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Crossover da terapia com heparina e risco de sangramento na intervenção coronária percutânea transradial na síndrome coronária aguda

Resumos

INTRODUÇÃO: A utilização da via radial tem reconhecida eficácia em reduzir complicações hemorrágicas na intervenção coronária percutânea (ICP). Nas síndromes coronárias agudas (SCAs), o crossover (transição) entre a heparina de baixo peso molecular e a heparina não-fracionada aumenta o risco hemorrágico após ICP por via femoral. O objetivo deste estudo foi comparar a incidência de sangramentos em pacientes com SCA submetidos a ICP por via radial de acordo com a ocorrência, ou não, do crossover da terapia com heparina. MÉTODOS: Estudo observacional de pacientes com SCA submetidos a ICP por via radial, divididos em grupos A (no qual ocorreu crossover) e B (sem crossover). Os eventos hemorrágicos foram classificados conforme os critérios do GUSTO; para os sangramentos da via de acesso radial, foram utilizados os critérios do EASY. RESULTADOS: Foram incluídos 140 pacientes consecutivos, 74 pacientes no grupo A e 66 pacientes no grupo B, com média de idade de 59,7 ± 9,4 anos, 72,8% do sexo masculino e 21,4% diabéticos. Ocorreram seis casos de complicações hemorrágicas (4,3%), sendo duas (1,4%) classificadas pelo GUSTO como moderadas (uma hemorragia digestiva e um sangramento femoral após balão intra-aórtico) e quatro (2,9%), como leves (hematomas com diâmetro < 5 cm). Na comparação entre os grupos, sangramentos moderados ocorreram em 1,3% no grupo A e em 1,5% no grupo B (P = 0,49) e sangramentos leves, em 2,7% e em 3,1% nos grupos A e B, respectivamente (P = 0,37). CONCLUSÕES: Nesta casuística de pacientes com SCA submetidos a ICP pela via radial, foi observada baixa incidência de sangramentos, sendo a maioria das complicações hemorrágicas decorrente de pequenos hematomas da via de acesso. O crossover da terapia com heparina não conferiu risco aumentado de sangramentos após ICP pela via radial.

Angioplastia; Artéria radial; Hemorragia


BACKGROUND: Radial access is effective in reducing bleeding complications in percutaneous coronary interventions (PCI). In acute coronary syndromes (ACS), the crossover from low molecular weight to unfractioned heparin increases the risk of bleeding after transfemoral PCI. The aim of this study was to evaluate the incidence of bleeding in patients with ACS undergoing PCI using the radial approach according to the occurrence or not of crossover of heparin therapy. METHODS: Observational study of patients with ACS undergoing PCI using the radial access, divided into groups: A (with crossover) and B (without crossover). Bleeding events were classified according to GUSTO criteria; EASY criteria were used for bleeding events in the radial access. RESULTS: We included 140 consecutive patients, 74 in group A and 66 in group B, with mean age of 59.7 ± 9.4 years, 72.8% were male, and 21.4% diabetic. There were six cases of bleeding complications (4.3%), and two (1.4%) were classified by GUSTO as moderate (one digestive bleeding and one femoral bleeding after intraaortic balloon pump), and four (2.9%) were classified as mild (hematomas with diameter < 5 cm). In the comparison between groups, moderate bleeding occurred in 1.3% in group A and 1.5% in group B (P = 0.49) and mild bleedings in 2.7% and 3.1% in groups A and B, respectively (P = 0.37). CONCLUSIONS: In this cohort of patients with ACS undergoing PCI using the radial access, a low incidence of bleeding events was observed, and most of these bleeding complications resulted from small hematomas of the access route. Crossover of heparin therapy did not increase the risk of bleeding after transradial PCI.

Angioplasty; Radial artery; Hemorrhage


ARTIGO ORIGINAL

Crossover da terapia com heparina e risco de sangramento na intervenção coronária percutânea transradial na síndrome coronária aguda

Roberto Ramos BarbosaI; Dimytri SiqueiraII; Felipe Macedo CoelhoIII; Said Assaf NetoIV; J. Ribamar Costa JrV; Ricardo CostaVI; Rodolfo StaicoVII; Fausto FeresVIII; Alexandre AbizaidIX; Amanda G. M. R. SousaX; J. Eduardo SousaXI

IMédico cardiologista intervencionista do Serviço de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista do Instituto de Cardiologia do Espírito Santo. Vitória, ES, Brasil

IIDoutor. Médico cardiologista intervencionista do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

