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Cidades resilientes e a disputa sobre o discurso da agenda de redução de riscos e desastres

RESUMO

Resiliência é um conceito que busca refletir sobre como lidar com as dinâmicas que surgem após perturbações causadas por um evento natural perigoso (como deslizamentos). Ela surge como um conceito-chave para se pensar formas de recuperação e reconstrução que buscam não somente retornar à normalidade pré-desastre, mas questionar e superar a vulnerabilidade das populações expostas. A partir do método de análise de discurso pecheutiana, problematiza-se o conceito de cidades resilientes, mobilizado como um signo de capital fictício na era da financeirização da moradia e do espaço urbano, transformando os desastres ambientais e a crise climática em mais um modelo de negócios. Resgatando o significado da resiliência socioecológica, e articulando-o às práticas socioespaciais da resistência e aos espaços comuns, torna-se possível pensar a resiliência a desastres não como uma categoria neoliberal, mas como uma prática social, política e coletiva de adaptação e mitigação às mudanças climáticas globais.

Palavras-chave:
resiliência; desastre; espaço urbano

ABSTRACT

Resilience is a concept used to reflect on how to deal with the dynamics that arise after disturbances caused by a natural hazard. It emerges as a key concept for thinking about forms of recovery and reconstruction that seek not only to return to pre-disaster normality, but to question and overcome the vulnerability. Based on the Pecheutian discourse analysis method, the concept of resilient cities is problematized, mobilized as a sign of fictitious capital in the era of financialization of housing and urban space, transforming environmental disasters and the climate crisis into yet another business model. Rescuing the meaning of socio-ecological resilience and articulating it to the theories of socio-spatial practices of resistance and common spaces, it becomes possible to think of resilience to disasters not as a neoliberal category, but as a social, political, and collective practice of adaptation and mitigation to climatic changes.

Keywords:
resilience; disaster; urban space

RESUMEN

Resiliencia es un concepto utilizado para reflexionar sobre cómo hacer frente a las dinámicas que surgen después de las perturbaciones causadas por un peligro natural. Surge como un concepto clave para pensar formas de recuperación y reconstrucción que busquen volver a la normalidad previa al desastre, y también cuestionar y superar la vulnerabilidad. A partir del método de análisis del discurso pecheutiano, se problematiza el concepto de ciudades resilientes, movilizado como signo de capital ficticio en la era de la financiarización de la vivienda y el espacio urbano, transformando los desastres ambientales y la crisis climática en un modelo de negocio. Rescatando el significado de resiliencia socioecológica y articulándolo a las teorías de prácticas socioespaciales de resistencia y espacios comunes, se hace posible pensar la resiliencia no como una categoría neoliberal, sino como una práctica social, política y colectiva de adaptación y mitigación a lo cambio climático.

Palabras-clave:
resiliencia; desastres; espacio urbano

Considerações iniciais

A área de estudos sobre desastres é uma área de pesquisa interdisciplinar dinâmica. Nas últimas décadas, o conceito que vem emergindo no discurso do risco a desastres é o de resiliência (Berke; Campanella, 2006BERKE, P. R.; CAMPANELLA, T. J. Planning for Postdisaster Resiliency. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, v. 604, n. 1, p. 192-207, 2006. ; Turner, 2010TURNER, B. L. Vulnerability and resilience: Coalescing or paralleling approaches for sustainability science? Global Environmental Change, v. 20, n. 4, p. 570-576, 2010. ; Cutter, 2020CUTTER, S. L. Community resilience, natural hazards, and climate change: Is the present a prologue to the future? Norsk Geografisk Tidsskrift - Norwegian Journal of Geography, v. 74, n. 3, p. 200-208, 2020. https://doi.org/10.1080/00291951.2019.1692066
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). A resiliência é entendida como um conceito que aponta para o problema de como lidar com mudanças rápidas no meio que nos cerca - como no caso de um desastre socioecológico (Kuhlicke, 2013KUHLICKE, C. Resilience: A capacity and a myth: Findings from an in-depth case study in disaster management research. Natural Hazards, v. 67, n. 1, p. 61-76, 2013. ). Sob a ótica do risco, a resiliência visa construir, desenvolver ou reforçar as capacidades de resposta e adaptabilidade em comunidades locais ou mesmo em sistemas inteiros, seja na recuperação de desastres passados, seja na prevenção de desastres futuros.

No entanto, a resiliência, uma categoria emergente da ecologia, passou a ser traduzida em termos de cidades resilientes, e não mais de sistemas ou sociedades resilientes. A hipótese desse deslocamento discursivo se pauta pelo avanço das novas agendas urbanas globais conduzidas pelo neoliberalismo. Entende-se esse processo como uma “cientifização da política”, como aponta Acselrad (1999ACSELRAD, H. Discursos da sustentabilidade urbana. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais., n. 1, p. 79-90, 1999. https://doi.org/10.22296/2317-1529.1999n1p79
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) em suas reflexões sobre a sustentabilidade urbana. Assim, parte-se aqui da pergunta: seria essa agenda mais uma estratégia de implementação da metáfora cidade-empresa que projeta na “cidade resiliente” alguns dos supostos atributos de atratividade de investimento?

Para compreender esse deslocamento discursivo da resiliência, o presente artigo empreende uma análise de discurso ( Orlandi, 2012ORLANDI, E. P. Análise de Discurso - Princípios & Procedimentos. Campinas: Pontes, 2012. ; Pêcheux, 2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 5. ed. Campinas: Pontes Editores, 2008. ) de textos enunciados pelo Escritório Internacional das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres (UNISDR) e pelo Banco Mundial, quais sejam: (1) o guia Como construir cidades mais resilientes - Um guia para líderes do governo local (UNISDR, 2012UNISDR - United National International Strategy for Disaster Reduction. Como construir cidades mais resilientes: um guia para líderes do governo local. Genebra: UN Office for Disaster Risk Reduction, 2012. ) e (2) o relatório Lidando com perdas: opções de proteção financeira contra desastres no Brasil (Banco Mundial, 2014BANCO MUNDIAL. Lidando com Perdas: Opções de proteção financeira contra desastres no Brasil. TORO, J. et al (ed.). Washington: Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento; Associação Internacional de Desenvolvimento, 2014. ).

A escolha da análise de discurso enquanto método reside no intuito de compreender o sentido que vem sendo empregado à resiliência, categoria-chave na agenda de gestão de riscos e desastres causados por fenômenos geológicos e hidrológicos atualmente. Ao mesmo tempo, levanta-se os outros significantes que aparecem a ela encadeados nesses documentos e diretrizes (que orientam políticas públicas também em escala nacional), evidenciando o lugar, material e simbólico, de onde se enuncia o discurso e as condições de produção do discurso. A partir dessa análise, problematiza-se o conceito de cidades resilientes em detrimento à resiliência socioecológica.

A justificativa dessa análise se pauta pelo fato de que a classe que ocupa posições dominantes no espaço social também ocupa posições dominantes no campo da produção das representações e ideias (Acselrad, 1999ACSELRAD, H. Discursos da sustentabilidade urbana. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais., n. 1, p. 79-90, 1999. https://doi.org/10.22296/2317-1529.1999n1p79
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). Afinal, quem domina o discurso domina o mundo que esse discurso expressa e que lhe é implícito. Por fim, propõe-se reflexões sobre as práticas socioespaciais de resistência, conceito proposto por Ribeiro (2018RIBEIRO, F. V. A prática socioespacial da resistência. In: CARLOS, A. F. A.; SANTOS, C. S.; ALVAREZ, I. P. (ed.). Geografia urbana crítica: teoria e método. São Paulo: Editora Contexto, 2018. p. 53-64. ), a partir da ideia de comunalidade (ou dos comuns), como uma possibilidade de disputa em torno do sentido do significante resiliência.

