como distrito de moradia (12 entregadores, o equivalente a 30,7%).

As tendências de deslocamentos indicam um papel primordial dos serviços do transporte público. Os trabalhadores que se deslocam do distrito Raposo Tavares contam com diversas linhas de ônibus que os levam para Pinheiros. De modo similar, os entregadores de Itapevi utilizam a Linha 8 - Diamante e a Linha 9 - Esmeralda da CPTM para chegar às estações em que receberão os pedidos de entrega. Muitos dos que fazem entregas nas regiões de Moema e Itaim tomam dois ônibus ou os trens das Linhas Linha 9 - Esmeralda ou Linha 5 - Lilás, dependendo de onde moram e de quanto podem gastar com o deslocamento até o local de trabalho. Já no caso da base da Augusta, que conta com parte dos trabalhadores da Zona Leste, o principal meio de deslocamento é a Linha Vermelha do Metrô, a Linha 11 - Coral da CPTM e ônibus urbanos, quando necessário, devido à distância até as estações, ou ainda para pagar somente uma passagem, mesmo que torne o trajeto mais moroso.

Pagar para o acesso às bicicletas compartilhadas da Tembici configura-se, portanto, em uma alternativa desses trabalhadores que, mesmo se pudessem arcar com os custos de uma bicicleta própria, enfrentariam dificuldade para seu deslocamento até as regiões de entrega, seja por precisarem percorrer rodovias perigosas de intenso movimento e alta velocidade de automóveis (como a Rodovia Raposo Tavares e a Avenida Radial Leste), seja por residirem em locais distantes das estações de trem e metrô que, desde março de 2020, permitem o transporte de bicicleta das 10h às 16h e das 20h30 até meia-noite.

A própria concentração da infraestrutura cicloviária nessas regiões da cidade, mesmo que somente em parte dos trajetos, facilita os deslocamentos e os torna mais seguros. Como afirma Harkot (2019HARKOT, M. 6 anos após junho de 2013 e das ciclovias e ciclofaixas, como está a mobilidade em SP? LabCidade. 26 jul. 2019. Avaliable at: http://www.labcidade.fau.usp.br/6-anos-apos-junho-2013-e-da-implementacao-das-ciclovias-e-ciclofaixas-como-esta-a-mobilidade-em-sp/ . Accessed on: 19 jun. 2022.
http://www.labcidade.fau.usp.br/6-anos-a...
), as ciclovias da metrópole de São Paulo estão em regiões já valorizadas da metrópole. Embasada em dados da pesquisa Origem e Destino do ano 2017 e analisando a expansão das ciclovias e das ciclofaixas da política cicloviária de 2013 a 2016 na cidade de São Paulo, Harkot (2019HARKOT, M. 6 anos após junho de 2013 e das ciclovias e ciclofaixas, como está a mobilidade em SP? LabCidade. 26 jul. 2019. Avaliable at: http://www.labcidade.fau.usp.br/6-anos-apos-junho-2013-e-da-implementacao-das-ciclovias-e-ciclofaixas-como-esta-a-mobilidade-em-sp/ . Accessed on: 19 jun. 2022.
http://www.labcidade.fau.usp.br/6-anos-a...
) destaca que, embora 70% das viagens por bicicleta sejam realizadas por pessoas de renda de até quatro salários mínimos, a rede cicloviária reforçou tendências históricas ao implantar poucas conexões periferia-centro e privilegiar “localidades que já são as mais beneficiadas por toda a infraestrutura urbana e onde vive a população de maior renda”. Nessa perspectiva, os entregadores engajados nas e pelas plataformas digitais utilizam não só as bicicletas compartilhadas disponíveis somente em determinadas regiões da metrópole, mas também uma infraestrutura cicloviária concentrada, que se configura no quarto ponto destacado neste artigo para elucidar os deslocamentos empreendidos por esses trabalhadores entre os locais de moradia e algumas centralidades com alta potencialidade para receber e realizar entregas.

