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A construção coletiva de um guia para cuidadores de pacientes acamados: relato de experiência

Resumos

Trata-se de estudo descritivo-exploratório de natureza qualitativa que adota como método de coleta de dados a observação-participante dos processos de cuidados à saúde realizados pelos cuidadores de pacientes acamados, pertencentes à área de abrangência de uma Equipe de Saúde da Família que atua em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), localizada em São Paulo (SP). O objetivo deste estudo de caso foi o de relatar a construção do "Guia para cuidadores de pacientes acamados e/ou com restrição ao lar". Este guia foi elaborado a partir de uma parceria entre as Equipes de Saúde da Família (EqSF), fonoaudiólogos, e os cuidadores de pacientes usuários de uma UBS. O guia foi fundamentado pela construção de um saber comum, com o intuito de contribuir com a criação de redes colaborativas, que possam ser espaços de discussão e troca de saberes. Estas redes foram extremamente úteis na potencialização da capacidade dos cuidadores em identificar, precocemente, as situações que requerem intervenção. As redes também trabalharam com a valorização do papel do cuidador; seu saber quanto à forma de atuar nas atividades de vida diária; superação das limitações; demonstração de ações que visam o bem estar físico e psíquico do sujeito doente; ampliação da capacidade de apropriação dos processos de adoecimento, da autonomia e da co-responsabilidade no cuidado à saúde. Após a impressão do guia, o mesmo foi entregue as EqSF, aos profissionais de saúde e a comunidade. O feedback foi positivo e, sendo assim, conclui-se que o guia atingiu o objetivo proposto.

Acientes domiciliares; Relações familiares; Cuidadores; Serviços de assistência domiciliar; Guia; Saúde da Família; Atenção primária à saúde


This is a qualitative descriptive-exploratory study that adopts as data gathering method the participant observation of healthcare processes carried out by caregivers of bedridden patients from the coverage area of a Family Health Team of a Basic Health Unit (BHU) in São Paulo (SP), Brazil. The aim of this study was to report the construction of a guide for caregivers of bedridden patients and/or patients confined to the home. This guide was prepared based in a partnership among the Family Healthcare (FHT) and the speech-language pathologists and audiologists teams, and the caregivers of patients from the BHU. The guide was motivated by the construction of a common knowledge, with the aim to contribute with the creation of collaborative networks, apt to be places of discussion and exchange of knowledge, in order to optimize the ability of caregivers to early identify situations that require intervention. The networks also contributed to the valorization of caregivers' role; their knowledge on how to perform in daily living activities; overcoming of limitations; demonstration of actions aimed at the physical and mental well-being of the sick person; expansion of the capacity of ownership of processes of illnesses, autonomy and co-responsibility in healthcare. The guide was printed and delivered to FHT members, healthcare professionals and the community. The feedback was positive and, therefore, the guide was successful for the proposed objective.

Homebound persons; Family relations; Caregivers; Home care services; Guideline; Family health; Primary health care


RELATO DE CASO CASE REPORT

A construção coletiva de um guia para cuidadores de pacientes acamados: relato de experiência

Vera Lucia Ferreira MendesI; Daniela Regina Molini-AvejonasII; Allyne RibeiroIII; Luiz Augusto de Paula SouzaI

IFaculdade de Ciências Humanas e da Saúde, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC – São Paulo (SP), Brasil

IIDepartamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo – USP – São Paulo (SP), Brasil

IIIPrograma de Estudos Pós-Graduados em Fonoaudiologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC – São Paulo (SP), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Daniela Regina Molini-Avejonas R. Cipotânea, 51, Cidade Universitária, São Paulo (SP), CEP: 05360-160. E-mail: danielamolini@usp.br

