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Habilidades de processamento auditivo e consciência fonológica em crianças de cinco anos com e sem experiência musical

Resumos

OBJETIVOS: Investigar as relações entre experiência musical, habilidades de processamento auditivo e de consciência fonológica de crianças de 5 anos de idade com e sem experiência musical. MÉTODOS: Participaram 56 sujeitos de ambos os gêneros, na faixa etária de 5 anos, sendo 26 do Grupo Estudo, composto por crianças com experiência musical, e 30 do Grupo Controle, composto por crianças sem experiência musical. Todos os participantes foram avaliados por meio da Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo e do Teste de Consciência Fonológica, e os dados foram analisados estatisticamente. RESULTADOS: Observou-se diferença entre os resultados obtidos nos testes de memória sequencial verbal e memória sequencial não-verbal com quatro instrumentos, tarefas de identificação de rimas, síntese e exclusão fonêmica. A análise de regressão logística múltipla demonstrou que, com exceção do teste de memória sequencial para sons verbais com quatro sílabas, a diferença de desempenho observada nos testes e tarefas teve relação com a experiência musical dos sujeitos. CONCLUSÃO: A experiência musical promove o aprimoramento de habilidades auditivas e metalinguísticas de crianças de 5 anos.

Audição; Percepção auditiva; Linguagem infantil; Música; Testes auditivos


PURPOSE: To investigate the relations between musical experience, auditory processing and phonological awareness of groups of 5-year-old children with and without musical experience. METHODS: Participants were 56 5-year-old subjects of both genders, 26 in the Study Group, consisting of children with musical experience, and 30 in the Control Group, consisting of children without musical experience. All participants were assessed with the Simplified Auditory Processing Assessment and Phonological Awareness Test and the data was statistically analyzed. RESULTS: There was a statistically significant difference between the results of the sequential memory test for verbal and non-verbal sounds with four stimuli, phonological awareness tasks of rhyme recognition, phonemic synthesis and phonemic deletion. Analysis of multiple binary logistic regression showed that, with exception of the sequential verbal memory with four syllables, the observed difference in subjects' performance was associated with their musical experience. CONCLUSION: Musical experience improves auditory and metalinguistic abilities of 5-year-old children.

Hearing; Auditory perception; Child language; Music; Hearing tests


ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE

Habilidades de processamento auditivo e consciência fonológica em crianças de cinco anos com e sem experiência musical

Júlia EscaldaI; Stela Maris Aguiar LemosII; Cecília Cavalieri FrançaIII

IPrograma de Pós-Graduação (Mestrado) em Música, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – Belo Horizonte (MG), Brasil; Curso de Fonoaudiologia, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – Belo Horizonte (MG), Brasil

IICurso de Fonoaudiologia, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – Belo Horizonte (MG), Brasil

IIIPrograma de Pós-Graduação (Mestrado) em Música, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – Belo Horizonte (MG), Brasil

Enderenço para correspondência Endereço para correspondência: Júlia Escalda R. Oliveira, 140, Cruzeiro, Belo Horizonte (MG), Brasil, CEP: 30310-150. E-mail: juescalda@gmail.com

RESUMO

OBJETIVOS: Investigar as relações entre experiência musical, habilidades de processamento auditivo e de consciência fonológica de crianças de 5 anos de idade com e sem experiência musical.

MÉTODOS: Participaram 56 sujeitos de ambos os gêneros, na faixa etária de 5 anos, sendo 26 do Grupo Estudo, composto por crianças com experiência musical, e 30 do Grupo Controle, composto por crianças sem experiência musical. Todos os participantes foram avaliados por meio da Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo e do Teste de Consciência Fonológica, e os dados foram analisados estatisticamente.

RESULTADOS: Observou-se diferença entre os resultados obtidos nos testes de memória sequencial verbal e memória sequencial não-verbal com quatro instrumentos, tarefas de identificação de rimas, síntese e exclusão fonêmica. A análise de regressão logística múltipla demonstrou que, com exceção do teste de memória sequencial para sons verbais com quatro sílabas, a diferença de desempenho observada nos testes e tarefas teve relação com a experiência musical dos sujeitos.

CONCLUSÃO: A experiência musical promove o aprimoramento de habilidades auditivas e metalinguísticas de crianças de 5 anos.