As capturas de tela do aplicativo Google Maps (Figura 1A, B, C) dão uma dimensão dos deslocamentos diários dos entregadores. No primeiro (A), um entregador de Itaquera se desloca até Pinheiros para fazer entregas. No dia do registro, utilizou dois ônibus e metrô e trabalhou das 11h às 22h, percorrendo 62 km de bicicleta. O segundo entregador (B) morava no bairro Amador Bueno, em Itapevi, e gastou cerca de 3 horas de trem e metrô, percorrendo 93 km indo e voltando de Pinheiros, onde pedalou 48 km. O terceiro entregador (C) morava no Jardim Ângela, foi de ônibus até Pinheiros para utilizar as bases do iFood Pedal e fez suas entregas das 10h às 22h, nesse dia pedalando de 60 a 70 km.

Figura 1.
Captura de tela do aplicativo Google Maps. A. Deslocamento de 35 km. de um morador de Itaquera que gastou 1h17min para ir e voltar de Pinheiros, onde realiza entregas com bicicleta do iFood Pedal, com a qual nesse dia percorreu 62 km. B. Deslocamento de morador de Itapevi, que nesse dia gastou 3h34 min para percorrer os 93 km de ida e volta de sua casa, em Itapevi, à base do iFood Pedal, em Pinheiros, a partir de onde percorreu outros 48 km fazendo entregas. C. Deslocamento de um morador do Jardim Ângela, que percorreu 20 km em 1 hora para ir e voltar da região de Pinheiros, na qual percorreu 62,6 km com bicicletas do iFood Pedal. O aplicativo do Google Maps identificou 2,6 km de moto possivelmente devido à velocidade utilizada nos 2,6 km de bicicleta.

Apesar do papel primordial da facilidade de acesso por transporte público para as bases do iFood Pedal, uma maior disponibilidade de bicicletas ou mesmo a organização de cada uma dessas bases influencia os deslocamentos dos entregadores que, às vezes, optam por fazer trajetos mais longos ou mais demorados. A maior concorrência por bicicleta na base da Rua Augusta, por exemplo, levou alguns dos entregadores de Guarulhos a se deslocarem diretamente para a base do Largo da Batata, mesmo que afirmem levar mais tempo. Segundo relato de um entregador há quatro anos, morador e Guarulhos: “Se no dia anterior, eu parar às 23h, chegar em casa meia-noite... tem dia que no dia seguinte que não dá. Não dá para levantar cedo e chegar cedo aqui [Paulista], então já vou direto para a Faria Lima”. Outro morador do Jardim Ângela que faz entrega no Itaim comentou:

Eu comecei na Paulista. Daí, fiquei um tempo lá, por volta de uns três ou quatro meses. Aí, eu saí de lá porque eu não conseguia pegar mais bike... por conta de superlotação, este tipo de coisa. Não tinha mais bike disponível. Aí, eu acabei vindo para Pinheiros, certo? Que era outro ponto. Aí, eu conseguia pegar bike até depois de um tempo. Depois, o ponto ficou bagunçado e eu também não consegui pegar mais bicicleta. Aí, tive que me deslocar novamente e acabei vindo para o Itaim. Aí, aqui eu estava conseguindo trabalhar direitinho, pegar bike e tudo mais... Até ontem. Até fechar o ponto. Felizmente, estão distribuindo a bike aqui, não sei se vão abrir outro ponto... Mas, por enquanto, é isso que a gente tem: então, a gente fica pulando de galho em galho.

