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Preditores e impacto clínico intra-hospitalar do sangramento associado à intervenção coronária percutânea

Predictors and in-hospital clinical impact of post-pci bleeding

Resumos

INTRODUÇÃO: O sangramento associado à intervenção coronária percutânea (ICP) é uma complicação frequente e muitas vezes negligenciada quanto a sua importância prognóstica. Diversos estudos têm demonstrado o impacto clínico adverso do sangramento, principalmente no aumento da mortalidade a curto e longo prazos. O objetivo deste estudo é avaliar os preditores e o impacto clínico do sangramento em uma grande coorte contemporânea de pacientes submetidos a ICP. MÉTODOS: Avaliamos 2.892 pacientes consecutivos submetidos a ICP eletiva ou de urgência, entre janeiro de 2008 e junho de 2009, em um centro de referência para a realização do procedimento. Foram comparados os grupos que apresentaram ou não sangramento em relação às variáveis clínicas, angiográficas e relacionadas à intervenção, bem como a evolução clínica intrahospitalar. Regressão logística múltipla foi realizada com a finalidade de determinar o grau de influência e independência dos fatores preditores de sangramento. RESULTADOS: A incidência de sangramento periprocedimento foi de 1,7%. Considerando-se apenas os pacientes com síndrome coronária aguda (SCA), a incidência elevou-se para 3,4%. A análise multivariada identificou, como fatores independentes de sangramento, SCA [odds ratio (OR) 3,96, intervalo de confiança de 95% (IC 95%) 1,45-11,42], utilização de inibidores de glicoproteína IIb/IIIa (OR 2,55, IC 95% 1,68-3,87), insuficiência renal crônica (OR 2,34, IC 95% 1,11-3,49), Killip IV (OR 2,32, IC 95% 1,54-3,5) e acesso vascular por via femoral (OR 1,72, IC 95% 1,19-3,14). O sangramento periprocedimento foi associado com insuficiência renal aguda (16,7% vs. 1,6%; P < 0,001) e mortalidade no período intra-hospitalar (10,4% vs. 0,7%; P < 0,001). CONCLUSÕES: O presente estudo demonstra que o sangramento periprocedimento, mais frequentemente observado em pacientes com SCA, é preditor de eventos clínicos adversos maiores no período intra-hospitalar, incluindo maior mortalidade.

Hemorragia; Angioplastia transluminal percutânea coronária; Mortalidade hospitalar


BACKGROUND: Percutaneous coronary intervention (PCI)related bleeding is a frequent complication whose prognosis is often neglected. Several studies have shown the adverse clinical impact of bleeding, especially increased short and long-term mortality rates. The purpose of this study was to evaluate predictors and clinical impact of this complication in a large cohort of patients undergoing PCI. METHODS: We performed a prospective analysis of 2,892 consecutive patients undergoing elective or urgent PCI from January/2008 to June/2009. Patients with and without bleeding were compared for clinical, angiographic and procedure-related variables as well as in-hospital clinical outcomes. Multiple logistic regression analysis was performed to determine the influence and independence of bleeding predictors. RESULTS: Procedure-related bleeding was identified in 1.7% of the patients. Taking in account only patients with acute coronary syndrome (ACS) the incidence increased to 3.4%. Multivariate analysis identified ACS [odds ratio (OR) 3.96, 95% confidence interval (95% CI) 1.45-11.42], use of glycoprotein IIb/IIa inhibitors (OR 2.55, 95% CI 1.68-3.87), chronic renal failure (OR 2.34, 95% CI 1.11-3.49), Killip IV (OR 2.32, 95% CI 1.54-3.5) and femoral access (OR 1.72, 95% CI 1.19-3.14) as independent predictors of bleeding. Procedure-related bleeding was associated with in-hospital acute renal failure (16.7% vs. 1.6%; P < 0.001) and in-hospital mortality (10.4% vs. 0.7%; P < 0.001). CONCLUSIONS: The present study demonstrates that periprocedural bleeding, more frequently observed in patients with ACS, is a predictor of in-hospital major clinical adverse events, including increased mortality rates.