Cidades resilientes e a apropriação neoliberal

Nas políticas econômicas do sistema capitalista, a casa é transformada de bem social em ativo financeiro, centrada como um meio de acessar riqueza. Subjuga-se o valor de uso ao valor de troca (Harvey, 2017HARVEY, D. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo , 2017. ; Marx, 2015MARX, K. O Capital. Livro 1: Crítica da economia política. São Paulo: Boitempo , 2015. ). A mercantilização da habitação e seu uso como um ativo incorporado em um sistema financeiro globalizado afetam profundamente o exercício do direito à moradia adequada em todo o mundo (Rolnik, 2019ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial , 2019. ). No Brasil, por exemplo, é impossível falar sobre acesso a moradias em locais ambientalmente seguros - em relação às áreas de risco a desastres - se as terras não estiverem disponíveis de maneira economicamente equitativa para toda a sociedade. Lugares seguros e urbanizados não estão amplamente disponíveis porque a especulação imobiliária tem empurrado grande parte da população para áreas de riscos ambientais.

Em Nova Orleans, nos Estados Unidos, após o desastre causado pelo furacão Katrina, em 2005, afro-americanos e pessoas empobrecidas foram as mais afetadas porque viviam principalmente em áreas propensas a inundações. As ações de resposta pós-Katrina por parte dos governos federal e estadual foram insuficientes para garantir o acesso da população afetada a moradias populares, principalmente porque se tratava de apoiar inquilinos de baixa renda (Rolnik, 2019ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial , 2019. ). Em 2010, no Paquistão, as pessoas deslocadas pelas enchentes consistiam principalmente de trabalhadores sem-terra que viviam em lugares temporários ou semipermanentes ( Rolnik, 2019ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial , 2019. ). Embora as condições relacionadas à posse e à propriedade da terra estejam incluídas nos relatórios das agências de reconstrução, raramente são abordadas nas políticas, estratégias e prioridades implementadas nas necessidades pós-desastre.

O terremoto de 2010 no Haiti, por sua vez, piorou e evidenciou as terríveis condições que caracterizam os assentamentos informais em que reside a maioria da população de Porto Príncipe. Esses assentamentos foram autoconstruídos e as autoridades nunca os reconheceram formalmente. Reforçando a precariedade, eles tinham acesso a pouca ou nenhuma infraestrutura e serviços básicos de saneamento. Passados 16 meses após o terremoto, 634.000 pessoas ainda viviam distribuídas em cerca de 1.000 ocupações temporárias improvisadas pelo governo (Rolnik, 2019ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial , 2019. ). Ademais, a lenta diminuição do número de pessoas nesses campos sugere que elas não tinham outro lugar para ir. Ou decidiram que, por mais precárias que fossem as condições, ainda eram melhores que seus locais de origem.

Os exemplos supracitados, relatados por Rolnik (2019ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial , 2019. ) após sua experiência em campo como relatora para o Direito à Moradia Adequada da ONU, evidenciam como a condição de ocupação de áreas suscetíveis a desastres está diretamente relacionada às políticas de habitação e planejamento territorial nas cidades. O impacto sobre os direitos à terra e à moradia dos mais pobres e vulneráveis é consubstancial ao processo global de financeirização das cidades. As pessoas expostas e afetadas encontram-se à mercê do interesse do capital rentista ou da boa vontade política do Estado.

Outros elementos ainda se somam a essa análise territorial: o direito à cidade relaciona-se, indissociavelmente, aos atravessamentos de gênero e raça. Akotirene (2020AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020. ) faz uso da interseccionalidade com o intuito de dar “instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado” (Akotirene, 2020AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020. , p. 19). Essa interseccionalidade (re)produz no espaço urbano segregações que resultam em guetos, periferias, favelas e aglomerados subnormais - vários são os nomes para a vulnerabilização socioespacial. Essa segregação condiciona o (não) acesso a equipamentos urbanos e serviços públicos pelo código postal, uma característica do apartheid socioeconômico racializado dos territórios brasileiros (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. , p. 85). Além disso, com mais da metade da população mundial vivendo hoje em áreas urbanas e com a mudança do clima trazendo impactos cada vez mais perceptíveis, construir cidades mais seguras aos desastres deflagrados por eventos climáticos extremos - cada vez mais recorrentes - é um desafio. No bojo dessas questões, e com o avanço dos debates internacionais acerca das mudanças climáticas, emerge o discurso da cidade resiliente.

Segundo o documento Como construir cidades mais resilientes - Um guia para líderes do governo local, elaborado pelo Escritório das Nações Unidas para a Redução de Desastres (UNISDR), “climas extremos e alterados, terremotos, e emergências desencadeadas pelas ameaças decorrentes da ação humana estão crescentemente pressionando as pessoas e ameaçando a prosperidade das cidades” (UNISDR, 2012UNISDR - United National International Strategy for Disaster Reduction. Como construir cidades mais resilientes: um guia para líderes do governo local. Genebra: UN Office for Disaster Risk Reduction, 2012. , p. 7). Portanto, resiliência e redução de riscos e desastres devem ser tomados como elementos centrais no planejamento territorial urbano. Nesse sentido, o guia surge com o objetivo de “apoiar as políticas públicas, os processos decisórios e a organização para implantação de atividades de redução de riscos de desastres e de resiliência” (UNISDR, 2012UNISDR - United National International Strategy for Disaster Reduction. Como construir cidades mais resilientes: um guia para líderes do governo local. Genebra: UN Office for Disaster Risk Reduction, 2012. , p. 7). A publicação apresenta orientações práticas para a compreensão e aplicação de 10 passos essenciais para a construção de cidades resilientes, tal como descrito na campanha global Construindo cidades resilientes: minha cidade está se preparando.

O documento traz “uma visão geral das ações necessárias para construir resiliência aos desastres como parte de uma estratégia global para alcançar o desenvolvimento sustentável” (UNISDR, 2012UNISDR - United National International Strategy for Disaster Reduction. Como construir cidades mais resilientes: um guia para líderes do governo local. Genebra: UN Office for Disaster Risk Reduction, 2012. , p. 7, grifo da autora). Pois, “como as mudanças climáticas e os eventos climáticos extremos tendem a aumentar a exposição das cidades às ameaças e aos riscos, a RRD [Redução de Riscos e Desastres] torna-se um investimento, aumentando o retorno dos negócios” (UNISDR, 2012UNISDR - United National International Strategy for Disaster Reduction. Como construir cidades mais resilientes: um guia para líderes do governo local. Genebra: UN Office for Disaster Risk Reduction, 2012. , p. 7, grifo da autora). Essas colocações permitem levantar a hipótese de que a agenda de desastres vem sendo mobilizada como uma oportunidade para novos modelos de negócios, posto que o desenvolvimento sustentável repousa na centralidade de mecanismos econômicos com interesses privatistas, pautados por uma “economia verde”. Como aponta Moreno (2016MORENO, C. As roupas verdes do rei. In: PEREIRA FILHO, J.; BREDA, T. (ed.). Descolonizar o imaginário. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2016. p. 256-293. ), nessa perspectiva, a crise ambiental não seria uma questão política, mas uma falha de mercado que deve ser corrigida por uma solução de mercado.

