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Implante valvular aórtico percutâneo: experiência inicial do Sul do Brasil

Percutaneous aortic valve replacement: initial experience in the South of Brazil

Resumos

INTRODUÇÃO: A estenose aórtica grave é uma doença prevalente e de alta morbidade e mortalidade, sendo a troca valvar por meio de cirurgia cardíaca a abordagem clássica. Todavia, indivíduos idosos e com outras co-morbidades apresentam elevado risco operatório. O implante valvular aórtico percutâneo pela via retrógrada desponta como uma alternativa exeqüível e efetiva. São descritos os primeiros casos realizados no Sul do Brasil com essa abordagem inédita. MÉTODO: Série de três casos com descrição da técnica e resultados imediatos do implante do dispositivo CoreValve, que consiste de uma bioprótese com três folhetos de pericárdio porcino montados e suturados e um stent auto-expansível de nitinol, introduzido pela via arterial femoral ou ilíaca. RESULTADOS: Três pacientes do sexo feminino com 81, 85 e 90 anos de idade e EuroSCORE logístico variando de 20% a 36% foram submetidas ao implante desse dispositivo com sucesso. Houve significativa queda dos gradientes entre o ventrículo esquerdo e a aorta e ausência de complicações cardiovasculares maiores, embora duas pacientes tenham necessitado de implante de marca-passo definitivo por distúrbio de condução atrioventricular. Todas as pacientes receberam alta assintomáticas e seguem em avaliação clínica. CONCLUSÃO: A experiência inicial do Sul do Brasil com implante valvular aórtico percutâneo se mostrou segura e efetiva em análise a curto prazo. Estudos adicionais e seguimento mais prolongado ainda são necessários para definir o exato papel e as precisas indicações dessa nova e promissora técnica.

Estenose da valva aórtica; Valvas cardíacas; Implante de prótese de valva; Próteses valvulares cardíacas


BACKGROUND: Severe aortic stenosis is a prevalent disease with high rates of morbidity and mortality. The classic approach to its treatment is through heart valve replacement surgery. However, elderly patients and others with different comorbidities present high surgical risk. The percutaneous aortic valve implantation through a retrograde approach has emerged as a feasible and effective alternative treatment for this issue. We describe the first series of cases treated with this new approach in the South of Brazil. METHODS: Series of three cases describing the procedure and immediate results of CoreValve device implantation. This device consists in a bioprosthesis with three porcine leafs mounted and sutured in a self-expandable nitinol stent introduced through the femoral or iliac artery. RESULTS: Three female patients aged 81, 85 and 90 years with a logistic EuroSCORE varying from 20% to 36% were successfully submitted to the implantation of this device. A significant reduction in all gradients between the left ventricle and the aorta was observed. There were no reports of major cardiovascular complications, although in two patients the implantation of a permanent pacemaker was needed due to an atrioventricular conduction disorder. All patients were discharged asymptomatic and were kept in a long-term clinical follow-up evaluation program. CONCLUSION: The initial short-term experience with the percutaneous retrograde aortic valve implantation in the south of Brazil was feasible and safe. Additional studies and long-term follow-up are still necessary in order to define the precise role and adequate indications for this new and very promising technique.

Aortic valve stenosis; Heart valves; Heart valve prosthesis implantation; Heart valve prosthesis


ARTIGO ORIGINAL

Implante valvular aórtico percutâneo: experiência inicial do Sul do Brasil

Percutaneous aortic valve replacement: initial experience in the South of Brazil

Rogério Sarmento-Leite; Alexandre Schaan de Quadros; Paulo Roberto L. Prates; Leonardo G. Zanatta; Paulo Affonso Salgado Filho; Tailur Grando; Rogério Gomes da Silva; Paulo Roberto Prates; Ivo A. Nesralla; Carlos A. M. Gottschall

Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul/Fundação Universitária de Cardiologia - Porto Alegre, RS

Correspondência Correspondência: Rogério Sarmento-Leite Av. Princesa Isabel, 395 -Setor de Hemodinâmica - Santana Porto Alegre, RS - CEP 90620-001 E-mail: sarmentoleite@terra.com.br

RESUMO

INTRODUÇÃO: A estenose aórtica grave é uma doença prevalente e de alta morbidade e mortalidade, sendo a troca valvar por meio de cirurgia cardíaca a abordagem clássica. Todavia, indivíduos idosos e com outras co-morbidades apresentam elevado risco operatório. O implante valvular aórtico percutâneo pela via retrógrada desponta como uma alternativa exeqüível e efetiva. São descritos os primeiros casos realizados no Sul do Brasil com essa abordagem inédita.