RESUMO

Trata-se de estudo descritivo-exploratório de natureza qualitativa que adota como método de coleta de dados a observação-participante dos processos de cuidados à saúde realizados pelos cuidadores de pacientes acamados, pertencentes à área de abrangência de uma Equipe de Saúde da Família que atua em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), localizada em São Paulo (SP). O objetivo deste estudo de caso foi o de relatar a construção do "Guia para cuidadores de pacientes acamados e/ou com restrição ao lar". Este guia foi elaborado a partir de uma parceria entre as Equipes de Saúde da Família (EqSF), fonoaudiólogos, e os cuidadores de pacientes usuários de uma UBS. O guia foi fundamentado pela construção de um saber comum, com o intuito de contribuir com a criação de redes colaborativas, que possam ser espaços de discussão e troca de saberes. Estas redes foram extremamente úteis na potencialização da capacidade dos cuidadores em identificar, precocemente, as situações que requerem intervenção. As redes também trabalharam com a valorização do papel do cuidador; seu saber quanto à forma de atuar nas atividades de vida diária; superação das limitações; demonstração de ações que visam o bem estar físico e psíquico do sujeito doente; ampliação da capacidade de apropriação dos processos de adoecimento, da autonomia e da co-responsabilidade no cuidado à saúde. Após a impressão do guia, o mesmo foi entregue as EqSF, aos profissionais de saúde e a comunidade. O feedback foi positivo e, sendo assim, conclui-se que o guia atingiu o objetivo proposto.

Descritores: Acientes domiciliares, Relações familiares, Cuidadores, Serviços de assistência domiciliar, Guia, Saúde da Família, Atenção primária à saúde

INTRODUÇÃO

Este artigo relata a construção de um de um "Guia para cuidadores de pacientes acamados e/ou com restrição ao lar", desenvolvido no contexto de Estratégia Saúde da Família, elaborado com a participação conjunta da Equipe de Saúde da Família, fonoaudiólogos e a comunidade atendida por uma Unidade Básica de Saúde da cidade de São Paulo.

A Estratégia de Saúde da Família (ESF) inaugura, entre outras coisas, a possibilidade de um mapeamento da população em sua base territorial, ampliando o conhecimento das condições de vida e de saúde de pessoas e de grupos sociais de risco e vulnerabilidade social, como é o caso de pacientes acamados e de portadores de necessidades especiais(1). Antes da ESF, em modelos assistenciais tradicionais, não tínhamos um alcance efetivo deste grupo populacional, uma vez que a organização do trabalho em saúde voltava-se apenas às demandas que chegavam aos serviços e não a partir do cadastramento e diagnóstico dos moradores da área adstrita(2).

A ESF supõe que a organização e o planejamento das ações ocorrem a partir de um contato estreito com a população e com suas condições de vida e de acesso à saúde. Estes ocorrem por meio do mapeamento das famílias de uma determinada área; da responsabilidade pela construção de respostas aos problemas de saúde de um dado território, combatendo configurações sociais que possam conduzir ao adoecimento(3).

Deste modo, ampliam-se as possibilidades de desenvolvimento de estratégias de atenção à saúde que lidem com as dimensões técnicas e sociais presentes nos processos de cuidado à saúde. E, sem dúvida, a ESF tem sido importante no processo de qualificação e aprimoramento das práticas em saúde, uma vez que se pode trabalhar de modo mais efetivo com o paciente e seu entorno social e familiar, possibilitando a ampliação da sua autonomia e circulação social(4).

Outra característica importante da ESF é a de proporcionar um resgate dos princípios de vínculo, acolhimento e co-responsabilização, implicando gestores, profissionais e usuários em processos humanizados de cuidado(5). A partir de tal característica, pode-se ter maiores chances de produzir o trabalho em saúde e criar estratégias de cuidado e de resolução dos processos de adoecimento humano, pautados no princípio da participação ativa de pacientes e seus cuidadores/familiares na definição dos horizontes terapêuticos(6,7).

Faz-se necessária a mudança de olhar do profissional de saúde a partir de dois princípios básicos que devem guiar qualquer ação sanitária: conhecer o humano e contar com o humano. O primeiro indica que conhecer o indivíduo significa conhecer e, sobretudo, compreender suas crenças, hábitos, papéis e circunstâncias e que somente assim há possibilidades de ações eficientes e permanentes em saúde. No segundo, postula-se que não se pode cuidar da saúde do outro sem cuidar de si mesmo. O essencial é que a comunidade possa compartilhar da construção dos programas que são implantados e não se submeter a eles(8).