Há, portanto, uma fetichização de definições teóricas abstratas de resiliência para a realidade do ambiente construído que despolitiza o debate. Essas abstrações ocultam as forças reais que atuam para produzir formas observadas na organização espacial (Gottdiener, 2010GOTTDIENER, M. The social production of urban space. 2. ed. Austin: University of Texas Press, 2010. ). As interações entre o discurso hegemônico, as relações de poder e as inovações sociais acabam direcionando modelos de governança e orientando trajetórias de recursos que envolvem a gestão de riscos e desastres (Paidakaki; Moulaert, 2017PAIDAKAKI, A.; MOULAERT, F. Does the post-disaster resilient city really exist? A critical analysis of the heterogeneous transformative capacities of housing reconstruction’resilience cells’. International Journal of Disaster Resilience in the Built Environment, v. 8, p. 275-291, 2017. ). Assim sendo, os efeitos ligados à determinação do uso da terra e dos valores de troca, o papel das forças econômicas da organização espacial, o controle espacial monopolista e a importância do Estado na produção do ambiente construído (Gottdiener, 2010GOTTDIENER, M. The social production of urban space. 2. ed. Austin: University of Texas Press, 2010. ; Rolnik, 2019ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial , 2019. ) precisam ser considerados nas pesquisas sobre resiliência.

Quem estaria se beneficiando com a mobilização e imposição de uma compreensão tendenciosa da resiliência e com qual finalidade? Esta questão enfatiza a necessidade de mostrar que há um pano de fundo por trás da produção do espaço urbano e da perpetuação da vulnerabilidade das populações expostas ao risco ambiental. Sem considerar essa lacuna, os esforços de construção de cidades resilientes tornam-se formas neoliberais que reforçam a segregação socioespacial, e, desse modo, não contribuem para a redução do risco a desastres urbanos, principalmente no Sul-Global.

Até agora, poucos estudos têm revelado o nexo contencioso entre as retóricas pró-equidade e pró-crescimento, planos de resiliência e governança de desastres, como pontuam Paidakaki e Moulaert (2017PAIDAKAKI, A.; MOULAERT, F. Does the post-disaster resilient city really exist? A critical analysis of the heterogeneous transformative capacities of housing reconstruction’resilience cells’. International Journal of Disaster Resilience in the Built Environment, v. 8, p. 275-291, 2017. ). O conceito de cidade resiliente, apropriado pelo neoliberalismo, tornou-se um signo de capital fictício que contribui para a gentrificação urbana. A resiliência a desastres nos territórios adquire, assim, um valor simbólico que se traduz na potencialidade do valor de troca; afinal, mobiliza uma série de intervenções no espaço que contribuem para a especulação imobiliária. Um dos principais mobilizadores dos processos globais de deslocamento populacional e despossessão são os grandes projetos de infraestrutura e renovação urbana de reconstrução pós-desastres (Rolnik, 2019ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial , 2019. ).

Vários fatos sociais exemplificam esse “ case de sucesso” - para usar uma linguagem própria do mercado. Após a devastação causada pelo tsunami de 2004 nas Ilhas Maldivas, no oceano Índico, a realocação da população local residente em áreas consideradas de risco causou profundo impacto em suas atividades de subsistência, visto que se tratava de populações pesqueiras. Em contrapartida, após sua remoção pelo Estado, surgiram nessas áreas resorts para o turismo de luxo (Rolnik, 2019ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial , 2019. ). No Chile, em 2010, após o terremoto seguido de tsunami, a reconstrução das áreas atingidas ficou a cargo do setor privado. No entanto, as empreiteiras construíram as novas moradias em áreas situadas nas periferias da cidade, e não nas áreas centrais - valorizadas e de interesse do mercado -, onde os moradores residiam antes do desastre ( Rolnik, 2019ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial , 2019. ). Esses exemplos evidenciam como a despossessão em áreas de risco, muitas vezes, atende a interesses orientados pela lógica do poder econômico.

Essas práticas apontam para uma nova forma de colonização, que opera por meio da superimposição de projetos estruturados a partir de um modelo de negócios que visa substituir as formas de vida existentes nos territórios. O cenário pós-desastre fornece um espaço de ação para as relações sociais capitalistas se renovarem, mobilizando terra e trabalho para produzir mercadorias (habitação) com um olhar voltado para a realização do valor de troca incorporado, por meio do qual os ciclos de acumulação de riqueza são, portanto, renovados ( Harvey, 2017HARVEY, D. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo , 2017. ; Moreno, 2016MORENO, C. As roupas verdes do rei. In: PEREIRA FILHO, J.; BREDA, T. (ed.). Descolonizar o imaginário. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2016. p. 256-293. ).

O guia para cidades resilientes ( UNISDR, 2012UNISDR - United National International Strategy for Disaster Reduction. Como construir cidades mais resilientes: um guia para líderes do governo local. Genebra: UN Office for Disaster Risk Reduction, 2012. ) traduz em termos econômicos os custos e as oportunidades de negócios e lucros das mudanças climáticas e dos desastres ambientais agravados por elas. As crises socioecológicas, portanto, são transformadas em um caso econômico. O trecho a seguir demonstra tal orientação discursiva:

Negócios e investidores privados podem afastar-se de cidades nitidamente indiferentes às ações de redução de riscos de desastres. Uma gestão integrada de riscos de desastres é mais atraente quando é simultaneamente dirigida às necessidades de diversos públicos e às prioridades que com ela competem (UNISDR, 2012UNISDR - United National International Strategy for Disaster Reduction. Como construir cidades mais resilientes: um guia para líderes do governo local. Genebra: UN Office for Disaster Risk Reduction, 2012. , p. 19, grifo da autora).

As condições de produção do discurso nos documentos da UNISDR nos apontam para o contexto em que são planejadas “as políticas públicas, os processos decisórios e a organização para implantação de atividades de redução de riscos de desastres e de resiliência” ( UNISDR, 2012UNISDR - United National International Strategy for Disaster Reduction. Como construir cidades mais resilientes: um guia para líderes do governo local. Genebra: UN Office for Disaster Risk Reduction, 2012. , p. 7). O que, em última análise, define a orientação dos processos de planejamento urbano e as trajetórias do discurso científico e político de resiliência a desastres ( Paidakaki; Moulaert, 2017PAIDAKAKI, A.; MOULAERT, F. Does the post-disaster resilient city really exist? A critical analysis of the heterogeneous transformative capacities of housing reconstruction’resilience cells’. International Journal of Disaster Resilience in the Built Environment, v. 8, p. 275-291, 2017. ). Além disso, a orientação discursiva da UNISDR foca na resiliência enquanto um objetivo, um resultado a ser alcançado na busca pelo desenvolvimento sustentável, deslocando o seu papel central de um processo que envolveria uma série de eventos, ações e mudanças que aumentariam a capacidade adaptativa da comunidade afetada diante de um desastre.

Não obstante, o guia de cidades resilientes aqui analisado apresenta um discurso que se aproxima dos interesses do maior grupo de cobertura midiática do capital financeiro, o The Economist. Pertencente ao grupo The Economist, o Economist Impact é, ao mesmo tempo, uma think-tank e uma marca de mídia que visa “envolver um público global influente”. Na sua alçada encontra-se o Sustainability Project, a primeira grande iniciativa do Economist Impact, que combina os recursos e a experiência pelos quais o grupo The Economist é conhecido: pesquisa e insights de políticas, visualização de dados, narrativa personalizada, eventos e mídia (The Economist, 2021THE ECONOMIST. The Economist Intelligence Unit. Safe Cities Index 2021: New Expectations Demand a New Coherence, 2021. Disponível em: Disponível em: https://city2city.network/safe-cities-index-2021-new-expectations-demand-new-coherence. Acesso em: 05 ago. 2023.
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). Essa think-tank atua fazendo parcerias com corporações, fundações, ONGs e governos em temas como sustentabilidade, saúde e a mudança na forma da globalização para, segundo eles, “catalisar mudanças e permitir o progresso” (The Economist, 2021THE ECONOMIST. The Economist Intelligence Unit. Safe Cities Index 2021: New Expectations Demand a New Coherence, 2021. Disponível em: Disponível em: https://city2city.network/safe-cities-index-2021-new-expectations-demand-new-coherence. Acesso em: 05 ago. 2023.
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).

