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Aplicação do teste M1-Alpha em sujeitos normais com baixa escolaridade: estudo piloto

Resumos

OBJETIVO: Verificar o desempenho de sujeitos normais com baixa escolaridade no teste M1-Alpha e obter parâmetros que possam ser utilizados na avaliação clínica de pacientes afásicos com baixa escolaridade, expostos a este teste. MÉTODOS: Foram selecionados 30 sujeitos normais de baixa escolaridade (um a quatro anos de estudo), com idade superior a 18 anos e inferior a 60 anos, sendo 15 do gênero masculino e 15 do gênero feminino. Todos foram submetidos à aplicação do teste M1-Alpha, que comporta entrevista semidirigida e provas controladas. Todas as respostas corretas receberam um ponto. Os dados foram submetidos a tratamento estatístico. RESULTADOS: Foi verificado um maior número de erros, bem como uma maior variabilidade nas respostas, em tarefas de escrita copiada, ditado, leitura em voz alta e compreensão escrita. CONCLUSÃO: A baixa escolaridade influencia o desempenho dos indivíduos nas tarefas de escrita copiada, ditado, leitura em voz alta e compreensão escrita. Foi possível obter dados de referência, que poderão ser utilizados na aplicação clínica do teste M1-Alpha em pacientes com baixa escolaridade.

Afasia; Linguagem; Avaliação; Escolaridade; Cognição


PURPOSE: To determine the performance of normal subjects with low educational level on the M1-Alpha test, and to obtain parameters for potential use in the clinical evaluation of aphasic patients with low educational level. METHODS: Participants were 30 normal subjects with low educational level (one to four years of schooling), 15 male and 15 female, with ages over 18 years and below 60 years. All subjects were submitted to the M1-Alpha test, which comprehends semi-directed interview and controlled tasks. One point was given for every correct answer. Data were statistically analyzed. RESULTS: It was verified a higher number of errors, as well as greater variability of responses, in the following tasks: copying, writing to dictation, reading comprehension, and reading aloud. CONCLUSION: Low educational level influences the performance of subjects on the tasks copying, writing to dictation, reading aloud, and reading comprehension. It was possible to obtain reference data for potential clinical application of the M1-Alpha test in patients with low educational level.

Aphasia; Language; Evaluation; Educational status; Cognition


ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE

Aplicação do teste M1-Alpha em sujeitos normais com baixa escolaridade: estudo piloto

Karin Zazo OrtizI; Flávia Pereira da CostaII

IDepartamento de Fonoaudiologia, Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP – São Paulo (SP), Brasil

IICurso de Fonoaudiologia, Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP – São Paulo (SP), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Karin Zazo Ortiz R. Botucatu, 802, Vl. Clementino, São Paulo (SP), Brasil, CEP: 04023-900. E-mail: karinortiz.fono@epm.br

RESUMO

OBJETIVO: Verificar o desempenho de sujeitos normais com baixa escolaridade no teste M1-Alpha e obter parâmetros que possam ser utilizados na avaliação clínica de pacientes afásicos com baixa escolaridade, expostos a este teste.

MÉTODOS: Foram selecionados 30 sujeitos normais de baixa escolaridade (um a quatro anos de estudo), com idade superior a 18 anos e inferior a 60 anos, sendo 15 do gênero masculino e 15 do gênero feminino. Todos foram submetidos à aplicação do teste M1-Alpha, que comporta entrevista semidirigida e provas controladas. Todas as respostas corretas receberam um ponto. Os dados foram submetidos a tratamento estatístico.

RESULTADOS: Foi verificado um maior número de erros, bem como uma maior variabilidade nas respostas, em tarefas de escrita copiada, ditado, leitura em voz alta e compreensão escrita.

CONCLUSÃO: A baixa escolaridade influencia o desempenho dos indivíduos nas tarefas de escrita copiada, ditado, leitura em voz alta e compreensão escrita. Foi possível obter dados de referência, que poderão ser utilizados na aplicação clínica do teste M1-Alpha em pacientes com baixa escolaridade.

