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Fase Piloto do Estudo SPECTRUM. Reserva de Fluxo Fracionada Versus Angiografia para Avaliação e Conduta em Pacientes com Lesões Obstrutivas Coronárias de Grau Moderado: Racional e Desenho do Estudo

Resumos

Introdução:

A despeito de suas reconhecidas limitações, a angiografia coronária invasiva é o método mais usado (muitas vezes único) para a adoção de estratégias terapêuticas em pacientes submetidos a cateterismo cardíaco diagnóstico. A mensuração de reserva de fluxo fracionada (FFR) tem sido empregada em diversos estudos, fundamentalmente no contexto de pacientes em que a avaliação angiográfica per se indica a necessidade de intervenção sobre as lesões coronárias. No entanto, o método praticamente não foi ainda testado em condições opostas, no cenário clínico em que as obstruções, angiograficamente, não indicariam intervenções. O propósito deste trabalho, a ser realizado de forma piloto em dois centros, é testar a hipótese de que também para lesões intermediárias, nas quais a angiografia não demonstra necessidade de intervenção coronária, a medida de FFR resultaria em alteração da conduta terapêutica baseada em angiografia.

Métodos:

Serão incluídos pacientes consecutivos e clinicamente estáveis, com doença coronária em segmento proximal e/ou médio de um ou mais vasos epicárdicos (diâmetro > 2,5 mm), apresentando obstruções entre 40 e 70%, por estimativa visual. Em seguida, a conduta terapêutica (clínica ou intervencionista) baseada em angiografia, relativamente a essas lesões, será definida de maneira independente por consenso de dois observadores. A partir daí, os pacientes, em ambos os grupos, serão randomizados para dois subgrupos: (1) manutenção de conduta baseada na angiografia; e (2) realização de FFR para decisão terapêutica. Os pacientes com lesões em que se obtiver FFR < 0,80 serão tratados com revascularização percutânea ou cirúrgica, enquanto os portadores de lesões com FFR ≥ 0,80 serão tratados clinicamente.

Conclusões:

O presente estudo visa avaliar se a medida de FFR em lesões intermediárias não consideradas necessárias de tratamento intervencionista pela angiografia resulta em mudança de conduta.

Doença da artéria coronariana; Cateterismo cardíaco; Reserva fracionada de fluxo miocárdico; Angiografia coronária; Intervenção coronária percutânea


Background:

Despite its well-known limitations, invasive coronary angiography remains the most used, and often times the only method used to define treatment strategies in patients undergoing diagnostic cardiac catheterization. Measurement of coronary fractional flow reserve (FFR) has been used in several studies in patients for whom an interventional the rapy strategy was determined based on angiography. However, this method has not been tested in the opposite scenario, in which the angiographic evaluation does not indicate the need for interventions. The purpose of this pilot study, to be performed in two sites, is to test the hypothesis that for intermediate injuries, in which angiography does not indicate the need for coronary intervention, measurement of FFR might change the therapeutic approach based on angiography.

Methods:

Consecutive clinically stable patients, with coronary disease in the proximal or middle segment of one or more epicardial vessels (diameter > 2.5 mm), with injuries between 40 and 70% by visual estimation will be enrolled in this trial. The treatment approach (clinical or interventional) based on angiography will be defined independently and by consensus of two observers. Thereafter, patients in both groups will be randomized into two subgroups: (1) maintenance of the angiography-based therapeutic strategy; and (2) use of FFR to define therapeutic strategy. Patients with FFR < 0.80 will be treated by percutaneous or surgical revascularization, whereas patients with FFR ≥ 0.80 will be treated clinically.

Conclusions:

The present study is aimed at evaluating whether FFR measurement in intermediate lesions in which an interventional therapy is not indicated by angiography results in change of conduct.

