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Justiça Ambiental e Reconhecimento: o Caso do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba

Environmental Justice and Recognition: the Case of the “Restinga de Jurubatiba” National Park

RESUMO

A criação de Unidades de Conservação (UCs) tem se configurado como uma das mais importantes formas de intervenção governamental para reversão da perda de biodiversidade e proteção de ecossistemas. Sua implantação e gestão, contudo, têm sido acompanhadas de conflitos em função dos diferentes interesses e necessidades existentes na dinâmica de produção, apropriação e distribuição dos recursos ambientais. Dentre as normas e diretrizes estabelecidas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), destaca-se a participação social como premissa indissociável da gestão ambiental. Neste artigo, problematizamos a criação e a implantação das UCs, em particular os Parques Nacionais (PNs), e as questões socioculturais que influenciam e são influenciadas por esses processos. Esta análise foi baseada em uma pesquisa qualitativa com abordagem metodológica de estudo de caso e foi dividida em três etapas: visita ao Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba e entrevista com o gestor da UC; realização de entrevistas semiestruturadas às Organizações da Sociedade Civil localizadas na área de abrangência do parque, e levantamento bibliográfico sobre o processo de criação do PARNA Restinga de Jurubatiba. Ao analisarmos esse caso, observamos a materialidade de um conflito ambiental, aqui entendido como aquelas situações nas quais há confronto de interesses representados por diferentes atores sociais, em torno da criação do parque nacional que, para os preservacionistas, significa a garantia da conservação da biodiversidade, e, para os pescadores, representa a proibição de uma prática da qual eles dependem economicamente e que está enraizada em sua cultura. Com base neste estudo de caso, pode-se concluir que a participação da sociedade na criação e na gestão das UCs é um elemento fundamental para sua sustentabilidade.

Palavras-chave:
gestão participativa; unidades de conservação; conservação.

ABSTRACT

The establishment of conservation units is one of the most important forms of governmental intervention attempting to decrease the biodiversity loss and to protect the environment. However, their implementation and management face several conflicts related to different interests and needs on the dynamics of production, appropriation and distribution of the environmental resources. Among the several norms and directions formalized in the National System of Conservation Units (SNUC, from Portuguese), social participation is highlighted as a premise for the environmental management. This study investigated the establishment and management of conservation units, particularly the national parks, and the socio-cultural aspects that influence and are influenced by these processes. The analysis was based on a methodological approach of a qualitative research case study and it was divided in three phases: visiting the “Restinga de Jurubatiba” National Park and interviewing the manager of CU; conducting semi-structured interviews with Civil Society Organizations located in the area of the park; and searching the literature on the creation process of “Restinga de Jurubatiba” National Park. In examining the case, the materiality of an environmental conflict was observed - defined here as those situations where there is conflict of interests represented by different social actors around the creation of the national park: for the preservationists, to ensure the biodiversity conservation, and for the fishermen, the prohibition of a practice they are economically dependent on and it is rooted in their culture. It was concluded that the participation of society in the creation and management of protected areas is a key element for sustainability.

Keywords:
participative management; conservation; protected areas.

1. INTRODUÇÃO

A criação de Unidades de Conservação (UCs), no mundo contemporâneo, tem se configurado como uma das mais importantes formas de intervenção governamental no que diz respeito à tentativa de reversão da perda de biodiversidade diante da crescente devastação ambiental.

Os objetivos gerais da criação dessas áreas protegidas são: contribuir para a manutenção da diversidade biológica e dos recursos genéticos; proteger espécies ameaçadas de extinção, e contribuir para a preservação e a restauração da diversidade de ecossistemas naturais, dentre outros. Algumas delas, como os Parques Nacionais (PNs), são estabelecidas para que sua riqueza natural e estética, além de protegida, seja apreciada pelos visitantes, não se permitindo, por sua vez, a ocupação humana em seu interior.

A concepção das áreas protegidas no Brasil configura-se basicamente como uma importação do modelo norte-americano. Essas áreas foram criadas no século passado nos EUA e tinham como objetivo proteger a vida selvagem (“wilderness”), que estava ameaçada pela civilização urbanoindustrial, entendida como de grande potencial destruidor da natureza (Diegues, 2002Diegues AC. O mito moderno da natureza intocada. 4rd ed. São Paulo: Hucitec; 2002. 176 p.).