Descritores: Afasia, Linguagem, Avaliação, Escolaridade, Cognição

INTRODUÇÃO

A linguagem pode ser definida como sendo uma função cerebral que utiliza elementos verbais, orais e gráficos para a comunicação humana(1). A afasia é um distúrbio no processamento de linguagem resultante de uma lesão cerebral(2).

A linguagem é consideravelmente influenciada pelo gênero, idade e escolaridade, além de outras características socioculturais(3,4). Em neurolinguística, a utilização de testes desenvolvidos em outros países para o diagnóstico pode dificultar a interpretação de resultados, devido a diferenças linguísticas, demográficas e culturais. Além disso, em um país como o Brasil, com grandes contrastes sociais, a escolaridade deve ser sempre considerada, uma vez que exerce forte influência nas habilidades linguísticas e cognitivas de indivíduos normais(3,4).

No Brasil, os testes mais utilizados para a avaliação de linguagem em afásicos são os testes da bateria Montreal-Toulouse e o Teste de Boston Para o Diagnóstico das Afasias. A performance da população brasileira saudável no teste de Boston é amplamente descrita, considerando-se fatores como idade e escolaridade(3). A influência da idade e da escolaridade também foi recentemente estudada na aplicação do protocolo MT Beta-86 Modificado da bateria Montreal-Toulouse(4).

Em relação ao teste M1-Alpha, um primeiro estudo realizado com 35 pacientes afásicos, na década de 1990(5), evidenciou que algumas pranchas de figuras e alguns estímulos linguísticos necessitavam de revisão. Mais recentemente, um estudo realizado com 35 sujeitos sem alterações neurológicas, além de evidenciar a necessidade de mudanças de estímulos e pictográficas, sugeriu que fossem acrescidas tarefas pragmáticas e discursivas ao instrumento(6). No Brasil, há um grupo de pesquisadores realizando a adaptação do protocolo Montreal-Toulouse de avaliação da afasia para o Português Brasileiro(7). No entanto, sabemos que estes estudos, se realizados seriamente, levam muitos anos, uma vez que é necessário o estudo das variáveis sociodemográficas, psicométricas e neuropsicológicas(8-10).

O teste M1-Alpha é um importante instrumento para o diagnóstico das afasias, especificamente para procedimentos rápidos, incluindo triagens em ambientes hospitalares. Apesar de terem sido realizados dois estudos, um com a população normal(6) e outro com a população afásica(5), faz-se necessário um trabalho específico com a população de baixo letramento. A escolaridade interfere em todas as funções cognitivas(11,12), incluindo a linguagem(4,13,14) e o teste M1-Alpha é composto por estímulos que poderiam ser processados com dificuldade pela população de baixo letramento(15,16), sobretudo pela presença de estímulos visuais(17,18).

Considerando que fatores individuais e socioculturais podem influenciar no desempenho em tarefas linguísticas, o objetivo desse estudo foi verificar o desempenho de indivíduos normais de baixa escolaridade no Teste M1-Alpha, a fim de obter parâmetros que possam ser utilizados na avaliação de pacientes afásicos da mesma escolaridade.

MÉTODOS

O estudo recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo sob o número 0816/08. Participaram 30 indivíduos, sendo 15 do gênero masculino e 15 do gênero feminino, acompanhantes de pacientes avaliados nos ambulatórios de Fonoaudiologia do Hospital São Paulo/UNIFESP. Os participantes tinham idade superior a 18 anos e inferior a 60 anos e não apresentavam histórico de distúrbios psiquiátricos ou neurológicos prévios, alcoolismo e/ou uso de drogas psicotrópicas. Tais dados foram obtidos por meio de um questionário. Considerando que a escolaridade pode interferir no desempenho de tarefas linguísticas, para foram selecionados apenas os sujeitos que possuíam de um a quatro anos de escolaridade. Foi realizado o convite para participação na pesquisa e, após concordância, os indivíduos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Em relação à caracterização da amostra, a casuística avaliada apresentou média de idade de 46,06 e desvio-padrão de 8,46 anos. A escolaridade média da população, em anos de estudo, foi de 3,4 e o desvio padrão de 0,8.

