Acessibilidade / Reportar erro

Tratamento endovascular dos aneurismas da aorta abdominal com anatomia hostil: realidade e sonho

EDITORIAL

Tratamento endovascular dos aneurismas da aorta abdominal com anatomia hostil: realidade e sonho

Claudia Maria Rodrigues Alves

Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) - São Paulo, SP, Brasil

Correspondência Correspondência: Claudia Maria Rodrigues Alves. Rua Simão Álvares, 527/63 - Pinheiros São Paulo, SP, Brasil - CEP 05417-030 E-mail: cmralves@uol.com.br

A rápida disseminação do tratamento endovascular dos aneurismas da aorta abdominal na prática médica foi consequência dos excelentes resultados imediatos do procedimento, levando-o a suplantar rapidamente a cirurgia aberta.1 Em pacientes adequadamente selecionados, o tratamento endovascular, quando comparado ao tratamento cirúrgico, é capaz de reduzir o risco de morte e complicações da fase aguda, ainda que a mortalidade a longo prazo seja semelhante entre os dois procedimentos.2,3 A efetividade clínica do procedimento é indiscutível, com altíssima proporção de pacientes livres de morte por aneurisma em 5 anos e com baixa incidência de rotura tardia.

Ver pág. 69

Em uma população formada por idosos com avançada doença aterosclerótica e frequentes comorbidades, a grande proporção de pacientes com alto risco operatório foi também um forte estimulante da rápida aceitação do procedimento. Embora em pacientes considerados inaceitáveis para cirurgia a mortalidade em 30 dias do tratamento endovascular também esteja bastante aumentada4, a influência da idade é menos importante, com dados relatando bons resultados mesmo nos extremos de idade.5

Caracterizado por alta taxa de sucesso técnico em casos adequados, as limitações anatômicas na seleção de pacientes foram também sendo rapidamente reconhecidas e desafiadas. Concebido para excluir lesão a partir da conexão entre porções normais do vaso, proximal e distalmente ao aneurisma, a estratégia do tratamento endovascular foi "pressionada" a abordar também uma alta proporção de pacientes com anatomia desfavorável. Está nos colos de aterrissagem da prótese o ponto de maior vulnerabilidade do procedimento, quer seja por diâmetro aumentado, extensão curta ou angulação desfavorável. A frequência de anatomia hostil nessa população pode ser tão alta quanto 50% a 60%.6,7

Nesta edição da Revista Brasileira de Cardiologia Invasiva, Metzger et al.8 relatam sua experiência no tratamento de um pequeno grupo de pacientes com anatomia hostil definida pela presença de acentuada angulação no colo aórtico proximal ou na emergência das artérias ilíacas. Na experiência dos autores, utilizando um dispositivo cujas características seriam ideais para essa situação, as taxas de sucesso e complicações foram bastante aceitáveis. Porém, no sentido de colocar esses dados em perspectiva, vamos recordar alguns deles.

Nos estudos iniciais para avaliação de tratamento endovascular dos aneurismas da aorta abdominal, eram consideradas características anatômicas desfavoráveis presença de angulação do colo proximal > 30 graus, extensão do colo < 15 mm, morfologia cônica e diâmetro do colo > 28 mm. Ainda, para o colo distal, eram características anatômicas desfavoráveis angulação nas ilíacas > 90 graus, diâmetro > 18 mm ou < 6 mm e, finalmente, presença de lesão estenótica > 50%.9 Atualmente, a maioria dos fabricantes de dispositivos para tratamento endovascular dos aneurismas da aorta abdominal recomenda, como critério de indicação anatômica, um ângulo do colo proximal < 60 graus e, no mínimo, 10 mm de extensão (para fixação suprarrenal), refletindo a grande evolução dos dispositivos.

Tradicionalmente, no que se refere a procedimentos endovasculares em geral, uma anatomia hostil é fator de risco para reduzido sucesso, complicações e morte. No caso da doença aórtica, soma-se a isso o fato de que essa anatomia inadequada também carrega um adicional risco tardio, na forma de maior incidência de vazamentos. A disponibilidade de diversos dispositivos permitiu o tratamento de pacientes com múltiplas características desfavoráveis por meio de diversos "truques" no desenvolvimento das próteses. A literatura pertinente ao dispositivo Anaconda™ (Vascutek, Terumo, Inchinnan, Escócia) ainda é limitada e não identifica especificamente pacientes de alto risco anatômico, que estão geralmente representados em baixa proporção.10,11 Analisando sempre pacientes com extensão mínima de 15 mm no colo proximal, um grande registro de 787 pacientes e uma série de 100 pacientes demonstraram equivalência de resultados entre anatomias ideal e hostil.