MÉTODO: Série de três casos com descrição da técnica e resultados imediatos do implante do dispositivo CoreValve, que consiste de uma bioprótese com três folhetos de pericárdio porcino montados e suturados e um stent auto-expansível de nitinol, introduzido pela via arterial femoral ou ilíaca.

RESULTADOS: Três pacientes do sexo feminino com 81, 85 e 90 anos de idade e EuroSCORE logístico variando de 20% a 36% foram submetidas ao implante desse dispositivo com sucesso. Houve significativa queda dos gradientes entre o ventrículo esquerdo e a aorta e ausência de complicações cardiovasculares maiores, embora duas pacientes tenham necessitado de implante de marca-passo definitivo por distúrbio de condução atrioventricular. Todas as pacientes receberam alta assintomáticas e seguem em avaliação clínica.

CONCLUSÃO: A experiência inicial do Sul do Brasil com implante valvular aórtico percutâneo se mostrou segura e efetiva em análise a curto prazo. Estudos adicionais e seguimento mais prolongado ainda são necessários para definir o exato papel e as precisas indicações dessa nova e promissora técnica.

Descritores: Estenose da valva aórtica. Valvas cardíacas. Implante de prótese de valva/métodos. Próteses valvulares cardíacas.

SUMMARY

BACKGROUND: Severe aortic stenosis is a prevalent disease with high rates of morbidity and mortality. The classic approach to its treatment is through heart valve replacement surgery. However, elderly patients and others with different comorbidities present high surgical risk. The percutaneous aortic valve implantation through a retrograde approach has emerged as a feasible and effective alternative treatment for this issue. We describe the first series of cases treated with this new approach in the South of Brazil.

METHODS: Series of three cases describing the procedure and immediate results of CoreValve device implantation. This device consists in a bioprosthesis with three porcine leafs mounted and sutured in a self-expandable nitinol stent introduced through the femoral or iliac artery.

RESULTS: Three female patients aged 81, 85 and 90 years with a logistic EuroSCORE varying from 20% to 36% were successfully submitted to the implantation of this device. A significant reduction in all gradients between the left ventricle and the aorta was observed. There were no reports of major cardiovascular complications, although in two patients the implantation of a permanent pacemaker was needed due to an atrioventricular conduction disorder. All patients were discharged asymptomatic and were kept in a long-term clinical follow-up evaluation program.

CONCLUSION: The initial short-term experience with the percutaneous retrograde aortic valve implantation in the south of Brazil was feasible and safe. Additional studies and long-term follow-up are still necessary in order to define the precise role and adequate indications for this new and very promising technique.

Descriptors: Aortic valve stenosis. Heart valves. Heart valve prosthesis implantation/methods. Heart valve prosthesis.

Estima-se que na população adulta com idade superior a 75 anos a prevalência de estenose aórtica seja próxima a 5%1. Em sua forma mais grave e avançada, apresenta elevada morbidade e mortalidade e a cirurgia a céu aberto com substituição valvar, com prótese biológica ou metálica, é o tratamento considerado padrão, proporcionando melhora da qualidade e maior sobrevida2. Todavia, em pacientes mais idosos e com outras co-morbidades, existe elevado risco cirúrgico, podendo determinar mortalidade perioperatória de até 50%3,4. Atualmente, cerca de 33% dos pacientes com estenose aórtica grave não são sequer encaminhados para avaliação e potencial troca valvar por via cirúrgica, em virtude da percepção do paciente ou de seu médico assistente de que a cirurgia cardíaca não seria um tratamento factível em função do elevado risco5. Assim, técnicas menos invasivas para o tratamento desse subgrupo de alto risco são necessárias.

A troca da valva aórtica por via percutânea é uma nova opção de tratamento para esses pacientes, tendo sido iniciada em humanos por Cribier et al.6, em 2002. Desde então, várias experiências clínicas com diferentes dispositivos já foram reportadas7-10. Essa técnica obteve evolução muito rápida, constituindo-se em tratamento alternativo aprovado em alguns países para terapêutica em pacientes muito idosos ou com contraindicações para a cirurgia clássica.