O teste M1-Alpha é utilizado para a obtenção de dados sobre os comportamentos linguísticos de pacientes afásicos. O instrumento comporta uma entrevista semi-dirigida provas controladas, que visam testar:

- Conversa espontânea (entrevista semi-dirigida): o sujeito deve responder a nove questões abertas, sendo que algumas delas podem ter subpartes. Apenas a compreensão oral é pontuada.

- Compreensão oral de palavras, frases simples e frases complexas: tarefa composta por 11 pranchas, com seis figuras dispostas em cada uma das cinco pranchas de palavras e quatro figuras em três pranchas de frases simples e em três pranchas relativas às frases complexas.

- Compreensão escrita de palavras, frases simples e frases complexas: são apresentadas 11 pranchas com seis figuras dispostas em cinco pranchas de palavras, quatro figuras em três pranchas de frases simples e quatro figuras em três pranchas de frases complexas. Para cada prancha apresentada, o investigador apresenta um estímulo escrito que deve ser lido silenciosamente e colocado sobre a figura correspondente.

- Escrita copiada: o sujeito deve copiar uma frase. A cópia fiel ou servil não é considerada como correta.

- Ditado: o investigador dita três palavras e uma frase e o sujeito deve escrevê-las.

- Leitura em voz alta: o sujeito deve ler um total 11 estímulos, sendo oito palavras e três frases.

- Repetição: o sujeito deve repetir um total de 11 itens, sendo oito palavras e três frases, que são transcritos pelo investigador de acordo com a emissão do sujeito.

- Denominação: o sujeito deve nomear 12 figuras.

Em todos os subtestes, foi atribuído um ponto para cada resposta correta. O teste foi aplicado seguindo-se estritamente as normas do instrumento em questão. Desta forma, apesar de ser prevista uma análise qualitativa dos erros, qualquer resposta diferente da prevista pelo instrumento foi considerada como um erro. Este critério foi o mesmo para os diferentes estímulos-palavras e frases, e não variou nas diferentes tarefas. Por exemplo, se ao escrever quintal, o sujeito escreveu "quintau", o estímulo foi considerado errado e a pontuação atribuída foi zero. Considerando que estávamos avaliando indivíduos normais, foi importante seguir tais diretrizes durante a avaliação, justamente para podermos chegar a notas de corte que realmente fossem mais próximas do desempenho real da população saudável. Assim, torna-se possível diferenciar o "efeito escolaridade" do "efeito lesão" nos pacientes afásicos de baixa escolaridade avaliados por este instrumento.

Após o computo do total de pontos de cada tarefa do teste foi realizada a análise estatística que visou identificar média, desvio-padrão, limites mínimos e limites máximos de pontuação, a fim de obtermos parâmetros que possam ser utilizados na avaliação de indivíduos afásicos de baixa escolaridade submetidos ao teste. Assim, verificamos quais tarefas parecem sofrer a interferência da escolaridade. Os resultados apresentados são referentes ao comparativo entre as tarefas segundo o número de erros. Para tanto foi aplicada a Análise de Variância (ANOVA) com medidas repetidas. O nível de significância considerado foi de 5%. Foram aplicadas comparações múltiplas de mínimos quadrados para verificar as diferenças.

RESULTADOS

Os resultados permitem-nos verificar o desempenho de indivíduos normais de baixa escolaridade no teste M1-Alpha (Tabela 1).

Ao compararmos as tarefas (Tabela 2), obtivemos a seguinte hierarquia, segundo os erros cometidos pelos indivíduos: Escrita copiada < Ditado < Compreensão escrita = Leitura em voz alta = Entrevista dirigida < Compreensão oral = Repetição < Denominação. Pudemos verificar que o maior número de erros ocorreu na tarefa de escrita copiada e o menor número de erros na tarefa de denominação. O desempenho geral dos participantes variou para todas as tarefas do teste (Figura1).