Segundo seus idealizadores, a única forma de proteger a natureza era afastá-la do ser humano - entendido de modo idealizado e abstrato -, por meio de ilhas, pedaços do meio natural em seu estado primitivo, onde o homem pudesse admirá-la, reverenciá-la e refazer suas energias gastas na vida urbana.

A criação das Unidades de Conservação teve grande aumento entre as décadas de 1970 e 1980, quando foram estabelecidas mundialmente 2098 unidades de âmbito nacional, enquanto que, desde o início do século XX, tinham sido criadas até então 1511 unidades (Kemf apud Diegues, 2002Diegues AC. O mito moderno da natureza intocada. 4rd ed. São Paulo: Hucitec; 2002. 176 p.).

De acordo com Ghimire (1993)Ghimire K. Parques e populações: problemas de sobrevivência no manejo de parques nacionais na Tailândia e Madagascar. Tradução de Cristina Adams. São Paulo: NUPAUB-USP/UNRISD; 1993. 68 p.Série Documentos e Relatórios de pesquisa, n. 3., o aumento da preocupação pela criação de UCs, nas décadas de 1970 e 1980, deveu-se a alguns fatores, tais como: a rápida devastação das florestas e a crescente perda da biodiversidade, a disponibilidade de fundos internacionais para a conservação, e a possibilidade de geração de renda por meio do turismo em parques.

No entanto, a criação de áreas protegidas nem sempre é um processo harmonioso. Tal processo é, muitas vezes, acompanhado por disputas e conflitos em função dos diferentes interesses e necessidades existentes na dinâmica de produção, apropriação e distribuição dos recursos ambientais e de significação dos mesmos entre os diferentes atores envolvidos. De acordo com Diegues (2002)Diegues AC. O mito moderno da natureza intocada. 4rd ed. São Paulo: Hucitec; 2002. 176 p., a questão das áreas naturais protegidas levanta inúmeros problemas de caráter político, social e econômico, e não se reduz, como querem os preservacionistas puros, a uma simples questão de “conservação do mundo natural” e mesmo da proteção da Biodiversidade.

Dessa forma, o tema da preservação da biodiversidade dos ecossistemas não é o único a ser considerado, merecendo destaque também os fatores socioeconômicos, políticos e culturais envolvidos nesse processo. Afinal, o ser humano socialmente organizado, enquanto parte da natureza, afeta e é diretamente afetado pelo meio em que vive, sendo pertinente o desenvolvimento de uma análise que valorize as condicionantes de suas relações e suas percepções, e seus valores a respeito desse tema.

Entende-se, desse modo, que o ambiente não é apenas o espaço natural, mas o resultado de interações múltiplas e complexas, as quais permitem a construção de sentido de localidade, territorialidade, identidade, pertencimento e de contextualização para sujeitos individuais e coletivos (Loureiro, 2004Loureiro CF. Educação ambiental e gestão participativa na explicitação e resolução de conflitos. Gestão em Ação 2004; 7:37-50.). Assim, a “questão ambiental” se coloca de modo problemático, marcada por conflitos que revestem, na atualidade, a relação entre a sociedade e o ambiente, em que se define o conjunto de contradições resultantes das interações internas com o sistema social e deste com o meio.

No presente trabalho, por meio do estudo de caso do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba (PARNA Restinga de Jurubatiba), foram problematizadas a criação e a implantação de UCs, em particular dos parques nacionais, além das questões socioculturais que influenciam e são influenciadas por esses processos. Além disso, em termos mais específicos, refletiu-se sobre a questão do reconhecimento das “comunidades tradicionais” e a importância de seus saberes para a criação de UCs.

Espera-se, com a realização deste trabalho, contribuir para a discussão sobre as implicações da concepção de conservação da natureza materializada nos PNs e, em especial, no Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba, possibilitando, a partir desta análise, colaborar para a sinalização dos caminhos a serem percorridos para uma gestão ambiental efetivamente participativa.