Entre os dispositivos disponíveis destaca-se a prótese CoreValve (CoreValve, Inc. - Irvine, Califórnia, Estados Unidos), de folhetos de pericárdio porcino montados e suturados e um stent auto-expansível de nitinol. Estimase que em 2008 mais de três mil dessas próteses já tenham sido implantadas em todo o mundo*.

No Brasil, ainda não foram relatados procedimentos de troca de valva aórtica realizados pela via percutânea com esse dispositivo. Na presente série, descrevemos os primeiros três casos de implante da prótese CoreValve realizados no Sul do Brasil.

MÉTODO

Desenho de estudo e critérios de seleção

Série de três casos de implante valvular aórtico percutâneo retrógrado em pacientes com estenose aórtica grave e com alto risco cirúrgico. Todos os casos foram realizados no Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul e representam a experiência inicial e os resultados dos primeiros implantes da prótese CoreValve na Região Sul do Brasil.

Os critérios de indicação para o procedimento foram a presença de estenose aórtica grave (área valvular < 1,0 cm2) em pacientes com idade > 80 anos, EuroSCORE logístico > 20% e com repercussão clínica de alguns dos seguintes sintomas: dor torácica ou dispnéia limitante, tonturas, pré-síncope ou síncope, ou arritmia ventricular.

Todos os casos foram avaliados por uma equipe multidisciplinar composta por um cardiologista clínico, um cardiologista intervencionista e um cirurgião cardíaco, sendo a troca valvar aórtica por cirurgia considerada com maior potencial de risco de mortalidade perioperatória e de possíveis complicações pósoperatórias.

A triagem dos pacientes envolveu a avaliação de condições anatômicas e funcionais favoráveis para o implante da prótese CoreValve. Para tanto, foram realizados ecocardiograma transtorácico com Doppler colorido, cineangiocoronariografia e angiotomografia de múltiplos detectores, conforme o caso. Os dados clínicos e angiográficos foram incluídos em formulários de acordo com o protocolo de avaliação padrão do fabricante (Figura 1), e a análise dessas características determinou a inclusão dos pacientes no estudo. Caso fossem considerados elegíveis, os pacientes eram orientados quanto aos riscos e benefícios do procedimento e assinavam o termo de consentimento livre informado.


Descrição do dispositivo e do procedimento

Foi utilizada a terceira geração da prótese valvular aórtica CoreValve, que consiste de uma bioprótese de três folhetos de pericárdio porcino montados e suturados e um stent auto-expansível de nitinol (Figura 2). O menor diâmetro interno da válvula tem 21 mm e sua estrutura (stent de nitinol) é cortada a laser em um tubo com 50 mm de comprimento. A porção distal da prótese possui alta força radial, o que permite sua expansão e sua exclusão dos já calcificados folhetos valvulares nativos, e evita seu encolhimento pós-implante. A porção média carrega a válvula e sua arquitetura permite que os óstios coronarianos se mantenham livres e acessíveis. A porção proximal é alargada, permitindo sua fixação e estabilidade longitudinal. A válvula antes de implantada é lavada e resfriada em solução salina gelada, passa por uma série de moldes vasculares para ter seu perfil reduzido, e é crimpada e fixada em um sistema de liberação de 18 French (Figura 3), que entrega a prótese após valvuloplastia aórtica por balão (Figura 4).




Todos os pacientes receberam 500 mg de ácido acetilsalicílico (AAS) e 300 mg de clopidogrel na noite anterior. Os procedimentos foram realizados sob anestesia geral e em vigência de anticoagulação com heparina não-fracionada ajustada pelo peso para se atingir tempo de coagulação ativada de 300 a 350 segundos.

O acesso vascular arterial principal para entrega da prótese foi obtido com punção ou dissecção da artéria femoral comum ou ilíaca com o objetivo de se canular um vaso com pelo menos 6,0 mm de diâmetro, o que permite a introdução de uma bainha 18 French. Outro acesso arterial no membro inferior contralateral foi necessário para posicionamento de um cateter pigtail 5 French, que serve para injeção de contraste e auxílio no momento do posicionamento e da liberação da prótese (Figura 5).


O ventrículo esquerdo foi acessado retrogradamente com um fio-guia hidrofílico de troca introduzido através de um cateter AL1 5 ou 6 French. Posteriormente, esse cateter era substituído por um pigtail, sendo medido o gradiente transvalvar e mantendo-se o fio-guia Amplatz superstiff na cavidade.