DISCUSSÃO

Inicialmente, em relação à escolaridade, seguimos a divisão das faixas proposta por estudos anteriores(3,4). Porém, neste estudo, investigamos especificamente a faixa de um a quatro anos de escolaridade.

Em relação à caracterização da amostra, podemos observar que a média da idade dos sujeitos avaliados e o desvio-padrão foram altos, o que sugere a dificuldade de encontrar participantes mais jovens com baixa escolaridade. Apesar de a amostra ter sido composta por voluntários de ambos os gêneros, não realizamos a análise segundo esta variável, pois inúmeros estudos anteriores já demonstraram que este aspecto não parece interferir nas tarefas linguísticas avaliadas neste estudo(3,4,14,18).

Observamos o desempenho dos indivíduos normais de baixa escolaridade nas diversas tarefas do teste M1-Alpha. Na entrevista dirigida, os participantes tiveram uma média alta de acertos e pouca variabilidade no padrão de respostas. A facilidade encontrada pelos indivíduos em responder às questões da tarefa se deve a composição da entrevista que contém perguntas simples e do cotidiano, tais como "Quantos anos você tem?", "Você tem bom apetite?". Trata-se de uma tarefa simples mesmo para os sujeitos com baixa escolaridade e, portanto, passível de ser aplicada em sujeitos afásicos.

Na tarefa de compreensão oral, os indivíduos obtiveram média alta de acertos, com baixo desvio-padrão (comparado com os de outras tarefas). Podemos observar que a maior quantidade de erros ocorreu em pranchas de frases complexas. Para apontar o estímulo correto, entre quatro que possuem praticamente os mesmos itens lexicais, há a necessidade de maior atenção à estrutura gramatical do que é necessário para compreender palavras e frases simples. Além da atenção, outro componente cognitivo necessário para execução desta tarefa é a retenção da frase por um curto tempo, por meio de utilização da memória operacional. Assim, ao ouvir a frase completa, o indivíduo tem que organizá-la momentaneamente e decodificar a sua estrutura sintática para indicar a figura correspondente. Desta forma, um erro na decodificação de um elemento da frase pode gerar falhas na decodificação da sentença. Já foi sugerido(19) que a alteração de memória de trabalho interfere no processamento linguístico e, consequentemente, na compreensão de sentenças, o que nos indica que uma falha de compreensão de frases complexas pode estar relacionada a uma falha na memória de curto prazo(20). Além disso, as tarefas que envolvem memória operacional podem sofrer interferência da escolaridade(21,22). O fato de as figuras do teste estarem em preto e branco, e as figuras relativas às frases complexas dependerem de um maior nível de detalhamento pode ter dificultado o reconhecimento. De fato, desenhos com linhas são mais difíceis para indivíduos normais com baixa escolaridade, pois a análise visual de representações bidimensionais são tarefas que requerem mais anos de aprendizado(18).

Quanto à tarefa de repetição, as frases foram os itens que mais contiveram erros. Neste instrumento, ao contrário do proposto por outros testes de afasia, não há repetição de pseudopalavras e não palavras, em que se pode avaliar, estritamente, o processamento fonológico. Há somente repetição de palavras curtas e longas, todas frequentes na língua portuguesa, e repetição de frases. Diferentemente de estudos que realizaram a avaliação com indivíduos de baixa escolaridade utilizando-se listas de pseudopalavras(22-24) em nosso estudo os participantes tiveram um bom desempenho, provavelmente porque puderam usar a rota lexical fonológica para realizar a repetição. O erro mais frequente ocorreu durante a repetição de frases, em que observamos que os sujeitos mantinham o significado das sentenças, porém modificavam sua estrutura, acrescentando uma palavra que não existia ou omitindo alguma palavra da frase. A dificuldade na memória operacional também pode explicar a dificuldade para a repetição de frases pelos sujeitos, devido à dificuldade em memorizar temporariamente as frases com seus componentes gramaticais na ordem exata e emiti-las em seguida.