Além do tempo dispendido no deslocamento de suas moradias até os pontos iFood Pedal, que, em muitos casos, consome mais de uma hora, há o tempo de espera nas filas, em condições frequentemente precárias. Ao menos antes da inauguração da base da Rua Cardeal Arcoverde e após o fechamento do da Rua Fradique Coutinho, muitos entregadores enfrentavam filas extensas, logo pela manhã, no Largo da Batata (Figura 2), sob o sol ou chuva e sem acesso a banheiro e água. A base da Rua Pequetita apresentava a mesma situação. Mesmo nas bases que oferecem banheiro, mesas, cadeiras, micro-ondas e água, o espaço físico pareceu ser inadequado às necessidades dos trabalhadores, como na base da Rua Augusta, na qual havia entregadores sentados ou deitados no chão à espera do horário para retirar as bicicletas com que trabalhariam.

As bases de Moema e da então recém-inaugurada base da Rua Cardeal Arcoverde foram as que, entre as visitadas, mais pareciam atender às demandas dos entregadores, por oferecerem banheiros e locais para descanso. A partir de março de 2022, cartazes nas bases do iFood Pedal indicavam que a entrega de bicicletas estaria sujeita à disponibilidade (Figura 3), mesmo sendo um instrumento de trabalho imprescindível para os trabalhadores, em busca do qual saem de seu local de moradia e despendem recursos próprios em transporte público.

Figura 2.
Entregadores na fila para retirar bicicletas no Largo da Batata, em Pinheiros, às 10h.

Figura 3.
Cartaz na base iFood Pedal no Largo da Batata, em Pinheiros.

A precarização dessas novas formas de engajamento laboral, vinculadas às plataformas digitais e o acirramento das formas de exploração do trabalho, interferem nos modos de experimentação do espaço. Observam-se atualmente novos conteúdos que reiteram ou mesmo ultrapassam o que já se manifestava quando o capital industrial tinha primazia na produção do espaço urbano: a precariedade da moradia e do transporte, os longos e morosos trajetos moradia-trabalho e a dificuldade para acesso a serviços, à infraestrutura urbana e a bens de consumo coletivo. Para além do que já caracterizava o momento da economia industrial, os entregadores vivem constrangimentos cotidianos, desde a necessidade de buscar um lugar para tomar água, usar o banheiro ou esquentar a refeição trazida de casa, até ter comprometida parte da jornada de trabalho com a espera e a concorrência pelo meio de trabalho, as bicicletas compartilhadas.

Os entregadores gastam tempo e recursos próprios para se engajar nas plataformas digitais e buscar regiões onde possam usar intensivamente sua força de trabalho. Nesse sentido, as empresas-aplicativo utilizam os serviços e infraestruturas urbanos a um custo extremamente reduzido, fornecidos pelo Estado, como as vias públicas e ciclovias, ou arcados pelo próprio trabalhador, no caso do transporte público.

Estratégias territoriais de uma dispersão concentrada

Mecanismos de funcionamento ditados pelas empresa-aplicativo reiteram a necessidade de grandes deslocamentos pelos entregadores. Delineando-se aqui um quinto elemento para compreender os deslocamentos dos entregadores, os que estão cadastrados no plano da Tembici são mais chamados - ou “toca mais”, como dizem - e recebem mais promoções, pelas quais ganham mais do que com as entregas comuns. Além da própria percepção e experiência em relação às suas jornadas de trabalho e quantidade de entregas com bicicleta própria ou compartilhada, a captura de tela abaixo (Figura 4) mostra que a própria empresa-aplicativo incentiva o uso das bicicletas compartilhadas. Alguns dos entregadores relataram, ainda, entregas em distâncias menores para quem assina o Plano iFood Pedal, seja para as bicicletas convencionais, seja para as elétricas.

Figura 4.
Captura de tela de notificação do aplicativo iFood, mostrando promoções exclusivas para entregas realizadas com bicicletas convencionais do Itaú.

Nesse sentido, os próprios trabalhadores são incentivados a alugar bicicletas compartilhadas, concentradas espacialmente na metrópole, de modo a receber mais entregas, obter um rendimento maior e percorrer uma distância menor. Mesmo que as promoções não sejam constantes e a demanda não seja necessariamente maior, a divulgação esporádica de promoções contribui para os entregadores criarem estratégias que privilegiem as bicicletas da Tembici.