Descritores: Audição, Percepção auditiva, Linguagem infantil, Música, Testes auditivos

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento musical depende das experiências acústicas vivenciadas, incluindo discriminação de sons, habilidade para perceber temas musicais, sensibilidade para ritmos, texturas e timbre, e habilidade para produzir ou reproduzir música(1). Por meio da audição, o indivíduo adquire conhecimentos sobre o mundo físico a sua volta e aprende as primeiras palavras. Os comportamentos auditivos são uma das condições favoráveis para aquisição e desenvolvimento da linguagem(2).

Estudos têm buscado investigar os mecanismos neurais envolvidos no processamento e produção de estímulos linguísticos como a fala e não-linguísticos como a música. Um estudo recente revela que existem diferenças na atividade neural das áreas de associação auditiva em músicos profissionais, relacionadas com o inicio precoce do treinamento musical(3). Existem evidências de que existem áreas cerebrais que se sobrepõem no processamento de estímulos musicais e linguísticos(4). A experiência musical parece exercer influência na estrutura e reorganização cerebral(5) e no desenvolvimento cognitivo, auditivo e linguístico de crianças(6).

Sabe-se da importância da integridade auditiva para o desenvolvimento da consciência fonológica e da leitura e escrita(7,8). Já foi demonstrado que a experiência musical favorece habilidades auditivas de discriminação de frequências e duração(9,10) e reconhecimento de fala no ruído(11) em adultos e nas habilidades de ordenação de frequências(12) e figura-fundo(13) em crianças. Além disso, existem evidências de que percepção musical, consciência fonológica e desenvolvimento precoce da leitura estejam correlacionadas em crianças de 4 e 5 anos(14). Achados semelhantes também demonstraram que crianças com alta aptidão musical obtiveram melhor performance que as crianças com baixa aptidão musical em tarefas verbais de consciência fonológica(15). Além disso, estudos com pré-escolares demonstraram desempenho superior de crianças que receberam quatro meses de instrução musical no desenvolvimento da habilidade de segmentação fonêmica quando comparadas às crianças que não foram expostas a aulas de música(16).

Atualmente, a atividade musical tem sido amplamente praticada na educação infantil. Alguns esforços têm sido feitos no sentido de verificar a influência da experiência musical em outros domínios cognitivos, possibilitando aquisição de novas habilidades, inclusive auditivas e linguísticas. No entanto, é ainda escassa a literatura que investiga habilidades auditivas e de consciência fonológica na mesma população, especialmente em crianças.

Dessa forma, o presente estudo foi delineado com o objetivo de investigar as relações entre experiência musical, habilidades de processamento auditivo e de consciência fonológica de crianças de 5 anos de idade com e sem experiência musical. Além disso, buscou-se comparar os resultados da Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo e Teste de Consciência Fonológica entre grupos de crianças de 5 anos com e sem experiência musical.

MÉTODOS

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP/UFMG) sob número 641/07. Os responsáveis pelas crianças assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Caracteriza-se como de delineamento descritivo-comparativo, com amostra não-probabilística selecionada por tipicidade, de recorte transversal, entre grupos de crianças com e sem experiência musical. Foi realizado em escolas de música especializadas e escolas regulares (sem aula de música no currículo), todas localizadas na cidade de Belo Horizonte.

Na primeira etapa do estudo foi aplicado um questionário aos pais com objetivo de selecionar os participantes e delinear o perfil da amostra. Os seguintes critérios de inclusão foram considerados: ter idade entre 5 anos e 5 anos e 11 meses; apresentar reflexo cócleo-palpebral (RCP) presente; não apresentar evidências ou histórico de alterações neuropsicomotoras, alterações auditivas, de fala ou linguagem.

A pesquisa do RCP foi realizada como parte da Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo e utilizada como critério de inclusão dos participantes, uma vez que Rabinovich(17) observou que o RCP é encontrado em crianças com audição normal ou com perdas auditivas até o nível moderado. Em casos de perdas auditivas moderadas não recrutantes, severas e profundas, e em casos de crianças com presença de líquido em orelha média, o RCP não é observado. A pesquisa do RCP foi considerada em conjunto com o relato de ausência de alteração auditiva referido no questionário do estudo pelos pais ou responsáveis dos participantes que compuseram a amostra. Nenhuma criança participante apresentou ausência do RCP, entretanto, uma criança cujos pais relataram apresentar alteração auditiva foi excluída do estudo.

Os dados obtidos a partir do questionário foram analisados por meio do teste estatístico do Qui-quadrado com a finalidade de comparar as variáveis categóricas entre os grupos. Por meio dessa análise, foram identificadas três variáveis que apresentaram diferença entre os dois grupos, a saber: escolaridade materna, idade de início de escolarização e hábito de ouvir música clássica, que foram incluídas como variáveis explicativas na análise de regressão juntamente às variáveis gênero e grupo. Os resultados da análise estatística são detalhados no item referente aos resultados.

