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Trombose dos stents com fármacos: o retorno de um antigo pesadelo?

EDITORIAL

Trombose dos stents com fármacos: o retorno de um antigo pesadelo?

Luiz Alberto Mattos

Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia de São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Luiz Alberto Mattos Av. Jandira, 550 - Apto. 121 São Paulo - SP - CEP: 04080-003 E-mail: pivmattos@uol.com.br

A cardiologia intervencionista vem apresentando crescimento exponencial desde a sua introdução, em 1977. O tratamento da doença arterial coronária por meio percutâneo revolucionou o tratamento da aterosclerose coronária1.

Desde a introdução da angioplastia com balão, o nosso desafio é proporcionar aos nossos pacientes um método seguro, com resultados imediatos previsíveis e duradouros. A trombose e as conseqüências maléficas dela decorrentes rondam a cardiologia intervencionista há quase três décadas.

Os stents coronários, desde cedo, mostraram desempenho superior na capacidade de sobrepujar as deficiências observadas com a angioplastia com o balão. No primeiro momento, em 1991, Serruys et al.2 relataram 24% de trombose dos stents auto-expansíveis, ao final de seis meses. Como conseqüência, os stents coronários expansíveis com balão requereram intenso protocolo anticoagulante e internação hospitalar prolongada, com o objetivo de viabilizar a sua eficácia e segurança e, desta forma, proporcionar o usufruto dos benefícios para os maiores interessados, os pacientes. Neste momento, diversos cardiologistas desacreditaram o método e logo previram que, em breve, os mesmos seriam banidos da prática clínica.

Contudo, em 1995, a otimização da técnica de implante por Colombo et al.3 e um novo regime antiplaquetário proporcionaram o florescimento dos stents coronários. Assim, os stents coronários se estabeleceram como o "padrão ouro" para a realização da revascularização percutânea coronária. As taxas de trombose foram reduzidas para níveis inferiores a 1%, mas sempre com manifestação precoce, nos primeiros 30 dias4. A constatação de eventos muito tardios, isto é, a partir de um ano do procedimento, nunca foi valorizada ou pesquisada adequadamente.

Quinze anos depois, o debate se acende novamente, com intensidade jamais observada, invadindo também a mídia leiga, desta feita, voltado contra a prática dos stents farmacológicos e sua comprovada eficiência: garantia de permeabilidade tardia, com taxas superiores a 90% dos pacientes tratados, independente da multiplicidade clínica e angiográfica da doença arterial coronária, devido a suas propriedades inibitórias na cicatrização intimal5-8.

Um novo pesadelo ronda os nossos pacientes e os cardiologistas intervencionistas, sempre desejosos de oferecer o melhor, um tratamento eficaz, seguro, duradouro, menos invasivo, que possibilite enfrentar os malefícios da doença arterial coronária, progressiva, múltipla, ubíqua e, acima de tudo, desafiadora. A humildade e a análise crítica constante são fundamentais para que a segurança dos nossos pacientes sempre seja preservada.

A TEMPESTADE DE BARCELONA

No último Congresso Europeu de Cardiologia, realizado na cidade de Barcelona, Espanha, em agosto de 2006, três apresentações plenárias sacudiram a audiência a nível mundial. A mais discutida, a meta-análise de Camenzind et al.9, reunindo os quatro grandes estudos randomizados com o stent Cypher®, demonstrou uma taxa total de mortalidade e ocorrência de infarto do miocárdio com onda Q de 6,3% versus 3,9% (p=0,03), comparando ao controle9-11. De imediato, foi editada a manchete afirmando que o implante deste dispositivo percutâneo carreava um risco de 66% para a ocorrência destes graves desfechos clínicos. O outro dispositivo, com liberação de paclitaxel, que juntamente com o stent com sirolimus faz parte da primeira geração bem sucedida destes dispositivos coronários que obtiveram liberação para aplicação clínica, não gerou tal polêmica, pois a revisão da literatura não demonstrou evidência da ocorrência destas complicações6-8.

Diversas críticas foram feitas e demonstraram-se deficiências metodológicas da referida pesquisa apresentada em Barcelona e recentemente publicada11.

Apesar da revisão sistemática supracitada não seguir a mais prudente e adequada metodologia científica, e assim revelar ao público uma conclusão robusta e consistente, seus resultados fomentaram intensa pesquisa clínica, acionando as maiores autoridades mundiais no assunto, em mobilização científica jamais captada na história da cardiologia intervencionista, reunindo, além dos investigadores principais, os mais importantes órgãos de regulamentação de saúde pública, dos Estados Unidos da América e da Europa.

E qual o motivo desta maciça mobilização? A incidência da trombose muito tardia dos stents com fármacos, apesar de muito pequena, está associada a alta taxa de morbidade, em média de 45%, para a ocorrência de infarto do miocárdio e ou mortalidade, em pacientes em plena atividade laborativa e social, após a realização da revascularização percutânea5-11.