1.1. Contexto geral do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba

O Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba, criado em 29 de abril de 1998, localiza-se no nordeste do Estado do Rio de Janeiro, cuja área pertence aos municípios de Macaé (1%), Carapebus (34%) e Quissamã (65%). A área total é de 14.860 ha, sendo 44 km de costa.

A luta para sua criação iniciou-se na década de 1980, quando cientistas passaram a desenvolver pesquisas nessa região e constataram o elevado grau de preservação, a elevada biodiversidade e o enorme potencial da Restinga de Jurubatiba para estudos científicos (Santos & Bozelli, 2003Santos LMF, Bozelli RL. Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba. Cadernos NUPEM 2003; (1).).

A partir de então, pesquisadores da UFRJ e ambientalistas da região iniciaram os esforços para criação de uma UC, que se destinaria à preservação dessa área. Segundo um dos idealizadores dessa UC, o processo de criação do PARNA Restinga de Jurubatiba contou com a participação não só de pesquisadores e ambientalistas, mas também da população. Essa inclusão se iniciou quando os pesquisadores perceberam que não bastava apenas dizer o quanto era importante preservar essa área, pois a população deveria entender seu valor e possuir um sentimento de participação na natureza, para que, assim, pudesse se compreender o porquê de preservar.

Ainda de acordo com o referido idealizador, o NUPEM/UFRJ, a partir de um plano de mobilização, que contou com a divulgação das ações na imprensa nacional e com pequenas palestras, fez com que a população passasse a acreditar que a restinga de Jurubatiba era mais valiosa se preservada.

O Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba é uma Unidade de Proteção Integral que tem como objetivo preservar a natureza e admite apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, de acordo com a Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000. Possui 18 lagoas, sendo as mais conhecidas: Lagoa de Carapebus, Lagoa Cabiúnas, Lagoa Comprida, Lagoa Paulista, Lagoa das Garças, Lagoa Peri-Peri e Lagoa Encantada. Da pesca nestas lagoas, muitos pescadores obtinham o complemento da renda para o sustento de suas famílias. No entanto, com a criação do Parque Nacional, esse recurso não estaria mais disponível.

2. MATERIAL E MÉTODOS

Este trabalho é constituído de uma pesquisa qualitativa com abordagem metodológica de estudo de caso. Esta é uma modalidade da pesquisa pela qual se tenta compreender fenômenos complexos em um curto período de tempo e a partir de um caso bem delimitado. Assim, apresentam-se questões principalmente do tipo “Como?” e “Por quê?”, sendo que o “foco” é direcionado para problemas contemporâneos (Yin, 2005Yin, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3 ed. Porto Alegre: Bookman, 2005.).

A metodologia desta pesquisa foi dividida em três etapas: i) visita ao Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba e entrevista com o gestor da UC; ii) realização de entrevistas semiestruturadas às Organizações da Sociedade Civil (OCS) localizadas na área de abrangência do parque, e iii) levantamento bibliográfico relativo ao processo de criação do PARNA Restinga de Jurubatiba.

A primeira etapa consistiu na visita técnica ao Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba acompanhada pelo gestor da UC, a fim de se obterem informações gerais sobre o Parque. A partir dessas informações iniciais, buscou-se aprofundar o conhecimento sobre a UC nas etapas seguintes.

A segunda etapa compreendeu o levantamento das OSCs localizadas nos três municípios de abrangência do Parque e a realização de entrevistas semiestruturadas1. As principais fontes de informação para o mapeamento dessas organizações foram: busca na rede mundial de computadores; documentos de prefeituras, por meio de seu atendimento ao público, e indicação das Secretarias de Meio Ambiente e Educação. A análise das entrevistas teve o intuito de identificar se existia relação da instituição com o Parque. Assim, foram focadas três questões específicas do roteiro da entrevista: objetivo de criação; ações desenvolvidas, e relação com a questão ambiental. Foram entrevistadas 30 OSCs, sendo 10 em Carapebus; 12 em Macaé e 8 em Quissamã.

Na terceira etapa, buscou-se complementar as informações sobre a criação do Parque e seus conflitos, por meio de um levantamento bibliográfico. Foram utilizadas diferentes fontes de evidências, tais como atas das reuniões do conselho gestor, seu regimento interno, lei de criação do PARNA Jurubatiba, etc.

