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Denervação simpática renal: um novo cateter em um novo cenário

Renal sympathetic denervation: a new catheter in a new scenario

Resumos

A denervação simpática renal (DSR) surgiu como uma estratégia terapêutica adjunta no tratamento da hipertensão arterial sistêmica resistente. Diversas outras condições clínicas cursam com hiperatividade simpática, às quais, teoricamente, a DSR seria benéfica. Relatamos o primeiro caso realizado no Brasil de DSR em paciente com doença de Chagas e arritmia refratária, tratada por meio do cateter multieletrodo EnligHTN®.

Simpatectomia; Artéria renal; Doença de Chagas; Taquicardia ventricular


Renal sympathetic denervation (RSD) has emerged as an adjunct strategy in the treatment of resistant hypertension. Several other clinical conditions are characterized by sympathetic hyperactivity and could theoretically benefit from RSD. We report the first case of RSD performed in Brazil in a patient with Chagas' disease and refractory arrhythmia, treated by the EnligHTN® multi-electrode catheter.

Sympathectomy; Renal artery; Chagas disease; Tachycardia, ventricular


RELATO DE CASO

Denervação simpática renal: um novo cateter em um novo cenário

Renal sympathetic denervation: a new catheter in a new scenario

Rodolfo StaicoI; Luciana ArmaganijanII; Dalmo MoreiraIII; Paulo T. J. MedeirosIV; Ricardo HabibV; Jonatas Melo NetoVI; Alexandre AbizaidVII

IDoutor. Cardiologista intervencionista do Serviço de Cardiologia Invasiva do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

IICardiologista da Seção Médica de Eletrofisiologia e Arritmias Cardíacas do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. Fellow em pesquisa do programa Masters of Health Science in Clinical Research da Duke University. Durham, Estados Unidos

IIIDoutor. Chefe da Seção Médica de Eletrofisiologia e Arritmias Cardíacas do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

IVDoutor. Chefe da Seção de Diagnóstico Computadorizado do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

VMédico da Seção Médica de Eletrofisiologia e Arritmias Cardíacas do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

VIMédico residente da Seção Médica de Eletrofisiologia e Arritmias Cardíacas do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

VIILivre-docente. Diretor do Serviço de Cardiologia Invasiva do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rodolfo Staico Avenida Dr. Dante Pazzanese, 500 - Vila Mariana CEP 04012-180 - São Paulo, SP, Brasil E-mail: r_staico@hotmail.com

RESUMO

A denervação simpática renal (DSR) surgiu como uma estratégia terapêutica adjunta no tratamento da hipertensão arterial sistêmica resistente. Diversas outras condições clínicas cursam com hiperatividade simpática, às quais, teoricamente, a DSR seria benéfica. Relatamos o primeiro caso realizado no Brasil de DSR em paciente com doença de Chagas e arritmia refratária, tratada por meio do cateter multieletrodo EnligHTN®.

Descritores: Simpatectomia. Artéria renal. Doença de Chagas. Taquicardia ventricular.

ABSTRACT

Renal sympathetic denervation (RSD) has emerged as an adjunct strategy in the treatment of resistant hypertension. Several other clinical conditions are characterized by sympathetic hyperactivity and could theoretically benefit from RSD. We report the first case of RSD performed in Brazil in a patient with Chagas' disease and refractory arrhythmia, treated by the EnligHTN® multi-electrode catheter.

Descriptors: Sympathectomy. Renal artery. Chagas disease. Tachycardia, ventricular.

A denervação simpática renal (DSR) surgiu como uma estratégia terapêutica adjunta, segura e eficaz, no tratamento da hipertensão arterial sistêmica (HAS) resistente. Diversas outras condições clínicas cursam com hiperatividade simpática, às quais, teoricamente, a DSR seria benéfica e está em investigação. Há pouca evidência dos efeitos desse procedimento no contexto de arritmias cardíacas.