Hemorrhage; Angioplasty, transluminal, percutaneous coronary; Hospital mortality


ARTIGO ORIGINAL

Preditores e impacto clínico intra-hospitalar do sangramento associado à intervenção coronária percutânea

Predictors and in-hospital clinical impact of post-pci bleeding

Cleverson Neves Zukowski; J. Ribamar Costa Jr.; Ricardo Costa; Vinícius Esteves; Rodolfo Staico; Dimytri Siqueira; Luiz Alberto Mattos; Galo Maldonado; Sérgio Braga; Áurea J. Chaves; Alexandre Abizaid; Fausto Feres; Amanda G. M. R. Sousa; J. Eduardo Sousa

Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia - São Paulo, SP, Brasil

Correspondência Correspondência: Cleverson Neves Zukowski Av. Dr. Dante Pazzanese, 500 - Vila Mariana São Paulo, SP, Brasil - CEP 04012-909 E-mail: cleverzuk@yahoo.com.br

RESUMO

INTRODUÇÃO: O sangramento associado à intervenção coronária percutânea (ICP) é uma complicação frequente e muitas vezes negligenciada quanto a sua importância prognóstica. Diversos estudos têm demonstrado o impacto clínico adverso do sangramento, principalmente no aumento da mortalidade a curto e longo prazos. O objetivo deste estudo é avaliar os preditores e o impacto clínico do sangramento em uma grande coorte contemporânea de pacientes submetidos a ICP.

MÉTODOS: Avaliamos 2.892 pacientes consecutivos submetidos a ICP eletiva ou de urgência, entre janeiro de 2008 e junho de 2009, em um centro de referência para a realização do procedimento. Foram comparados os grupos que apresentaram ou não sangramento em relação às variáveis clínicas, angiográficas e relacionadas à intervenção, bem como a evolução clínica intrahospitalar. Regressão logística múltipla foi realizada com a finalidade de determinar o grau de influência e independência dos fatores preditores de sangramento.

RESULTADOS: A incidência de sangramento periprocedimento foi de 1,7%. Considerando-se apenas os pacientes com síndrome coronária aguda (SCA), a incidência elevou-se para 3,4%. A análise multivariada identificou, como fatores independentes de sangramento, SCA [odds ratio (OR) 3,96, intervalo de confiança de 95% (IC 95%) 1,45-11,42], utilização de inibidores de glicoproteína IIb/IIIa (OR 2,55, IC 95% 1,68-3,87), insuficiência renal crônica (OR 2,34, IC 95% 1,11-3,49), Killip IV (OR 2,32, IC 95% 1,54-3,5) e acesso vascular por via femoral (OR 1,72, IC 95% 1,19-3,14). O sangramento periprocedimento foi associado com insuficiência renal aguda (16,7% vs. 1,6%; P < 0,001) e mortalidade no período intra-hospitalar (10,4% vs. 0,7%; P < 0,001).

CONCLUSÕES: O presente estudo demonstra que o sangramento periprocedimento, mais frequentemente observado em pacientes com SCA, é preditor de eventos clínicos adversos maiores no período intra-hospitalar, incluindo maior mortalidade.

Descritores: hemorragia. angioplastia transluminal percutânea coronária. mortalidade hospitalar.

ABSTRACT

BACKGROUND: Percutaneous coronary intervention (PCI)related bleeding is a frequent complication whose prognosis is often neglected. Several studies have shown the adverse clinical impact of bleeding, especially increased short and long-term mortality rates. The purpose of this study was to evaluate predictors and clinical impact of this complication in a large cohort of patients undergoing PCI.

METHODS: We performed a prospective analysis of 2,892 consecutive patients undergoing elective or urgent PCI from January/2008 to June/2009. Patients with and without bleeding were compared for clinical, angiographic and procedure-related variables as well as in-hospital clinical outcomes. Multiple logistic regression analysis was performed to determine the influence and independence of bleeding predictors.

RESULTS: Procedure-related bleeding was identified in 1.7% of the patients. Taking in account only patients with acute coronary syndrome (ACS) the incidence increased to 3.4%. Multivariate analysis identified ACS [odds ratio (OR) 3.96, 95% confidence interval (95% CI) 1.45-11.42], use of glycoprotein IIb/IIa inhibitors (OR 2.55, 95% CI 1.68-3.87), chronic renal failure (OR 2.34, 95% CI 1.11-3.49), Killip IV (OR 2.32, 95% CI 1.54-3.5) and femoral access (OR 1.72, 95% CI 1.19-3.14) as independent predictors of bleeding. Procedure-related bleeding was associated with in-hospital acute renal failure (16.7% vs. 1.6%; P < 0.001) and in-hospital mortality (10.4% vs. 0.7%; P < 0.001).