Coronary artery disease; Cardiac catheterization; Fractional flow reserve, myocardial; Coronary angiography; Percutaneous coronary intervention


A determinação da gravidade de lesões intermediárias − estenoses reduzindo o diâmetro luminal entre 40 e 70% − por métodos angiográficos incorre potencialmente em inúmeras limitações.1Fischer JJ, Samady H, McPherson JA, Sarembock IJ, Powers ER, Gimple LW, et al. Comparison between visual assessment and quantitative angiography versus fractional flow reserve for native coronary narrowings of moderate severity. Am J Cardiol. 2002;90(3):210-5.,2Topol EJ, Nissen SE. Our preoccupation with coronary luminology: the dissociation between clinical and angiographic findings in ischemic heart disease. Circulation. 1995;92(8):2333-42. As correlações entre resultados histopatológicos e angiográficos evidenciam muitas discrepâncias entre essas análises.3Roberts WC, Virmani R. Quantification of coronary arterial narrowing in clinically-isolated unstable angina pectoris: an analysis of 22 necropsy patients. Am J Med. 1979;67(5):792-9. Também ocorre ampla variabilidade das estimativas visuais de gravidade, habitualmente documentadas entre observadores distintos, como demonstrado por estudos comparativos de angiografia quantitativa.4Detre KM, Wright E, Murphy ML, Takaro T. Observer agreement in evaluating coronary angiograms. Circulation. 1975; 52(6):979-86.,5Zir LM, Miller SW, Dinsmore RE, Gilbert JP, Harthorne JW. Interobserver variability in coronary angiography. Circulation. 1976;53(4):627-32. Recentemente, estudos correlacionando estimativas angiográficas da gravidade de estenoses coronárias com ultrassonografia intravascular, realizada durante o cateterismo cardíaco, também evidenciaram dificuldades daquelas avaliações angiográficas, inclusive elucidando-se aspectos de discrepância relativamente a métodos que avaliam a função, como a cintilografia miocárdica de perfusão.6Rodes-Cabau J, Candell-Riera J, Angel J, de Leon G, Pereztol O, Castell-Conesa J, et al. Relation of myocardial perfusion defects and nonsignificant coronary lesions by angiography with insights from intravascular ultrasound and coronary pressure measurements. Am J Cardiol. 2005;96(12):1621-6.

A despeito dessas limitações, a angiografia continua sendo não somente o método considerado padrão-ouro, como também o mais utilizado e preferencial na determinação de condutas relativas à revascularização miocárdica decorrente de lesões coronárias.7Marin-Neto JA, Ayres-Neto EM. Cinecoronariografia: quando não é e quando é preciso indicar? In: Timerman A CL, editor. Manual de cardiologia. São Paulo: Atheneu; 2000. p. 207-11.

Em outros termos, na maioria dos laboratórios de Cardiologia Intervencionista, e das circunstâncias em que são diagnosticadas as lesões coronárias, o critério angiográfico costuma ser absoluto e único para adoção de tratamento intervencionista percutâneo, de encaminhamento à cirurgia de revascularização miocárdica, ou, alternativamente, de permanência do paciente em tratamento apenas clínico.8Feres FM, Marin-Neto JA. Angiografia de contraste: ainda o método padrão para estratificação de risco em pacientes com síndrome isquêmica miocárdica instável em nosso meio? In: Nicolau JC M-NJ, editor. Síndromes isquêmicas miocárdicas instáveis. São Paulo: Atheneu; 2001. p. 189-201. Em condições menos frequentes, após a angiografia, recorre-se a métodos complementares de avaliação da repercussão funcional da lesão coronária de gravidade intermediária, para se definir a conduta terapêutica. Nesses casos, demanda-se a execução de exames como a cintilografia miocárdica de perfusão, ou a ecocardiografia de estresse, em ocasiões posteriores ao cateterismo cardíaco diagnóstico.9Simões MV, Salis FV, Marin-Neto JA. Exames com radionuclídeos nas síndromes isquêmicas miocárdicas instáveis: o que acrescentam à avaliação ergométrica e ecocardiográfica? In: Nicolau JC M-NJ, editor. Síndromes isquêmicas miocárdicas instáveis. São Paulo: Atheneu; 2001. p. 135-76. Ao final desse processo, combinase a informação angiográfica, essencialmente anatômica, com os elementos diagnósticos funcionais, para a conduta terapêutica que, se resultante em procedimento de Cardiologia Intervencionista, obrigatoriamente exigirá a realização de outro cateterismo cardíaco − agora com finalidade terapêutica.