Na segunda etapa, foram avaliadas as habilidades de processamento auditivo e consciência fonológica dos participantes por meio dos seguintes procedimentos de avaliação:

1. Avaliação Fonológica da Criança (AFC)(18): realizada a fim de garantir que as respostas dadas aos testes verbais não sofressem interferência de possíveis alterações de fala ou linguagem.

2. Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo (ASPA): composta pela Pesquisa do RCP por meio de sons instrumentais(17,19), Teste de Localização Sonora em cinco direções (LS), Teste de Memória Sequencial Verbal (MSV) com três e quatro sílabas; Teste de Memória Sequencial para Sons Não-Verbais (MSNV) com três e quatro instrumentos. Os resultados da ASPA foram analisados segundo os critérios de referência da literatura(20,21).

3. Teste de Consciência Fonológica (TCF)(22): tarefas de síntese silábica, síntese fonêmica, reconhecimento de rimas, segmentação fonêmica, e exclusão fonêmica. Os resultados das tarefas do TCF foram analisados de acordo com os critérios de referência da literatura, com pontuação de zero a cinco acertos, ou seja, foram contados os números de acertos de cada participante em cada uma das tarefas do teste compostas por cinco itens.

Foram realizadas 71 avaliações, das quais 56 foram selecionadas para análise. As perdas ocorridas foram decorrentes do não cumprimento dos critérios de inclusão tais como presença de alterações de fala observadas na durante a avaliação fonológica da criança ou alterações auditivas relatadas pelos pais no questionário. As crianças que foram diagnosticadas com alguma alteração fonoaudiológica foram encaminhadas ao serviço de saúde. Os participantes selecionados foram distribuídos nos seguintes grupos:

Grupo Estudo: 30 participantes (20 meninas e 10 meninos) matriculados em escolas de música especializadas. Foram selecionadas duas escolas com longa história de ensino formal de música em Belo Horizonte para a realização do estudo. Ambas atendem crianças, jovens e adultos e contam com professores com formação específica em Música (Bacharelado e Licenciatura). As escolas oferecem às crianças de 5 anos uma aula de musicalização/iniciação musical semanal com uma hora de duração e também aulas de instrumentos musicais e canto coral opcionalmente. Os conteúdos musicais abordados nas aulas de iniciação musical abrangem os parâmetros de duração, altura, timbre, intensidade, caráter expressivo, iniciação da estruturação e notação musical. As atividades são estruturadas de forma a abordar os conteúdos musicais de forma lúdica e condizente com a faixa etária das crianças. Os participantes do Grupo Estudo participavam regularmente das aulas de musicalização infantil e tinham pelo menos quatro meses de experiência musical em aula de musicalização infantil, embora este não tenha sido um critério de inclusão no grupo.

Grupo Controle: 26 participantes (13 meninas e 13 meninos) matriculados em escolas regulares que não possuem aulas de música no currículo. As escolas foram selecionadas a fim de garantir a similaridade dos cenários de estudo, desde que não possuíssem aulas de musicalização em seu currículo. Dessa forma, optou-se por escolas regulares de pequeno porte que oferecessem aulas para grupos reduzidos de alunos, entre sete e 12 crianças, tal como as escolas de música. Foi necessária a seleção de cinco escolas regulares a fim de selecionar os participantes do grupo controle. Todas essas escolas oferecem recreação no período da manhã e aulas regulares no período da tarde. Dados adicionais sobre o perfil musical dos participantes do estudo foram levantados por meio da aplicação do questionário de caracterização da amostra. O questionário levantou questões sobre o hábito de ouvir música das crianças, o local onde elas ouvem música com mais frequência, os gêneros musicais habitualmente ouvidos, a participação em aulas de musicalização na escola regular e em escola especializada, a participação em aulas de instrumentos musicais assim como o tempo de participação em aulas de musicalização. Os dados obtidos a partir desse questionário foram analisados por meio do teste do Qui-Quadrado e, em relação às variáveis de perfil musical dos participantes, observou-se diferença entre os dois grupos em relação ao hábito de ouvir música clássica, que foi incluído como variável explicativa na análise de regressão.

