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Ensinando a técnica de Sones: necessidade ou tradição?

Teaching the Sones technique: necessity or tradition?

EDITORIAL

Ensinando a técnica de Sones: necessidade ou tradição?

Teaching the Sones technique: necessity or tradition?

Claudia Maria Rodrigues Alves; Valter Correia de Lima

Escola Paulista de Medicina - UNIFESP, São Paulo, SP, Brasil

Correspondência Correspondência: Claudia Maria Rodrigues Alves Rua Simão Álvares, 527 - Apto. 63 - Pinheiros São Paulo - SP - CEP 05417-030 E-mail: cmralves@uol.com.br

Desde sua descoberta acidental, em 1958, pelo Dr. Mason Sones Jr.1-3, a angiografia coronária modificou a história da cardiologia, permitindo o estudo detalhado da anatomia coronária, a expansão do conhecimento da fisiopatologia da doença coronária e o desenvolvimento das técnicas cirúrgica e percutânea de tratamento. O cateter criado por Sones permitia o engajamento seletivo dos óstios coronários e a ventriculografia, sendo introduzido na artéria braquial através de dissecção cirúrgica aberta. Pouco tempo depois, os Drs. Melvin P. Judkins e Amplatz simplificaram o método da coronariografia, com a utilização de cateteres pré-moldados para acesso seletivo a cada artéria coronária, introduzidos pela punção da artéria femoral (AF), cuja fácil manipulação permitia mais rápida aprendizagem e melhor estabilidade do cateter4,5. Nos últimos 30 anos, a técnica de Judkins rapidamente substituiu a técnica de Sones (TS), sendo bastante incomum, nos dias atuais, um cardiologista intervencionista que domine esta última, exceto no Brasil.

O principal motivo para a persistência do método no Brasil é econômico: a conveniência da utilização de apenas um cateter e o reduzido período de observação pós-exame.

Considerando-se as quatro maiores instituições de treinamento de São Paulo, atendendo a pacientes do sistema público de saúde, apenas uma delas mantém a realização rotineira da TS, sendo esta escolha determinada pela dificuldade na adequação da área física para o repouso de grande número de pacientes. Em pesquisa realizada pelo site da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista, em março de 2005, 45% dos entrevistados declararam não utilizar a TS como primeira opção. Sendo assim, qual a necessidade ou relevância de se realizar o treinamento do jovem intervencionista na TS?

Provavelmente, a maior dificuldade hoje encontrada neste aprendizado é a falta de treinamento básico do médico, com formação clínica, em dissecção cirúrgica arterial. Com a ultra-especialização sendo incentivada pela sociedade e se refletindo em precoce abandono do aprendizado das técnicas básicas que não serão utilizadas na vida profissional, o clínico chega à fase de especialização sem qualquer habilidade cirúrgica. A artéria braquial, por suas características anatômicas, é de fácil acesso percutâneo ou por dissecção, podendo ser exposta em poucos minutos, sem requerer grande volume de casos para treinamento. Entretanto, seu pequeno calibre torna maior a incidência de complicações relacionadas à sua manipulação, vasculares ou neurológicas. O treinamento do reparo ou sutura arterial deve ser mais cuidadoso e, este sim, pressupõe maior volume de casos, expondo o médico em treinamento a maior número de complicações e suas terapias específicas.

Nenhuma normatização sobre treinamento em hemodinâmica atualmente disponível prevê um número mínimo de casos para a TS, que certamente varia também com a habilidade pessoal de cada operador, tornando difícil determinar esta quantidade. Tradicionalmente, em poucas semanas, um residente torna-se apto para dissecção, abertura e fechamento arterial. Em laboratórios utilizando o acesso femoral, na maioria dos casos, a exposição ao treinamento da TS diminuiu, tornando o período de aprendizado perigosamente longo, freqüentemente maior que o treinamento das técnicas intervencionistas. Associa-se a este fato, o temor por sanção legal em complicação vascular (que ocorre em cerca de 5% dos casos). Confunde-se aqui o conceito de responsabilidade médica, uma vez que a ocorrência de uma complicação decorrente de um ato cirúrgico não reflete obrigatoriamente responsabilidade por imperícia, negligência ou imprudência. Entretanto, recorde-se a definição de imperícia como a deficiência de conhecimentos técnicos da profissão e despreparo prático que exponham o paciente a risco6. Para tanto, após o devido treinamento, supõe-se que o hemodinamicista deva também manter sua habilidade pela freqüente utilização do método.

A utilização do acesso vascular braquial torna-se obrigatória quando o paciente apresentar contra-indicação formal ao acesso percutâneo femoral (coagulopatia, doença vascular obstrutiva periférica grave, obesidade mórbida, incapacidade de repouso em decúbito horizontal). Além disso, espera-se do hemodinamicista, como um perito, a capacidade de executar um acesso alternativo ao femoral em casos de dificuldade técnica, como artérias ilíacas extremamente tortuosas, ou incapacidade de cateterizar artérias ou enxertos, como por exemplo, no estudo da artéria mamária interna. Embora a ajuda de especialista adicional possa ser requisitada, eleva-se o custo do procedimento. Com a progressiva melhora dos materiais, a utilização da técnica percutânea por punção braquial também pode ser utilizada com baixos índices de complicação7, dispensando a necessidade da dissecção e sutura e permitindo a utilização de acesso alternativo. Todavia, à semelhança da técnica radial, a punção da artéria braquial também é mais difícil que a femoral pela sua mobilidade, e a ocorrência de complicações graves não pode ser afastada. Adicionalmente, quando um segundo exame é necessário em curto espaço de tempo, hematomas residuais pós-compressão podem dificultar nova punção arterial em pacientes com um único local de acesso (por exemplo, após angioplastias ou em síndromes coronárias agudas). A técnica radial vem sendo pouco utilizada devido a suas peculiaridades de treinamento, contra-indicações e complicações específicas ou pela impossibilidade da utilização de cateteres de largo calibre.