O sexto elemento que leva os trabalhadores a utilizar bicicletas elétricas do iFood Pedal advém do tempo e dos trajetos determinados pela empresa-aplicativo, mais fáceis de serem cumpridos com bicicleta elétricas. O fato de as bicicletas serem elétricas permite um desgaste físico menor que o das convencionais, o que possibilita ampliar a jornada de trabalho e percorrer longas distâncias, inclusive em trajetos íngremes. Aceitar entregas em um raio maior do que teoricamente seria destinado aos entregadores de bicicleta é importante por favorecer a pontuação, que depende do número de entregas e reduz o risco de penalizações pelo não cumprimento do tempo ou da recusa de entrega (Figuras 5 e 6).

O tempo imposto pelo aplicativo para chegar ao restaurante e ao consumidor é muitas vezes insuficiente e desconsidera declividades e trânsito intenso ou congestionado. Como os entregadores podem sofrer bloqueios em caso de atrasos, o uso da bicicleta elétrica configura-se como uma alternativa importante para conseguir realizar os deslocamentos em tempos cronometrados impostos pela empresa-aplicativo.

Figura 5.
Captura de tela do aplicativo iFood, mostrando a grande distância a ser percorrida e o que eles chamam de rota dupla, na qual recebem pedidos para duas entregas recebendo menos do que se as realizassem separadamente.

Figura 6.
Captura de tela do aplicativo iFood, mostrando a grande distância percorrida, em rota dupla (dois pedidos), da Av. Brigadeiro Luís Antônio até Santa Cecília.

Um último elemento - e de suma importância - para entender os deslocamentos dos entregadores, reiterando os deslocamentos centro-periferia, é o sistema de promoções em regiões delimitadas da cidade, as chamadas “promo por zona” do iFood. Nelas, o entregador recebe a mais por cada entrega, no geral mais R$ 3, o que representava um acréscimo de 56% à taxa mínima de entrega (R$ 5,31). A retirada do pedido deve ser feita na área de cada perímetro, embora a entrega ao cliente possa ser feita fora dele. A possibilidade de receber a mais leva grande parte dos trabalhadores da periferia a se deslocar para onde poderiam receber mais.

A captura de tela abaixo (Figura 7) de um mapa divulgado pelo próprio iFood representa uma promoção por zona, abrangendo distritos de São Paulo e bairros da região leste de Osasco. A área de promoção da Figura 7 exclui grande parte da Zona Leste da cidade de São Paulo, mantendo apenas os distritos da Moóca e do Tatuapé e uma parcela dos de Belém, Vila Prudente, Água Rasa, Vila Formosa e Carrão. Na Figura 8, nota-se uma área menor de promoções, abrangendo uma região ainda mais restrita e valorizada da metrópole.

Figura 7.
Captura de tela do aplicativo Google Maps, a partir de link enviado pelo aplicativo do iFood, em cuja legenda se lia: “Promo por zona - Extra de R$ 3 por rota. Valor cumulativo com qualquer promoção vigente no dia”.

Figura 8.
Captura de tela do aplicativo Google Maps, a partir de link enviado pelo aplicativo do iFood, com área parcialmente delimitada pelas avenidas São João, Pacaembu, Dr. Arnaldo e Tereza Cristina.

Os sete elementos explicitados neste artigo, que ajudam a explicar os deslocamentos entre os locais de moradia dos entregadores e as regiões privilegiadas de entrega, evidenciam que as empresas-aplicativo necessitam de um controle dos deslocamentos dos entregadores para viabilizar suas estratégias, que são, forçosamente, estratégias territoriais. Há uma imbricação entre o controle e gerenciamento das práticas de trabalho e das práticas espaciais dos entregadores. Como afirma Abílio (2020bABÍLIO, L. C. Uberização e juventude periférica. Desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 39, n. 3, p. 579-97, 2020b.), as empresas-aplicativo operam por meio de mecanismos de dispersão, centralização e controle. Abílio retoma as características da acumulação flexível expostas por Harvey (2008HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 2008 [1992]. [1992]) para concluir que a dispersão de uma massa de trabalhadores executando tarefas cuja distribuição é programada pelas empresas-aplicativo apenas pode se efetivar por meio de um controle contundente sobre o próprio trabalho e pela centralização do controle.