IIIMédico residente em cardiologia intervencionista do Serviço de Cardiologia Invasiva do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

IVMédico residente em cardiologia intervencionista do Serviço de Cardiologia Invasiva do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

VDoutor. Médico cardiologista intervencionista do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

VIDoutor. Médico cardiologista intervencionista do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

VIIDoutor. Médico cardiologista intervencionista do Serviço de Cardiologia Invasiva do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

VIIIDoutor. Médico cardiologista intervencionista do Serviço de Cardiologia Invasiva do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

IXLivre-docente. Diretor do Serviço de Cardiologia Invasiva do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

XLivre-docente. Diretora geral do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

XILivre-docente. Diretor do Centro de Intervenções em Doenças Estruturais do Coração do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

Correspondência Correspondência: Roberto Ramos Barbosa Av. Marechal Campos, 1.579 - Santa Cecília Vitória, ES, Brasil - CEP 29043-260 E-mail: roberto.rb@cardiol.br

RESUMO

INTRODUÇÃO: A utilização da via radial tem reconhecida eficácia em reduzir complicações hemorrágicas na intervenção coronária percutânea (ICP). Nas síndromes coronárias agudas (SCAs), o crossover (transição) entre a heparina de baixo peso molecular e a heparina não-fracionada aumenta o risco hemorrágico após ICP por via femoral. O objetivo deste estudo foi comparar a incidência de sangramentos em pacientes com SCA submetidos a ICP por via radial de acordo com a ocorrência, ou não, do crossover da terapia com heparina.

MÉTODOS: Estudo observacional de pacientes com SCA submetidos a ICP por via radial, divididos em grupos A (no qual ocorreu crossover) e B (sem crossover). Os eventos hemorrágicos foram classificados conforme os critérios do GUSTO; para os sangramentos da via de acesso radial, foram utilizados os critérios do EASY.

RESULTADOS: Foram incluídos 140 pacientes consecutivos, 74 pacientes no grupo A e 66 pacientes no grupo B, com média de idade de 59,7 ± 9,4 anos, 72,8% do sexo masculino e 21,4% diabéticos. Ocorreram seis casos de complicações hemorrágicas (4,3%), sendo duas (1,4%) classificadas pelo GUSTO como moderadas (uma hemorragia digestiva e um sangramento femoral após balão intra-aórtico) e quatro (2,9%), como leves (hematomas com diâmetro < 5 cm). Na comparação entre os grupos, sangramentos moderados ocorreram em 1,3% no grupo A e em 1,5% no grupo B (P = 0,49) e sangramentos leves, em 2,7% e em 3,1% nos grupos A e B, respectivamente (P = 0,37).

CONCLUSÕES: Nesta casuística de pacientes com SCA submetidos a ICP pela via radial, foi observada baixa incidência de sangramentos, sendo a maioria das complicações hemorrágicas decorrente de pequenos hematomas da via de acesso. O crossover da terapia com heparina não conferiu risco aumentado de sangramentos após ICP pela via radial.

Descritores: Angioplastia. Artéria radial. Hemorragia.

ABSTRACT

BACKGROUND: Radial access is effective in reducing bleeding complications in percutaneous coronary interventions (PCI). In acute coronary syndromes (ACS), the crossover from low molecular weight to unfractioned heparin increases the risk of bleeding after transfemoral PCI. The aim of this study was to evaluate the incidence of bleeding in patients with ACS undergoing PCI using the radial approach according to the occurrence or not of crossover of heparin therapy.

METHODS: Observational study of patients with ACS undergoing PCI using the radial access, divided into groups: A (with crossover) and B (without crossover). Bleeding events were classified according to GUSTO criteria; EASY criteria were used for bleeding events in the radial access.

RESULTS: We included 140 consecutive patients, 74 in group A and 66 in group B, with mean age of 59.7 ± 9.4 years, 72.8% were male, and 21.4% diabetic. There were six cases of bleeding complications (4.3%), and two (1.4%) were classified by GUSTO as moderate (one digestive bleeding and one femoral bleeding after intraaortic balloon pump), and four (2.9%) were classified as mild (hematomas with diameter < 5 cm). In the comparison between groups, moderate bleeding occurred in 1.3% in group A and 1.5% in group B (P = 0.49) and mild bleedings in 2.7% and 3.1% in groups A and B, respectively (P = 0.37).