CONCLUSIONS: The present study demonstrates that periprocedural bleeding, more frequently observed in patients with ACS, is a predictor of in-hospital major clinical adverse events, including increased mortality rates.

Key-words: hemorrhage. angioplasty, transluminal, percutaneous coronary. hospital mortality.

A importância do sangramento periprocedimento como complicação associada à intervenção coronária percutânea foi por muitos anos relegada a segundo plano. No entanto, diversos estudos vêm demonstrando o impacto dessa complicação no aumento de eventos clínicos adversos, notadamente na mortalidade a curto e longo prazos.1-5 Embora tanto sangramentos menores quanto maiores possam alterar os desfechos clínicos desses pacientes, existe uma relação direta entre a gravidade do sangramento e a probabilidade de eventos.6

Com o advento de terapias antitrombóticas e antiplaquetárias cada vez mais potentes, necessárias para reduzir as complicações isquêmicas periprocedimento, é imperioso reavaliar o risco atual do sangramento, a fim de balancear o risco e o benefício dessas novas terapias.

O objetivo do presente estudo é determinar os preditores e o prognóstico do sangramento periprocedimento em pacientes submetidos a intervenção coronária percutânea.

MÉTODO

População

Fizeram parte desta análise todos os pacientes submetidos a intervenção coronária percutânea entre janeiro de 2008 e junho de 2010 em um hospital terciário da rede pública estadual de São Paulo (SP). Foram incluídos pacientes com doença arterial coronária estável bem como aqueles com indicação de intervenção coronária percutânea com urgência/emergência decorrentes de síndrome coronária aguda com ou sem supradesnivelamento do segmento ST.

Dados epidemiológicos e clínicos relacionados ao procedimento bem como à evolução intra-hospitalar foram coletados prospectivamente e armazenados em um banco de dados. Comparamos a coorte de pacientes com e sem sangramento.

Os pacientes tratados de forma eletiva receberam, pelo menos 24 horas pré-intervenção coronária percutânea, ácido acetilsalicílico (dose de ataque de 300 mg e manutenção de 100 mg/dia) e clopidogrel (dose de ataque de 300 mg e manutenção de 75 mg/dia). Os casos de urgência ou emergência, sem tempo hábil para o pré-tratamento, receberam dose de ataque de clopidogrel de 600 mg. Todos os pacientes foram orientados a permanecer em uso de terapia antiplaquetária dupla por pelo menos um mês em caso de implante de stent não-farmacológico e um ano caso stents farmacológicos fossem utilizados.

A técnica de implante do stent, a via de acesso vascular, o tipo de stent a ser utilizado e as medicações realizadas durante o procedimento ficaram a critério do intervencionista. Todos os autores tiveram acesso aos dados e concordam com a integridade dos mesmos.

Definições

O sangramento foi definido e classificado de acordo com os critérios do estudo GUSTO7:

- grave: acidente vascular hemorrágico ou qualquer sangramento que cause comprometimento hemodinâmico necessitando tratamento;

- moderado: sangramento requerendo transfusão sanguínea; e

- leve: sangramento que não preenche os critérios de moderado ou grave.

Infarto agudo do miocárdio periprocedimento foi definido como presença de novas ondas Q em duas ou mais derivações contíguas ou elevação de creatina quinase fração MB (CK-MB) pelo menos três vezes acima do valor superior de normalidade.

A indicação de intervenção coronária percutânea foi classificada como:

- eletiva: pacientes com doença arterial coronária estável, assintomática ou sintomática, que se submeteram a procedimento previamente agendado;

- urgente: pacientes com síndrome coronária aguda sem supradesnivelamento do segmento ST ou intervenção coronária percutânea realizada logo após o procedimento diagnóstico eletivamente agendado, em decorrência de características clínicas ou angiográficas de risco, com a finalidade de evitar iminente deterioração clínica como angina refratária, insuficiência cardíaca ou infarto agudo do miocárdio;

- emergente: em situações de infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST, seja intervenção coronária percutânea primária, de res-gate ou em até 24 horas do início dos sintomas.

A estimativa de função glomerular foi realizada utilizando-se a fórmula de Cockcroft-Gault8, considerando-se insuficiência renal crônica um clearance basal < 60 ml/min/1,73 m2. Aumento > 30% da creatinina basal foi definido como agudização da função renal.9 Trombose de stent foi definida e classificada de acordo com os critérios do Academic Research Consortium (ARC).10 Óbito foi definido como óbito de qualquer causa que ocorresse na fase intra-hospitalar.