Assim, essa sistemática de encaminhamento de soluções para os problemas enfrentados por pacientes com coronariopatias ressente-se de duas limitações essenciais: a primeira, no sentido de que vários procedimentos de revascularização miocárdica, por intervenção percutânea ou mesmo cirurgia cardíaca, acabem por ser executados, sem necessidade comprovada, devido à superestimação da gravidade avaliada apenas com o método anatômico (angiográfico); e a segunda, por envolver, às vezes, excessiva perda de tempo oportuno para a intervenção, requerendo-se a avaliação funcional com outro método e terminando-se por necessitar de dois procedimentos de cateterismo cardíaco − aquele que permitiu a avaliação anatômica, e o que possibilitará a intervenção terapêutica por via percutânea. Além dessas limitações, existem também o consequente aumento de gastos e o comprometimento custo-efetivo do processo.

MÉTODO DE MEDIDA DA RESERVA DE FLUXO FRACIONADA

Define-se reserva de fluxo fracionada (FFR, sigla do inglês fractional flow reserve) como o fluxo sanguíneo máximo para o miocárdio na presença de uma determinada estenose (ou estenoses), dividido pelo máximo fluxo alcançável se não houvesse nenhuma estenose. Esse índice representa a fração do fluxo miocárdico máximo normal que pode ser atingido a despeito da presença da estenose. Com base em conceitos teóricos, validados em modelos experimentais, a FFR pode ser diretamente determinada dividindo-se a pressão média distal à lesão coronariana pela pressão média em aorta durante a vasodilatação coronária máxima (induzida por papaverina, ou adenosina intracoronariana, ou adenosina intravenosa). Uma FFR de 0,60 significa que a quantidade máxima de sangue (e oxigênio) que irriga aquela área específica do miocárdio atinge apenas 60% do que atingiria se a artéria responsável fosse completamente normal. Se, após uma intervenção percutânea, a FFR aumentar para 0,90, isso significa que o fluxo máximo alcançável para a área de miocárdio suprida por aquela artéria (e, consequentemente, o suprimento de oxigênio) terá aumentado em 50% e é agora 90% do valor atingível se a artéria fosse completamente normal.1010 van de Hoef TP, Meuwissen M, Escaned J, Davies JE, Siebes M, Spaan JA, et al. Fractional flow reserve as a surrogate for inducible myocardial ischaemia. Nat Rev Cardiol. 2013; 10(8):43952.

11 Kern MJ, Lerman A, Bech JW, De Bruyne B, Eeckhout E, Fearon WF, et al. Physiological assessment of coronary artery disease in the cardiac catheterization laboratory: a scientific statement from the American Heart Association Committee on Diagnostic and Interventional Cardiac Catheterization, Council on Clinical Cardiology. Circulation. 2006;114(12):1321-41.

12 Lim MJ, Kern MJ. Coronary pathophysiology in the cardiac cathe terization laboratory. Curr Probl Cardiol. 2006;31(8):493-550.
-1313 Gould KL, Lipscomb K, Hamilton GW. Physiologic basis for assessing critical coronary stenosis. Instantaneous flow response and regional distribution during coronary hyperemia as measures of coronary flow reserve. Am J Cardiol. 1974;33(1):87-94.

UTILIZAÇÃO DO MÉTODO DE MEDIDA DA RESERVA DE FLUXO FRACIONADA NA PRÁTICA CLÍNICA

O método de medida de FFR aplicado durante a realização do cateterismo cardíaco diagnóstico permite a avaliação intravascular imediata do significado funcional de lesões coronarianas angiograficamente detectadas, de maneira rápida e objetiva.1414 Pijls NH, De Bruyne B, Peels K, Van Der Voort PH, Bonnier HJ, Bartunek JKJJ, et al. Measurement of fractional flow reserve to assess the functional severity of coronary-artery stenoses. N Engl J Med. 1996;334(26):1703-8. Metanálise de múltiplos estudos correlativos, empregando a determinação da FFR, angiografia quantitativa e/ou exames funcionais não invasivos, comprovou ser essa estimativa de FFR capaz de avaliar as condições de suprimento sanguíneo miocárdico regional, independentemente das condições vigentes de frequência cardíaca, pressão arterial e contratilidade cardíaca.1515 Christou MA, Siontis GC, Katritsis DG, Ioannidis JP. Meta-analysis of fractional flow reserve versus quantitative coronary angiography and noninvasive imaging for evaluation of myocardial ischemia. Am J Cardiol. 2007;99(4):450-6.