As análises dos dados foram qualitativas, a partir do conteúdo. Para isso, a metodologia adotada foi a Análise de Conteúdo, segundo as recomendações de Bardin (1977)Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977..

3. RESULTADOS

Em 2006, foi realizada a entrevista com um representante do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), órgão responsável pela gestão desta UC. Essa entrevista foi realizada após a visita técnica e ocorreu na sede administrativa da Unidade, que se localiza, no entanto, fora dos limites do Parque, no município de Macaé. Nessa entrevista, foram obtidas informações referentes às características gerais do ecossistema (área, estado de conservação, gestão, existência de projetos de Educação Ambiental, visitação, etc) e à existência e à caracterização, quando existentes, dos conflitos socioambientais (atores sociais envolvidos, seus posicionamentos, etc)2.

O principal conflito socioambiental identificado foi a proibição da pesca nas Lagoas do Parque, o que representou um grande embate entre o órgão ambiental e os pescadores. Isso se deve ao fato de que, da pesca nestas lagoas, muitos pescadores obtinham o complemento da renda para o sustento de suas famílias. No entanto, com a criação do Parque Nacional, esse recurso não estaria mais disponível. E, recentemente, entrou também na pauta das discussões o conflito fundiário no PARNA da Restinga de Jurubatiba. Muitos proprietários de terras deixaram suas residências e terras, mas até a realização deste trabalho, não haviam recebido indenização por suas perdas.

Das 30 entrevistas realizadas pelo projeto Pólen, nos três municípios de abrangência do Parque, foram identificadas duas OSC que tiveram sua criação relacionada à criação do Parque, constituindo assim um foco desta pesquisa. Tais OSCs foram: Associação de Amigos e Defensores do PARNA Restinga de Jurubatiba (APAJ) e Associação dos Pescadores de Carapebus. A APAJ foi criada para apoiar as ações de fortalecimento e implementação da UC. Já a Associação dos Pescadores de Carapebus foi criada com o intuito de tentar garantir a participação dos pescadores na gestão do Parque.

Na terceira etapa, foi realizado o levantamento bibliográfico, que consistiu na leitura das atas das reuniões do conselho gestor, do seu regimento interno e da lei de criação, assim como publicações científicas relacionadas ao PARNA Jurubatiba. Também foi analisada uma publicação especial do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase, 2003Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas - Ibase. Boletim Justiça Ambiental 2003; 1(1). Edição especial.), o Boletim Justiça Ambiental, que publicou o poema “O Homem e a Natureza”, do Vice-Presidente da Associação dos Pescadores de Carapebus, Tio Jorge.

Tio Jorge é uma pessoa conhecida pela sensibilidade com que coloca os conflitos decorrentes do manejo dos recursos hídricos e pesqueiros na região; ele defende incansavelmente a causa dos pescadores, como pode ser observado neste trecho de seu poema:

“[...] veio um povo de Brasília falando o que eu não seio (sic) A tar da biodiversidade (...) Agora é Parque Jurubatiba dizem que é pra preservar. Não seio (sic) si é bom ou mar, mas imploro, por favor, nessa tar preservação, preserve nós pescador [...]”. (Tio Jorge - O Homem e a Natureza)

4. DISCUSSÃO

4.1. O conflito socioambiental: “a proibição da pesca nas Lagoas do Parque.”

De acordo com o artigo 5º da Lei nº 9.985/00, deveria ser assegurada a participação efetiva das populações locais na criação, na implantação e na gestão das unidades de conservação. No entanto, o poema do pescador evidencia o não cumprimento das diretrizes propostas por essa lei, que trata especificamente do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Para esse grupo, a criação do PARNA da Restinga de Jurubatiba foi imposta por pessoas não pertencentes à comunidade local, que impediram o uso da área pelos pescadores, caracterizando-se como um processo vertical.