Análise estatística

As variáveis contínuas foram descritas como média ± desvio padrão ou mediana e intervalo interquartil, e comparadas por meio de teste t para variáveis independentes ou teste de Mann-Whitney, de acordo com sua distribuição. As variáveis categóricas foram apresentadas como porcentuais e comparadas por meio do teste de qui-quadrado ou teste exato de Fisher, quando apropriado. Após a análise univariada, realizou-se regressão logística múltipla a fim de determinar o grau de influência e independência dos fatores preditores de sangramento. Os resultados de regressão logística encontram-se expressos em odds ratio (OR) e intervalo de confiança de 95% (IC 95%). Considerou-se significante P < 0,05.

Todas as análises foram realizadas pela seção de estatística do departamento de pesquisa do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia de São Paulo (SP), utilizando-se o software SAS (versão 9.0, SAS Institute, Cary, Estados Unidos).

RESULTADOS

Durante o período do estudo, 2.892 pacientes foram submetidos a intervenção coronária percutânea em nossa instituição, dos quais 2.831 (97,9%) foram incluídos no estudo por apresentarem dados clínicos completos na fase intra-hospitalar.

A média de idade da população estudada foi de 62,5 ± 10 anos, com um total de 48 (1,7%) pacientes apresentando sangramento associado à intervenção coronária percutânea. Levando-se em conta apenas os pacientes que se apresentavam com síndrome coronária aguda, a incidência de sangramento foi de 3,4%. A maioria dos pacientes apresentou sangramento leve segundo o critério GUSTO (Figura 1).


Preditores de sangramento

As diferenças clínicas entre os indivíduos com e sem sangramento são apresentadas na Tabela 1. Observou-se, no grupo com sangramento, predomínio de pacientes do sexo feminino (45,9% vs. 31,1%; P = 0,01), de pacientes com insuficiência renal crônica (43,7% vs. 28,6%; P = 0,01) e apresentação clínica inicial de síndrome coronária aguda (61,5% vs. 31%; P < 0,001). A média de peso foi de 72 ± 12 kg, semelhante entre os grupos (70,5 kg vs. 74,5 kg; P = 0,2), assim como as outras variáveis avaliadas.

Quando comparamos os fatores relacionados ao procedimento (Tabela 2), notamos no grupo com sangramento maior utilização do inibidor de glicoproteína IIb/IIIa (29,1% vs. 11,1%; P = 0,01) e maior porcentual de pacientes com apresentação clínica de alto risco, incluindo classe funcional Killip IV (12,5% vs. 0,8%; P < 0,001) e fluxo TIMI < III pré-intervenção (20% vs. 4,5%; P < 0,001). A utilização do acesso vascular por via radial, por outro lado, foi menor no grupo com sangramento (8,3% vs. 17,1%; P = 0,04). Não houve diferença entre os grupos em relação ao número de vasos tratados, à utilização de heparina não-fracionada e ao volume de contraste utilizado.

Na análise multivariada (Tabela 3), permaneceram como preditores independentes de sangramento a síndrome coronária aguda como apresentação clínica inicial (OR 3,96, IC 95% 1,45-11,42), a utilização de inibidores de glicoproteína IIb/IIIa (OR 2,55, IC 95% 1,68-3,87), insuficiência renal crônica (OR 2,34, IC 95% 1,11-3,49), Killip IV (OR 2,32, IC 95% 1,54-3,5) e acesso vascular por via femoral (OR 1,72, IC 95% 1,19-3,14). Sexo feminino não foi um preditor independente de sangramento (OR 1,97, IC 95% 0,97-3,17).

Sangramento e desfecho clínico intra-hospitalar

Os desfechos clínicos do período intra-hospitalar estão sumarizados na Tabela 4. Pacientes com sangramento associado a intervenção coronária percutânea apresentaram maior taxa de mortalidade (10,4% vs. 0,7%; P < 0,001) e de insuficiência renal aguda (16,7% vs. 1,6%; P < 0,001) no período intra-hospitalar, e tendência para maior incidência de trombose de stent (2% vs. 0,2%; P = 0,07). As taxas de infarto agudo do miocárdio periprocedimento não diferiram entre os grupos (4,1% vs. 3,3%; P = 0,2).