Para análise dos resultados da ASPA e do TCF utilizou-se o teste estatístico não-paramétrico Mann-Whitney a fim de comparar o desempenho entre grupos. A fim de estimar a associação entre os resultados da ASPA e do TCF e as variáveis explicativas foram então realizados procedimentos de regressão logística múltipla. Foram incluídos nos modelos como variáveis dependentes os resultados da ASPA e do TCF e como variáveis explicativas aquelas selecionadas na análise dos dados do questionário (escolaridade materna, idade de início de escolarização, hábito de ouvir música clássica, gênero e grupo). As variáveis dependentes foram transformadas em variáveis binárias de acordo com o número de acertos dos participantes nos testes.

Os dados foram processados e analisados utilizando-se o pacote estatístico SPSS 13.0. Foi adotado nível de significância de 95% (p≤0,05).

RESULTADOS

A análise do questionário revelou diferença entre os grupos para as seguintes variáveis: escolaridade materna (p=0,015), idade de início de escolarização (p=0,021) e hábito de ouvir música clássica (p=0,030). Devido à diferença, essas foram consideradas as variáveis explicativas, incluídas na análise de regressão juntamente com as variáveis gênero e grupo.

Todos os participantes apresentaram RCP presente e acertaram todos os itens da tarefa de síntese silábica do TCF. Foram obtidos os resultados de participantes do Grupo Controle e do Grupo Estudo nos testes da ASPA e tarefas do TCF (Tabela 1).

O Grupo Estudo obteve maior média de acertos nos testes de memória sequencial verbal e não-verbal com quatro sons e nas tarefas de reconhecimento de rimas, síntese fonêmica e exclusão fonêmica, na comparação com o grupo controle. A associação dos resultados nesses testes, a participação em aulas de música e as demais variáveis explicativas foram testadas por meio do modelo de regressão logística (Tabela 2).

Os resultados obtidos nos testes de memória sequencial não-verbal com quatro sons e nas tarefas de reconhecimento de rimas, síntese fonêmica e exclusão fonêmica apresentaram diferença somente quanto à experiência musical dos participantes. Isso significa que a única potencial variável considerada nesse estudo capaz de explicar os resultados obtidos pelos participantes nos testes e tarefas anteriormente citados foi a experiência musical. Significa ainda dizer que os participantes que possuem experiência musical têm maiores chances de alcançar número superior de acertos nessas tarefas. Participantes do Grupo Estudo possuem chances 9,31 vezes maiores de obter dois ou três acertos no teste de memória sequencial não-verbal quando comparados com participantes do Grupo Controle. Crianças com experiência musical possuem maiores chances de obter três, quatro ou cinco acertos nas tarefas de reconhecimento de rimas, síntese fonêmica e segmentação fonêmica (12,46; 30,39 e 7,16 vezes mais altas, respectivamente) quando comparadas a crianças sem experiência musical. A única variável dependente que não pode ser explicada exclusivamente pela experiência musical dos participantes foi o teste de memória sequencial verbal.

DISCUSSÃO

Os resultados do presente estudo demonstraram que o desempenho de ambos os grupos foi o esperado para os testes de localização sonora, memória sequencial verbal e não-verbal com três sons como descrito na literatura(20) para crianças de 5 anos. Crianças com experiência musical obtiveram desempenho superior nos testes de memória sequencial verbal e não-verbal com quatro instrumentos e nas tarefas de reconhecimento de rimas, síntese e exclusão fonêmica, com diferença estatística.

A análise de regressão demonstrou que, com exceção do teste de memória sequencial verbal com quatro sílabas, tal diferença associou-se à experiência musical dos participantes. Em relação aos testes de memória sequencial verbal e não-verbal com quatro instrumentos, os achados deste estudo corroboram resultados de outras pesquisas brasileiras, nas quais sujeitos com experiência musical obtiveram melhor desempenho em tarefas de reconhecimento de padrões de frequência(9,10,12) quando comparados a sujeitos sem experiência musical.

Verificou-se que sujeitos com experiência musical apresentaram chances maiores de acertar duas ou três sequências de quatro sons no teste de memória sequencial não-verbal com quatro instrumentos, quando comparadas às crianças sem experiência musical. Espera-se que somente a partir dos seis anos, crianças acertem duas sequências de quatro sons nessa tarefa(20). No presente estudo, portanto, os participantes do Grupo Estudo obtiveram desempenho semelhante ao de crianças de seis anos, o que foi determinado pela sua experiência musical.