A maioria das UBS, além das consultas ambulatoriais, oferta uma série de programas e grupos à população. Porém, o mais comum é vermos tais ações sendo ofertadas como planejamentos pré-estabelecidos e com roteiros rígidos e baseados apenas em indicadores epidemiológicos. Os grupos em série ou série de grupos resolvem um único problema, a quantidade de pacientes abordados, mas não a qualidade e a continuidade dos atendimentos. Se a oferta for grupal, para que seja efetiva deve estar assentada em uma organização também grupal. Isso significa que o conjunto de profissionais envolvidos deve se instituir como equipe, ou seja, desenhar coletivamente os dispositivos a serem implementados, avaliar seu desenvolvimento, trabalhar como conjunto em suas atividades de formação, analisar as demandas que recebe, elaborar suas estratégias e políticas institucionais com outros serviços e com a comunidade e participar da gestão e das políticas em saúde(9,10).

Esta reflexão, bastante pertinente e atual na organização das práticas em saúde, demonstra o desafio de construir estratégias de cuidado, não apenas a partir de perfis epidemiológicos, mas também e fundamentalmente, da escuta das necessidades de saúde de sujeitos e grupos sociais. Caso contrário, corre-se o risco de apenas reproduzir modelos pré-estabelecidos, silenciando sujeitos e comunidades(2).

Por outro lado, a elaboração de práticas que escapem a estas armadilhas não é tarefa fácil. Parte-se da ideia de que as práticas de cuidado que considerem o saber dos próprios sujeitos (que estão passando por algum tipo de sofrimento) têm maiores chances de responder aos problemas de saúde. Para isso, é preciso assumir uma posição clínica mais favorável à escuta, ao vínculo e ao acolhimento(3).

Um dos aspectos mais preciosos da prática em saúde está na nossa capacidade de se por à escuta, de conhecer o Outro. Tal processo está permeado e entrelaçado pelo processo de conhecimento das necessidades do Outro. Pode-se pensar a produção do trabalho em saúde como redes de conversações, uma vez que as práticas em saúde são encontros que operam, fundamentalmente, com a técnica da conversa. Ou ainda, com a técnica de acolhimento dialogado(11,12).

A ESF, como o próprio nome sugere, por tomar a família como unidade de cuidado, tem a possibilidade de atuar também na qualidade do vínculo entre os cuidadores e aqueles que estão na posição de "serem-cuidados". Isso amplia a participação de ambos, juntamente com as equipes de saúde, nas definições de projetos terapêuticos. Ressalta-se a importância de construir práticas em saúde com a participação de todos os atores envolvidos, pois deste modo requalificam-se posições e ações, por meio de parcerias ativas com a população, criando novos modos de vinculação e constituindo soluções singulares às demandas que emergem nesses encontros(3,5).

Toda ação em saúde, quando realizada a partir da responsabilidade compartilhada e da construção conjunta da intervenção sobre o processo saúde-doença, tem maiores chances de produzir melhoras nas condições de vida. Não se atua apenas no esforço de amenizar os sintomas clínico-patológicos, mas também na apropriação de saberes e no fortalecimento das redes sociais(5).

A família, como elemento significativo desta pesquisa, tem papel central na condução do cuidado domiciliar. Na prática, é a família que assume a responsabilidade direta pelo cuidado. É ela que primeiro identifica a existência de um problema, que tenta traduzir e elaborar uma explicação para a situação e toma decisões em relação à melhor forma de conduzi-lo.

No entanto, quando a necessidade de cuidar se apresenta de modo mais permanente e como uma condição em que não se permite omissão, há a consequência de significativas alterações no estilo de vida social e/ou econômico, além da sobrecarga física e emocional. Muitas vezes, a família é o único recurso disponível para os pacientes acamados e/ou em situação de restrição ao lar. Frequentemente a realização dessa função enfrenta dificuldades que podem se agravar ainda mais em famílias em condições sócio econômicas desfavoráveis, como é o caso de grande parcela da população brasileira(13).