Assim, a concepção, os critérios e as normas que instituem as UCs, ao defini-las como “[...] espaço territorial e seus recursos ambientais [...] com características naturais relevantes [...]” (Brasil, 2000Brasil. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 19 jul. 2000. [cited 2009 jan. 13]. Available from: www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9985.htm.
www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9985.ht...
), omitem a interação entre grupos sociais no espaço protegido. Por isso, as comunidades localizadas no entorno das UCs, ou mesmo no seu interior, são excluídas de sua gestão e são, ainda, direta ou indiretamente, atingidas pelas restrições de uso impostas, quadro que é mais visível naquelas unidades de proteção integral. Além disso, ao restringir o uso pelas comunidades, sem que os limites sejam definidos por um amplo processo democrático, provoca-se uma percepção “negativa” sobre as UCs pela comunidade (Loureiro, 2007Loureiro CFB, Viégas A. A relação entre os conceitos de totalidade e de práxis e suas implicações para a educação ambiental: breve incursão na tradição dialética histórico-crítica. In: Guerra AFS, Taglieber JE, organizadores. Educação ambiental: fundamentos, práticas e desafios. Itajaí: UNIVALI; 2007. 226 p.).

Diante desse cenário, é essencial resgatar a ideia de que a mobilização social e os tipos de representação devem ir além da chamada democracia representativa (limitada à escolha de representantes por meio do voto), pois se deve participar das decisões que afetam o todo na condição de “sujeitos sociais” (Loureiro, 2007Loureiro CFB, Viégas A. A relação entre os conceitos de totalidade e de práxis e suas implicações para a educação ambiental: breve incursão na tradição dialética histórico-crítica. In: Guerra AFS, Taglieber JE, organizadores. Educação ambiental: fundamentos, práticas e desafios. Itajaí: UNIVALI; 2007. 226 p.).

Existem diferentes formas de entender a participação: a liberal, a autoritária e a democrática (Gohn, 2003Gohn MG. Conselhos Gestores e participação sociopolítica. 2rd ed. São Paulo: Cortez, 2003. 120 p.). Neste trabalho, tem-se como base a concepção democrática segundo a qual a participação objetiva o fortalecimento da sociedade civil para a construção de caminhos que apontem para uma nova realidade social, sem injustiças, exclusões, desigualdades e discriminações.

Nessa concepção, a participação, articulada com a cidadania, criaria uma cultura de divisão das responsabilidades na construção coletiva de um processo, inclusive na esfera governamental. Torna-se imprescindível, dessa maneira, a constituição de uma linguagem democrática não excludente nos espaços participativos criados ou existentes, o acesso dos cidadãos a todo tipo de informação que lhes diga respeito e o estímulo à criação e ao desenvolvimento de meios democráticos de comunicação (Gohn, 2003Gohn MG. Conselhos Gestores e participação sociopolítica. 2rd ed. São Paulo: Cortez, 2003. 120 p.).

A palavra participação refere-se a “tomar parte”, mas é preciso entender que isso não é uma atitude espontânea ou dada, mas sim aprendida e conquistada. Portanto, é necessário desenvolver ações de formação que possibilitem uma participação qualificada, sobretudo, daqueles em condições de maior vulnerabilidade socioambiental e que não têm acesso aos mecanismos tradicionais de representação política.

Para tentar garantir sua participação na gestão do Parque, esse grupo formou em 1999 a Associação de Pescadores de Carapebus, um dos municípios que fazem parte do Parque. A partir dessa iniciativa, o grupo passou a “ocupar” o espaço público democrático por meio de suas reivindicações políticas, referentes aos seus interesses e aos de sua representação nos processos decisórios. Mas, como visto anteriormente, devem ser desenvolvidos meios que garantam a efetiva participação desse grupo.

A gestão ambiental é vista como o processo de mediação de interesses e conflitos entre atores sociais que agem sobre o meio físico-natural e o meio construído, objetivando garantir o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado, como determina a Constituição Federal (artigo 225). Cabe ao Estado, mediar esse processo e garantir que a população contribua, influencie e usufrua, de forma mais efetiva e direta, na construção de sua realidade por meio de ações organizadas (Ibama, 1997Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA. Diretrizes para operacionalização do Programa Nacional de Educação Ambiental. Brasília: IBAMA; 1997. 27 p.). As condições necessárias a essa participação podem ser conquistadas pela capacitação desses atores envolvidos.