Em relação à tarefa de reconhecimento de rimas, os achados do presente estudo estão em consonância com pesquisas que sugerem que atividades musicais devem ser desenvolvidas com a colaboração de educadores e professores de música em sala de aula a fim de promover a estimulação da consciência fonológica(23). Muitas tarefas do aprendizado da leitura musical envolvem recitar versos de canções e identificar palavras que rimam e substituí-las por outras com os mesmos padrões sonoros(24). A influência mútua entre experiência musical e habilidades de reconhecimento de rimas é uma explicação possível para o achado do presente estudo. Crianças que estudam música são expostas com maior frequência a esse tipo de estímulo, e têm, portanto, maior facilidade em reconhecer rimas.

Todos os participantes realizaram corretamente os cinco itens da tarefa de síntese silábica do TCF e a maioria não realizou corretamente nenhum dos itens da tarefa de segmentação fonêmica. Tais resultados indicam que a consciência silábica está presente em idades pré-escolares e independe do nível de escolarização como o já difundido em estudos anteriores(25,26).

Estudos realizados anteriormente observaram que a experiência escolar da criança exerce influência sobre o desenvolvimento das habilidades de consciência fonológica e que algumas habilidades, tal como a consciência fonêmica, são aprendidas com ensino formal especificamente no ambiente escolar(27,28). A análise do questionário do presente estudo revelou que os participantes do Grupo Controle possuem uma diferença significativa de cerca de um ano a mais de escolarização que as crianças do Grupo Estudo. Dessa forma, seria esperado que as crianças do Grupo Controle obtivessem resultados superiores quando comparados aos participantes do Grupo Estudo em tarefas de consciência fonêmica. Entretanto, os participantes do Grupo Estudo obtiveram resultados superiores nas tarefas de síntese fonêmica e de exclusão fonêmica, que se associaram com significância estatística à experiência musical. A experiência musical favoreceu, portanto, o desenvolvimento das habilidades de síntese e exclusão fonêmica das crianças estudadas. Contudo, observou-se que em ambos os grupos as médias de acertos na tarefa de segmentação fonêmica foram baixas. Tal achado é indicativo de que uma habilidade complexa como esta não sofre influência somente da experiência musical dos sujeitos, uma vez que está também fortemente relacionada com a experiência escolar das crianças.

Os resultados das tarefas de síntese e exclusão fonêmica corroboram estudos que verificaram correlação significativa entre habilidade/experiência musical, consciência fonêmica e desenvolvimento de leitura em crianças em idades pré-escolares(14-16,29). Pode-se inferir que a similaridade das habilidades necessárias para a análise e organização dos estímulos musicais seja um fator que dá suporte à análise e organização dos sons da fala, e contribui para a realização de tarefas de consciência fonológica.

Além disso, sabe-se que habilidades de consciência fonológica dependem, em certa medida, de habilidades auditivas(7,8) e que estão relacionadas com o desenvolvimento de leitura(23,24). Em conjunto, os resultados observados nas tarefas da ASPA e do TCF indicam que habilidades auditivas envolvidas na percepção musical podem também estar envolvidas na aquisição e no desenvolvimento das habilidades de consciência fonológica. Além disso, o efeito da experiência musical poderá ser observado nas habilidades posteriores de leitura e escrita.

Pode-se dizer que a experiência musical fornece subsídios para a manipulação sonora de estímulos linguísticos e não-linguísticos. Sendo assim, pode ser utilizada como forma de otimizar e aperfeiçoar aspectos do processamento auditivo e de consciência fonológica e deve ser considerada fator de proteção em relação a distúrbios da comunicação humana.

CONCLUSÃO

Os achados desse estudo representam uma das muitas possibilidades de trabalho em conjunto e parceria entre as áreas de Educação Musical e Fonoaudiologia a fim de avançar na pesquisa científica multidisciplinar. A experiência musical foi o fator que determinou as diferenças observadas em relação às habilidades de processamento auditivo e de consciência fonológica entre grupos de crianças de 5 anos com e sem experiência musical. No presente estudo, crianças de 5 anos com experiência musical apresentaram desempenho semelhante ao de crianças de 6 anos no teste de memória sequencial não-verbal com quatro instrumentos. A prática musical, além de seu papel cultural, também promove o aprimoramento de habilidades auditivas e metalinguísticas de crianças de 5 anos.

Recebido em: 16/8/2010

Aceito em: 9/12/2010

Trabalho realizado no Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – Belo Horizonte (MG), Brasil, com bolsa concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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  • Endereço para correspondência:
    Júlia Escalda
    R. Oliveira, 140, Cruzeiro, Belo Horizonte (MG), Brasil, CEP: 30310-150.
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2011

    Histórico

    • Recebido
      16 Ago 2010
    • Aceito
      09 Dez 2010
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