A medida da FFR mostrase particularmente apropriada para análise do significado funcional de lesões coronárias moderadamente graves (40 a 70% de redução do diâmetro luminal, detectadas pela angiografia).1616 Chamuleau SA, Meuwissen M, Koch KT, van Eck-Smit BL, Tio RA, Tijssen JG, et al. Usefulness of fractional flow reserve for risk stratification of patients with multivessel coronary artery disease and an intermediate stenosis. Am J Cardiol. 2002; 89(4):37780.,1717 Fearon WF, Takagi A, Jeremias A, Yeung AC, Joye JD, Cohen DJ, et al. Use of fractional myocardial flow reserve to assess the functional significance of intermediate coronary stenoses. Am J Cardiol. 2000;86(9):1013-4, A10. Com base nos resultados de inúmeros estudos, demonstrouse que pacientes com lesões coronárias associadas com valor de FFR > 0,80 podem ser tratados conservadoramente (isto é, sem necessidade de intervenção coronária para revascularização miocárdica), sendo a evolução, em médio e longo prazos, equivalente ou até superior à observada quando os pacientes realizam intervenção coronária percutânea (ICP) para tratar tais lesões.1818 Pijls NH, van Schaardenburgh P, Manoharan G, Boersma E, Bech JW, van't Veer M, et al. Percutaneous coronary intervention of functionally nonsignificant stenosis: 5-year follow-up of the DEFER Study. J Am Coll Cardiol. 2007;49(21):2105-11.

19 Berger A, Botman KJ, MacCarthy PA, Wijns W, Bartunek J, Heyndrickx GR, et al. Long-term clinical outcome after fractional flow reserve-guided percutaneous coronary intervention in patients with multivessel disease. J Am Coll Cardiol. Cardiol. 2005;46(3):438-42.?
-2020 Wongpraparut N, Yalamanchili V, Pasnoori V, Satran A, Chandra M, Masden R, et al. Thirty-month outcome after fractional flow reserve-guided versus conventional multivessel percutaneous coronary intervention. Am J Cardiol. 2005;96(7):877-84. Deve-se enfatizar que o protocolo desses estudos sempre focalizou exclusivamente grupos de pacientes em que a FFR era usada apenas para se manter ou não uma conduta intervencionista até então considerada preferencial a partir dos aspectos meramente angiográficos.

Entretanto, não há estudos randomizados em população mais abrangente de pacientes com doença coronária estável submetida à coronariografia sem exames funcionais prévios, nos quais lesões intermediárias tenham sido observadas, de modo que permitam identificar a mudança de conduta angiográfica lastreada em FFR e o impacto clínico prognóstico, comparativamente à habitual conduta baseada apenas em angiografia. Para tal, torna-se necessário avaliar o impacto do uso combinado da avaliação angiográfica e da FFR sobre a população geral de pacientes, apresentando essencialmente o problema de uma ou mais lesões de gravidade intermediária, mas que a conduta de intervenção tenha sido exclusivamente ditada pela angiografia. Isso deve ser realizado aleatorizando-se um grupo de tais pacientes para determinação de FFR vs. a conduta habitualmente embasada apenas em angiografia coronária.

OBJETIVOS

O propósito do presente trabalho, a ser realizado de forma piloto em dois centros, mas com vistas a uma extensão futura, em formato multicêntrico (com objetivos mais abrangentes e clinicamente mais relevantes), é o de verificar o impacto da avaliação combinada angiográfica e funcional, por meio do cateterismo cardíaco em pacientes estáveis e com lesões consideradas intermediárias. Para tanto, definimos os objetivos primário e secundário descritos a seguir.

Objetivo primário

Avaliar se, nessa população de pacientes, a estratégia de medida da FFR em lesões coronárias intermediárias resulta em mudança significativa na conduta habitualmente adotada com base em angiografia, referente a procedimentos de revascularização miocárdica. A alteração de conduta eventualmente promovida pela mensuração de FFR será, então, aferida não somente em pacientes nos quais a angiografia indicar a necessidade de intervenção coronária, mas também − e, especialmente −, naqueles que, avaliados somente pela angiografia, seguiriam conduta conservadora, de tratamento clínico, sem intervenção coronária.