A hiperatividade simpática contribui significativamente para o desenvolvimento de arritmias ventriculares.1 A DSR demonstrou reduzir o spillover de norepinefrina em 42% e a atividade simpática eferente neuromuscular em 66%.2

Objetivamos aqui relatar o primeiro caso tratado no Brasil com sistema dedicado para DSR em paciente com doença de Chagas e arritmia ventricular refratária, visando reduzir os episódios de taquicardia/fibrilação ventricular (TV/FV).

RELATO DE CASO

Paciente de 56 anos, sexo feminino, natural da Bahia e procedente de São Paulo, portadora de HAS, iniciou acompanhamento médico em nosso serviço em 1992 com queixas de cansaço e palpitações. O diagnóstico de doença de Chagas foi realizado com base nos resultados da imunofluorescência indireta. Eletrocardiograma demonstrava ritmo sinusal, baixa voltagem do QRS no plano frontal e extrassístoles ventriculares isoladas. No seguimento ambulatorial, constataram-se aumento progressivo da densidade de extrassístoles ventriculares e diversos episódios de TV não sustentada, a despeito do uso de amiodarona e diltiazem. Em 2007, em investigação de síncope, apresentou, no Holter de 24 horas, 636 episódios de TV, sendo a mais longa com 53 batimentos e frequência de 200 sístoles por minuto. Em 2009, foi realizado estudo eletrofisiológico e ablação do foco arritmogênico com sucesso. Entretanto, apresentou outros dois focos de TV sustentada, sendo indicado implante de cardiodesfibrilador. Apesar da otimização da terapia antiarrítmica (amiodarona 400 mg/dia e betabloqueador em dose máxima tolerada), a paciente apresentou três episódios de TV sustentada em período de 3 meses, todos refratários à terapia de estimulação rápida programada, necessitando de desfibrilação pelo dispositivo. Foi feita indicação, então, de ablação das artérias renais, na tentativa de redução da carga arrítmica.

Procedimento

O procedimento foi aprovado pelo comitê de ética local, e a paciente assinou o termo de consentimento informado.

A artéria femoral direita foi puncionada após anestesia local com xilocaína a 2% e sedação/analgesia com narcóticos e opioides, seguida de introdução de uma bainha 8 F de 55 cm, disponibilizada com o sistema de ablação EnligHTN® (St. Jude Medical®), com auxílio de fio-guia 0,035". Heparina não fracionada foi administrada por via endovenosa (100 UI/kg). Foi realizada aortografia abdominal com cateter pig-tail 6 F para verificação da existência de possíveis artérias renais acessórias, utilizando meio de contraste iônico de baixa osmolaridade (Figura 1A). A angiografia renal seletiva (Figuras 1B e 1C) foi efetuada através da bainha, após administração de nitroglicerina intra-arterial (200 mcg), seguida da mensuração dos diâmetros e de extensões das artérias renais por meio de angiografia quantitativa on-line. A artéria renal direita (ARD) mediu 4,7/36 mm e a esquerda (ARE), 5,2/50 mm. Foi selecionado, então, um cateter de ablação multieletrodo de 16 mm, que foi posicionado na ARD distal através da bainha (Figuras 2A e 2B). Quatro aplicações de radiofrequência (RF) foram realizadas sequencialmente e, em seguida, o cateter foi tracionado e girado cerca de 45° para outras quatro aplicações, conforme recomendação do fabricante (Figura 2C). Ao final, foi efetuada angiografia de controle, após administração de nitroglicerina (200 mcg), para averiguação da integridade vascular. O mesmo procedimento foi realizado na ARE. Não houve intercorrências. O tempo total de fluoroscopia foi de 8 minutos e foram utilizados 90 mL do meio de contraste. A bainha foi retirada quando o tempo de coagulação ativado (TCA) atingiu valor < 200 segundos, seguida de compressão hemostática manual por 20 minutos. A deambulação foi permitida após repouso de 4 horas. A paciente recebeu alta hospitalar no dia seguinte, sem complicações no sítio de punção ou quaisquer outras.



