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Efeitos da terapia combinada atorvastatina e clopidogrel na biodisponibilidade da estatina e na função plaquetária em pacientes com doença coronária estável

Effects of the atorvastatin and clopidogrel combination therapy on statin bioavailability and platelet function of patients with stable coronary disease

Resumos

INTRODUÇÃO: Atorvastatina 80 mg é recomendada a pacientes portadores de doença coronária para redução de eventos cardiovasculares, havendo controvérsia sobre as interações farmacocinéticas entre doses elevadas das estatinas e uso concomitante de clopidogrel, por compartilharem a mesma via de biotransformação. Este estudo avaliou os efeitos da terapia combinada atorvastatina/clopidogrel na farmacocinética da estatina e função plaquetária em pacientes com doença coronária estável, sob uso crônico e efetivo de estatina MÉTODO: Os pacientes foram admitidos quatro vezes para internação (V1 a V4) em leito-dia. Sete dias (D) antes da primeira internação a estatina em uso foi suspensa. A seguir, receberam atorvastatina 80 mg (D1 a D22) e clopidogrel 75 mg/dia (D8 a D29). Em todas as V foram obtidas amostras de sangue em jejum para dosagens lipídicas, avaliação da função plaquetária (técnica da placa e cone) e quantificação dos níveis plasmáticos de atorvastatina (cromatografia líquida e espectrometria de massa) RESULTADOS: A suspensão por uma semana da estatina modificou o perfil lipídico (P < 0,05 vs. basal), ocorrendo rápida melhora de todas as frações lipídicas após atorvastatina 80 mg (P < 0,005; V1 > V2, V3 e V4). A adesão plaquetária foi menor com clopidogrel isolado (P = 0,003; V4 < V1, V2 e V3), enquanto para a agregação houve menor valor com tratamento combinado atorvastatina/clopidogrel ou clopidogrel isolado comparado aos demais períodos (P < 0,0001; V3 e V4 < V1 e V2). O clopidogrel não modificou as concentrações de atorvastatina CONCLUSÃO: Atorvastatina em alta dose não afetou as respostas plaquetárias ao clopidogrel; entretanto, curto período de suspensão da estatina piorou o perfil lipídico e a função plaquetária.

Agregação plaquetária; Farmacocinética; Doenças cardiovasculares


BACKGROUND: Atorvastatin 80 mg is recommended in patients with coronary artery disease to reduce cardiovascular events, however, there is controversy regarding the pharmacokinetic interactions between high doses of statins and the concomitant use of clopidogrel, since they share the same biotransformation pathway. This study evaluated the effects of the atorvastatin/clopidogrel combination therapy on the pharmacokinetics of statins and on platelet function of patients with stable coronary artery disease receiving chronic statins METHOD: Patients were admitted four times (V1 to V4) to a day-clinic. Statin was discontinued seven days (D) before the first admission. Patients then received atorvastatin 80 mg (D1 to D22) and clopidogrel 75 mg/day (D8 to D29). Fasting blood samples were obtained at all time points for lipid measurements, platelet function tests (cone and plate technique), and quantification of atorvastatin plasma levels (liquid chromatography and mass spectrometry) RESULTS: The discontinuation of statins for one week changed the lipid profile (P < 0.05 vs. baseline), with an early improvement of all lipid parameters after the administration of atorvastatin 80 mg (P < 0.005; V1 > V2, V3 and V4). Platelet adhesion was lower with clopidogrel alone (P = 0.003; V4 < V1, V2 and V3), whereas platelet aggregation values were lower following the atorvastatin/clopidogrel combination therapy or clopidogrel alone when compared to the other time points (P < 0.0001; V3 and V4 < V1 and V2). The use of clopidogrel did not affect atorvastatin serum levels CONCLUSION: High-dose atorvastatin did not affect platelet responses to clopidogrel, however the short-term statin discontinuation worsened the lipid profile and platelet function.