Objetivo secundário

Avaliar se a estratégia lastreada nessa abordagem funcional imediata e direta, na própria sala de cateterismo cardíaco, produz desfechos clínicos superiores aos proporcionados por estratégia baseada exclusivamente em angiografia. Na fase piloto do estudo, em amostra populacional limitada, este objetivo terá caráter meramente exploratório de hipótese.

MÉTODOS

Serão incluídos pacientes consecutivos e clinicamente estáveis, encaminhados para angiografia coronária sem provas funcionais de isquemia com métodos de imageamento cardíaco.

Nessa fase piloto do projeto SPECTRUM, o estudo será desenvolvido de forma bicêntrica, com os critérios iniciais de arrolamento de pacientes descritos a seguir.

Os critérios de inclusão serão: ter mais que 18 anos; apresentar doença coronária em segmentos proximal e/ou médio de um ou mais vasos epicárdicos principais com pelo menos uma lesão entre 40 e 70% por estimativa visual baseada em angiografia; e ser capaz de fornecer consentimento informado. Serão excluídos: pacientes com disfunção ventricular acentuada (fração de ejeção do ventrículo esquerdo − FEVE < 30%); com doença multiarterial coronária, com disfunção de VE (FE < 40%); com doença de tronco de coronária esquerda > 50% por estimativa visual; que apresentem vasos com oclusões crônicas; que apresentem vasos com diâmetro < 2,5 mm; com anatomia coronária desfavorável a intervenção percutânea (por exemplo: tortuosidade excessiva) ou a revascularização cirúrgica (por exemplo: coronárias sem alvos cirúrgicos adequados para implante de enxertos arteriais e/ou venosos); com trombo intracoronário; que apresentem infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST < 30 dias; com provas funcionais de isquemia com imagem anterior ao cateterismo inicial; com revascularização miocárdica cirúrgica prévia; que tenham doença valvar cardíaca necessitando intervenção percutânea ou cirúrgica; com contraindicações à anticoagulação; com contraindicações ao uso de antiagregantes plaquetários; grávidas; com comorbidades que limitem a expectativa de vida a menos de 2 anos.

Após esclarecimento quanto aos propósitos do estudo e tendo assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, os pacientes serão submetidos a cinecoronariografia de forma habitual, nas Unidades de Cardiologia Intervencionista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, em Ribeirão Preto (SP), e do Instituto do Coração, em São Paulo (SP). O protocolo foi analisado e aprovado em 14 de abril de 2008 pela Comissão de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (protocolo 2.317/2008).

Após o arrolamento no estudo, a conduta terapêutica inicial, baseada em angiografia, relativamente a essas lesões, será sempre definida de maneira independente, por consenso de dois observadores com experiência angiográfica e intervencionista. Se houver discordância entre os dois observadores, um terceiro observador será responsável pelo desempate, de forma ainda independente. Após a definição de conduta baseada em angiografia, que pode indicar uma estratégia clínica ou intervencionista (percutânea ou cirúrgica) para cada lesão coronária intermediária, os pacientes serão alocados por algoritmo aleatorizado central, em proporção 1:1, entre dois grupos: (1) grupo de manutenção de conduta baseada na angiografia; (2) grupo em que se procederá à estimativa de FFR das lesões em questão.

Pacientes com lesões com valor de FFR < 0,80 serão tratados com revascularização percutânea ou cirúrgica de forma convencional, enquanto os portadores de lesões com FFR ≥ 0,80 serão tratados clinicamente. A determinação da modalidade de revascularização (percutânea ou cirúrgica) será feita de acordo com a discrição do investigador, mediante consideração dos aspectos angiográficos, clínicos e logísticos da instituição. Esses passos estão dispostos na Figura 1.

Figura 1
Pacientes encaminhados para cineangiocoronariografia sem testes funcionais por imagem. TCO: tratamento clínico otimizado. FFR: reserva de fluxo fracionada.