Segundo Quintas (2000Quintas JS. Por uma educação ambiental emancipatória: considerações sobre a formação do educador para atuar no processo de gestão ambiental. In: Quintas JS, organizador. Pensando e praticando a educação ambiental na gestão do meio ambiente. Brasília: IBAMA, 2000., p. 18):

A esfera da capacitação compreende processos educativos destinados a produção e aquisição de conhecimentos e habilidades e o desenvolvimento de atitudes com vistas a proporcionar condições para a participação individual e coletiva na gestão do uso dos recursos ambientais e nas decisões que afetam a qualidade do meio físico-natural e social.

Tais atores construiriam saberes significativos, metodologias e valores necessários numa prática dialógica, visando o fortalecimento tanto da autonomia individual como da autonomia coletiva, ambas necessárias à organização e ao progresso social; a compreensão da diversidade e da complexidade das questões ambientais, suas causas, seus efeitos e suas inter-relações, e o desenvolvimento de ações mobilizadoras junto às comunidades que contribuam para o encaminhamento de questões ambientais.

Os Conselhos Gestores são espaços legalmente constituídos e legitimados para o controle social na gestão das UCs, sendo o seu fortalecimento um pressuposto para o cumprimento da função social das áreas protegidas.

Dessa forma, para a consolidação dos Conselhos, devem ser consideradas as disparidades na capacidade de participação, de modo a criar condições para a real democratização do processo decisório. Tal situação só é possível se houver a participação efetiva e qualificada daqueles grupos sociais que sempre estiveram à margem das medidas decorrentes da gestão e se constituíram, via de regra, nos mais afetados pela existência das áreas protegidas.

Outra diretriz apresentada pela Lei nº 9.985 é a garantia de meios de subsistência alternativos ou a justa indenização pelos recursos perdidos às populações tradicionais, cuja subsistência dependa da utilização de recursos naturais existentes no interior das unidades de conservação. Porém, pode-se questionar a validade dessas medidas. Serão esses meios capazes de suprir as perdas em relação à identidade desse grupo?

No artigo publicado pelo Ibase já mencionado, é registrada uma possível resposta a tal questionamento, registrada na fala de um pescador da região:

Minha família toda é de pescadores, nasci de rio e vou morrer dentro da pesca. [...] A legislação proíbe a pesca dentro do parque. Que vitória é essa? Eles tiraram sabe o quê? Acabaram com um sonho centenário do homem que pescava e cuidava. - “Nós vamos dar condições”, dizem eles, “você vai poder fazer sandália de folha de taboa, vai ser guia turístico”. É isso que nós queremos?

[...] O pescador estava tão afinado com aquilo [...] É uma coisa de tantos anos que o lucro não é o mais importante da atividade. Só o fato de planejar, remar uma canoa, fazer um buraco na areia e beber uma água com a cuia... Estão matando toda essa tradição, toda essa cultura, porque não estão dando chance. (Tio Jorge - O Homem e a Natureza)

Como observado nessa fala, o problema gerado pela proibição da pesca nas Lagoas do Parque ultrapassa os danos econômicos, referindo-se também à negação da identidade desse grupo. Por conseguinte, mais do que inviabilizar uma prática rentável, a implementação do parque acaba por destituir tais moradores de seu “sonho centenário”, negando-lhes a existência e a reprodução de sua tradição.

É impossível pensar em uma justiça ambiental que desconsidere um dos aspectos do par reconhecimento/redistribuição, já que, segundo Loureiro (2004Loureiro CF. Educação ambiental e gestão participativa na explicitação e resolução de conflitos. Gestão em Ação 2004; 7:37-50., p. 43):

[...] a aceitação de que a sociedade além de plural é permeada por visões de mundo, interesses e necessidades distintas e estruturalmente antagônicas está implícita em processos efetivamente democráticos, nos quais se incluem as oposições, tensões e contradições entre direitos e deveres, indivíduo e coletividade, público e privado, liberdade e igualdade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao ser analisado o caso do PARNA da Restinga de Jurubatiba, observou-se a materialidade de um conflito ambiental, aqui entendido como aquelas situações nas quais há confronto de interesses representados por diferentes atores sociais, em torno da utilização e/ou gestão do meio ambiente (Carvalho & Scotto, 1995Carvalho I, Scotto G. Conflitos socioambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Ibase; 1995. 163 p.).