O Safe Cities Index 2021 (Índice de Cidades Seguras 2021) é um relatório da The Economist Intelligence Unit que classifica as cidades mais seguras, dentre outros parâmetros, aos eventos climáticos extremos (The Economist, 2021THE ECONOMIST. The Economist Intelligence Unit. Safe Cities Index 2021: New Expectations Demand a New Coherence, 2021. Disponível em: Disponível em: https://city2city.network/safe-cities-index-2021-new-expectations-demand-new-coherence. Acesso em: 05 ago. 2023.
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). O relatório é baseado na iteração do índice que classifica 60 cidades em 76 indicadores que abrangem saúde, infraestrutura e segurança digital, pessoal e ambiental. Segundo o Economist Impact, é preciso investir em infraestruturas resilientes aos efeitos das mudanças climáticas e da degradação ambiental, em soluções baseadas na natureza e em sistemas de alerta para desastres, e por isso essa avaliação se faz pertinente. O interesse do grupo reside em criar modelos de parceria e colaboração e alavancar forças coletivas para desbloquear oportunidades, impulsionando, segundo eles, o progresso.

Um outro modelo de negócios que se abre em cenários de desastres é o das seguradoras. De acordo com o relatório Lidando com Perdas: Opções de Proteção Financeira contra Desastres no Brasil (Banco Mundial, 2014BANCO MUNDIAL. Lidando com Perdas: Opções de proteção financeira contra desastres no Brasil. TORO, J. et al (ed.). Washington: Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento; Associação Internacional de Desenvolvimento, 2014. ), nos últimos anos diversas seguradoras iniciaram suas operações no Brasil, ao mesmo tempo em que ocorria uma tendência de consolidação das principais seguradoras. Em 2011, 116 companhias de seguros operavam no país, mas cerca de 60 % do total de prêmios de seguros elementares concentrava-se nos sete maiores grupos seguradores. O Brasil tem o maior mercado de seguros elementares da América Latina (1,08 % do PIB) (Banco Mundial, 2014). Para o Banco Mundial, a maior cobertura do seguro privado de propriedade reduziria a responsabilidade do governo em relação a esses setores. No entanto, nota-se uma contradição: apesar do Estado ser responsável pela garantia de acesso à moradia digna em áreas seguras, como preconiza a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição Federal (CF) brasileira, observa-se uma tentativa de desresponsabilização desse agente.

Diante do equacionamento das questões de pobreza em termos de atendimento focalizado e local, com a mediação do mercado financeiro, as vulnerabilidades estruturais deixam de aparecer como processos coletivos de negação de direitos para se fixar como problema a ser administrado tecnicamente. Esse fato é evidenciado no seguinte trecho do relatório do Banco Mundial:

O desenvolvimento de uma estratégia nacional de proteção financeira contra desastres promoveria a resiliência fiscal do Governo Federal e dos governos locais, limitando os déficits financeiros que exacerbam os efeitos nas atividades econômicas e bem-estar, promovendo, simultaneamente, a prevenção de desastres e uma reconstrução resiliente (Banco Mundial, 2014BANCO MUNDIAL. Lidando com Perdas: Opções de proteção financeira contra desastres no Brasil. TORO, J. et al (ed.). Washington: Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento; Associação Internacional de Desenvolvimento, 2014. , p. 13, grifos da autora).

Nota-se, no trecho acima, a orientação em promover uma “resiliência fiscal”, preenchendo as lacunas de financiamento que amplificam os “efeitos dos desastres naturais sobre a atividade econômica e o bem-estar” (Banco Mundial, 2014BANCO MUNDIAL. Lidando com Perdas: Opções de proteção financeira contra desastres no Brasil. TORO, J. et al (ed.). Washington: Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento; Associação Internacional de Desenvolvimento, 2014. , p. 7, 11, 12 e 20). Nesse caso, a resiliência a desastres passa a ser orientada na busca de uma resiliência do sistema econômico. Atreladas ao capital financeiro, instituições privadas beneficiam-se do abismo socioeconômico que estruturam nossas sociedades para fazer girar a engrenagem do capital, mesmo no cenário de terra arrasada que configura os desastres. Observa-se, assim, uma apropriação neoliberal da resiliência enquanto uma “oportunidade de negócios” (UNISDR, 2012UNISDR - United National International Strategy for Disaster Reduction. Como construir cidades mais resilientes: um guia para líderes do governo local. Genebra: UN Office for Disaster Risk Reduction, 2012. , p. 16) para a reprodução ampliada do capital.

O Manual de Planejamento para Resiliência Urbana a Desastres (Shah; Ranghieri, 2012SHAH, F.; RANGHIERI, F. A Workbook on Planning for Urban Resilience in the Face of Disasters. Washington: Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento; Associação Internacional de Desenvolvimento ; Banco Mundial , 2012. ), elaborado pelo Banco Mundial, estabelece cinco componentes relevantes para o desenvolvimento, as mudanças climáticas e a gestão do risco a desastres. Dentre eles, destaca-se o componente quatro, que versa sobre um fundo rotativo familiar para programa de saneamento. Consta como sugestão do Banco Mundial:

Fundos rotativos serão estabelecidos em cada cidade para fornecer pequenos empréstimos para a construção de instalações sanitárias domésticas. [...] Os critérios de elegibilidade e os termos e condições dos empréstimos destinam-se a garantir que as famílias de baixa renda estejam aptas para acessar empréstimos (Shah; Ranghieri, 2012SHAH, F.; RANGHIERI, F. A Workbook on Planning for Urban Resilience in the Face of Disasters. Washington: Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento; Associação Internacional de Desenvolvimento ; Banco Mundial , 2012. , p. 145, grifos da autora).

Atenta-se, novamente, para a desresponsabilização do Estado enquanto agente promotor de saúde pública ambiental e de direito à cidade e à dignidade, como preconiza a CF. De acordo com o Banco Mundial, toma-se como diretriz de planejamento para resiliência urbana em face aos desastres a recorrência a empréstimos para financiar obras e serviços que são de responsabilidade do Estado. Essa é mais uma faceta da capitalização dos desastres e do neoliberalismo, que individualiza falsas soluções para problemas coletivos e sociais.

Os países periféricos estão hoje sob a égide de predominância do rentismo, como a financeirização e a reprimarização, que evidenciam novas e velhas formas de extrativismo e repercutem na produção do espaço urbano (Ribeiro; Diniz, 2022RIBEIRO, L. C. Q.; DINIZ, N. Financeirização periférica, neoextrativismo e urbanização dependente na América Latina. In: PÍREZ, P.; RODRÍGUEZ, M. C. (ed.). Las políticas neoliberales y la ciudad en AL Desafíos teóricos y políticos. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 2022 p. 25-52.). Isso é corroborado pela observação de que, nesses países, os empréstimos bancários de longo prazo (arriscados) para o setor produtivo industrial foram substituídos por empréstimos de curto prazo para famílias de baixa renda (menos arriscados) (Kaltenbrunner; Painceira, 2008KALTENBRUNNER, A.; PAINCEIRA, J. P. Financierización en América Latina: implicancias de la integración financiera subordinada. In: ABELES, M.; CALDENTEY, E. P.; VALDECANTOS, S. (ed.). Estudios sobre financierización en América Latina. Santiago: CEPAL, 2008. p. 33-67. ). Cabe salientar, ainda, que as diretrizes elaboradas pelo Banco Mundial (Shah; Ranghieri, 2012SHAH, F.; RANGHIERI, F. A Workbook on Planning for Urban Resilience in the Face of Disasters. Washington: Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento; Associação Internacional de Desenvolvimento ; Banco Mundial , 2012. ) se baseiam em experiências de gestão e RRD no Vietnã, país considerado subdesenvolvido, reiterando a hipótese de atualização de práticas coloniais de espoliação pelo neoliberalismo.