Se, com os dispositivos mais modernos, a capacidade de tratamento da diversidade anatômica foi obtida, com taxas de sucesso e complicações equivalentes aos casos bem selecionados, a necessidade de procedimentos auxiliares (intra ou pós-operatoriamente) é maior nesses pacientes, especialmente para resolução de endoleaks tipo I detectados no procedimento índex7,12, elevando custos e morbidade. Além disso, maior frequência de aumento de diâmetro do saco aneurismático no seguimento é observada.7 Em análise de grande banco de dados de imagens em tratamento endovascular dos aneurismas da aorta abdominal, englobando mais de 10 mil pacientes tratados durante os anos de 1999 e 2008, a frequência de pacientes com maiores angulações e colos cônicos foi progressiva6 com o passar dos anos. As taxas de aumento de diâmetro do aneurisma da aorta abdominal eram significantemente maiores aos 3 anos de seguimento nos pacientes tratados com liberalidade de critério anatômico, quando comparados àqueles com critério anatômico restrito. Diâmetro do colo proximal > 32 mm [hazard ratio (HR) 2,07, intervalo de confiança de 95% (IC 95%) 1,46-2,92] e ângulo aórtico > 60 graus (HR 1,96, IC 95% 1,63-2,37) foram determinantes de aumento de diâmetro no seguimento.7 Ainda que nesta análise retrospectiva e limitada a revisão de imagens não reflita as taxas frequentemente relatadas de aumento de diâmetro do saco aneurismático (40% vs. cerca de 10% em 3 anos a 5 anos) ou o significado clínico desse achado, é um bom exemplo da diferença de resultados que decorrem da liberalidade de seleção dos pacientes.

O bom resultado obtido no tratamento de pacientes com ângulos moderados a graves nos colos decorre, provavelmente, de grupos de alta experiência e dispositivo específico.7,13 É importante salientar que os excelentes números comparativos de mortalidade/morbidade em relação ao tratamento aberto são pertinentes a pacientes com anatomia adequada e a chance de eventos tardios relacionados à seleção inadequada é significantemente maior que naqueles casos ideais.14 Extrapolar essa comparação para o grande grupo de pacientes com anatomia hostil é inadequado, ainda que os resultados iniciais sejam animadores.

A generalização desses dados também é difícil quando múltiplos fatores de risco clínicos e anatômicos se somam em um paciente. Por este motivo, a individualização do tratamento é considerada por muitos uma estratégia razoável. A introdução de dispositivos fenestrados e ramificados avançou a possibilidade de tratamento anatômico para quase todos os pacientes, independentemente da anatomia. A consideração de custo-efetividade de um procedimento muito caro, especialmente no sistema público de saúde, merece adicional atenção.

É recomendável manter em mente que a realização de casos complexos exige treinamento e experiência que não podem ser conseguidos facilmente, com baixo número de casos. Esses pacientes devem ser tratados em grandes centros de referência, idealmente com possibilidade de fornecer próteses de diferentes tipos e complementação do tratamento também por via percutânea, quando necessário, conforme descrito por Metzger et al.8. Discutir com os pacientes a maior frequência de vazamentos tardios e a perene necessidade de vigilância é também adequado. Ainda precisam ser definidos os limiares aceitáveis de sucesso e complicações para um critério de indicação anatômico alargado.

CONFLITO DE INTERESSES

A autora declara não haver conflito de interesses relacionado a este manuscrito.