Este estudo de caso visa demonstrar a interrelação e a colaboração entre as equipes de saúde da família, a Fonoaudiologia, e os cuidadores de pacientes acamados na construção de um saber comum. Tem-se o intuito de contribuir com a criação de redes de conhecimento que possam ser espaços de discussão e troca de saberes sobre os modos pelos quais os cuidadores constroem seus próprios referenciais de cuidar, em geral marcados por conhecimentos provenientes do senso comum.

A ideia principal foi a de colocar em rede tais saberes e poder contribuir para a construção de um trabalho em saúde que se apoie na perspectiva da Inteligência Coletiva, ampliando a autonomia dos sujeitos na gestão de seus problemas de saúde. Não se pretende passar o conceito de autonomia, como um modo de se fechar sobre si mesmo. Autonomia quer dizer se escutar, mas também escutar os outros. Essa escuta não se refere apenas ao especialista, mas àqueles que estão em situação semelhante(14).

Nesta mesma direção, este estudo teve a intenção de contribuir com a instauração de políticas de saúde e de programas de saúde voltados ao cuidador, a cuidar de quem cuida. Houve o intuito de potencializar a capacidade dos cuidadores de identificar, com antecipação, as situações que requerem intervenção; perceber e valorizar seu saber quanto à forma de intervir no cotidiano; criar e ampliar redes comunitárias com o intuito de contribuir com a superação das limitações de recursos financeiros, de tempo e até de competência para conduzir certos processos do cuidar; reconhecer o valor do cuidado domiciliar na manutenção da identidade do paciente e da integralidade psicológica; valorizar saberes do senso comum e de competências no processo do cuidado que visem o bem estar físico e psíquico do sujeito doente; ampliar a capacidade de apropriação dos processos de adoecimento, da autonomia e da co-responsabilidade no cuidado à saúde.

O objetivo deste estudo de caso foi apresentar a experiência e os caminhos percorridos na construção de um "Guia para cuidadores de pacientes acamados".

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

Trata-se de estudo descritivo-exploratório de natureza qualitativa que adota como método de coleta de dados a observação-participante dos processos de cuidados à saúde realizados pelos cuidadores de pacientes acamados e/ou em situação de restrição ao lar, pertencentes à área de abrangência de uma Equipe de Saúde da Família (EqSF 3) que atua em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), localizada em São Paulo (SP) no bairro de Vila Nova Cachoeirinha. A escolha do universo de sujeitos deu-se a partir de decisão conjunta com a UBS. Foi escolhida como parceira e colaboradora de pesquisa, a Equipe de Saúde da Família que tinha o maior número de adultos cadastrados em sua área (Figura 1).


O critério definido na seleção da EqSF colaboradora foi baseado nos dados do Sistema de Informação de Atenção Básica (SIAB). Tais dados indicam que apesar das crianças com quadros de deficiência terem alto grau de vulnerabilidade social e, em alguns casos, viverem em situação de restrição ao lar, os mesmos dados apontam que a maior prevalência de acamados está na idade adulta, acima de 40 anos, e entre os idosos (Figura 2).


A EqSF 3 é composta por um médico, uma enfermeira, uma auxiliar de enfermagem e seis Agentes Comunitários. A área de atuação da EqSF 3 foi dividida em seis micro-áreas, de responsabilidade de cada Agente Comunitário de Saúde (ACS) (Figura 3).


Optou-se por coletar os dados de toda a população acamada da EqSF 3. A inclusão de 100% dos sujeitos acamados de uma equipe de saúde traz maiores condições de cartografar as microáreas e de utilizar tais dados em futuros estudos de prevalência e incidência relacionados a tais tipos de agravos à saúde. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sob o número 242/2007 e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A coleta de dados estruturou-se a partir de quatro fontes de informação:

- SIAB: levantamento dos dados cadastrais das famílias com objetivo de caracterizar as condições de vida e de saúde (escolaridade, água tratada, coleta de lixo, sistema de esgoto, etc.).