Ao compararmos as tarefas de compreensão oral e repetição verificamos que os indivíduos obtiveram uma média de acertos alta e um baixo desvio-padrão em ambas as tarefas, conseguindo realizar as provas de modo satisfatório. Em um estudo realizado somente com sujeitos analfabetos normais(23), os autores observaram maiores dificuldades nas tarefas de repetição e compreensão oral. Comparativamente ao presente estudo, cabe ressaltar que além da diferença de escolaridade, foram utilizados instrumentos distintos. No estudo anterior(23) foi utilizado o teste MT Beta 86 modificado, em que há um grande número de frases com estrutura não-canônica e em voz passiva, que provavelmente dificultaram a compreensão dos indivíduos analfabetos. Além disso, o teste MT Beta 86 contempla a repetição de pseudopalavras e não palavras.

A repetição de não palavras é realizada pela rota fonológica, responsável pela codificação fonêmica. Sabendo que ela não é tão desenvolvida em sujeitos analfabetos ou com baixa escolaridade(22), podemos supor que, ao serem expostos a repetição de não palavras, os indivíduos realizariam a repetição pela rota lexical, que faz a ligação direta com o sistema semântico. Isso pode ter ocasionado os erros dos sujeitos analfabetos durante a aplicação do teste MT Beta 86 modificado. A inexistência de repetição de pseudopalavras e não palavras no teste M1-Alpha, que contém somente estímulos presentes em nosso meio, facilitou a realização desta tarefa por parte dos indivíduos com baixa escolaridade avaliados neste estudo.

Os indivíduos de baixa escolaridade apresentaram dificuldades para realizar o subteste de compreensão escrita. Nessa tarefa, os indivíduos têm que parear o que está escrito com uma determinada figura. As frases complexas foram as que os sujeitos cometeram mais erros. A dificuldade de processamento visual, comumente observada nesta população(17), pode ter acarretado um maior número de erros nesta tarefa. Por outro lado, nesta prova alguns indivíduos obtiveram pontuação mínima por não conseguirem ler. As dificuldades verificadas durante a realização deste estudo, muitas vezes também ocorrem na prática clínica, ou seja, os sujeitos referem sabem ler e escrever, porém não conseguem realizar adequadamente a tarefa.

Agrupamos os participantes de um a quatro anos de escolaridade. Em algumas situações, indivíduos que referiram, por exemplo, dois anos de estudo formal apresentaram melhor desempenho em tarefas de leitura e escrita do que indivíduos com quatro anos de estudo formal. Diferenças na escolarização, hábitos ou uso social da leitura e da escrita podem justificar tais diferenças. Assim, pacientes que refiram saber ler e escrever previamente à ocorrência da lesão cerebral devem ser submetidos às tarefas de leitura e de escrita durante a avaliação. Apenas pacientes que refiram não saber ler e escrever não devem ser expostos a tais procedimentos.

Deste modo, em nosso estudo, as dificuldades observadas nas tarefas de compreensão escrita podem estar relacionadas às dificuldades de processamento do componente visual, de decodificação dos grafemas e lexemas e à própria falha na compreensão da leitura. Dificuldades de indivíduos com baixa escolaridade na prova de compreensão escrita já foram observadas em estudos anteriores(3,13). Além disso, a população deste estudo pode ser considerada de analfabetos funcionais. Por definição, é considerada analfabeta funcional a pessoa que, mesmo tendo freqüentado a escola, não tem as habilidades de leitura, de escrita e de cálculo necessárias para viabilizar seu desenvolvimento pessoal e profissional(25). Dificuldades de compreensão do conteúdo escrito são previstas e já foram observadas nessa população(26,27).

As médias de acertos para as provas de compreensão oral e compreensão escrita não foram muito discrepantes, porém o desvio-padrão foi bem mais elevado na prova de compreensão escrita. Esse fato pode ter sido ocasionado pela maior dificuldade na decodificação adequada do estímulo que deveria ser lido ao invés de apenas ser ouvido, uma vez que as respostas nas duas tarefas é a mesma, ou seja, a designação da figura correspondente ao item solicitado. Outro fator importante para diferenciar as duas provas é que na compreensão oral, o indivíduo necessita apenas ouvir a mensagem, tarefa que realiza diariamente. Já para realizar a prova de compreensão escrita é necessário que o indivíduo saiba ler, o que requer um ambiente formal para aprendizagem e hábitos de leitura para sua proficiência. Menos anos de aprendizagem formal ou nenhum hábito de leitura e escrita após o término deste aprendizado provavelmente geraram dificuldades de compreensão do conteúdo lido.