Platelet aggregation; Pharmacokinetics; Cardiovascular diseases


ARTIGO ORIGINAL

Efeitos da terapia combinada atorvastatina e clopidogrel na biodisponibilidade da estatina e na função plaquetária em pacientes com doença coronária estável

Effects of the atorvastatin and clopidogrel combination therapy on statin bioavailability and platelet function of patients with stable coronary disease

Luiz Fernando Muniz PinheiroI; Maria Cristina de Oliveira IzarI; Soraia Kani KasmasI; Carolina Nunes FrançaI; Simone Cristina Matheus FischerI; Simone Pinto de Melo BarbosaI; Gilberto de NucciII; Jaime IlhaII; Lu Chi ChenII; Antonio Carlos CarvalhoI; Rui Manoel dos Santos PóvoaI; Henrique Tria BiancoI; Francisco Antonio Helfenstein FonsecaI

IDisciplina de Cardiologia - Universidade Federal de São Paulo - São Paulo, SP, Brasil

IIInstituto Galeno - Campinas, SP, Brasil

Correspondência Correspondência: Luiz Fernando Muniz Pinheiro Rua Pedro de Toledo, 276 - Vila Clementino São Paulo, SP, Brasil - CEP 04039-030 E-mail: luizfmpinheiro@uol.com.br

RESUMO

INTRODUÇÃO: Atorvastatina 80 mg é recomendada a pacientes portadores de doença coronária para redução de eventos cardiovasculares, havendo controvérsia sobre as interações farmacocinéticas entre doses elevadas das estatinas e uso concomitante de clopidogrel, por compartilharem a mesma via de biotransformação. Este estudo avaliou os efeitos da terapia combinada atorvastatina/clopidogrel na farmacocinética da estatina e função plaquetária em pacientes com doença coronária estável, sob uso crônico e efetivo de estatina

MÉTODO: Os pacientes foram admitidos quatro vezes para internação (V1 a V4) em leito-dia. Sete dias (D) antes da primeira internação a estatina em uso foi suspensa. A seguir, receberam atorvastatina 80 mg (D1 a D22) e clopidogrel 75 mg/dia (D8 a D29). Em todas as V foram obtidas amostras de sangue em jejum para dosagens lipídicas, avaliação da função plaquetária (técnica da placa e cone) e quantificação dos níveis plasmáticos de atorvastatina (cromatografia líquida e espectrometria de massa)

RESULTADOS: A suspensão por uma semana da estatina modificou o perfil lipídico (P < 0,05 vs. basal), ocorrendo rápida melhora de todas as frações lipídicas após atorvastatina 80 mg (P < 0,005; V1 > V2, V3 e V4). A adesão plaquetária foi menor com clopidogrel isolado (P = 0,003; V4 < V1, V2 e V3), enquanto para a agregação houve menor valor com tratamento combinado atorvastatina/clopidogrel ou clopidogrel isolado comparado aos demais períodos (P < 0,0001; V3 e V4 < V1 e V2). O clopidogrel não modificou as concentrações de atorvastatina

CONCLUSÃO: Atorvastatina em alta dose não afetou as respostas plaquetárias ao clopidogrel; entretanto, curto período de suspensão da estatina piorou o perfil lipídico e a função plaquetária.

Descritores: Agregação plaquetária. Farmacocinética. Doenças cardiovasculares.

ABSTRACT

BACKGROUND: Atorvastatin 80 mg is recommended in patients with coronary artery disease to reduce cardiovascular events, however, there is controversy regarding the pharmacokinetic interactions between high doses of statins and the concomitant use of clopidogrel, since they share the same biotransformation pathway. This study evaluated the effects of the atorvastatin/clopidogrel combination therapy on the pharmacokinetics of statins and on platelet function of patients with stable coronary artery disease receiving chronic statins

METHOD: Patients were admitted four times (V1 to V4) to a day-clinic. Statin was discontinued seven days (D) before the first admission. Patients then received atorvastatin 80 mg (D1 to D22) and clopidogrel 75 mg/day (D8 to D29). Fasting blood samples were obtained at all time points for lipid measurements, platelet function tests (cone and plate technique), and quantification of atorvastatin plasma levels (liquid chromatography and mass spectrometry)