- Prontuários da UBS: levantamento do histórico clínico, principais agravos à saúde, condutas e acompanhamentos da equipe de saúde, etc.

- Visitas domiciliares: coleta de dados referente à identificação do cuidador, renda familiar, número de moradores e de cômodos da casa, condições de higiene, adaptação física do ambiente, organização familiar, ocorrência da rotina dos afazeres cotidianos, etc. (três a cinco visitas para cada família).

- Reuniões de equipe: acompanhamento e registro das discussões de casos e criação de estratégias de cuidado e de projetos terapêuticos.

Os dados registrados foram analisados e tabulados, com o intuito de mapear as condições de vida e de saúde e o modo como as famílias conduzem o processo de cuidado. Juntamente com a Equipe de Saúde da Família, teve-se o objetivo de realizar os Grupos de Cuidadores e a elaborar o Guia do Cuidador como material de apoio e de discussão sobre a tarefa de cuidar.

Quando o Grupo de Cuidadores foi iniciado, a análise dos dados coletados no SIAB, nos prontuários, com a EqSF e nas visitas domiciliares, já estava bastante adiantada, o que contribuiu de modo significativo para que a estruturação da proposta dos Grupos de Cuidadores fosse feita a partir das características, dificuldades e necessidades dessas famílias. O Grupo de Cuidadores teve o intuito de promover um ambiente de troca de experiências e de saberes, bem como verificar o efeito destas no apoio e cuidado ao cuidador. Foram realizados cinco encontros, coordenados pela pesquisadora responsável e pela equipe de saúde da família.

A importância da análise dos dados gerados nas primeiras etapas da pesquisa para o sucesso da realização dos Grupos de Cuidadores e a criação do Guia do Cuidador é inquestionável. A qualidade e a riqueza do mapeamento e análise dos principais modos de funcionamento, potencialidades e dificuldades vividas pelos cuidadores, estão diretamente relacionadas com a possibilidade de potencializar redes solidárias e colaborativas a partir da emergência da Inteligência Coletiva de grupos e comunidades(14).

A análise dos resultados desta pesquisa foi realizada a partir do cruzamento dos dados obtidos em três momentos distintos: dados do SIAB; dados dos prontuários e das visitas domiciliares; dados do Grupo de Cuidadores e a construção do "Guia para cuidadores de pacientes acamados". Com exceção dos dados do SIAB e dos prontuários, que foram tabulados e registrados em gráficos e tabelas, todos os outros momentos de coleta foram registrados pelos pesquisadores por meio de relatórios escritos.

O intuito destes relatórios era o de captar as relações, as conexões e os fluxos que se estabelecem entre cuidadores/familiares e pacientes acamados. Neste momento estávamos diante de novas vias de investigação, com referenciais teóricos menos restritivos e, portanto, com maior oportunidade de manifestação para a subjetividade do pesquisador(15) no registro qualitativo dos dados.

Os registros das discussões de casos e da formulação dos grupos de cuidadores nas reuniões de equipe, bem como os registros dos grupos de cuidadores, exigiram um trabalho de pesquisa que pudesse captar o processo "em ação", já que este é sempre relativo a certos contextos problemáticos, singulares e contingentes e que se traçam ao mesmo tempo em que se constituem(3). Vale ressaltar que o desafio deste momento de coleta e análise foi o de lidar com dados qualitativos como representação simbólica atribuída a manifestações de um evento aparentemente imponderável e suas relações com outros eventos(15).

Centrado neste referencial metodológico, os registros dos acontecimentos foram tratados e geraram o Guia do Cuidador. Seu conteúdo concerne os acontecimentos, leituras e representações que os cuidadores de pacientes acamados e/ou restritos ao lar puderam fazer dos sentidos de suas experiências.