BUSCANDO A VERDADE, CONFECCIONANDO RECOMENDAÇÕES

A análise adjudicada dos eventos, suas definições em cada um dos estudos e a meticulosa revisão caso a caso já possibilitam algumas conclusões e recomendações.

O primeiro passo para obtenção de conclusões mais definitivas foi o estabelecimento das definições para a trombose dos stents, pelo Academic Research Consortium (ARC), em Dublin, Irlanda, em junho de 2006 (Quadro 1), que, doravante, devem ser acatadas, para uniformizar a contagem de eventos adversos12.


Todo este processo de análise criteriosa, por meio de adjudicação independente, caso a caso, dos pacientes incluídos nos principais estudos randomizados, assim como a aplicação destes conceitos nos grandes registros de instituições reconhecidas, foram apresentados em um Fórum de dois dias, organizado pelo FDA (Food and Drug Administration), na sua sede, em Virginia, Estados Unidos da América, dias 7 e 8 de dezembro passados. Este farto material científico, jamais reunido em curto espaço de tempo, rendeu mais de 2 megabytes de apresentações em diapositivos, e diversas publicações recentes, nas mais renomadas revistas médicas mundiais. A duração do seguimento clínico de pacientes tratados com os dois stents com liberação de sirolimus e paclitaxel atinge, neste momento, quatro anos5-12.

E quais as conclusões e recomendações em meados de março de 2007?

1. Os pacientes submetidos ao implante de stents com fármacos, de acordo com os critérios de inclusão dos estudos controlados, não apresentaram taxas significativamente mais elevadas de trombose, comparada aos stents não farmacológicos. Estas indicações incluem também pacientes diabéticos, com angina instável, vasos com diâmetro inferior a 2,5 mm e extensão da estenose coronária-alvo superior a 30 mm5-8.

2. Nestas situações clínicas e angiográficas, as taxas de sobrevida livre da ocorrência de trombose, ao final de quatro anos, foram similares com ambas as endopróteses, farmacológicas ou não, e similares também para stents com liberação de sirolimus e paclitaxel. Ao final de 1.440 dias de evolução, as taxas de trombose definitiva ou provável foram de 1,5% vs 1,8 (p=NS), stent Cypher® comparado ao controle, e para o stent Taxus®, as taxas cumulativas foram 1,8% vs 1,1% (p=0,08), farmacológico e controle, respectivamente5-7.

3. Neste pacientes incluídos nos estudos controlados, observa-se um acréscimo modesto das taxas de trombose tardia (0,3%-0,6%), principalmente seis meses após o implante, principalmente após a interrupção da terapia antiplaquetária e após o implante de stents com paclitaxel8.

4. A cronologia e as circunstâncias da ocorrência da trombose tardia variam conforme a endoprótese, com ou sem fármaco. Nos stents com fármaco, ocorre mais tardiamente do que nos não farmacológicos, e se manifesta majoritariamente como trombose primária, e na endoprótese não farmacológica, mais precocemente e relacionada à reestenose e à necessidade da realização de nova intervenção percutânea para o vasoalvo. A grande vantagem dos stents com fármaco é a redução muito expressiva da reestenose clínica (>75%), isto é, a necessidade de realizar novos procedimentos de revascularização para o vaso-alvo, obscurecendo a aferição da taxa de trombose tardia dos stents não farmacológicos5-8.

5. A trombose tardia é uma complicação da técnica que ocorre para ambas as endopróteses, com ou sem fármacos. Em relação aos stents com fármacos, diversas justificativas podem explicar a ocorrência do fenômeno em um momento mais tardio: técnica inadequada de implante, com hipoexpansão e má aposição das hastes metálicas, presença de polímero durável, fármaco residual no polímero (paclitaxel), retardo na endotelização, reações alérgicas ao polímero e fármaco e, principalmente, a interrupção precoce da terapia antiplaquetária (clopidogrel), em determinados subgrupos de pacientes com maior risco (diabéticos e múltiplos stents farmacólogicos implantados com sobreposição)7,12. Em uma população de pacientes sem critérios de restrição clínicos e angiográficos impostos pelos estudos controlados, os assim denominados de pacientes do "mundo real" (all comers), as taxas de trombose tardia e muito tardia parecem ocorrer em uma taxa constante de 0,4 a 0,6% ao ano. Uma comparação controlada ou pareada com pacientes submetidos a implante de stents sem fármaco inexiste, visto que as indicações evoluíram substancialmente nos últimos 5-10 anos, beneficiando um porcentual significativo de pacientes, quando do advento desta nova tecnologia, aplicada às endopróteses metálicas. Esta confirmação fica bem notificada com a evolução tardia do estudo ARTS parte II, composto majoritariamente de pacientes com tratamento tríplice coronário percutâneo e com uma média de extensão de stents farmacológicos implantados de 73 mm. Neste estudo, as taxas de trombose tardia são de 1,7%, 0,6% e 0,4%, 1, 2, e 3 anos de evolução, respectivamente13.