DISCUSSÃO

Na presente análise, a despeito da relativa complexidade da população avaliada, as taxas de sangramento foram baixas. Entretanto, os pacientes que apresentaram tais complicações tiveram pior desfecho na fase intra-hospitalar, com aumento significativo da mortalidade e insuficiência renal.

A real incidência de sangramento nas várias séries de mundo real é de difícil estimativa, dada a ampla variedade de definições e classificações existentes para tal complicação. Dentre os estudos pioneiros que estabeleceram conceitos e classificações para sangramento, destacam-se o TIMI11 e o GUSTO7, que avaliaram os fibrinolíticos no tratamento do infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST, e que, a despeito de uma série de limitações, ainda são os mais utilizados na abordagem de complicações hemorrágicas e seu impacto clínico.

Mais recentemente as definições se tornaram mais amplas, incluindo sangramentos menos significativos, que também têm importância prognóstica, com incidência variando de 2% a 6%.2,5,12,13 Neste estudo foi observada baixa incidência de sangramento (1,7%), mesmo nos pacientes com síndrome coronária aguda (3,7%), com poucos pacientes classificados com sangramento maior. Possíveis explicações para esse achado são a experiência técnica dos intervencionistas de um centro com grande volume de procedimentos, o acompanhamento rigoroso desde a retirada dos introdutores até a alta hospitalar, e a utilização preferencial da via radial nos pacientes com síndrome coronária aguda submetidos a intervenção coronária percutânea ou naqueles com maior risco de sangramento.

Preditores de sangramento

Preditores clínicos consistentes de sangramento nos diversos estudos prévios são idade avançada (> 75 anos), sexo feminino, tabagismo, baixo peso, insuficiência renal crônica, síndrome coronária aguda sem supradesnivelamento do segmento ST e com supradesnivelamento do segmento ST, acometimento multiarterial, via de acesso femoral, calibre do introdutor, uso de inibidor de glicoproteína IIb/IIIa e complexidade da intervenção.2,4,5,14,15 Os achados do presente estudo confirmam boa parte desses preditores. Sexo feminino não foi preditor independente em nossa análise multivariada, achado que talvez possa ser explicado por diferenças regionais. Em estudos prévios, as mulheres tendem a ter maior prevalência de insuficiência renal crônica, síndrome coronária aguda, baixa superfície corpórea e idade mais avançada, em comparação com os homens, fatores de confusão na comparação entre os grupos.16,17

Corroborando publicações anteriores, a insuficiência renal crônica esteve associada a risco de 2,3 vezes de sangramento associado a intervenção coronária percutânea. O excesso de risco nesse cenário decorre de alterações do sistema de coagulação, disfunção plaquetária e falta de ajuste nas doses de medicações18,19, como demonstrou o registro CRUSADE, no qual pacientes com insuficiência renal crônica estavam mais propensos a receber doses excessivas de antitrombóticos.20 Adicionalmente, o uso de inibidores de glicoproteína IIb/IIIa associou-se a aumento de 2,5 vezes do risco de sangramento. De acordo com outros estudos, essa classe de medicações é um forte preditor independente de sangramento, com aumento de 1,4 vez a 2,7 vezes do risco, mesmo com o uso de doses mais baixas e ajustadas de heparina.2,4,5,21

Em pacientes em apresentação clínica e angiográfica de infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST e síndrome coronária aguda sem supradesnivelamento do segmento ST de alto risco observase maior incidência de sangramento. Neste estudo, a apresentação inicial em Killip IV foi fator preditor de sangramento, provavelmente em decorrência da terapia mais agressiva empregada nesses pacientes hemodinamicamente instáveis.22 Fluxo epicárdico lentificado ou ausente (TIMI < III), por sua vez, está associado a intervenção coronária percutânea de maior dificuldade técnica, com tempo de procedimento mais prolongado e uso de terapia antitrombótica e antiplaquetária mais intensa22, aumentando o risco de sangramento.