Alguns indivíduos também apresentaram um desempenho ruim na prova de escrita copiada, em que necessitavam copiar um único estímulo (frase simples), e tinham que transformá-lo de letra de imprensa para letra cursiva. O erro na cópia da frase pode ter ocorrido pela dificuldade dos participantes em reconhecer letras e buscar o correspondente alográfico, provavelmente pela falta de domínio de todas as formas de grafia, por transcreverem algumas palavras em letra cursiva e outras em letra de imprensa ou pela falta de acentuação gráfica de uma palavra presente na frase. Dificuldades de acentuação são relatadas na literatura(3). Ressaltamos que a grande parte dos erros se deve à dificuldade de uso das formas alográficas, e a maioria dos participantes mesclou o uso da letra cursiva com a letra de imprensa.

Quanto à prova de ditado, mais uma vez foi obtida a pontuação mínima. Este fato não se deve somente a dificuldades para a escrita, mas também pelo erro na escrita de todos os estímulos. Nesta tarefa os participantes tinham que escrever três palavras e uma frase simples. As palavras são curtas e frequentes na língua portuguesa, porém remetem a uma complexidade na escolha do grafema a ser utilizado, pois são palavras com fonemas que possuem diversas representações grafêmicas. Assim, indivíduos com baixa escolaridade, diante da possibilidade de várias opções de grafemas para um mesmo fonema, cometeram mais erros, considerados aqui como erros ortográficos. Outro erro comum foi a omissão do acento gráfico. Contudo, a maior dificuldade ocorreu na escrita da frase, em que os erros foram decorrentes da falta do plural e também da provável não familiaridade com algumas palavras, o que gerou falha na seleção dos grafemas. A dificuldade de sujeitos com baixa escolaridade na realização de provas de ditado já foi observada em outros estudos(3,4).

Comparando os resultados obtidos nas provas de cópia e ditado, curiosamente, observamos que durante a cópia os indivíduos apresentaram mais erros. Devemos considerar que, além da dificuldade com as formas alográficas, ao pontuarmos a cópia correta da frase com um ponto, deixamos de identificar, eventualmente, apenas pelo escore, palavras que tenham sido copiadas corretamente. Ou seja, a chance de erros foi maior do que na prova de ditado, em que foram ditadas quatro palavras e uma frase. Sabemos que o teste M1-Alpha é um dos testes mais simples para a avaliação da afasia e que muitas vezes o número reduzido de estímulos pode gerar dificuldades de comparações fidedignas, neste caso, o da escrita, pela entrada auditiva (ditado) e da escrita pela entrada visual (cópia). Da mesma forma, nossos resultados também sugerem que a pontuação do teste original deva ser revista e modificada, a fim de proporcionar uma melhor análise quali-quantitativa, provavelmente atribuindo-se um ponto para cada item escrito corretamente.

Na tarefa de leitura em voz alta, observamos grande variação na pontuação dos indivíduos, quanto ao mínimo e ao máximo. Neste teste há somente a leitura de palavras curtas e longas, algumas de uso frequente na língua portuguesa e outras menos frequentes, além de leitura de frases simples e complexas. Os erros foram mais comuns em leitura de palavras de baixa frequência e leitura de frases complexas. A não familiaridade com algumas palavras presentes nas frases ou a baixa frequência de ocorrência de algum elemento frasal na vivência do indivíduo, como as palavras de classe fechada (preposições e artigos) ou verbos com conjugações não utilizadas rotineiramente provavelmente ocasionou o erro na leitura das frases do teste. Sabemos também que quanto maior o número de anos de escolaridade, melhor o desenvolvimento de competências metalinguísticas e metacognitivas (como o processamento fonológico), que é um fator importante para a leitura. Como os sujeitos do estudo têm de um a quatro anos de escolaridade, era esperado que essas competências não estivessem completamente desenvolvidas e isso pode levar a dificuldades na realização de tarefas que excluem informações contextuais(28,29).