Neste caso, o conflito está relacionado à criação de um parque nacional que, para os preservacionistas, significa a garantia da conservação da biodiversidade, e, para os pescadores, representa a proibição de uma prática da qual eles dependem economicamente e que está enraizada em sua cultura.

Para pensar a inclusão social em áreas protegidas, sobretudo aquelas de usos restritivos, é preciso ampliar os olhares para toda a complexidade inerente a esse tema. Significa o entendimento de que o ambiente não é apenas o espaço natural, mas o resultado de interações múltiplas e complexas, que permitem a construção de sentido de localidade, territorialidade, identidade e pertencimento, e de contextualização para sujeitos individuais e coletivos (Loureiro, 2004Loureiro CF. Educação ambiental e gestão participativa na explicitação e resolução de conflitos. Gestão em Ação 2004; 7:37-50.).

Logo, alguns aspectos devem ser considerados ao serem criadas as UCs. As comunidades locais a serem afetadas por sua criação devem ser tratadas como aliadas e não como adversárias da conservação. Para isso, é necessário distinguir as formas de relação sociedade/natureza por meio de resposta a perguntas, como: Quais são os grupos sociais inseridos direta ou indiretamente na UC? Quem se beneficia com a adoção de certas práticas produtivas? Quais grupos são prejudicados neste processo? Quais são as culturas que favorecem a preservação ambiental? Quem participa da tomada de decisão para a criação de uma UC? Quem participa do processo técnico e político de definição da categoria de uma UC? Qual é a capacidade institucional instaurada para garantir canais de diálogo e decisão no Estado?

Segundo Ghimire apud Diegues (2002)Diegues AC. O mito moderno da natureza intocada. 4rd ed. São Paulo: Hucitec; 2002. 176 p., não basta tentar somente resolver conflitos gerados com as populações de moradores locais tradicionais pela implantação mal planejada de UC. É preciso melhorar as condições de vida dessas populações, sem afetar essencialmente sua relação mais harmoniosa com a natureza.

Com base nas questões discutidas, pode-se concluir que a participação da sociedade na criação e na gestão das UCs é um elemento fundamental para sustentabilidade das áreas protegidas e não se deve prevalecer uma visão estritamente preservacionista, baseada no pressuposto de que, ao reservar áreas naturais para conservação, automaticamente se garantirá a diversidade biológica. Como se pode observar neste estudo de caso, a implantação de áreas protegidas é um processo complexo e deve envolver os diferentes atores envolvidos para que assim possam ser alcançados os objetivos dessas áreas protegidas.

Portanto, além dos levantamentos e pesquisas científicas relativos ao ambiente a ser preservado, no processo de criação de uma UC é de extrema importância um aprofundado estudo antropológico, histórico e sociológico sobre o modo de vida dos moradores da área e a construção de sua territorialidade. Neste sentido, é fundamental construir um diálogo entre os saberes, ou seja, reconhecimentos recíprocos - nos planos cultural e da identidade coletiva - do acesso igualitário aos direitos e recursos existentes, assim como da garantia de participação igualitária nos processos decisórios.

  • 1
    Vale ressaltar que este estudo de caso foi realizado com dados provenientes de uma pesquisa mais ampla, um Diagnóstico Socioambiental realizado na região Norte-fluminense do Estado do Rio de Janeiro, realizada em 2006 por um projeto de Educação Ambiental - Polos Educativos do Norte-fluminense e Região (Projeto Pólen). Sendo assim, o roteiro das entrevistas não foi elaborado especificamente para este estudo de caso, sendo a análise destas focada em questões relacionadas diretamente aos objetivos deste trabalho.
  • 2
    No presente trabalho, será analisada apenas a caracterização do conflito existente, que é foco da pesquisa.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao Projeto Pólen, pela oportunidade de realizar este estudo de caso; ao laboratório de Limnologia, ao Núcleo em Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental de Macaé (NUPEM/UFRJ) e ao IBAMA, por sediarem os estudos realizados neste projeto, e à Petrobras, pelo apoio financeiro.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2011

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2010
  • Aceito
    02 Dez 2011
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