A estimativa da FFR será realizada com analisadores manométricos e mediante instrumentação intracoronária com corda-guia (0,014” de diâmetro, 0,36 mm) que utiliza um sensor específico localizado a 3 cm de sua ponta (Radi Medical Systems, Uppsala, Suécia ou Volcano Smartwire II, Volcano Corporation, Rancho Cordova, Estados Unidos) após a indução de hiperemia máxima com injeções de bólus de 80 a 450 µg de adenosina intracoronária. Usualmente, para cada avaliação de uma lesão coronária, são realizadas duas a três injeções intracoronárias de adenosina, e o valor mais baixo de FFR será o computado. Em caso de lesões em série, a revascularização só será indicada se a FFR < 0,80 após ultrapassadas todas as lesões; no caso de revascularização percutânea, o investigador deverá intervir na lesão que aparenta ser a mais grave. Após a intervenção nessa lesão, a FFR deverá ser medida novamente, e lesões residuais serão tratadas se FFR permanecer < 0,80.

Pacientes serão seguidos por pelo menos 12 meses, com visitas programadas para 30, 90, 180 e 360 dias após a randomização. Nas visitas de 30, 180 e 360 dias, está prevista a realização de eletrocardiograma com 12 derivações. O desfecho primário dessa fase piloto do estudo SPECTRUM consiste na taxa de ocorrência de alteração na conduta habitualmente adotada com base em angiografia, relativamente a procedimentos de revascularização miocárdica, indicados ou não a partir dos resultados de FFR. O desfecho secundário consiste na taxa cumulativa da ocorrência de um composto de eventos cardíacos adversos incluindo morte, infarto não fatal e nova revascularização, para as lesões inicialmente intermediárias (objeto do estudo) durante o primeiro ano de seguimento.

Cálculo amostral

No cálculo amostral, partiu-se das sete premissas descritas abaixo, em fórmula de Pocock.2121 Pocock SJ. The size of a clinical trial. clinical trials: a practical approach. Chichester: John Wiley & Sons; 1983. p. 123-38.

Premissa I: lesões intermediárias (40 a 70% de redução do diâmetro luminal, em pelo menos duas projeções angiográficas, definidas por análise qualitativa). Um paciente deverá ter uma ou mais lesões intermediárias, e todas serão aleatorizadas, individualmente.

Premissa II: por consenso entre dois examinadores experientes, ou por voto de um tertius, em caso de dissenso entre eles, e, ainda, por avaliação angiográfica qualitativa, uma primeira decisão será de: (a) seguir tratamento clínico otimizado; (b) revascularizar o miocárdio dependente daquela lesão, tratando-a por via percutânea ou cirúrgica, em associação a tratamento clínico otimizado. Assim, com base na angiografia:

• N = número total final de lesões.

• N1 = número de lesões alocadas para tratamento clínico otimizado (M).

• N2 = número de lesões alocadas para revascularização (R).

Premissa III: cálculo amostral baseado na comparação da proporção de lesões que serão revascularizadas (R), sendo todas elas, nos dois grupos M e R, aleatorizadas na razão 1:1 para avaliar-se (+F) ou não (-F) o significado funcional da lesão com a medida da FFR.

Premissa IV: o erro alfa e o erro beta para o cálculo amostral terão valores fixados, respectivamente, em 5 e 20% (poder do estudo para detectar as diferenças de proporções, como verificadas a seguir, de 80%).

Randomização no grupo N1

Lesões alocadas para tratamento clínico otimizado (M) pela angiografia:

N1 x 0,5: aleatorizadas para (-F): N1’ = número de lesões que serão tratadas clinicamente (M)

Nos outros 50% deste grupo:

N1’ = N1 x 0,5: aleatorizadas para (+F)

Premissa V: avaliação baseada na FFR alterará em 20% a conduta angiográfica.2222 Sant'Anna FM, Silva EE, Batista LA, Ventura FM, Barrozo CA, Pijls NH. Influence of routine assessment of fractional flow reserve on decision making during coronary interventions. Am J Cardiol. 2007;99(4):504-8. Assim:

N x 0,5 x 0,8: número de lesões que continuarão em tratamento clínico otimizado (M)

N x 0,5 x 0,2: número de lesões que se tratarão com revascularização percutânea ou cirúrgica (R)

Então,

• P(0), se não houvesse avaliação com FFR: 100% de lesões que seriam tratadas clinicamente (M) e 0% de revascularização (R).