Assim, acredita-se ser importante considerar as formas de sobredeterminação impostas pelo modo de produção e organização do espaço e de ocupação das áreas de risco, as quais influenciam na proposição de planos de resiliência a desastres. Esse é o caminho para entender o panorama da resiliência a desastres - movido, nas últimas décadas, pelo slogan de “cidades resilientes” - e o que está na essência do processo discursivo que envolve a categoria resiliência e seus modos de materialização no espaço por meio de agendas internacionais (que influenciam no planejamento urbano e na gestão e RRD em nível nacional). Todavia, a resiliência, enquanto categoria de pesquisa nas ciências que se propõem a pensar a gestão e RRD, emerge em um contexto diferente do qual ela vem sendo mobilizada ao longo das últimas décadas pelo capital financeiro e pelas agendas urbanas neoliberais. Desse modo, é importante resgatar historicamente a concepção epistemológica de onde parte a categoria resiliência.

Resiliência socioecológica: nem mecanicismo, nem abstração

A categoria resiliência tem sido usada em diversos campos, especialmente na RRD. Contudo, existem múltiplas definições de resiliência na literatura. Resiliência é derivada da palavra latina resilio, que significa retornar a um estado anterior. Na Ecologia ganhou popularidade após o trabalho de Holling (1973HOLLING, C. S. Resilience and stability of ecological systems. Annual Review of Ecology and Systematics, v. 4, n. 1, p. 1-23, 1973. ), intitulado Resiliência e estabilidade de sistemas ecológicos. Parte da literatura, no entanto, afirma que o estudo da resiliência evoluiu das disciplinas de Psicologia e Psiquiatria, na década de 1940, a partir da análise dos riscos e dos efeitos negativos de eventos adversos na vida das crianças, como divórcio e fatores estressantes traumáticos (abuso, negligência e guerra, por exemplo) (Manyena, 2006MANYENA, S. B. The concept of resilience revisited. Disasters, v. 30, n. 4, p. 433-450, 2006. ). De todo modo, o conceito surge em distintas áreas, ressaltando sua capacidade e potencialidade conceitual como campo de diálogo interdisciplinar e transdisciplinar.

O surgimento das múltiplas conceituações de resiliência na literatura das ciências ambientais se deu a partir de três áreas de pesquisa: de mudanças climáticas (Adger, 2006ADGER, W. N. Vulnerability. Global Environmental Change, v. 16, n. 3, p. 268-281, 2006. ), de perigos naturais (Cutter; Ash; Emrich, 2014CUTTER, S. L.; ASH, K. D.; EMRICH, C. T. The geographies of community disaster resilience. Global Environmental Change, v. 29, p. 65-77, 2014. ) e de sustentabilidade (Turner, 2010TURNER, B. L. Vulnerability and resilience: Coalescing or paralleling approaches for sustainability science? Global Environmental Change, v. 20, n. 4, p. 570-576, 2010. ). Mais recentemente, Cutter (2019CUTTER, S. L. Community resilience, natural hazards, and climate change: Is the present a prologue to the future? Norsk Geografisk Tidsskrift - Norwegian Journal of Geography, v. 74, n. 3, p. 200-208, 2020. https://doi.org/10.1080/00291951.2019.1692066
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) tem feito um esforço de convergência das duas primeiras ao abordar a questão da resiliência de comunidades aos riscos naturais sensíveis ao clima e às mudanças climáticas. Essa abordagem se faz urgente, partindo do pressuposto, já demonstrado em estudos ( Benevolenza; Derigne, 2019BENEVOLENZA, M. A.; DERIGNE, L. The impact of climate change and natural disasters on vulnerable populations: A systematic review of literature. Journal of Human Behavior in the Social Environment, v. 29, n. 2, p. 266-281, 2019. ), de que as mudanças climáticas interferem diretamente nos desastres causados por fenômenos naturais (como secas, inundações e deslizamentos), tornando-os mais frequentes e mais intensos. Além disso, em um modo de produção econômico hegemônico e desigual, a concentração de terras e riquezas e a extração de lucros pela exaustão dos recursos naturais contribuem para a intensificação dos problemas que surgem em ambas as linhas teóricas, fato que torna a convergência de debates ainda mais necessária para a construção de um lugar-comum de ideias.

Para alguns pesquisadores da resiliência é necessário considerar as dinâmicas e complexidades que ocorrem nas interações socioecológicas (Adger, 2006ADGER, W. N. Vulnerability. Global Environmental Change, v. 16, n. 3, p. 268-281, 2006. ; Berkes; Colding; Folke, 2002BERKES, F.; COLDING, J.; FOLKE, C. (ed.). Navigating social-ecological systems: building resilience for complexity and change. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. ; Turner et al., 2003TURNER, B. L. et al. A framework for vulnerability analysis in sustainability science. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, v. 100, n. 14, p. 8074-8079, 2003. ). Essa perspectiva reconhece a sinergia e interdependência entre sociedade, sistema natural e ambiente construído (Adger, 2006ADGER, W. N. Vulnerability. Global Environmental Change, v. 16, n. 3, p. 268-281, 2006. ). Sistemas naturais se referem aos processos geofísicos e biofísicos, enquanto a sociedade é construída a partir de regras e instituições ( Berkes; Folke, 1998BERKES, F.; FOLKE, C. Linking social and ecological systems for resilience and sustainability. In: Linking social and ecological systems: management practices and social mechanisms for building resilience. Estocolomo: BEIJER Institute of Ecological Economics, 1998. Disponível em: https://dlc.dlib.indiana.edu/dlc/bitstream/handle/10535/4352/berkes-linking_social_and_ecological_systems_for_resilience_and_sustainability.pdf
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). O olhar socioecológico de totalidade reflete a ideia de que ações humanas e estruturas sociais são integrais ao ambiente natural e, consequentemente, a distinção dualista entre natureza e sociedade é arbitrária, uma abstração da realidade (Adger, 2006ADGER, W. N. Vulnerability. Global Environmental Change, v. 16, n. 3, p. 268-281, 2006. ). Mesmo porque, interações sociais acontecem no sistema natural e mediam a interação metabólica com o planeta e os modos de produção do ambiente construído. Esse é um ponto que a ecologia marxista busca resgatar, como o fazem os trabalhos de Foster (2005FOSTER, J. B. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. São Paulo: Boitempo, 2005. ) e Saito (2021SAITO, K. O ecossocialismo de Karl Marx: capitalismo, natureza e a crítica inacabada à economia política. São Paulo: Boitempo , 2021. ).

Nesse sentido, a caracterização da resiliência socioecológica inclui não somente a capacidade do sistema afetado em retornar ao(s) estado(s) que existia(m) antes do distúrbio, mas também em avançar através de um estado de aprendizagem e adaptação - “ build back better” (Adger, 2006ADGER, W. N. Vulnerability. Global Environmental Change, v. 16, n. 3, p. 268-281, 2006. ; Cutter et al., 2008CUTTER, S. L. et al. A place-based model for understanding community resilience to natural disasters. Global Environmental Change, v. 18, p. 598-606, 2008. ; Folke; Colding; Berkes, 2002FOLKE, C.; COLDING, J.; BERKES, F. Building resilience and adaptive capacity in social-ecological systems. In: BERKES, F.; COLDING, J.; FOLKE, C. (ed.) Navigating social-ecological systems: Building resilience for complexity and change. Cambridge: Cambridge University Press , 2002. p. 352-387.). À vista disso, a resiliência a desastres envolve três parâmetros: (1) resposta ao distúrbio, (2) capacidade de se auto-organizar e (3) capacidade de aprender e se adaptar (Folke; Colding; Berkes, 2002FOLKE, C.; COLDING, J.; BERKES, F. Building resilience and adaptive capacity in social-ecological systems. In: BERKES, F.; COLDING, J.; FOLKE, C. (ed.) Navigating social-ecological systems: Building resilience for complexity and change. Cambridge: Cambridge University Press , 2002. p. 352-387.). Cutter et al. (2008CUTTER, S. L. et al. A place-based model for understanding community resilience to natural disasters. Global Environmental Change, v. 18, p. 598-606, 2008. ) conceitualiza a resiliência como:

capacidade de um sistema social responder e se recuperar de desastres, e inclui as condições inerentes que permitem que o sistema absorva impactos e lide com um evento, bem como os processos adaptativos pós-evento que facilitam a capacidade de o sistema social se reorganizar, mudar e aprender em resposta a uma ameaça. Cutter et al., 2008CUTTER, S. L. et al. A place-based model for understanding community resilience to natural disasters. Global Environmental Change, v. 18, p. 598-606, 2008. , p. 599).