O seguimento clínico envolveu a avaliação periódica do cardioversor desfibrilador implantável (CDI), que demonstrou ausência de arritmias ventriculares sustentadas ou necessidade de terapia pelo dispositivo, durante os 2 meses de acompanhamento até a presente data.

O sistema EnligHTN®

Composto por bainha, gerador de RF e cateter (Figura 3), o EnligHNT® é o primeiro sistema dedicado para DSR aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para uso clínico no Brasil. Conveniente, por se tratar de sistema com cateter multieletrodo, ele facilita sobremaneira o procedimento, exigindo menor manipulação do cateter e permitindo aplicações de RF mais uniformemente distribuídas, se comparado a cateter de eletrodo único. As especificações técnicas do EnligHNT® estão dispostas na Tabela 1.


A bainha possui calibre 8 F, 55 cm de comprimento, além de duas curvaturas distais apropriadas para facilitar a cateterização seletiva das artérias renais e a passagem do cateter de ablação (Figura 3A).

O gerador de RF possui mostrador frontal digital para controle de potência, temperatura, impedância e tempo de aplicação, além de exibir o número do tratamento que está sendo realizado (Figura 3B). Por protocolo, são praticados dois tratamentos em sítios distintos em cada artéria renal, um distal e outro mais proximal. Cada tratamento implica na liberação de RF por cada 1 dos 4 eletrodos de forma sequencial, durando 90 segundos cada uma; assim, 6 minutos são necessários para cada tratamento, 12 minutos para cada artéria renal e 24 minutos é o tempo total de aplicação de energia.

O cateter de ablação tem calibre compatível com bainha 8 F, e os quatro eletrodos em sua extremidade distal são dispostos em forma de cesta (Figura 3C). Existem dois tamanhos de cesta: uma maior, de 18 mm, para tratamento de artérias entre 4,0 e 6,0 mm de diâmetro, e outra menor, de 16 mm, para tratamento de artérias entre 5,5 e 8,0 mm de diâmetro. Sua ponta é flexível e configurada para ser atraumática. A manopla controla a flexão (com movimento longitudinal) e a abertura/fechamento da cesta (com movimento rotacional anti-horário/horário). A cesta deve ser introduzida fechada na artéria renal e prontamente aberta, assim que posicionada precisamente no sítio de aplicação de RF, promovendo contato adequado com a parede vascular para entrega apropriada de energia e consequente ablação dos nervos renais. Terminado o primeiro tratamento, a cesta é fechada, e o cateter é tracionado 10 mm e girado 45° para a segunda sequência de aplicações de RF. Posicionada no local adequado sob fluoroscopia e contrastação radiológica, a cesta é aberta novamente. Terminado o segundo tratamento, fecha-se a cesta e retira-se o cateter. Controle angiográfico pós-DSR é executado para constatar a integridade vascular. Procede-se da mesma maneira na artéria renal contralateral. Após o procedimento, a bainha deve ser retirada com cuidados rotineiros.

A segunda geração do EnligHTN®, já disponível na Europa, encurtou de forma expressiva a duração total de aplicação de RF: de 24 para 4 minutos, porquanto os quatro eletrodos são acionados simultaneamente por 60 segundos, totalizando 2 minutos para cada artéria; então, são 4 minutos para tratamento de duas artérias renais.

DISCUSSÃO

A hiperatividade simpática desempenha um papel relevante no desenvolvimento, na manutenção e no agravamento de arritmias ventriculares.1 A DSR surgiu como uma terapia adjuvante segura e eficaz no tratamento da HAS resistente e está sob investigação em outras condições clínicas associadas ao aumento do tônus simpático, como arritmias cardíacas. Relatamos aqui o primeiro caso de arritmia refratária, em paciente chagásica, tratada com DSR utilizando um sistema dedicado.