• P(1), após avaliação com FFR: 90% de lesões que continuarão a ser tratadas clinicamente (M) e 10% revascularização (R).

• N1’ = [(100 x 0) + (90 x 10)] x 7,9 /(100 - 90)2.

• N1’ = 71 lesões (em cada braço da aleatorização).

• N1 = 2 x N1’ = 142 lesões.

Randomização no grupo N2

Lesões alocadas para revascularização (R) pela angiografia:

N2 x 0,5 = N2’: aleatorizadas para (-F): então, todas serão tratadas com revascularização (R)

Nos outros 50% deste grupo: N2’ = N2 x 0,5: aleatorizadas para (+F).

Premissa VI: avaliação com FFR neste grupo alterará a conduta em 35%.2121 Pocock SJ. The size of a clinical trial. clinical trials: a practical approach. Chichester: John Wiley & Sons; 1983. p. 123-38.

Assim:

N x 0,5 x 0,35: número de lesões que passarão a tratamento clínico otimizado (M)

N x 0,5 x 0,65: número de lesões que seguirão com revascularização (R).

Então,

• P(0), se não houvesse avaliação com FFR: 0% seguiria tratado clinicamente (M) e 100% seriam tratados com revascularização (R).

• P(1), após avaliação com FFR: 17,5% das lesões passarão a tratamento clínico (M) e 82,5% continuarão com revascularização (R).

• N2’ = ([(0 x 100) + (17,5 x 82,5)] x 7,9 / (100-82,5)2.

• N2’ = 38 lesões (em cada braço da aleatorização).

• N2 = 2 N2’ = 76 lesões.

Assim: N = 142 + 76 = 218 lesões.

Em proporção, portanto, de 65% vs. 35 % das lesões intermediárias alocadas pela angiografia, respectivamente nos grupos de tratamento clínico otimizado e revascularização.

Premissa VII: em proporção de 1,3 lesão por paciente, será necessário incluir 177 indivíduos nessa fase do projeto SPECTRUM.

Em síntese, pelas hipóteses do estudo, com a realização da medida de FFR, haverá redução de 20% de revascularização e alteração de conduta em 25% das lesões, de acordo com o protocolo experimental executado nessa fase. Entretanto, se FFR fosse implementada em todos os pacientes, o potencial de alteração da conduta para as lesões seria de até 60% (20% nos 60% de lesões alocadas pela angiografia para tratamento clínico e 40% nos 40% alocados pela angiografia para revascularização). Também por essas hipóteses, o potencial de modificação da conduta de revascularização seria de até: 60% / 5 = 12% de aumento no grupo 1 (alocado para tratamento clínico, inicialmente pela angiografia) e 40% / 3 = 16% de redução no grupo 2 (alocado para revascularização incialmente, pela angiografia), com economia líquida de 4%. Então, a partir dos resultados reais do estudo, nessa sua fase piloto, essas modificações serão aferidas, de fato, e determinarão a base para prosseguimento com a fase multicêntrica do projeto.

CONCLUSÕES

Esta é a primeira investigação em que serão estudados grupos de pacientes constituídos de forma aleatorizada e, portando, com lesões angiograficamente de gravidade intermediária, nos quais uma decisão inicial, embasada apenas no critério anatômico, mas não se limitando aos casos encaminhados para intervenção, será comparada à decisão lastreada em medida de reserva de fluxo fracionada. Assim, o impacto da avaliação funcional com reserva de fluxo fracionada será também aferido no grupo de pacientes em que a decisão angiográfica inicial for para tratamento apenas clínico, sem intervenção coronária. Essa fase piloto do estudo SPECTRUM servirá de base para sua fase de verificação, em número mais abrangente de casos, do impacto de ambas as estratégias de decisão, sobre a evolução dos pacientes, com foco em desfechos clinicamente relevantes.

  • FONTE DE FINANCIAMENTO
    Não há.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2014
  • Aceito
    26 Ago 2014
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