CONCLUSIONS: In this cohort of patients with ACS undergoing PCI using the radial access, a low incidence of bleeding events was observed, and most of these bleeding complications resulted from small hematomas of the access route. Crossover of heparin therapy did not increase the risk of bleeding after transradial PCI.

Descriptors: Angioplasty. Radial artery. Hemorrhage.

O impacto adverso dos eventos hemorrágicos após intervenção coronária percutânea (ICP) vem sendo consistentemente demonstrado em diversos estudos,1-3 equivalendo-se ao infarto agudo do miocárdio (IAM) como preditor de mortalidade a curto e médio prazos.4,5 A ICP pela via radial é atualmente uma das principais estratégias para a redução de sangramentos,6,7 uma vez que a maioria dos sangramentos observados está relacionada à via de acesso femoral. Demonstra-se que seu benefício é ainda mais pronunciado em pacientes em síndrome coronária aguda (SCA), tendo em vista o uso de um espectro mais amplo de fármacos antitrombóticos e o maior risco de complicações hemorrágicas.8,9

Subanálise do estudo Superior Yield of the New Strategy of Enoxaparin, Revascularization and Glycoprotein IIb/IIIa Inhibitors (SYNERGY) demonstrou que o crossover da terapia com heparina (cruzamento ou transição entre heparina de baixo peso molecular e heparina não-fracionada) se associa a maior risco de sangramentos após a ICP por via femoral.10,11 Entretanto, o risco potencial de complicações hemorrágicas determinado pelo crossover da terapia com heparina permanece não investigado em indivíduos submetidos a ICP por via radial. Assim, o objetivo primário do presente estudo foi avaliar a incidência e a natureza das complicações hemorrágicas em pacientes com SCA submetidos a ICP pela via radial, conforme a ocorrência ou não do crossover entre heparina de baixo peso molecular e heparina não-fracionada.

MÉTODOS

Desenho e população do estudo

Análise retrospectiva observacional dos dados de pacientes internados com diagnóstico de SCA, com ou sem supradesnivelamento do segmento ST, submetidos a cinecoronariografia e ICP primária ou ad hoc pela via radial no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia (São Paulo, SP, Brasil). Os casos que necessitaram de troca da via de acesso radial para femoral ou que estavam em choque cardiogênico foram excluídos. Realizou-se análise das características clínicas, dos procedimentos e da evolução hospitalar, coletadas prospectivamente desde 2007 e disponibilizadas no banco de dados do Serviço de Cardiologia Invasiva do instituto. Todos os pacientes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido antes da realização da ICP. O estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do hospital.

Procedimentos

Em todos os pacientes, obedeceu-se à técnica de punção radial para obtenção da via de acesso: por meio de hiperextensão do punho e infiltração de 0,5-2 ml de lidocaína a 2%, puncionou-se a artéria radial 1 cm proximal ao processo estiloide do rádio, utilizando-se agulha com cateter de polietileno tipo JelcoTM calibres 20-22 e técnica de Seldinger. Após a punção, introduziu-se um fio-guia de 0,021 polegada, seguido de pequena incisão cutânea com lâmina de bisturi número 11 e inserção de introdutor 6 F (Terumo Glidesheath, Terumo Corporation, Tóquio, Japão). Administrou-se, conforme rotina do serviço para todos os procedimentos realizados pela via radial, uma solução contendo 5.000 UI de sulfato de heparina através da extensão do introdutor. Essa heparinização local é realizada em todos os pacientes e tem como finalidade prevenir a trombose da artéria radial. Ao término do procedimento, removeu-se imediatamente o introdutor e obteve-se hemostasia por meio de curativo compressivo realizado manualmente com gaze e bandagem elástica ou com pulseira de compressão radial (TR BandTM, Terumo Corporation, Tóquio, Japão). Procedeu-se rotineiramente a exame clínico do sítio de punção e avaliação do pulso radial durante a internação e no momento da alta hospitalar.