Um eletrodo de marca-passo cardíaco temporário foi introduzido já no início do procedimento pela veia jugular direita, sendo utilizado para prevenção de bradiarritmias e aumento da freqüência cardíaca (rapid pacing) para evitar migração do balão no momento da valvuloplastia que precede a liberação da prótese. O tamanho desse balão de valvuloplastia foi selecionado de acordo com o diâmetro do ânulo aórtico e foi sempre avançado sobre um fio-guia 0.035 Amplatz do tipo superstiff, já seguramente posicionado dentro da cavidade ventricular esquerda. A seguir, era liberada a prótese CoreValve, cujo tamanho foi predefinido de acordo com a avaliação prévia do paciente.

Parâmetros clínicos e hemodinâmicos eram continuamente avaliados durante o procedimento. Aortografias contrastadas foram realizadas antes, durante e após o implante da válvula, para melhor auxiliar no posicionamento e na liberação da prótese e avaliar vazamentos ou regurgitação aórtica residual. Ecocardiografia transesofágica estava disponível e poderia ser utilizada sempre que necessário.

Após o término dos procedimentos, os pacientes foram encaminhados para uma unidade de tratamento intensivo, onde permaneceram por pelo menos 48 horas para observação. O marca-passo temporário foi mantido por todo esse período.

Ecocardiograma transtorácico foi realizado antes da alta e aos pacientes foi recomendado manter a associação de AAS (100 mg/dia) e clopidogrel (75 mg/dia) indefinidamente.

RESULTADOS

A Tabela 1 apresenta as características de base com dados demográficos, fatores de risco e EuroSCORE logístico dos três pacientes submetidos a implante valvular aórtico percutâneo. Todos os pacientes eram do sexo feminino, com 81 (paciente 1), 84 (paciente 2) e 90 (paciente 3) anos de idade, e EuroSCORE logístico variando de 20% a 36%. A etiologia era degenerativa em todos os casos, sendo as valvas bastante calcificadas e com mínimo grau de regurgitação.

O acesso arterial para introdução da prótese Core-Valve na paciente 1 foi através de punção da artéria femoral direita, onde foi introduzida a bainha de 18 French. O sítio de punção foi fechado com dispositivo de sutura ProStar XL 10 (Abbott Laboratories - Abbott Park, Illinois, Estados Unidos). Na paciente 2, por falha do dispositivo de sutura, houve necessidade de converter a punção da artéria femoral comum direita em dissecção com exposição da mesma e posterior sutura do vaso e da pele. Na paciente 3, em razão de grave vasculopatia periférica, optou-se pela dissecção e ráfia da artéria ilíaca comum esquerda, o que transcorreu sem intercorrências.

Todos os procedimentos foram realizados com anestesia geral e o tempo médio, considerando a entrada e a saída da paciente da sala, foi de 170 minutos, sendo de 120 minutos, 180 minutos e 210 minutos nas pacientes 1, 2 e 3, respectivamente. O tempo necessário exclusivamente para introdução, posicionamento e liberação da prótese variou de 10 a 15 minutos.

O ecocardiograma transesofágico só foi realizado no implante do dispositivo da paciente 1, mostrando-se útil e altamente ilustrativo, como pode ser observado na Figura 6.


Houve sucesso imediato do implante do dispositivo em todas as pacientes, verificando-se drástica redução do gradiente pressórico entre a cavidade ventricular esquerda e a aorta, exemplificada pelas curvas da Figura 7. A Tabela 2 mostra os valores absolutos e a Figura 8 mostra a variação gráfica dos gradientes pressóricos avaliados antes e após os procedimentos pela ecocardiografia (máximos e médios) e o "pico-a-pico" medido na sala de hemodinâmica. Durante a ecocardiografia de controle, observou-se discreta regurgitação aórtica nas pacientes 2 e 3, secundária a diminuto leak perivalvar.



No controle eletrocardiográfico imediato, observou-se que todas as três pacientes desenvolveram bloqueio de ramo esquerdo, o que pode ter algum significado prognóstico.

Não houve nenhum evento cardiovascular maior no período imediato pós-procedimento e o tempo médio de permanência no centro de tratamento intensivo foi de dois dias.

A paciente 1 apresentou discreto quadro de congestão pulmonar secundário a excesso de hidratação endovenosa, que foi tratado com diuréticos de alça. Recebeu alta hospitalar completamente assintomática no sexto dia após o procedimento. Retornou, contudo, no oitavo dia, com diagnóstico de bloqueio atrioventricular total, sendo necessário o implante de marcapasso definitivo, com resolução completa do quadro.