RESULTS: The discontinuation of statins for one week changed the lipid profile (P < 0.05 vs. baseline), with an early improvement of all lipid parameters after the administration of atorvastatin 80 mg (P < 0.005; V1 > V2, V3 and V4). Platelet adhesion was lower with clopidogrel alone (P = 0.003; V4 < V1, V2 and V3), whereas platelet aggregation values were lower following the atorvastatin/clopidogrel combination therapy or clopidogrel alone when compared to the other time points (P < 0.0001; V3 and V4 < V1 and V2). The use of clopidogrel did not affect atorvastatin serum levels

CONCLUSION: High-dose atorvastatin did not affect platelet responses to clopidogrel, however the short-term statin discontinuation worsened the lipid profile and platelet function.

Key-words: Platelet aggregation. Pharmacokinetics. Cardiovascular diseases.

A combinação de clopidogrel com ácido acetilsalicílico tem sido universalmente recomendada a pacientes submetidos a intervenção coronária percutânea com implante de stents. Entretanto, alguns pacientes apresentam resistência às ações antiplaquetárias desses medicamentos.1 A atividade farmacológica do clopidogrel é mediada pela formação de um metabólito obtido pela ação do citocromo CYP450 isoenzima 3A4, mesmo sítio de biotransformação da atorvastatina, sinvastatina e lovastatina2-5; além disso, demonstrações in vitro indicam que o clopidogrel pode influenciar as concentrações da fluvastatina por também inibir a atividade CYP 2C9.6 O metabólito ativo do clopidogrel, um tiol instável, inibe a agregação plaquetária, formando pontes dissulfídicas com um resíduo cisteína do receptor para adenosina difosfato nas plaquetas.5 O clopidogrel, no entanto, não modifica outros parâmetros da coagulação, em pacientes com síndromes coronárias agudas7 ou após revascularização periférica8.

A literatura é restrita quanto a relatos das interações entre fármacos. Estudos que compararam estatinas empregaram doses relativamente baixas, que dificilmente atingiram a meta do colesterol de lipoproteína de baixa densidade (LDL-colesterol) < 70 mg/dl, hoje sugeridas para pacientes em prevenção secundária de doença coronária. No entanto, o uso de estatina associada ao clopidogrel no infarto do miocárdio sem supradesnivelamento do segmento ST ou na angina instável influenciou favoravelmente a sobrevida livre de eventos no Global Registry of Acute Coronary Events (registro GRACE).9

Especula-se que a magnitude da redução lipídica pela estatina possa ser atenuada pela competição pelo substrato microssomal hepático ou que a resistência ao clopidogrel possa estar associada à menor expressão de seus metabólitos, dependentes, da biotransformação hepática10, além do possível efeito de variantes genéticas das enzimas CYP3A4.11 Assim, interações farmacocinéticas podem afetar o efeito antiagregante do clopidogrel ou reduzir os efeitos hipolipemiantes e pleiotrópicos da estatina.10,12 A atorvastatina sofre biotransformação pelo CYP3A4, mas é ativa antes mesmo da metabolização hepática10-13, e pode ainda inibir o metabolismo de alguns substratos do CYP3A4, entre os quais o clopidogrel. Estudos recentes demonstraram que a ativação do clopidogrel é complexa, envolvendo duas etapas sequenciais mediadas por CYP3A, CYP1A2, CYP2C9, CYP2C19 e/ou CYP2B6.13

O objetivo primário deste estudo foi avaliar os efeitos da terapia combinada com atorvastatina e clopidogrel na farmacocinética da estatina e na função plaquetária em pacientes com doença coronária estável. Como objetivo secundário, analisamos as modificações do perfil lipídico sob os diferentes regimes terapêuticos.