A produção de tecnologias de cuidado à saúde e a criação de novos dispositivos de acolhimento e cuidado do próprio cuidador só foi efetivada porque houve um grande empenho na tarefa de análise minuciosa dos dados e, fundamental e principalmente, pela inserção das pesquisadoras junto ao trabalho das equipes de saúde da família. Sem este tipo de acompanhamento e de parceria, os resultados não seriam os mesmos, ou seja, ressalta-se a ideia de que toda ação de saúde deve partir da co-responsabilidade e da construção conjunta dos atores envolvidos nesses processos.

A dificuldade maior surgiu no momento do agendamento dos Grupos de Cuidadores na UBS, tal como havia se imaginado inicialmente. Estipular datas e horários comuns entre os cuidadores parecia ser tarefa impossível. Eles tinham dificuldade de se locomover para a UBS, pois não podiam deixar o sujeito acamado sozinho por muito tempo. Além disso, compatibilizar horários de administração de medicamentos, alimentação e outros afazeres domésticos dos cuidadores e os horários disponíveis de espaço físico das salas na UBS pareciam inviabilizar a realização dos Grupos.

Após algumas tentativas, decidiu-se (equipe, pesquisadores e cuidadores) realizar os grupos nas próprias casas dos acamados. As casas escolhidas foram aquelas onde os acamados necessitavam de monitoramento mais intensivo, e os demais participantes foram divididos de acordo com a proximidade, numa tentativa de facilitar o acesso dos cuidadores, uma vez que muitos deles são idosos e/ou possuem alguma dificuldade de locomoção. Além de viabilizar o encontro dos grupos, esta estratégia acabou por promover o aquecimento e a criação de redes colaborativas dentro da própria comunidade, uma vez que os cuidadores se conheceram e descobriram que moram próximos uns dos outros.

A dinâmica dos grupos foi dividida em quatro momentos:

- Primeiramente, cada um dos cuidadores se apresentou, contou um pouco de sua história e como se tornou cuidador (primeiro encontro);

- Num segundo momento, os cuidadores contaram uma breve história da pessoa acamada que estava sob seus cuidados. Neste momento as pessoas começaram a se identificar e a construir um território comum (segundo encontro);

- No terceiro momento, a partir da construção de uma "zona de comunidade", foi iniciada uma roda de conversa, onde circularam debates aquecidos sobre dúvidas, angustias e estratégias de cuidados (segundo e terceiro encontro);

- No quarto e último momento, foi realizada uma dinâmica que pudesse simbolizar o que foi vivido pelo grupo e incentivar a realização de novos encontros produzidos por eles mesmos (quarto encontro).

A análise das observações e registros dos quatro encontros realizados nos grupos de cuidadores foi entregue e discutida junto à equipe de saúde da família, visando compartilhar nossos achados e aprofundar a análise dos dados coletados nestes grupos. O resultado desse processo foi um intenso momento de troca de informações e de reflexões capazes de construir, coletivamente, alternativas aos problemas dos cuidadores. Os temas mais discutidos foram classificados em 10 Mitos dos Cuidadores, que foram sistematizados no Guia do Cuidador:

- Mito no 1: O cuidador não adoece;

- Mito no 2: O cuidador não falha nunca;

- Mito no 3: Com pouco dinheiro não se faz uma alimentação saudável;

- Mito no 4: O cuidador não precisa de cuidado;

- Mito no 5: O cuidador não pode sair de casa;

- Mito no 6: O cuidador não pode dormir;

- Mito no 7: O único amigo do cuidador é o acamado;

- Mito no 8: O cuidador não tem direito de envelhecer;

- Mito no 9: Cuidar é sempre uma situação de tristeza e luto;

- Mito no 10: O Cuidador tem que aguentar tudo.

Inicialmente foram impressas apenas 50 cópias, entregues aos membros da EqSF 3 e aos cuidadores/famílias que participaram da pesquisa, para que uma revisão final fosse feita. Após a devolutiva, este material foi entregue para a Secretaria Municipal de Saúde, com o intuito de realização de um estudo gráfico e impressão em maior escala.