Após a determinação das medicações antitrombóticas que foram utilizadas antes e durante o procedimento de ICP, dois grupos foram definidos de acordo com a ocorrência (grupo A) ou não (grupo B) de crossover. O grupo A, no qual ocorreu crossover, compreendeu pacientes que fizeram uso de heparina de baixo peso molecular em dose plena, com a última dose administrada até 12 horas antes da ICP (enoxaparina 1 mg/kg por via subcutânea a cada 12 horas, 1 mg/kg por via subcutânea uma vez por dia no caso de clearance de creatinina < 30 ml/min ou 0,75 mg/kg por via subcutânea a cada 12 horas em caso de idade > 75 anos e sem disfunção renal), e que receberam heparina não-fracionada no laboratório de cateterismo. Esse grupo incluiu não só os pacientes que receberam 5.000 UI de heparina não-fracionada pelo introdutor para prevenção de trombose da artéria radial, mas também aqueles que, além da dose de heparina não-fracionada pelo introdutor, foram medicados com dose complementar de heparina não-fracionada por via endovenosa (alcançando a dose de 100 UI/kg ou 70 UI/kg se estivessem em uso de inibidores da glicoproteína IIb/IIIa) para a realização da ICP. O grupo B, sem crossover, incluiu pacientes que não fizeram uso de heparina de baixo peso molecular nas 12 horas que precederam a ICP, e que receberam apenas a heparina não-fracionada como fármaco antitrombótico para a realização da coronariografia e ICP.

O tempo de coagulação ativada não foi rotineiramente monitorizado. Todos os pacientes estavam em uso de ácido acetilsalicílico (200 mg a 300 mg de ataque, seguidos de 100 mg a 200 mg por dia) e clopidogrel (300 mg a 600 mg de ataque, seguidos de 75 mg por dia). Nenhum dos pacientes incluídos fez uso de outros antiplaquetários durante a internação.

Definições

As complicações hemorrágicas foram avaliadas como desfecho primário de segurança, utilizando-se os critérios Global Utilization of Streptokinase and Tissue Plasminogen Activator for Occluded Coronary Arteries (GUSTO)12 e a classificação do estudo Early Discharge after Transradial Stenting of Coronary Arteries (EASY)13 para os sangramentos da via de acesso radial (Tabela 1). Considerou-se complicação hemorrágica qualquer sangramento, no sítio de punção radial ou fora dele, ocorrido desde o início da ICP até a alta hospitalar.

Considerou-se doença renal crônica a presença de creatinina plasmática na admissão hospitalar > 1,4 mg/dl ou clearance de creatinina < 60 ml/minuto.

Análise estatística

Na análise descritiva dos dados, as variáveis categóricas foram expressas como frequências absolutas e porcentuais, e comparadas por meio do teste qui-quadrado de Pearson ou do teste exato de Fisher. As variáveis contínuas foram expressas como média e desvio padrão e comparadas por meio do teste t de Student. Foram comparados os grupos A e B em relação às características clínicas basais, à apresentação clínica, à ocorrência de eventos cardíacos adversos maiores (ECAM) - desfecho composto de óbito, IAM e acidente vascular encefálico -, e à incidência de sangramento e a sua gravidade (sendo a natureza do sangramento especificada como proveniente ou não do sítio de punção). Foi ainda realizada análise comparativa entre os pacientes do grupo A em relação à incidência de sangramento, conforme a necessidade ou não da complementação endovenosa de heparina não-fracionada. Foi utilizado o pacote estatístico SPSS versão 13.0 e valor de P < 0,05 foi considerado estatisticamente significante.

RESULTADOS

Entre maio de 2008 e junho de 2010, 140 pacientes consecutivos internados com diagnóstico de SCA, com ou sem supradesnivelamento do segmento ST, e submetidos a ICP primária ou ad hoc pela via radial foram incluídos nesta análise. Destes, 102 (72,8%) eram do sexo masculino, com média de idade de 59,7 ± 9,4 anos e 21,4% eram diabéticos. O grupo A foi composto por 74 pacientes (52,9%) e o grupo B, por 66 pacientes (47,1%). O tempo médio de hospitalização, correspondente ao tempo de seguimento dos pacientes, foi de 5,4 ± 2,2 dias. As características basais e as apresentações clínicas dos pacientes estão expressas na Tabela 2.

Dentre os pacientes do grupo A, 32 pacientes (43,2%) receberam somente heparina não-fracionada pelo introdutor, sem complementação de dose, e os 42 restantes receberam complementação endovenosa da dose de heparina não-fracionada. Inibidores da glicoproteína IIb/IIIa foram administrados a 37 pacientes (26,4%), sendo 20 do grupo A e 17 do grupo B (27% vs. 25,7%, respectivamente; P = 0,86).

Sucesso do procedimento (diâmetro de estenose residual > 30% com fluxo final TIMI III) foi alcançado em 136 pacientes (grupo A, 97,3%; grupo B, 96,9%; P = 0,38).