MÉTODOS

Casuística

Foram selecionados pacientes de ambos os sexos (n = 20) com doença arterial coronária comprovada angiograficamente, em condição clínica estável14, sob uso de estatinas há pelo menos três meses, com níveis de LDL-colesterol < 100 mg/dl, e sem previsão de procedimentos de revascularização percutânea ou cirúrgica. Foram excluídos os pacientes com alterações da função hepática (AST > 2,5 vezes o limite superior da normalidade), renal (creatinina > 2 mg/dl), aqueles com comorbidades não controladas, como diabetes melito [hemoglobina glicada (HbA1c) > 7%], hipotireoidismo (TSH > 8 µU/ml), obesidade (índice de massa corporal > 35 kg/m2) ou com níveis de triglicérides > 400 mg/dl. Foram também excluídos pacientes com dislipidemias genéticas, insuficiência cardíaca classe funcional III/IV da New York Heart Association (NYHA)15, os portadores do vírus da imunodeficiência humana, os intolerantes aos fármacos do estudo, e aqueles em uso de inibidores de bomba de prótons.

O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo e os pacientes foram incluídos após obtenção do termo de consentimento livre e esclarecido.

O desenho do estudo é apresentado nas Figuras 1 e 2. Inicialmente os pacientes foram selecionados para uma visita médica, em que foram obtidos dados clínicos e colhidas amostras de sangue para exames bioquímicos. Após 7 dias (D) foram avaliados os critérios de inclusão/exclusão, e os pacientes elegíveis tiveram a estatina em uso suspensa por uma semana, sendo agendada a visita 1 (V1) com o paciente internado por 24 horas (Figuras 1 e 2). O período proposto de suspensão do hipolipemiante, superior a cinco meias vidas dos fármacos mais potentes, evita mudança no perfil lipídico, e consequente ativação plaquetária, o que seria indesejado em pacientes em prevenção secundária.



A Figura 2 demonstra os quatro períodos de tratamento ativo do estudo. Em todas as visitas (V1 a V4) os pacientes foram internados por um período de 24 horas, receberam as medicações do estudo, além da terapia concomitante usual, e realizaram todos os procedimentos, de acordo com o protocolo.

Em V1 os pacientes tiveram o ácido acetilsalicílico suspenso e iniciaram atorvastatina 80 mg (D1), que foi mantida até V3 (D22). Em V2 (D8), uma semana após V1, além da atorvastatina foi introduzido clopidogrel 75 mg, mantido até o término do estudo (V4, D29). V3 (D22) ocorreu duas semanas após V2 (D8); e em V4 (D29) os pacientes faziam uso isolado do clopidogrel (Figura 2). Em todas as visitas os medicamentos foram fornecidos aos pacientes.

Nessas visitas foram obtidas amostras de sangue para estudo dos níveis séricos da atorvastatina e dos efeitos na adesão/agregação plaquetária sob terapia com atorvastatina/clopidogrel isolada ou em associação (Figura 2).

Todos os pacientes receberam os medicamentos do estudo no mesmo horário, pela manhã, em jejum, após a coleta de sangue basal. Nos dias de estudos farmacocinéticos, a medicação foi administrada na unidade de internação. Houve contagem dos comprimidos retornados a cada visita.

Exames laboratoriais

Esses exames foram realizados no laboratório da Associação Fundo de Incentivo à Psicobiologia (AFIP) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O colesterol total foi analisado por método enzimático fotométrico; o colesterol de lipoproteína de alta densidade (HDL-colesterol), por método homogêneo; e os triglicérides, por método enzimático colorimétrico. O LDL-colesterol foi estimado pela equação de Friedewald.16 Todas as análises foram automatizadas (ADVIA 1650 ou 2400 Chemistry System, Siemens, Estados Unidos).

A HbA1c foi dosada por cromatografia líquida de alta resolução (HPLC) e as apolipoproteínas (Apo) A1 e B100, por nefelometria (Beckmann Array360, Alemanha).