A construção do Guia do Cuidador representou um esforço final de todo um processo de estudo e pesquisa. A ideia foi deixar um produto concreto que pudesse ser útil aos profissionais da saúde e comunidades. Ressalta-se mais uma vez, que o maior valor do Guia do Cuidador está no modo como foi construído: um trabalho coletivo que contou com a participação ativa de toda a equipe de Saúde da Família e também dos pacientes e cuidadores/familiares. São eles que falam no Guia. Os pesquisadores apenas tentaram equacionar as situações de sofrimento e os impasses vividos no cotidiano dessas famílias, bem como indicar algumas possibilidades de saída para tal ordem de problemas.

DISCUSSÃO

A saúde física e emocional dos diferentes membros ocupa um papel fundamental no funcionamento da família. Como os membros são interconectados e dependentes uns dos outros, ao ocorrer qualquer mudança na saúde de um integrante, todos são afetados e a unidade como um todo será alterada. Ou seja, se o funcionamento da família influencia a saúde e o bem estar de seus membros, pode-se dizer que ele afeta a saúde do indivíduo e que a saúde do indivíduo também afeta a família(2).

O Grupo de Cuidadores teve o objetivo de colocar em contato pessoas que tinham pelo menos uma coisa em comum: eram cuidadores de pacientes acamados e/ou restritos ao lar. Nossa hipótese era de que seria extremamente útil ativar uma rede de relações que pudesse funcionar como espaço de apoio e suporte para os problemas vivenciados por eles. Deste modo, produzir informações e dados que pudessem servir à produção de conhecimento para a atenção domiciliar; gerar oferta de assistência humanizada que favoreça o exercício da autonomia e da responsabilidade pela própria saúde. Isto foi possível a partir do desenvolvimento de ações junto às famílias e à comunidade para promoção da saúde e a inclusão de pessoas com perdas funcionais e dependência e seus cuidadores. O fortalecimento das redes sociais de conhecimento e a ampliação da participação comunitária, com o intuito de contribuir com a superação das limitações vividas por estas famílias, também foram obtidos.

O método utilizado foi baseado na ativação da conversa, da comunicação(11)não como modo de transmitir ou receber uma mensagem, mas como ato de partilhar sentidos, partilhar um contexto comum, uma cultura, uma história, uma experiência. Tal dispositivo grupal, ao fazer circular as diferentes experiências e vivências em relação ao ato de cuidar de alguém, acaba por ampliar os universos de referência e, deste modo, permite a cada um dos participantes melhor se situar e melhor se orientar diante das situações cotidianas(14). Em cada um dos Grupos de Cuidadores realizados (três grupos, com quatro encontros cada), foi possível observar algumas dimensões importantes na condição do cuidar que apareceram com frequência em todos os encontros.

No primeiro encontro, ao se apresentarem, muitos cuidadores perceberam que moravam próximos, já tinham tido encontros casuais na rua, no mercado ou na farmácia, e nem por isso se conheciam ou sequer sabiam que estavam passando pela mesma situação. Ficou absolutamente claro o dispositivo de enlace que a história dos pacientes acamados pode provocar. Construído este território comum, foi relativamente fácil colocar em discussão as dificuldades de cuidar do Outro e de si mesmo, nas rodas de conversa dos segundos e terceiros encontros.

Durante esse processo, mais objetivamente nos segundos e terceiros encontros, os cuidadores conseguiram encontrar no grupo, um lugar onde pudessem falar sobre o que é ser cuidador, deixando claro suas dúvidas, anseios e sentimentos em relação a esta condição. Algumas questões levantadas pelos membros do grupo demonstraram a maneira como estes lidavam com a situação de cuidador de um paciente acamado, que por estar em condição de extrema dependência, exige uma dedicação intensiva e quase exclusiva. Este aspecto, de certo modo, está diretamente relacionado à quase impossibilidade de cuidar de si, uma vez que muitos deles se colocam em segundo plano e não se permitem espaços próprios de cuidado. Ao mesmo tempo, é evidente a dificuldade que possuem em dividir tarefas ou buscar por ajuda de outras pessoas.

As condições financeiras das famílias também foram discutidas no grupo de cuidadores. Entre outras coisas, estes relacionaram a dificuldade de ter uma alimentação saudável que fosse adequada à baixa renda.