6. O advento dos stents farmacológicos foi marcante, um outro passo definitivo, como foram inicialmente as endopróteses metálicas. Promoveu significativa redução das taxas de reestenose, fornecendo durabilidade tardia aos resultados iniciais, significativamente maior e mais abrangente, beneficiando milhares de pacientes submetidos à intervenção coronária percutânea e trazendo significativa melhora na qualidade de vida dos mesmos5-8,12.

7. Como qualquer medida terapêutica em medicina, a técnica apresenta para-efeitos, predominantemente a ocorrência de trombose tardia primária, em uma taxa de ocorrência de 2 eventos por 1.000 pacientes tratados ao ano, comparado aos stents não farmacológicos, que por outro lado, apresentam também esta complicação, porém em período mais precoce (até 6 meses após o implante) e, muitas das vezes, manifestado por reestenose e necessidade de repetição de um procedimento de revascularização para o vaso-alvo. Técnicas alternativas também exibem suas limitações, como a revascularização cirúrgica, com taxas de oclusão dos enxertos venosos de 3 a 12%, nos primeiros 30 dias, e cerca de 40%, ao final de 10 anos12.

8. Um consenso emerge destes resultados, mas ainda carece de evidências fornecidas por estudos controlados, em andamento, relacionado ao tempo de prescrição do clopidogrel, após o implante de stents com fármacos. Não podemos basear a prática clínica em recomendações sem a robustez necessária, ou somente por "esperança" ou "intuição". Até o momento, não existe evidência definitiva que recomende a prescrição deste antiplaquetário "para toda a vida". A utiliza ção por um ano parece suficiente para os pacientes com perfil clínico e angiográfico similar àquele dos estudos controlados, até que novas conclusões sejam obtidas com os novos estudos dedicados em andamento. Para as demais indicações, aquelas mencionadas no item 5, ainda não se chegou a um consenso, mas com tendência a utilização por 2-3 anos9,12.

PERSPECTIVAS FUTURAS PARA OS STENTS COM FÁRMACOS

Estes novos dispositivos seguem em vigilância constante, como deve ser feito com qualquer medicamento ou procedimento na prática médica, analisando, periodicamente e sistematicamente, a evolução tardia e o seguimento dos pacientes submetidos à intervenção coronária percutânea com estas endopróteses. Estudos dedicados e controlados, em breve, apresentarão seus resultados, comparando diversos modelos de stents com fármacos (PROTECT) ou a comparação da sua aplicação com a cirurgia de revascularização do miocárdio em pacientes multiarteriais e diabéticos (SYNTAX e FREEDOM), assim como registros controlados mundiais (e-SELECT e OLYMPIA). A uniformização das definições efetivada pelo ARC, assim como a inclusão de objetivos substitutivos para a contabilização da ocorrência da trombose, como o infarto do miocárdio e o óbito, são fundamentais para obtermos as respostas mais corretas e mais consistentes. Abandonar o território do "achismo" é fundamental para a evolução do conhecimento científico.

A recomendação, no momento, é de seleção mais criteriosa dos candidatos, principalmente, evitando o implante destes stents, em pacientes com uma definitiva evidência da não aderência ao tratamento antiplaquetário, por ao menos um ano, por diversos motivos clínicos (por exemplo, cirurgia não cardíaca) e sociais (por exemplo, restrições financeiras). As indicações clínicas e angiográficas que não foram avaliadas nos estudos controlados de larga escala merecem também uma prudência maior, principalmente frente à necessidade de implante de múltiplos stents seqüenciais ou sobrepostos, como o tratamento das bifurcações, estenoses no tronco da coronária esquerda não protegido (trifurcações), infarto agudo do miocárdio e doença extensa e difusa seqüencial.

Este ponto de vista manifesta a opinião do autor, que acredita que esta geração de stents farmacológicos será definitivamente modificada e então abandonada, aprimorando a seleção do fármaco e a potência da inibição da reação cicatricial intimal do vaso tratado, assim como as suas propriedades antitrombóticas, incorporando a segunda e até terceira geração de stents com fármacos, por meio da adoção de polímeros biodegradáveis, novos fármacos, dupla liberação com objetivos distintos, entre outras, removendo este incômodo devastador agora identificado, da trombose dos stents de ocorrência muito tardia.

Recebido em: 18/03/2007

Aceito em: 20/03/2007

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    Luiz Alberto Mattos
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2007
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