Estudos farmacocinéticos

Os pacientes, após jejum de 12 horas, fizeram as coletas nos horários basal e depois de 0,5, 1, 1,5, 2, 2,5, 3, 4, 6, 8, 10, 12, 16 e 24 horas da administração das doses dos fármacos do estudo.

O nível plasmático da atorvastatina foi determinado por cromatografia líquida de alta performance (HPLC, Agilent, Alemanha) e espectrometria de massa (API4000, Sciex/Applied Biosystems, Canadá)3,4, utilizando-se os padrões de atorvastatina (Sigma-Aldrich, Estados Unidos), de forma a se obter a curva de concentração do fármaco, cálculo das áreas sob as curvas (AUC) de Cmax e TMax. As concentrações da atorvastatina foram analisadas sem (V1) ou na presença de clopidogrel (V2 e V3) (Figura 2). As determinações farmacocinéticas foram realizadas no Instituto Galeno, em Campinas (SP).

Adesão e agregação plaquetárias

Foram realizadas com os pacientes em jejum, pela manhã, em sangue total, utilizando o aparelho Impact R (DiaMed, Suíça), que testa a função plaquetária (adesão e agregação) em condições próximas à fisiológica, utilizando a técnica do cone e placa.17,18 Foram utilizados testes para o ácido araquidônico, para testar o ácido acetilsalicílico, e adenosina difosfato para testar o clopidogrel. As plaquetas aderidas e o tamanho dos agregados foram quantificados por um analisador de imagens e seus resultados foram expressos como % (adesão) da superfície coberta pelos agregados, e pela medida da área em µm2 (agregação).17

Análise estatística

Variáveis categóricas são apresentadas como n (%), as numéricas como médias e erros padrão das médias (EPM). Os dados entre as visitas (lípides, concentração de atorvastatina e função plaquetária) foram comparados por análise de variância (ANOVA) com medidas repetidas, e pós-teste de Tukey. Foi usado o teste t de Student pareado para comparar os valores lipídicos no período basal com V1. O nível de significância foi estabelecido para um risco alfa < 5%.

RESULTADOS

Características da população estudada

A Tabela 1 mostra as principais características da amostra. No total, foram avaliados 20 pacientes de ambos os sexos (70% homens), com média de idade (EPM) de 62 (2) anos, os quais participaram das quatro etapas do protocolo. Apresentavam valor médio (EPM) de LDL-colesterol de 76 (5) mg/dl, índice de massa corpórea de 25,5 (1,1) kg/m2, sendo a totalidade de hipertensos e 35% de diabéticos.

Perfil lipídico ao longo do estudo

A Tabela 2 mostra a evolução do perfil lipídico de acordo com os tratamentos. O colesterol total e o LDLcolesterol após uma semana de suspensão da estatina (V1, D1) foram maiores quando comparados aos demais períodos de tratamento (P < 0,0001 vs. V2, V3 e V4). Houve aumento do HDL-colesterol em V2, V3 e V4, comparativamente a V1 (P < 0,0001), enquanto os níveis de triglicérides em V3 foram menores que em V1 e V4 (P = 0,003). Além disso, o perfil lipídico foi significativa e globalmente modificado apenas sete dias após a suspensão da estatina usada previamente (V1), comparativamente à dosagem basal. O aumento dos níveis de colesterol total com a suspensão da estatina foi de 63 (8) mg/dl (P < 0,0001 vs. basal), o LDL-colesterol se elevou em 70 (8) mg/dl (P < 0,0001 vs. basal), o HDL-colesterol diminuiu em 16 (2) mg/dl (P < 0,0001 vs. basal), e os triglicérides se elevaram em 63 (21) mg/dl (P = 0,009 vs. basal).

Resultados dos estudos de adesão/agregação plaquetárias

A Tabela 3 mostra os resultados obtidos para os testes de adesão e agregação plaquetárias nas quatro etapas do estudo. Para a adesão plaquetária, menores valores foram encontrados em V4 (clopidogrel isolado) comparado a V1, somente com ácido acetilsalicílico (P = 0,003). Para a agregação plaquetária, observouse que em V1 e após sete dias de tratamento com 80 mg de atorvastatina (V2) os valores de agregação plaquetária foram maiores que com a terapia combinada ou com o uso isolado de clopidogrel (P < 0,0001).