Na prova de denominação ou nomeação, observamos uma média alta de acertos, que pode ser explicada pelo fato de que no teste M1-Alpha são apresentadas poucas figuras, todas muito familiares e de alta frequência de ocorrência em nosso meio. Tal apresentação permite fácil acesso lexical pelo sujeito. O item que conteve maior número de erros por estímulo foi a da orelha, dado já observado em um estudo prévio(7), em que os autores hipotetizaram haver um problema no desenho da prancha.

Para Moreira(30), as deficiências observadas em indivíduos com baixa escolaridade são uma consistente correlação entre baixo nível de leitura e baixa compreensão auditiva. No entanto, os indivíduos desse estudo mostraram maiores dificuldades em tarefas de leitura e escrita e menores dificuldades em tarefas que exigem compreensão auditiva. Isto pode ser explicado pelo maior uso da linguagem oral em relação à gráfica, uma vez que o uso da linguagem oral acontece diariamente, e é necessário somente um ambiente estimulante para que o indivíduo aprenda a falar. Quanto à aquisição da leitura e da escrita, o indivíduo precisa ser inserido em um aprendizado formal e há a necessidade de anos de estudo e de hábitos específicos para que a proficiência se desenvolva.

Portanto, verificamos que as tarefas mais influenciadas pela escolaridade foram aquelas que exigem habilidades metalinguísticas e metacognitivas. Os sujeitos com baixa escolaridade são menos expostos à aprendizagem formal, ou seja, a atividades de leitura em voz alta, ditado, escrita copiada e compreensão escrita. Os resultados do presente estudo confirmam que a escolaridade interfere no desempenho de diversas habilidades linguísticas.

Limitações do estudo

Trata-se de um estudo piloto em que buscamos obter parâmetros de normalidade que pudessem ser utilizados na avaliação de linguagem em indivíduos afásicos de baixa escolaridade submetidos ao teste M1-Alpha. Não foram aplicados nesta pesquisa, outros testes cognitivos que permitissem comparação entre o desempenho linguístico e o desempenho das demais funções cognitivas em relação à escolaridade. Além disso, tendo o teste sido aplicado em sua forma original, não foi feita uma análise qualitativa dos erros, uma vez que se atribuiu um ponto para cada item/estímulo do teste. Ainda em relação a este aspecto, nas tarefas de repetição e leitura em voz alta, pelas normas de pontuação do teste os estímulos palavras (número total oito) não puderam ser diferenciados das frases (número total três). Portanto, foi feita apenas a análise quantitativa dos acertos. O estudo também evidenciou necessidade de revisão da pontuação do instrumento. Isto poderá originar melhora na avaliação quali-quantitativa quando houver a utilização do teste. Estes aspectos deverão ser investigados em estudos posteriores.

CONCLUSÃO

Neste estudo evidenciamos a interferência da escolaridade nas tarefas de escrita copiada, ditado, leitura em voz alta e compreensão gráfica do teste M1-Alpha. Com este estudo conseguimos obter valores de referência da população normal, que poderão ser considerados na avaliação de indivíduos afásicos de baixa escolaridade que forem submetidos a este teste.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo apoio concedido para realização dessa pesquisa, sob o processo número 08/54937-5.

Recebido em: 1/2/2011

Aceito em: 12/7/2011

Trabalho realizado no Núcleo de Investigação Fonoaudiológica em Neuropsicolinguistica, Departamento de Fonoaudiologia, Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP – São Paulo (SP), Brasil.

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  • Endereço para correspondência:
    Karin Zazo Ortiz
    R. Botucatu, 802, Vl. Clementino, São Paulo (SP), Brasil, CEP: 04023-900.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2011

    Histórico

    • Recebido
      01 Fev 2011
    • Aceito
      12 Jul 2011
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