Esse controle, como se evidenciou neste artigo, não se restringe apenas ao engajamento laboral, mas também ao próprio espaço urbano: há regiões nas quais as empresas-aplicativo ou, ao menos o iFood, privilegia sua atuação. A dispersão dos entregadores e da atuação dessas empresas, nessa perspectiva, não ocorre de forma aleatória. É uma dispersão-concentrada em centralidades da metrópole, que historicamente já detêm renda, postos de trabalho formais, infraestrutura e serviços.

Considerações Finais

Nota-se que o trabalho e os deslocamentos não são somente mediados pelas plataformas digitais, mas o modo pelo qual o iFood define prioridades e formas de funcionamento do aplicativo tem papel determinante não somente nas condições de trabalho dos entregadores, mas também nos deslocamentos que realizam, seja para as centralidades privilegiadas de entrega, seja a cada entrega realizada. Além de estar em centralidades com maior demanda para aumentar as possibilidades de se receber um pedido pelo aplicativo, os entregadores têm de gerenciar os deslocamentos realizados no decorrer das entregas, adotando estratégias no tempo e no espaço em relação ao emprego da força de trabalho. Procuram ter um controle sobre quais entregas devem aceitar, considerando a taxa, o caminho, a distância até o restaurante e até a casa do cliente e o tempo estipulado pelo aplicativo.

O transitar nesses espaços é marcado pelo controle do tempo e constrangimentos sobre o próprio corpo, sobretudo no caso dos entregadores, em um processo no qual toda a cidade, em última instância, passa a ser local de trabalho. A instantaneidade dada pelo click nos aplicativos para aceitar uma entrega apenas se realiza por meio de longas e muitas vezes extenuantes jornadas de trabalho com deslocamentos concentrados no espaço e intensificados no tempo. O que se realiza é, portanto, o oposto do que apregoavam os discursos entusiasmados sobre as propaladas facilidades e imaterialidades algorítmicas sobre os deslocamentos vinculados a essas novas formas de engajamento laboral: há conteúdos concretos, inclusive do esforço físico no pedalar dos cicloentregadores. Longe de fragilizar a relação centro-periferia, os deslocamentos e condições de trabalho dos entregadores revelam, portanto, que o trabalho nas e pelas plataformas digitais é mais uma expressão e um aprofundamento da desigualdade espacial há muito existente em São Paulo.