Recebido em: 7/3/2012

Aceito em: 8/3/2012

  • 1. Chadi SA, Rowe BW, Vogt KN, Novick TV, Harris JR, Derose G, et al. Single-center review of trends in management of abdominal aortic aneurysms over the last decade. J Vasc Surg. 2012 Jan 5. [Epub ahead of print]
  • 2. The United Kingdom EVAR Trial Investigators; Greenhalgh RM, Brown LC, Powell JT, Thompson SG, Epstein D, Sculpher MJ. Endovascular versus open repair of abdominal aortic aneurysm. N Engl J Med. 2010;362(20):1863-71.
  • 3. De Bruin JL, Baas AF, Buth J, Prinssen M, Verhoeven EL, Cuypers PW, et al.; DREAM Study Group. Long-term outcome of open or endovascular repair of abdominal aortic aneurysm. N Engl J Med. 2010;362(20):1881-9.
  • 4. The United Kingdom EVAR Trial Investigators; Greenhalgh RM, Brown LC, Powell JT, Thompson SG, Epstein D. Endovascular repair of aortic aneurysm in patients physically ineligible for open repair. N Engl J Med. 2010;362(20):1872-80.
  • 5. Ju MH, Keldahl ML, Pearce WH, Morasch MD, Rodriguez HE, Kibbe MR, et al. Stepwise age-related outcomes of elective endovascular abdominal aortic aneurysm repair: 11-year institutional review. Perspect Vasc Surg Endovasc Ther. 2011Dec 28. [Epub ahead of print]
  • 6. Schanzer A, Greenberg RK, Hevelone N, Robinson WP, Eslami MH, Goldberg RJ, et al. Predictors of abdominal aortic aneurysm sac enlargement after endovascular repair. Circulation. 2011;123(24):2848-55.
  • 7. Aburahma AF, Campbell JE, Mousa AY, Hass SM, Stone PA, Jain A, et al. Clinical outcomes for hostile versus favorable aortic neck anatomy in endovascular aortic aneurysm repair using modular devices. J Vasc Surg. 2011;54(1):13-21.
  • 8. Metzger PB, Novero ER, Rossi FH, Moreira SM, Barbato HA, Izukawa NM, et al. Tratamento endovascular dos aneurismas de aorta abdominal com anatomia complexa: resultados preliminares com a segunda geração de endoprótese com arcabouço metálico circular. Rev Bras Cardiol Invasiva. 2012; 20(1):69-76.
  • 9. Prinssen M, Verhoeven EL, Buth J, Cuypers PW, van Sambeek MR, Balm R, et al.; Dutch Randomized Endovascular Aneurysm Management (DREAM) Trial Group. A randomized trial comparing conventional and endovascular repair of abdominal aortic aneurysms. N Engl J Med. 2004;351(16):1607-18.
  • 10. Freyrie A, Gargiulo M, Fargion A, Gallitto E, Pratesi C, Stella A; Anaconda Italian Registry Participating Physicians. Anaconda: the Italian Registry. Study protocol and preliminary perioperative results. J Cardiovasc Surg (Torino). 2011;52(5):629-35.
  • 11. Stella A, Freyrie A, Gargiulo M, Faggioli GL. The advantages of Anaconda endograft for AAA. J Cardiovasc Surg (Torino). 2009;50(2):145-52.
  • 12. Chung J, Corriere MA, Milner R, Kasirajan K, Salam A, Dodson TF, et al. Midterm results of adjunctive neck therapies performed during elective infrarenal aortic aneurysm repair. J Vasc Surg. 2010;52(6):1435-41.
  • 13. Verhagen HJ, Torsello G, De Vries JP, Cuypers PH, van Herwaarden JA, Florek HJ, et al. Endurant stent-graft system: preliminary report on an innovative treatment for challenging abdominal aortic aneurysm. J Cardiovasc Surg (Torino). 2009;50(2):153-8.
  • 14. Abbruzzese TA, Kwolek CJ, Brewster DC, Chung TK, Kang J, Conrad MF, et al. Outcomes following endovascular abdominal aortic aneurysm repair (EVAR): an anatomic and device-specific analysis. J Vasc Surg. 2008;48(1):19-28.
  • Correspondência:
    Claudia Maria Rodrigues Alves.
    Rua Simão Álvares, 527/63 - Pinheiros
    São Paulo, SP, Brasil - CEP 05417-030
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2012
    Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista - SBHCI R. Beira Rio, 45, 7o andar - Cj 71, 04548-050 São Paulo – SP, Tel. (55 11) 3849-5034, Fax (55 11) 4081-8727 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: sbhci@sbhci.org.br