Estudos farmacocinéticos

A Tabela 4 mostra os resultados da análise das AUC de Cmax e Tmax obtidas para a atorvastatina após a dose de 80 mg, sem uso concomitante de clopidogrel (V1), após a primeira semana de terapia com 80 mg de atorvastatina, com a introdução do clopidogrel (V2), e em V3, correspondendo ao uso de duas semanas de clopidogrel 75 mg e três semanas de atorvastatina 80 mg. Os valores encontrados para as AUC de Cmax não diferiram entre as visitas (P = 0,438; V1 = V2 = V3). A atorvastatina não foi detectada na V4 em nenhum paciente analisado (os pacientes nessa visita estavam em uso de clopidogrel e com atorvastatina suspensa há uma semana), pois após um período equivalente a cinco meias-vidas da estatina não se encontram níveis plasmáticos detectáveis do fármaco.

As AUC do TMax da atorvastatina também não diferiram entre as três visitas (P = 0,156; V1 = V2 = V3), como mostrado na Tabela 4.

Visita e exames laboratoriais finais (V4)

Os pacientes toleraram a medicação instituída (atorvastatina 80 mg e clopidogrel 75 mg) e foi observada aderência de 100% à medicação do estudo. Não foram registrados eventos adversos durante o curto período de tratamento do estudo e os pacientes não fizeram uso de medicamentos protetores gástricos que pudessem interferir na biodisponibilidade do clopidogrel. Os exames laboratoriais mostrados na Tabela 5 correspondem à utilização isolada do clopidogrel (visita final - V4), após suspensão da atorvastatina por uma semana.

DISCUSSÃO

Os achados deste estudo sugerem alguns aspectos interessantes e novos. Observamos que, após uma semana de suspensão de estatinas, os valores obtidos para o colesterol total e o LDL-colesterol foram significantemente maiores que os obtidos antes da suspensão da estatina prévia e em todos os tempos após a introdução da atorvastatina 80 mg. Houve alteração no perfil lipídico após curto período de suspensão da estatina usada previamente, em pacientes que a usavam de maneira crônica e que apresentavam LDLcolesterol < 100 mg/dl, sugerindo que mecanismos supressores da síntese de colesterol sejam rapidamente modificados, e que possa haver rápido aumento da atividade da HMG-CoA redutase, capaz de explicar as alterações precoces observadas. Nesse curto período, não foram observadas alterações hepáticas ou musculares, demonstrando boa tolerabilidade para os fármacos.

Os estudos de adesão e agregação plaquetárias sugeriram que o clopidogrel foi eficiente como antiplaquetário, em uso concomitante com a atorvastatina em dose alta, e aparentemente não houve interação desfavorável entre esses fármacos, dado que não tinha sido verificado na literatura, a não ser com doses mais baixas de estatinas.19,20 Avaliamos pacientes com doença arterial coronária estável, dos quais 52% foram submetidos a implante de stents há mais de 180 dias, em uso de ácido acetilsalicílico isolado, para avaliar, em uma condição que não oferecesse risco, as modificações laboratoriais decorrentes da administração isolada ou em combinação desses fármacos. O ácido acetilsalicílico foi suspenso para que pudéssemos analisar os efeitos isolados do tienopiridínico na função plaquetária.

O estudo farmacocinético mostrou que os níveis de atorvastatina não se alteraram de forma significativa após a adição de clopidogrel. Como o uso desses fármacos tem sido preconizado de forma cada vez mais frequente em portadores de doença coronária, sobretudo nas síndromes coronárias agudas ou após intervenções percutâneas, sua utilização nos pareceu segura, com base nos resultados até aqui obtidos.