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  • 1
    O debate sobre a reprodução da força de trabalho não é recente. Engels, no clássico A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de 1845 ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008 [1845][2008], já abordava as origens da classe operária e destacava o papel da Revolução Industrial para apreender o controle da produção de mercadorias pelo capital. Marx também já tratou minuciosamente das relações sociais de produção e destacou, em O Capital (2003 MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: São Paulo, 2003 [1867]. [1867]), como uma condição fundamental da produção capitalista a separação dos trabalhadores de seus meios de subsistência e instrumentos de trabalho. Atualmente, às relações de trabalho somam-se a precariedade, flexibilidade e informalidade. Nesse sentido, modulam-se as velhas e as novas formas de condições de vida e de trabalho, intensificando, com a plataformização do trabalho, um momento no qual se remunera apenas pelas tarefas/serviços efetivamente realizados (sem quaisquer garantias sobre a remuneração e a própria jornada de trabalho) e de assunção dos riscos e dos custos da atividade pelo próprio trabalhador (inclusive para ter acesso aos instrumentos de trabalho, como no caso das bicicletas e conforme evidenciado neste artigo).
  • 2
    Optou-se neste texto predominantemente pela expressão “entregadores de bicicleta” por ser a mais utilizada entre os próprios entregadores, além de ser a mais frequentemente encontrada em redes sociais (como grupos de entregadores no Facebook ou WhatsApp) e sites da internet com anúncios de vagas de trabalho. Embora a preposição “de” possa, isoladamente, fornecer a ideia de que o entregador poderia entregar “a bicicleta”, o contexto deste texto se refere à bicicleta como meio de trabalho. Em alguns momentos, para evitar duplicidade de sentido, utilizou-se a preposição “por” ou se empregou o termo “cicloentregadores”. Outras expressões utilizadas em textos acadêmicos são “bikeboys” (ABÍLIO, 2020bABÍLIO, L. C. Uberização e juventude periférica. Desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 39, n. 3, p. 579-97, 2020b.) ou “entregadores ciclistas”, como no relatório da Aliança Bike (2019ALIANÇA BIKE. Pesquisa de perfil dos entregadores ciclistas de aplicativo. São Paulo: Aliança Bike, 2019. Avaliable at: https://aliancabike.org.br/pesquisa-de-perfil-dos-entregadores-ciclistas-de-aplicativo/ . Accessed on: 17 set. 2021.
    https://aliancabike.org.br/pesquisa-de-p...
    ), a qual, em nossa visão, fornece ênfase ao uso da bicicleta como prática esportiva, e não como uma forma de mobilizar os trabalhadores mais pobres.
  • 3
    É preciso ser entregador com conta ativa no iFood para ter acesso ao plano do iFood Pedal, mas nem todos os entregadores necessariamente realizaram entregas para essa empresa-aplicativo nos dias do levantamento em campo. Ou seja, um entregador pode estar cadastrado no iFood, retirar bicicletas no iFood Pedal e fazer entregas também outra empresa-aplicativo, como Rappi ou Uber Eats (desativada no Brasil em março de 2022), que chame primeiro ou ofereça mais entregas ou mais promoções em determinado momento. Embora tenha sido frequente um entregador ter mais de um aplicativo de entrega instalado no celular, o iFood foi o mais utilizado no período em que os trabalhos de campo foram realizados.
  • 4
    Uma ampla e densa discussão vem sendo realizada no escopo da Geografia Urbana Crítica sobre os conceitos de centro, centralidade e periferia. Ancorada no pensamento de Henri Lefebvre (2004 LEFEBVRE, H. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004 [1970].[1970]), essa perspectiva teórico-metodológica considera a centralidade como o essencial do fenômeno urbano e a partir do movimento dialético que, ao mesmo tempo, a constitui e a destrói. Se a centralidade, para o Lefebvre (2004 LEFEBVRE, H. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004 [1970].[1970]), é a reunião e a simultaneidade, o conteúdo do urbano também produz o seu negativo, ou seja, segundo sublinha Carlos (2020CARLOS, A. F. A. Segregação socioespacial e o “direito à cidade”. Geousp - Espaço e Tempo, São Paulo, v. 24, n. 3, p. 412-424, 2020., p. 417), “ao concentrar todos os momentos essenciais da vida urbana ela libera atividades que lhe são próprias”. Como afirma Lefebvre (2004 LEFEBVRE, H. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004 [1970].[1970]), a urbanização, ao se realizar por meio da industrialização, gerou, contraditoriamente, o processo de “implosão/explosão” da cidade: a implosão da centralidade, saturada, em novas centralidades, e a explosão do tecido urbano em diversas periferias. Tal movimento gera, de modo contraditório, tanto a negação da centralidade (em espaços segregados e hierarquizados diante do processo de valorização-desvalorização e da propriedade privada do solo urbano) quanto o espraiamento do tecido urbano e a generalização da urbanização.

Editado por

Editora do artigo:

Paula Cristiane Strina Juliasz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2022
  • Aceito
    05 Mar 2023
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