A incidência de complicações hemorrágicas na população estudada foi de 4,3% (seis eventos). Dois desses eventos (1,4%) foram classificados como de grau moderado pelos critérios GUSTO (uma hemorragia digestiva alta e um sangramento em sítio de punção femoral após uso de balão intra-aórtico, casos em que houve administração concomitante de inibidores da glicoproteína IIb/IIIa). Os quatro eventos hemorrágicos adicionais (2,9%) ocorreram no sítio de punção radial, e foram definidos como sangramentos leves, conforme GUSTO, ou tipo I, de acordo com a classificação do EASY (hematomas com diâmetro < 5 cm). Na comparação entre os grupos A e B não foram encontradas diferenças na ocorrência de sangramentos (Figura). No grupo A não houve diferença na incidência total de sangramento entre os pacientes que receberam somente heparina não-fracionada pelo introdutor radial e aqueles que necessitaram complementação venosa da dose de heparina não-fracionada (3,1% e 4,7%, respectivamente; P = 0,72). Não se observou qualquer outra complicação vascular relacionada ao sítio de punção, como fístula arteriovenosa, pseudoaneurismas, trombose de artéria radial sintomática ou infecção local.


A taxa de ECAM intra-hospitalar foi semelhante entre os grupos A e B (2,7% vs. 1,5%; P = 0,39), bem como a incidência de desfechos adversos isolados (óbito, 1,4% vs. 1,5%; P = 0,50; IAM, 1,4% vs. 0; P = 0,52), e não foram registrados acidentes vasculares encefálicos.

DISCUSSÃO

Em nossa experiência, a utilização rotineira do acesso radial na ICP mostra-se factível, traduzida pela elevada taxa de sucesso do procedimento e pela segurança da via de acesso. A baixa incidência de eventos hemorrágicos com a utilização da via radial faz desta uma estratégia atraente para subgrupos propensos a essa complicação. Este estudo demonstrou baixa ocorrência de sangramento em sítio de punção radial após ICP em pacientes internados por SCA. Observou-se, ainda, que esses eventos constaram somente de pequenos hematomas, que não necessitaram de qualquer intervenção médica e apresentaram resolução espontânea, não gerando custos ou procedimentos adicionais, tampouco prolongando o tempo de internação. Esses pacientes fizeram uso de medicações antitrombóticas e antiplaquetárias, conforme rotina do instituto, e o uso de heparina não-fracionada na sala de hemodinâmica (em dose plena ou não) não interferiu na ocorrência de sangramentos, independentemente do uso recente de enoxaparina na internação, caracterizando o crossover da terapia com heparina.

A discussão acerca da superioridade de um ou outro antitrombínico há muito atingiu o âmbito das ICPs, porém jamais foram demonstradas diferentes taxas de ECAM periprocedimento ao se comparar a utilização de heparina não-fracionada ou heparina de baixo peso molecular. Em relação às complicações vásculo-hemorrágicas, há resultados divergentes na literatura quando se comparam os dois agentes, sendo a principal vantagem das heparinas de baixo peso molecular em relação à heparina não-fracionada sua fidedignidade na relação dose-efeito, sem a necessidade de controle laboratorial.

Contudo, o crossover da terapia com heparina é considerado inadequado nas SCAs desde a publicação do estudo SYNERGY, pela maior frequência de complicações hemorrágicas, sem qualquer benefício em termos de eficácia. Neste estudo, não houve diferença entre os grupos heparina não-fracionada e heparina de baixo peso molecular quanto às taxas de óbito e IAM, assim como no desfecho composto de óbito ou IAM não-fatal (14% vs. 14,5%). As taxas de oclusão aguda, insucesso e cirurgia de emergência também foram similares. Embora não houvesse diferença na taxa de sangramento maior pelo critério GUSTO (2,7% vs. 2,2%; P = 0,08), os pacientes do grupo enoxaparina obtiveram taxas mais elevadas de sangramento maior pelos critérios Thrombolysis in Myocardial Infarction (TIMI) (9,1% vs. 7,6%; P = 0,008).10 Dentre os pacientes incluídos no estudo SYNERGY, 47% (n = 4.687) foram submetidos a ICP, e foi administrada terapia antitrombótica antes da randomização em 78% (n = 7.778). Apesar da maior incidência de sangramento e da necessidade de transfusão nos pacientes que realizaram crossover, associação ou causalidade não puderam ser definidas, pois esses crossovers ocorreram após a randomização. Ainda assim, o crossover da terapia com heparina tem sido desencorajado pelas diretrizes.14