A paciente 2 teve quadro de confusão mental no centro de tratamento intensivo, resolvido na transferência para a unidade de internação. No quinto dia pós-implante, já em condições de alta, apresentou quadro de síncope assistida e recuperada secundária a bloqueio atrioventricular total, prontamente tratada com novo implante de marca-passo transitório. No mesmo dia, recuperou o ritmo sinusal, mas, como persistia com distúrbio de condução intermitente, optouse por implante de marca-passo definitivo. Teve alta no oitavo dia após o implante, assintomática.

A paciente 3 apresentou quadro de epistaxe nasal significativa no primeiro dia após o procedimento, provavelmente secundário a hipertensão e anticoagulação sistêmica, que foi completamente resolvido com tamponamento nasal. Teve alta assintomática no sétimo dia após o implante.

Nenhuma outra complicação clínica ou laboratorial foi verificada. A função renal se manteve estável e não houve alterações hematológicas significativas em todas as pacientes analisadas.

DISCUSSÃO

Ainda não constavam na literatura relatos de troca da valva aórtica pelo implante do dispositivo CoreValve realizados no Brasil, sendo nossa experiência uma das pioneiras no meio. Em todos os casos, houve sucesso do procedimento, ausência de eventos cardiovasculares maiores na evolução intra-hospitalar, e diminuição muito significativa do gradiente transvalvar aórtico. Nenhuma das pacientes apresentava contra-indicação formal à cirurgia cardíaca convencional, mas a idade avançada (> 80 anos) e as co-morbidades associadas foram os fatores preponderantes na opção pela via percutânea, em virtude do alto risco da cirurgia cardíaca convencional nesse grupo de pacientes.

A adoção dessa nova tecnologia para pacientes com contra-indicações formais à cirurgia cardíaca ou aqueles com muito alto risco cirúrgico parece estar se consolidando rapidamente, pelas altas taxas de sucesso e baixas taxas de complicações7,8. Além disso, após o implante bem-sucedido, o dispositivo é muito efetivo em diminuir drasticamente o gradiente transvalvar aórtico. Sua efetividade foi muito bem demonstrada nos casos aqui descritos. No entanto, uma pergunta importante que se impõe neste momento é qual o ponto de corte que devemos considerar como alto risco cirúrgico, e que pode levar o clínico a considerar a indicação de uma troca aórtica pela via percutânea. A avaliação do risco cirúrgico tem sido tradicionalmente feita por meio de escores de risco dedicados, sendo o EuroSCORE11 o mais difundido12. A resposta à pergunta ainda não está clara neste momento, mas talvez uma taxa de aproximadamente 10% possa ser considerada razoável, considerando um risco médio da cirurgia convencional entre 5% e 10%13,14. Além disso, os resultados dos últimos estudos realizados com a CoreValve7,8 demonstram mortalidade em 30 dias de aproximadamente 9%, o que seria outro fator para embasar essa conduta.

A avaliação criteriosa do paciente é fundamental quando o implante valvular aórtico percutâneo é considerado, já que diversas características anatômicas podem evidenciar contra-indicação a esse procedimento. Em virtude do calibre atual do dispositivo de liberação da prótese (18 French), o paciente deve apresentar boa anatomia do sistema arterial ileofemoral, sem tortuosidade ou calcificação excessiva e com calibre mínimo de 6 mm dos vasos. Em uma das pacientes, experimentamos dificuldade em avançar a endoprótese pelo sistema ilíaco em virtude de seu fino calibre, tendo sido necessária a dilatação desses vasos com introdutores de calibres progressivos. A anatomia do ânulo aórtico, seu diâmetro, a posição da aorta em relação ao ventrículo esquerdo, a altura dos óstios coronarianos, e a presença de insuficiência aórtica e mitral também são critérios que devem ser avaliados. Assim, a logística atual para consideração de uma troca de valva aórtica pela via percutânea envolveria inicialmente a classificação do paciente como contraindicação ou muito alto risco cirúrgico, exeqüibilidade anatômica pelos critérios anteriormente descritos e, finalmente, a possibilidade de custeio do procedimento, que atualmente não é previsto pelo Sistema Único de Saúde e pelos principais planos de saúde. Este último critério deverá provavelmente ser a principal limitação desse procedimento nos próximos anos, pelo custo bastante alto praticado atualmente.