Da mesma forma que se valorizava o cirurgião rápido em executar seu procedimento, por muito tempo, a tradição em hemodinâmica rezava que o hemodinamicista rápido, hábil em cateterizar os óstios pela TS, era também o melhor, em um tempo no qual a rapidez certamente significava redução de morbidade (especialmente arterial). Pela dificuldade no treinamento, pelo tempo que um residente levava até "moldar" a ponta do cateter na necessária curvatura, utilizando manobras aparentemente complexas, o "professor" era alçado a condição de "excelência". A utilização de cateteres prémoldados, pela sua extrema e super-estimada facilidade, quebrou o encanto, nivelando a qualidade dos exames e permitindo o treinamento mesmo de não especialistas, como ocorre nos Estados Unidos, aonde o cardiologista clínico é treinado na realização de procedimentos diagnósticos. A cateterização seletiva pela técnica de Judkins permite exame mais rápido e de melhor qualidade para visualização da anatomia coronária ou mesmo durante angiografia não seletiva, sendo a regra o menor desconforto para o paciente. Além disso, trouxe uma importante redução da freqüência de complicações vasculares relacionadas ao procedimento (1%), dispensando a obrigatoriedade da anticoagulação e permitindo inúmeras trocas de cateteres. A possibilidade da utilização dos mesmos cateteres pré-moldados também pelo acesso braquial é extremamente vantajosa, solucionando muitos dos problemas da TS, como instabilidade de posição ou óstios altos ou anômalos

É difícil justificar-se a persistência do uso de determinada técnica apenas pelo aspecto econômico, quando a economia proporcionada pode não compensar os custos das complicações e da perda de qualidade do exame. Com a utilização de cateteres de pequeno calibre e sem anticoagulação, o repouso por poucas horas após o exame por via femoral é suficiente e seguro, eliminando a necessidade de internação ou pernoite hospitalar. É também difícil aplicar recursos e tempo em um treinamento para uma metodologia em franco desuso, sendo esta a maior comprovação prática de sua inferioridade.

Todavia, a especialidade médica, à semelhança da própria medicina, vem se modificando muito, no sentido de rapidamente somar novas tecnologias, que são rapidamente incorporadas ao dia-a-dia do médico.

Se a arte da coronariografia seletiva persiste confinada ao cardiologista intervencionista, a expansão da técnica intervencionista para todos os leitos vasculares e a introdução de dispositivos que exigem acesso arterial direto vem sendo a regra. Podemos visualizar um futuro no qual caiba ao cardiologista intervencionista a atuação isolada em procedimentos semi-cirúrgicos. O caminho do ensino médico é complexo e não se pode pensar em modificações que não incluam a graduação, proporcionando uma formação mais completa ao cardiologista, antes de pensarmos em modificar a especialização. Todavia, naquilo que hora nos cabe, parece ser prudente a conclusão pela manutenção das pequenas habilidades cirúrgicas adquiridas pela especialidade, até mesmo estimulando sua expansão, prevendo novos dispositivos, não só no que diz respeito à simples técnica da dissecção e reparo arterial braquial, mas também e até da dissecção arterial femoral. Se o desenvolvimento dos dispositivos e sua introdução percutânea permitir que se dispense a dissecção cirúrgica, devemos lembrar que, idealmente, o controle de complicações também pode requerer este conhecimento.

Quanto à TS, devido não só à dificuldade de treinamento, mas também a da manutenção da proficiência, parece-nos que ficará confinada à história, ocupando aí o grande lugar que lhe cabe, o parágrafo inicial.

Recebido em: 22/5/2007

Aceito em: 3/7/2007

  • 1. Sones FM Jr. Acquired heart disease: symposium on present and future of cineangiocardiography. Am J Cardiol. 1959;3:710.
  • 2. Ryan TJ. The coronary angiogram and its seminal contributions to cardiovascular medicine over five decades. Circulation. 2002;106(6):752-6.
  • 3. Conti AA, Margheri M, Gensini GF. A brief history of coronary interventional cardiology. Ital Heart J. 2003,4(10):721-4.
  • 4. Seldinger SI. Catheter replacement of the needle in percutaneous arteriography: a new technique. Acta Radiol. 1953;39(5):368-76.
  • 5. Judkins MP. Selective coronary arteriography: I-A percutaneous transfemoral technique. Radiology. 1967;89(5):815-24.
  • 6. Lima MR. Responsabilidade profissional. In: Pitta GBB, Castro AA, Burihan E, editores. Angiologia e cirurgia vascular: guia ilustrado. Maceió:UNCISAL/ECMAL & LAVA;2003. Disponível em: URL: http://www.lava.med.br/livro
  • 7. Fergusson DJ, Kamada RO. Percutaneous entry of the brachial artery for left heart catheterization using a sheath: further experience. Cathet Cardiovasc Diagn. 1986;12(3):209-11.
  • Correspondência:

    Claudia Maria Rodrigues Alves
    Rua Simão Álvares, 527 - Apto. 63 - Pinheiros
    São Paulo - SP - CEP 05417-030
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      2007
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