A dupla terapia antiplaquetária com ácido acetilsalicílico e clopidogrel reduz complicações aterotrombóticas em pacientes que são submetidos a intervenção coronária percutânea com implante de stent, porém existe grande variabilidade individual de respostas, permitindo a ocorrência de eventos aterotrombóticos mesmo entre indivíduos tratados.18,21-25 A maior parte dos estudos que avaliou a função plaquetária o fez com casuística pequena e utilizando um único teste. Apesar de não haver consenso sobre o melhor teste, o estudo POPULAR23 demonstrou que nem todos são bons preditores de eventos aterotrombóticos, incluindo trombose dos stents, em pacientes tratados com clopidogrel e submetidos a intervenção coronária percutânea. A alta reatividade plaquetária avaliada pelos métodos de agregometria, VerifyNow e Plateletworks, foi associada com eventos aterotrombóticos, o que não foi verificado com os testes baseados na força de cisalhamento (IMPACT-R e PFA). Porém o diabetes melito e a disfunção ventricular esquerda, também preditores de eventos aterotrombóticos após implante de stent, podem ser confundidores.19,20 Até a obtenção de evidências mais robustas, nossa prática clínica não deve ser guiada por esses métodos.19,20 É senso comum a prescrição simultânea de clopidogrel e atorvastatina após evento coronário ou implante de stents. O clopidogrel induz a alteracões irreversíveis na ligação da adenosina difosfato plaquetária com o receptor P2Y12, com consequente inibição da adesão e agregação plaquetárias.3 Essa modificação do receptor adenosina difosfato plaquetário é tempo- e dose-dependente, provoca inibição cumulativa da agregação e lenta recuperação da função plaquetária após a retirada do fármaco.19,22-25

O clopidogrel, por ser pródroga, requer metabolismo hepático pelo citocromo P450 (isoenzima 3A4) para gerar seu metabólito ativo4, e a administração simultânea de atorvastatina em concentrações equimolares in vitro inibe o metabolismo do clopidogrel em mais de 90%19, como este também pode ser inibido por antifúngicos, imunossupressores e inibidores de protease (todos substratos da isoenzima 3A4).20,26

Ainda é controversa a hipótese de interação clopidogrel-estatina22-25,27,28 na função plaquetária. A existência de vários métodos para avaliação dos efeitos antiplaquetários induzidos pelo clopidogrel e o fato de os efeitos do clopidogrel serem tempo- e dose-dependentes e de a maioria dos estudos utilizar doses baixas de estatinas ou doses de manutenção do clopidogrel são limitações.4,21 É possível que os efeitos inibitórios discretos das estatinas tenham sido superestimados pelos desenhos dos estudos.

Limitações do estudo

Nosso estudo tem limitações, como casuística pequena e avaliação de curto prazo e com dose de manutenção do clopidogrel. Doses mais elevadas de clopidogrel podem ter impacto maior na biodisponibilidade da estatina.

CONCLUSÃO

O estudo examinou as interações farmacocinéticas entre o antiplaquetário tienopiridínico mais utilizado e uma das estratégias hoje disponível para se atingir metas adequadas de LDL-colesterol. Os resultados obtidos sugerem que doses plenas da atorvastatina possam ser utilizadas em associação ao clopidogrel, propiciando efetividade nos controles hipolipemiante e antiplaquetário em populações de alto risco.

SUPORTE FINANCEIRO

O estudo recebeu suporte financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP2008/55501-6), Luiz Fernando Muniz Pinheiro recebeu bolsa de pós-graduação do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNPq), e Soraia Kani Kasmas e Carolina Nunes França receberam bolsas da FAPESP.

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declararam inexistência de conflito de interesses relacionado a este manuscrito.

Recebido em: 18/4/2010

Aceito em: 4/6/2010

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  • Correspondência:

    Luiz Fernando Muniz Pinheiro
    Rua Pedro de Toledo, 276 - Vila Clementino
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Aceito
      04 Jun 2010
    • Recebido
      18 Abr 2010
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