Também é preciso situar a resiliência a desastres enquanto resultado ou processo. Ela pode ser vista como um conceito que descreve o resultado desejado de um programa de RRD (Manyena, 2006MANYENA, S. B. The concept of resilience revisited. Disasters, v. 30, n. 4, p. 433-450, 2006. ). Enquanto processo, a resiliência pode ser definida em termos de aprendizado contínuo e responsabilização por tomadas de decisões que aumentam a capacidade de lidar com os perigos (Cutter et al., 2008CUTTER, S. L. et al. A place-based model for understanding community resilience to natural disasters. Global Environmental Change, v. 18, p. 598-606, 2008. ). A problemática de tratar a resiliência como um resultado, como preconizado pelo guia de cidades resilientes proposto pelo Escritório das Nações Unidas (UNISDR, 2012UNISDR - United National International Strategy for Disaster Reduction. Como construir cidades mais resilientes: um guia para líderes do governo local. Genebra: UN Office for Disaster Risk Reduction, 2012. ) e pelas métricas que o acompanha, reside na tendência de reforçar a prática tradicional de gestão de desastres de orientação reativa. Tratar a resiliência como um processo, por sua vez, envolve uma série de eventos, ações e mudanças que aumentam a capacidade da comunidade afetada diante de choques e tensões, enfatizando o papel humano nos desastres e o desenvolvimento histórico (econômico, social e político) da condição de vulnerabilidade.

Metodologias têm sido desenvolvidas para calcular o índice de resiliência (Cutter et al., 2008CUTTER, S. L. et al. A place-based model for understanding community resilience to natural disasters. Global Environmental Change, v. 18, p. 598-606, 2008. ; Cutter; Ash; Emrich, 2014CUTTER, S. L.; ASH, K. D.; EMRICH, C. T. The geographies of community disaster resilience. Global Environmental Change, v. 29, p. 65-77, 2014. ), bem como o índice de vulnerabilidade (Cutter; Boruff; Shirley, 2003CUTTER, S. L.; BORUFF, B. J.; SHIRLEY, W. L. Social vulnerability to environmental hazards. Social Science Quarterly, v. 84, n. 2, p. 242-261, 2003. ). Ao contrário da vulnerabilidade a desastres, expressa em variáveis censitárias geográficas, como rendimento mensal, distribuição racial da população, acesso a saneamento, faixa etária etc., a resiliência e a capacidade adaptativa de uma comunidade não podem ser mensuradas, pois ancoram-se em elementos subjetivos de enfrentamento ao desastre. A vulnerabilidade, todavia, pode e precisa ser quantificada, pois nos informa sobre a realidade material dos territórios. Não obstante, dados por si só não são suficientes para compreendermos a gênese dos processos de segregação socioespacial e de produção antrópica dos desastres, cuja análise quali-quantitativa dos dados não pode prescindir de uma contextualização historicizada da urbanização e da ocupação das áreas de risco.

Pesquisas mecanicistas sugerem a existência de leis que determinam a evolução das sociedades e possibilitam prever os resultados de ações coletivas. Uma ideia que não considera a subjetividade de cada indivíduo. Assim, a hipótese do determinismo mecanicista é inviável, uma vez que a totalidade do real não se reduz à soma das partes em que o dividimos para observar e medir. O que torna, portanto, a resiliência uma categoria inquantificável para lidar com a realidade do desastre. Ao mesmo tempo, salienta-se aqui a importância do levantamento de dados para uma análise territorial, de modo a orientar o direcionamento de políticas públicas e intervenções sociais para uma gestão de riscos mais eficiente.

A dicotomia entre paradigmas epistemológicos realista-objetivo e idealista-subjetivo se traduz na oposição entre métodos e técnicas de pesquisa quantitativos e qualitativos. No entanto, a oposição entre quantidade e qualidade pode ser pensada como complementariedade sem que se fechem os olhos para as peculiaridades e os limites de cada abordagem. Afinal, não é uma questão de hierarquizar métodos quantitativos e métodos qualitativos, mas de compreender que a escolha de métodos para uma análise espacial depende, na realidade, da pergunta de pesquisa.

Faz-se necessário estabelecer um lugar-comum em que seja possível abordar ambas as perspectivas. É importante e necessário quantificar determinados parâmetros para orientar a formulação de políticas públicas, como a vulnerabilidade. Mas, uma pesquisa não-mecanicista significa considerar perspectivas locais, conhecimentos e modos de vida para que o planejamento do território se torne horizontal e construído a partir de uma tomada de decisão democrática e participativa, essencial para o fortalecimento de uma resiliência socioecológica do território. Assim será possível pensar a resiliência a desastres de modo que ela não se prenda ao limitado caráter quantitativo pressuposto em métricas que exprimem “discursos em disputa pela expressão mais legítima” da sustentabilidade e da resiliência (Acselrad, 1999ACSELRAD, H. Discursos da sustentabilidade urbana. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais., n. 1, p. 79-90, 1999. https://doi.org/10.22296/2317-1529.1999n1p79
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).

Isto posto, é preciso recusar o movimento não-dialético de importar parâmetros e políticas externas de RRD e de resiliência genéricas. Nesse sentido, torna-se necessário trazer as concepções ontológicas, históricas, geográficas e políticas sobre a crise urbana que envolve os cenários de desastres. Mesmo porque, embora a vulnerabilidade represente o potencial de perdas (Cutter; Boruff; Shirley, 2003CUTTER, S. L.; BORUFF, B. J.; SHIRLEY, W. L. Social vulnerability to environmental hazards. Social Science Quarterly, v. 84, n. 2, p. 242-261, 2003. ) - independente se perda material ou imaterial -, ela varia geograficamente e ao longo do tempo, de acordo com os diferentes grupos sociais e com os parâmetros adotados nas análises. Isso significa que a vulnerabilidade varia no tempo e no espaço. E a resiliência, também.

A vulnerabilidade a desastres como um processo histórico

Um desastre é produto da convergência, em momento e lugar determinados, de dois fatores: ameaça e vulnerabilidade (Wilches-Chaux, 1993WILCHES-CHAUX, G. La vulnerabilidad global. In: MASKREY, A. (ed.). Los desastres no son naturales. Ciudad de Panamá: Red de Estudios Sociales en Prevención de Desastres en América Latina, 1993. p. 1-140. ). A vulnerabilidade é, por definição, eminentemente social, pois se refere às condições e características que impedem um determinado sistema social de adaptar-se a uma mudança no ambiente. De maneira análoga, o risco também é, em essência, um fator social, posto que um fenômeno natural só adquire condição de risco quando sua ocorrência prevê afetar um espaço vivido pela população vulnerável a esse fenômeno (Wilches-Chaux, 1993WILCHES-CHAUX, G. La vulnerabilidad global. In: MASKREY, A. (ed.). Los desastres no son naturales. Ciudad de Panamá: Red de Estudios Sociales en Prevención de Desastres en América Latina, 1993. p. 1-140. ). Assim, afirma-se que os desastres (socio)naturais também constituem fenômenos sociais.