No que se refere ao suporte anestésico, a técnica varia entre a sedação profunda e a anestesia geral, inclusive no início da experiência com circulação extracorpórea7,8,15. A eventual necessidade de dissecção arterial, a imobilidade do paciente nas diversas etapas do procedimento, a invasividade da monitorização, a garantia de uma via aérea permanente associada a ventilação adequada, a inexperiência com o tipo de procedimento e o conforto do paciente nos fizeram optar pela anestesia geral nos casos aqui apresentados. No entanto, o implante com sedação já foi descrito e está sendo realizado em alguns centros16.

Para a monitorização do implante deve-se considerar o uso do ecocardiograma transesofágico. É um importante adjuvante à fluoroscopia durante a intervenção percutânea, sendo capaz de guiar o implante do dispositivo e detectar as possíveis complicações do procedimento17,18. O posicionamento preciso da prótese é essencial para minimizar a ocorrência de regurgitação paravalvular significativa e a possibilidade de migração da prótese. Embora na série aqui descrita esse recurso tenha sido utilizado em apenas um caso, o uso rotineiro do ecocardiograma transesofágico pode ser capaz de otimizar os resultados.

Os cuidados pós-operatórios imediatos essenciais implicam controle imediato da pressão arterial e monitorização da freqüência e do ritmo cardíacos. O sistema de condução cardíaco fica em grande risco de sofrer alguma disfunção após cirurgia valvar aórtica de qualquer natureza, em decorrência de edema ou trauma local, levando a alterações hemodinâmicas significativas. Logo, todos os pacientes submetidos a troca valvar aórtica devem permanecer com cabo de marca-passo temporário em ventrículo direito por pelo menos 24 a 48 horas. O paciente deve permanecer monitorizado continuamente para sinais de comprometimento hemodinâmico, tais como acidose persistente, hipotensão e oligúria, que podem refletir hipovolemia. Atenção especial ao período hospitalar e domiciliar subseqüente também deve ser dada, visto que o surgimento de distúrbios atrioventriculares mais tardios não é infreqüente19. Isso ficou bem comprovado em nossa série, em que duas pacientes necessitaram de implante de marcapasso definitivo. A explicação teórica do mecanismo possível para tal ocorrência reside no fato de a prótese ser de nitinol e, assim, continuar seu processo de expansão no ânulo e no arco aórtico, além de fatores inflamatórios e degenerativos que atuam sobre o sistema de condução elétrico do coração. Faz-se necessária a busca de fatores que possam predizer a ocorrência de distúrbios de condução futuros, como já demonstrado19. Concordante com nossos achados, o surgimento de bloqueio de ramo esquerdo após o implante desponta como um potencial marcador de risco.

Outra questão que deve ser considerada para o implante valvular aórtico percutâneo, e que também permanece em aberto no atual estágio do conhecimento, é a durabilidade da prótese ao longo dos anos. Enquanto a história natural a longo prazo das próteses aórticas metálicas e biológicas implantadas pela via cirúrgica convencional é bem conhecida, a exata durabilidade dos dispositivos implantáveis pela via percutânea ainda é desconhecida.

Mesmo considerando-se as limitações de uma série de casos com amostra pequena, ausência de grupo controle e de seguimento tardio, depreende-se que a experiência inicial do Sul do Brasil com o implante valvular aórtico percutâneo mostrou-se segura e efetiva em análise de curto prazo. Estudos adicionais com maior poder, comparativos com as abordagens terapêuticas tradicionais e de seguimento clínico mais prolongado, ainda são necessários para definir o exato papel e as precisas indicações dessa nova, elegante, minimamente invasiva e muito promissora técnica.

AGRADECIMENTOS

Ao dr. Eberhard Grube, ao dr. Lutz Buellesfeld e ao sr. Stevan Saldanha, pela orientação e colaboração na realização dos procedimentos, e à empresa CMS, pelo suporte logístico.

Recebido em: 3/10/2008

Aceito em: 27/11/2008

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  • Correspondência:

    Rogério Sarmento-Leite
    Av. Princesa Isabel, 395 -Setor de Hemodinâmica - Santana
    Porto Alegre, RS - CEP 90620-001
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      2008

    Histórico

    • Aceito
      27 Nov 2008
    • Recebido
      03 Out 2008
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