Uma recente metanálise comparou os acessos femoral e radial no IAM, obtendo redução do risco de sangramento maior de 70% com a via radial, quando comparada ao acesso femoral [0,77% vs. 2,61%, odds ratio (OR) 0,30, intervalo de confiança de 95% (IC 95%) 0,16-0,55; P = 0,0001). A redução do desfecho composto de morte, IAM e acidente vascular encefálico foi também significante (3,65% vs. 6,55%, OR 0,56, IC 95% 0,39-0,79; P = 0,01), assim como a análise do desfecho óbito também mostrou benefício a favor do acesso radial (OR 0,54, IC 95% 0,33-0,86; P = 0,01). Foi demonstrado significante benefício ao se utilizar o acesso radial nesse contexto, por reduzir tanto sangramentos como complicações isquêmicas pós-procedimento.15 Importante ressaltar que vários estudos têm demonstrado que as complicações hemorrágicas estão associadas a risco aumentado de ECAM.16,17

Publicado ainda mais recentemente, o estudo Radial versus femoral access for coronary intervention (RIVAL) é a maior investigação clínica disponível até hoje sobre a comparação das vias radial e femoral para a realização de coronariografia e ICP. Esse foi um estudo randomizado, multicêntrico e internacional, que incluiu 7.021 pacientes, e utilizou como desfechos óbito, IAM, acidente vascular encefálico e sangramento maior não relacionado a cirurgia de revascularização miocárdica em 30 dias. O desfecho primário (eventos combinados) foi semelhante nos grupos radial e femoral (3,7% vs. 4%; P = 0,50), porém houve benefício significativo para o acesso radial nos centros com maior volume de procedimentos realizados por essa via [risco relativo (RR) 0,49, IC 95% 0,28-0,87; P = 0,015), e para os pacientes com SCA com supradesnivelamento do segmento ST (RR 0,60, IC 95% 0,38-0,94; P = 0,026). Apesar das taxas semelhantes de sangramento maior não relacionado à cirurgia de revascularização miocárdica em 30 dias (0,7% vs. 0,9%; P = 0,23), o grupo radial apresentou menor incidência de hematoma local (RR 0,40, IC 95% 0,28-0,57; P = 0,0001) e de pseudoaneurisma com necessidade de oclusão (RR 0,30, IC 95% 0,13-0,71; P = 0,006).18

Acreditamos que o maior benefício do uso da via radial para ICP em casos de SCA seja exatamente a maior liberalidade para o uso amplo de fármacos antitrombóticos. Embora este estudo não tenha poder suficiente para determinar a hipótese estabelecida, presumimos que é possível diminuir o risco de complicações hemorrágicas com a utilização da via radial quando se realiza o crossover da terapia com heparina.

Limitações do estudo

Embora forneça informações importantes sobre o manejo das heparinas com o uso da via transradial no dia a dia das ICPs em nossa realidade, este estudo apresenta limitações. A primeira e principal delas reside no número reduzido da amostra, o que nos impossibilita afirmar de forma inequívoca a igualdade das taxas de sangramento entre os grupos. Além disso, há a limitação do desenho retrospectivo, que pode permitir a seleção dos pacientes de menor complexidade para o crossover da terapia com heparina por parte do intervencionista. Pacientes que estavam em uso de heparina de baixo peso molecular < 12 horas do crossover não foram avaliados. Variáveis que podem influenciar o risco de sangramento, como o número de vasos tratados e o tempo do procedimento, não foram comparadas. Os critérios GUSTO de sangramento foram utilizados pela facilidade e praticidade da classificação, apesar de não representarem o modelo ideal ou mais fidedigno.

CONCLUSÕES

Neste estudo com pacientes com SCA, com ou sem supradesnivelamento do segmento ST e tratados por via radial, o crossover da terapia com heparina mostrou-se seguro, com baixa incidência de sangramento associado ao sítio de punção, e sem aumento da incidência de outros tipos de sangramento. Não há algoritmos validados para o crossover da terapia com heparina na SCA, porém o crossover pode ser encarado sem o receio de sangramento no sítio de punção radial quando esta é a via de escolha.

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses relacionado a este manuscrito.

Recebido em: 19/9/2012

Aceito em: 30/11/2012

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  • Correspondência:

    Roberto Ramos Barbosa
    Av. Marechal Campos, 1.579 - Santa Cecília
    Vitória, ES, Brasil - CEP 29043-260
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      19 Set 2012
    • Aceito
      30 Nov 2012
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