O risco que se instala após a ocupação humana em áreas geologicamente sensíveis é agravado pelo desmatamento da encosta e pela ausência de saneamento e de sistema de drenagem pluvial. A ausência de equipamentos urbanos é comum nessas áreas já expostas e vulneráveis, principalmente se forem regiões sem regularização fundiária, onde não há respaldo jurídico para que o poder público viabilize os serviços básicos. Desse modo, como consequência da vulnerabilidade, podem surgir novos riscos para o grupo exposto ou em áreas adjacentes (Wilches-Chaux, 1993WILCHES-CHAUX, G. La vulnerabilidad global. In: MASKREY, A. (ed.). Los desastres no son naturales. Ciudad de Panamá: Red de Estudios Sociales en Prevención de Desastres en América Latina, 1993. p. 1-140. ). É assim que o risco a movimentos de massa e inundações aparece como consequência, muitas vezes, do assentamento em áreas geotecnicamente instáveis e sem urbanização - majoritariamente compostas por populações economicamente incapazes de realizar onerosas obras de mitigação e de arcar com os custos de moradia em bairros ambientalmente seguros e urbanizados. Com isso, elementos da vulnerabilidade se interseccionam, produzindo riscos que se escalonam.

Embora os processos estruturais de desigualdade e injustiça social estejam presentes na persistência e disseminação dos desastres pelo país, a forma como essas crises vêm sendo interpretadas institucionalmente também contribuem para esse problema (Valencio, 2014VALENCIO, N. Desastres: tecnicismo e sofrimento social. Ciência e Saúde Coletiva, v. 19, n. 9, p. 3631-3644, 2014. ). As práticas do “meio técnico-operacional institucional”, como nomeia Valencio (2014VALENCIO, N. Desastres: tecnicismo e sofrimento social. Ciência e Saúde Coletiva, v. 19, n. 9, p. 3631-3644, 2014. ), são orientadas por discursos mecanicistas, que tratam a gestão de riscos a partir de índices puramente quantitativos, baseados principalmente nas características construtivas das habitações - como sua infraestrutura e localização. Nessa perspectiva, tanto a vulnerabilidade quanto a resiliência são tratadas em termos habitacionais, como se o ambiente construído fosse o objeto das ações de RRD.

Apesar disso, é possível pensar a resiliência como uma estratégia coletiva de adaptabilidade e resposta aos desastres. Assim, a resiliência teria como objetivo não somente retornar ao estado de “normalidade” pré-desastre, mas tensionar essa dita normalidade e avançar em relação às condições materiais e de vulnerabilidade que existiam antes do desastre e que são por ele agravadas. Isso parte, também, do questionamento da viabilidade de agendas para cidades resilientes que impõem objetivos inatingíveis para os países capitalistas periféricos, os chamados subdesenvolvidos, como o Brasil, quando não se debate uma mudança paradigmática que se pretende anticolonial.

A construção teórico-epistemológica da resiliência socioecológica nas ciências que estudam a gestão e RRD emerge enquanto uma disputa discursiva de narrativa conceitual. Quando pensada a partir de epistemologias anticoloniais, a resiliência, enquanto categoria, busca confrontar o espaço ocupado por diretrizes impostas pelo Banco Mundial e por órgãos multilaterais, nos quais a tomada de decisão está à cargo dos países do centro do sistema capitalista. Órgãos e países estes que não centralizam a colonização enquanto elemento estruturante da urbanização periférica (Ribeiro; Diniz, 2022RIBEIRO, L. C. Q.; DINIZ, N. Financeirização periférica, neoextrativismo e urbanização dependente na América Latina. In: PÍREZ, P.; RODRÍGUEZ, M. C. (ed.). Las políticas neoliberales y la ciudad en AL Desafíos teóricos y políticos. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 2022 p. 25-52.) e dos cenários de desastres como produtos da modernidade. Nesse sentido, a prática da resistência e a teoria dos comuns surge como possibilidade de enfrentamento e de disputa em torno da categoria resiliência, atualmente apropriada pelo neoliberalismo.

A prática socioespacial da resistência e a resiliência doscomuns

Como a análise de discurso demonstrou, a resiliência foi transformada em um signo de capital fictício atrelado a um modelo de negócios na era da financeirização da cidade. Com isso, o cenário de desastre, ainda que iminente, transforma-se em um espaço de ação para as relações sociais capitalistas se renovarem. Como se sabe, a produção do espaço é objetivo e objeto das estratégias de acumulação capitalistas que aprofundam as desigualdades sociais expressas espacialmente. Assim, promove-se uma segregação socioespacial que é, ao mesmo tempo, econômica e racial, e que resulta em cenários de risco galgados nessa diferenciação do espaço. Lefebvre (2000LEFEBVRE, H. A produção do espaço. 4. ed. Paris: Éditions Anthropos, 2000. ) apresenta a tríade dialética da produção do espaço na modernidade que, de uma forma ou de outra, conduz aos desastres ambientais urbanos: homogeneidade, fragmentação e hierarquização.

A tendência para o homogêneo facilita métodos de gestão e controle e a repetição dos processos produtivos (como as métricas e guia de cidades resilientes aqui apontados). A fragmentação representa-se nas menores parcelas, nas quais se dividem os lotes em torno da apropriação privada, com glebas de terras divididas em partes menores, organizando uma vivência também fragmentada da cidade, já que são ceifadas as possibilidades de confraternização dos espaços comuns. A hierarquização, por sua vez, segrega socioespacialmente em classe, raça e gênero: espaços industriais, espaços residenciais em bairros abastados, espaços para os marginalizados e espaços violentos e ambientalmente inseguros para determinados grupos. Como resultado, as contradições e os conflitos de classe, raça e gênero são também gravados nas formas espaciais das cidades.

A prática da resistência, por sua vez, se materializa em uma vivência desses conflitos que tensiona normas, códigos interditos e jurisdições, empregando, assim, modos de vida improdutivos ao capital e afrontando essas determinações. Essas resistências se dão de diversas formas, seja ocupando imóveis abandonados, seja reunindo guetos marginalizados nos espaços vazios, seja organizando atos de fechamento de ruas e manifestações políticas, seja se articulando coletivamente em momentos de resposta a desastres (antecipando a própria ação do poder público). A resistência, portanto, caminha no sentido contrário à fragmentação, pois pressupõe um movimento coletivo em relação com o Outro e com a experiência do Outro.

Considerar que a produção espacial é condição, meio e produto não só da produção material, mas da reprodução social, passa pelo entendimento de que essas formas espaciais se organizam em diversas escalas, que vão desde a cidade ou um parque produtivo até a casa. Na prática socioespacial da resistência, a escala de análise parte do lugar e das práticas cotidianas, nas quais as relações de produção e reprodução da vida são constituídas em sua célula mínima ( Ribeiro, 2018RIBEIRO, F. V. A prática socioespacial da resistência. In: CARLOS, A. F. A.; SANTOS, C. S.; ALVAREZ, I. P. (ed.). Geografia urbana crítica: teoria e método. São Paulo: Editora Contexto, 2018. p. 53-64. ). O lugar é o alicerce real e material de emprego do tempo, onde a vida se desenrola e onde se constroem as identidades, os laços de confiança, de reconhecimento e de pertencimento (Ribeiro, 2018RIBEIRO, F. V. A prática socioespacial da resistência. In: CARLOS, A. F. A.; SANTOS, C. S.; ALVAREZ, I. P. (ed.). Geografia urbana crítica: teoria e método. São Paulo: Editora Contexto, 2018. p. 53-64. ).