Os cuidadores mais idosos apresentaram dificuldades para lidar com o próprio envelhecimento, principalmente no que se refere às dificuldades de memória e mobilidade. Citaram tais dificuldades como limitadoras nas funções de cuidador, o que gera o medo de falhar e colocar em risco a saúde do familiar acamado. Muitos referiram, inclusive, medo de dormir, pois acreditam que durante o sono algo pode acontecer ao paciente.

Os cuidadores, de modo geral, relataram sair pouco de casa e têm dificuldades de manter a vida social, afastando-se da família, igreja e amigos. Muitos têm no acamado o único amigo. Este foi um aspecto muito delicado para o grupo, pois envolve deixar o outro que é dependente em casa, e isso gera culpa. Solicitaram que o guia tivesse indicações de apoio psicológico para que pudessem lidar com tais sentimentos.

A discussão destas informações junto à equipe de saúde da família auxiliou no aprofundamento da análise dos dados coletados nestes grupos. Esta dinâmica, além de promover a ideia de que também era preciso cuidar de quem cuida, buscou gerar um conjunto de informações para os cuidadores/familiares sobre alternativas de espaços de lazer e de orientações alimentares acessíveis(2). Foi nessa perspectiva que se decidiu incluir no Guia do Cuidador, um conjunto de informações úteis que pudessem ser opções de ampliação de circulação social, como as unidades do SESC e os CECCOs(10). Também estão presentes no guia, endereços de sites e números de telefone de serviços de emergência e urgência; e sites com dicas de alimentação saudável, de baixo custo e com aproveitamento máximo.

Em cada grupo, a atividade do quarto e último encontro, previamente planejadas pelos pesquisadores e pela equipe, tiveram também a pretensão de construir e/ou ativar as redes colaborativas. Além de funcionar como dispositivo de conhecimento e de fortalecimento de redes colaborativas, pôde-se observar durante as discussões nos grupos, conflitos, necessidades, estratégias de cuidado desenvolvidas por cuidadores e familiares, circulação de afetos, saberes, etc(9). Deste modo, foi possível captar questões valiosas para se pensar as tecnologias e estratégias de cuidado a partir do que foi experienciado no contato direto com estas famílias e que puderam ser sistematizadas no Guia do Cuidador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo confirma a possibilidade de: desenvolver ações junto às famílias e à comunidade para promoção da saúde e a inclusão de pessoas com perdas funcionais e dependência e seus cuidadores; desenvolver programas de saúde voltados ao atendimento domiciliar, não apenas aos pacientes acamados e/ou

em situação de restrição ao lar, mas também aos cuidadores; fortalecer as redes colaborativas de conhecimento e ampliar a participação comunitária com o intuito de contribuir para a superação das limitações de recursos financeiros, de tempo e até de competência para conduzir certos processos do cuidar.

A versão impressa e finalizada do Guia do Cuidador foi bem recebida pelas Equipes de Saúde da Família e pelos cuidadores/familiares dos acamados. O feedback da comunidade foi positivo e, portanto, o guia atingiu o objetivo proposto. Concluímos, por fim, que há necessidade de ampliar as pesquisas qualitativas no campo da saúde coletiva e no aprimoramento de tecnologias de cuidado à saúde que possam envolver a comunidade em torno de seus próprios problemas, ampliando a qualidade de vida dos indivíduos e de grupos sociais.

AGRADECIMENTOS

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo auxílio financeiro concedido a esta pesquisa (processo 07/706).

Recebido em 20/05/2011

Aceito em: 26/07/2011

Trabalho realizado no Curso de Fonoaudiologia, Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC – São Paulo (SP), Brasil e no Curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo – FMUSP – São Paulo (SP), Brasil.

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  • Endereço para correspondência:
    Daniela Regina Molini-Avejonas
    R. Cipotânea, 51, Cidade Universitária, São Paulo (SP), CEP: 05360-160.
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2011

    Histórico

    • Aceito
      26 Jul 2011
    • Recebido
      20 Maio 2011
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