No átrio, o sistema nervoso autônomo influencia o cronotropismo e o dromotropismo. Está bem estabelecido que a ativação simpática aumenta a frequência cardíaca e facilita a condução atrioventricular. Por outro lado, a atividade parassimpática exerce efeitos opostos.3 Nos ventrículos, o aumento do tônus simpático reduz o período refratário efetivo ventricular, aumenta a automaticidade e diminui o limiar para arritmias ventriculares.4

Apesar da implementação de medidas socioeconômicas e do desenvolvimento de medicamentos que permitam o tratamento da fase aguda da doença, a cardiomiopatia chagásica crônica permanece como um grande problema de saúde pública em muitos países da América Latina. Essa enfermidade afeta cerca de 15 a 16 milhões de pessoas e é reponsável por cerca de 20 mil óbitos por ano no mundo.5 Cerca de dois terços dos pacientes com sintomas crônicos desenvolvem lesões cardíacas, incluindo dilatação e disfunção ventricular grave, taquiarritmias, bradiarritmias e, não raro, morte súbita.6 A natureza arritmogênica da doença de Chagas está relacionada à presença de tecido fibroso entremeado com áreas do miocárdio preservadas e regiões discinéticas, gerando um território de alta propensão a arritmias ventriculares complexas. TV/FV sustentada é a principal causa de morte dessa moléstia. As taxas de morte súbita são responsáveis por, aproximadamente, 55 a 65% da mortalidade total em pacientes com doença de Chagas, superando a mortalidade por insuficiência cardíaca.7

Ukena et al.8 relataram a primeira experiência de DSR em tempestade elétrica em dois pacientes com insuficiência cardíaca: um paciente com cardiomiopatia hipertrófica e TV monomórfica, a despeito do uso de antiarrítmicos e ablação cardíaca endocárdica e epicárdica sem sucesso; e outro com cardiomiopatia dilatada e episódios frequentes de FV/TV polimórfica, que recusou a ablação cardíaca. Em ambos os casos, a DSR resultou em redução significativa da carga arrítmica.

Staico et al.9 relataram recentemente redução substancial de TV e terapias apropriadas de CDI em paciente com cardiomiopatia dilatada e contraindicação de ablação cardíaca (trombo no ventrículo esquerdo) submetido à DSR. Notavelmente, esse paciente tinha três artérias renais acessórias e, devido ao pequeno diâmetro, apenas uma delas foi tratada, além das artérias renais principais.

É possível que, além da ação sobre o tônus autonômico, a DSR poderia resultar em efeitos secundários à redução do excesso de volume e ativação hormonal contemplados na insuficiência cardíaca. O estudo piloto Olomouc-1, apresentado no congresso da European Society of Cardiology, em 2012, comparou os efeitos de DSR ao tratamento médico otimizado em 51 pacientes com insuficiência cardíaca avançada e demonstrou que, além de redução nas dimensões do ventrículo esquerdo, a DSR reduziu o tônus autonômico e a frequência cardíaca média. No entanto, a paciente aqui apresentada não tinha disfunção ventricular, sugerindo que a redução da arritmia relacionou-se à modulação do tônus autonômico.

Mesmo que ainda não existam recomendações definitivas, é notória a importância da hiperatividade simpática em pacientes com arritmias ventriculares. O caso apresentado ilustra a viabilidade e a eficácia potencial de DSR nesse cenário. Ensaios clínicos maiores sobre o impacto de DSR em arritmias estão em andamento. Se comprovadas sua segurança e eficácia no controle de arritmias ventriculares, a DSR pode se tornar uma estratégia interessante para o tratamento desses pacientes.

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses relacionados a este manuscrito.

Recebido em: 2/10/2013

Aceito em: 3/12/2013

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  • 9. Staico R, Armaganijan L, Moreira D, Medeiros P, Melo J, Lopes R, et al. Renal sympathetic denervation and ventricular arrhythmias: a case of electrical storm with multiple renal arteries. EuroIntervention. 2013 Nov 8. pii:20131022-01 [epub ahead of print]
  • Endereço para correspondência:
    Rodolfo Staico
    Avenida Dr. Dante Pazzanese, 500 - Vila Mariana
    CEP 04012-180 - São Paulo, SP, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Mar 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      02 Out 2013
    • Aceito
      03 Dez 2013
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