A utilização de acesso femoral foi fator preditor independente de sangramento neste registro, comparativamente ao acesso radial. Como a maioria dos casos de sangramento periprocedimento ocorre no sítio de acesso vascular, a escolha do acesso ocupa papel central na prevenção do sangramento. A introdução do aces-so radial tem levado a redução significativa dessa complicação, como demonstrado em diversos estudos. Uma meta-análise de 12 estudos que utilizaram o acesso radial demonstrou menor incidência de sangramento periprocedimento em comparação ao acesso femoral (OR 0,20, IC 95% 0,09-0,42).23 Em outro estudo com 38.872 pacientes submetidos a intervenção coronária percutânea, a mortalidade por sangramento em 30 dias foi significativamente menor em comparação ao acesso femoral (1% vs. 1,7%, OR 0,71, IC 95% 0,61-0,82; P < 0,001), diferença que se manteve ao final de um ano (2,8% vs. 3,9%, OR 0,83, IC 95% 0,71-0,98).24 A maior incidência de sangramento no sítio de acesso femoral pode ser explicada por punção inadvertida da parede posterior, punções acima ou muito abaixo do ligamento inguinal (levando a hematomas locais, pseudoaneurisma e hematoma retroperitoneal) e manejo inadequado na retirada do introdutor.

Importância prognóstica do sangramento

O sangramento periprocedimento tem sido associado a aumento do risco de mortalidade tanto no período intra-hospitalar como ao final de um ano, além de outros desfechos como prolongamento da internação hospitalar, complicações intraprocedimento (perfuração coronária, dissecção, embolização e fibrilação atrial), infarto agudo do miocárdio não-fatal, acidente vascular cerebral e insuficiência renal.2,6 Considerando pacientes incluídos em estudos randomizados e registros, observa-se aumento de 4 a 10 vezes do risco de mortalidade intra-hospitalar, diferença que significativamente persiste ao final de um ano.2,5,25-29 Não apenas o sangramento grave mas também o leve e o moderado estão implicados no aumento da morbidade e mortalidade. O sangramento periprocedimento implicou impacto clínico adverso no presente estudo, com aumento significativo da mortalidade intra-hospitalar. Além disso, o sangramento foi preditor de insuficiência renal aguda pós-intervenção coronária percutânea, com tendência não-significativa de trombose aguda e subaguda de stent e de infarto agudo do miocárdio periprocedimento. No estudo ACUITY, a taxa de trombose de stent em 30 dias foi quase seis vezes maior entre os pacientes que apresentaram sangramento, comparativamente aos que não apresentaram (3,4% vs. 0,6%; P < 0,0001).13

Embora diversos estudos possam demonstrar a associação com eventos clínicos adversos, é difícil determinar se o sangramento é um causador ou apenas um marcador de pacientes com alto risco submetidos a intervenção coronária percutânea. A correlação de sangramento com eventos adversos permanece significativa mesmo após o ajuste para as comorbidades desses pacientes de alto risco, como presenciamos neste registro. No entanto, os modelos estatísticos atuais podem não ser suficientes para isolar completamente múltiplas covariáveis inter-relacionadas.

Limitações do estudo

Os dados aqui apresentados refletem a experiência de único centro de referência que realiza grande volume de intervenções. Além disso, o relativo baixo número de eventos hemorrágicos periprocedimento pode afetar a análise de eventos. A falta de informação sobre desfechos a longo prazo dessa população impede que se estabeleça o impacto do sangramento na evolução tardia. Algumas informações importantes, como uso do balão intra-aórtico, tempo de coagulação ativada e história prévia de sangramento, entre outras, não foram coletadas.

CONCLUSÃO

Em nossa casuística contemporânea, a incidência de sangramento foi relativamente baixa. Os preditores de sangramento associado a intervenção coronária percutânea neste estudo foram insuficiência renal crônica, apresentação clínica de síndrome coronária aguda, pacientes de alto risco clínico e angiográfico (Killip IV e TIMI < III), uso de inibidores de glicoproteína IIb/IIIa e intervenção coronária percutânea por acesso femoral. Entre os pacientes que apresentaram essa complicação, houve significante aumento da mortalidade e disfunção renal aguda na fase intra-hospitalar. Dentre as possíveis alternativas para prevenir o sangramento associado à intervenção coronária percutânea, a utilização da via de acesso radial pode representar uma interessante estratégia.

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declararam inexistência de conflito de interesses relacionado a este manuscrito.

Recebido em: 1º/7/2010

Aceito em: 3/10/2010

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  • Correspondência:

    Cleverson Neves Zukowski
    Av. Dr. Dante Pazzanese, 500 - Vila Mariana
    São Paulo, SP, Brasil - CEP 04012-909
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      2010

    Histórico

    • Recebido
      01 Jul 2010
    • Aceito
      03 Out 2010
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