É importante salientar a importância desses vínculos afetivos ao território, tendo em vista que o corpo político coletivo se constitui em um circuito de afetos ( Safatle, 2016SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Editora Autêntica, 2016. ). É o medo como afeto central de coesão social que nos impele à lógica do condomínio pois há um receio do outro, do espaço público, do que vem de fora do núcleo familiar. Esse é um elemento central para se pensar a resiliência, visto que Wilches-Chaux (1993WILCHES-CHAUX, G. La vulnerabilidad global. In: MASKREY, A. (ed.). Los desastres no son naturales. Ciudad de Panamá: Red de Estudios Sociales en Prevención de Desastres en América Latina, 1993. p. 1-140. ) entende a vulnerabilidade a desastres como um sinônimo de insegurança: insegurança para a existência; insegurança frente à história cotidiana e insegurança frente ao mundo circundante. Em uma sociedade regida pela expectativa de que a ameaça do perigo possa se concretizar, as inseguranças individuais não somem, mas transformam-se, dificultando a construção de resiliência nos territórios.

A reorganização da estrutura da habitação e do espaço público são uma questão de trabalho, poder e segurança (Federici, 2019FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Editora Elefante, 2019. , p. 353). Nesse sentido, o aspecto geográfico das cidades se torna um facilitador para as vulnerabilidades de gênero, classe e raça. Ruas mal iluminadas e desertas, muros cada vez mais elevados e pessoas se fechando em suas casas. Essa é a lógica inversa de ocupação do espaço urbano. Se a rua é escura e vazia, há um receio em ocupá-la. Se o espaço não é ocupado, ele, então, se mantém vazio. E assim a violência e o medo se retroalimentam, gerando um circuito de afetos que nos leva à individualização e à desfragmentação enquanto um corpo coletivo. Ao mesmo tempo, quem mora em área de risco tem o medo como um afeto central, seja na convivência com a possibilidade de um desastre iminente - medo que se agrava consideravelmente em períodos chuvosos -, seja no receio de desapropriação pela interdição da moradia pelos órgãos competentes pela fiscalização.

Os afetos dizem respeito à “nossa capacidade de interação, nossa capacidade de movimento” (Federici, 2019FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Editora Elefante, 2019. , p. 338). As redes de sociabilidade são costuradas a partir do lugar e das relações afetivas que ali se estabelecem. É também no lugar onde se desenrolam e se erguem os fundamentos de uma resistência mais ampla, possibilitando a emergência de uma reflexão política e de estratégias que escalonam essas práticas a outras escalas. Ribeiro (2018RIBEIRO, F. V. A prática socioespacial da resistência. In: CARLOS, A. F. A.; SANTOS, C. S.; ALVAREZ, I. P. (ed.). Geografia urbana crítica: teoria e método. São Paulo: Editora Contexto, 2018. p. 53-64. ) chama atenção para o fato de que esse processo, por sua vez, não nem é linear nem evolucionista, pois apresenta rupturas e descontinuidades que são influenciadas pela conjuntura política. Ao mesmo tempo, essas práticas socioespaciais de resistência gravam no espaço uma gramática de luta que produz formas materiais. Ao ocuparmos o espaço de determinadas formas em detrimento de outras, fazendo circular determinados afetos em detrimento de outros, deixamos registrado esses modos de ocupação. Afinal, a concepção do materialismo histórico e dialético marxiano se debruçou sobre o idealismo hegeliano justamente para trazer luz à concretude da vida material. Ou seja, imaginamos o espaço na medida em que o produzimos, em uma relação dialética.

Nesse sentido, não basta apenas cartografar os conflitos, as áreas de risco e as práticas de resistência a eles relacionadas. Um pensamento-ação precisa entender e qualificar como essas práticas atuam para o impedimento, ainda que local e/ou temporalmente localizado, da reprodução da lógica mercantil do espaço e das formas de vida que ali se realizam. Não obstante, a emergência de sujeitos revolucionários coloca o capital em risco e, justamente por isso, a opressão dessas insurgências espaciais é a principal forma de contê-las. Exatamente por isso há uma produção espacial e ideológica neoliberal que tende a atomizar os sujeitos em núcleos cada vez menores, aglutinados pelo medo, retirando-os da (com)vivência dos espaços comunais.

Essa atomização do corpo coletivo em núcleos que não se comunicam dificulta a capacidade de mobilização, resposta, adaptação e resiliência. Em um cenário de deslizamento abrupto, idosos que moram sozinhos, pessoas com deficiência que necessitam de ajuda para mobilidade e famílias monoparentais chefiadas por mulheres com filhos pequenos são exemplos de condições que aumentam a vulnerabilidade frente ao desastre. Quando não há uma consciência individual das condições nas quais a comunidade ao redor está inserida, a capacidade de resposta na tentativa de evitar perdas de vidas humanas nesses eventos e a capacidade de recuperação e resiliência daquele território é reduzida.

Como afirma Federici (2019FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Editora Elefante, 2019. ), se a ideia de comuns tem algum sentido, deve ser a produção de nós mesmos como um sujeito comum, pois não há comuns sem comunidade. Não uma comunidade entendida como uma realidade cercada, um grupo de pessoas que se juntam por interesses concorrenciais que as separam de outros, “mas uma comunidade como uma qualidade de relações, um princípio de cooperação e responsabilidade” ( Federici, 2019FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Editora Elefante, 2019. , p. 318). Importante salientar, nesse ponto, que a resiliência socioecológica a desastres leva em consideração a interrelação social e ecossistêmica em diversos níveis. A resiliência socioecológica emergente da ecologia, portanto, não atomiza os sujeitos, sendo, essencialmente, uma categoria coletiva. Ao mesmo tempo, a resiliência que nega a sua categorização neoliberal - como no caso das cidades resilientes - parte de uma construção com centralidade no caráter social, e não infraestrutural. Não é a cidade e a construção que precisam ser resilientes, mas a sociedade e o ecossistema urbano.

Assim, torna-se possível pensar a resiliência como uma prática social, política e coletiva. Afinal, o porvir das cidades dependerá, em grande parte, dos conceitos constituintes do projeto de futuro construído pelos agentes relevantes na produção do espaço urbano ( Acselrad, 1999ACSELRAD, H. Discursos da sustentabilidade urbana. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais., n. 1, p. 79-90, 1999. https://doi.org/10.22296/2317-1529.1999n1p79
https://doi.org/10.22296/2317-1529.1999n...
). Sendo a resiliência um dos conceitos evocados atualmente, o presente trabalho buscou expor uma relação entre a “prática socioespacial de resistência” e a produção dos espaços comuns como uma via de superação da mercantilização do território a partir dos desastres. A proposta do artigo orienta-se no pensamento-ação que considera a luta pelo espaço como eixo central na construção de uma práxis estruturada na comunalidade . As práticas socioespaciais de resistência, que buscam questionar e tensionar a financeirização do espaço e da vida, apontam para uma direção de enfrentamento da condição de crise social e ecológica como essa que vivemos e para a construção de (socio)ecossistemas resilientes, e não de cidades resilientes - como apregoa o capital.

Agradecimentos

A autora agradece aos professores Jefferson Picanço e Ivana Jalowitzki pelos diálogos ao longo dos anos de orientação e que contribuíram para muitas reflexões desenvolvidas no presente artigo. A autora agradece, também, ao professor Elson Manoel Pereira, do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFSC, que ministrou a disciplina "Contribuições do pensamento Lefebvriano para o estudo do espaço urbano" em 2021/2. Os debates fomentados nesta disciplina foram fundamentais ao pensamento que orienta este trabalho e, inclusive, inspiraram sua escrita.

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Editado por

Editor do artigo:

Rodrigo Ramos Hospodar Felippe Valverde

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2022
  • Aceito
    10 Ago 2023
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